Papa Pio XI |
Para mim, o legado central do pensamento de
esquerda é a combinação do ideal da igualdade com a ruptura epistemológica representada
pela substituição de um pensamento tradicional por outro científico e crítico.
Diversas propostas de conciliação do pensamento cristão com esse legado têm sido formuladas. Entre as mais bem-sucedidas, figuram a Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação.
Vivemos num tempo em que tanto o pensamento
de esquerda como o de direita perderam o fascínio e não podem ser intensamente aplicados à sociedade. A situação tem, porém, uma vantagem: sabemos que o
caminho de construção da sociedade futura envolve a combinação de elementos do
liberalismo e da esquerda social. A combinação não nos remete necessariamente
ao ponto médio entre eles, mas tampouco nos relega à tarefa inglória de inventar o
absolutamente novo. Admito a necessidade de reinventarmos as formas de vida social, porém
inventá-las a partir de um marco zero, qualquer que ele seja, não é lá tarefa humana.
Para combinar elementos das visões de mundo liberais
e de esquerda, em vez de enxergá-las como absolutamente irreconciliáveis, é
preciso encontrar os seus pontos de contato. Esse é o desafio que aceito e que procurarei responder nesta curta série. Como não me compete partir do zero,
na tentativa de encontrar tais pontos, devo escolher uma das propostas de
conciliação já formuladas como referência. Por motivos de afinidade,
minha opção será pela Doutrina Social da Igreja.
No entanto, qualquer
aproximação verdadeira da esquerda envolve não só uma forte preocupação com a
igualdade, mas também com a ruptura epistemológica necessária para
que o pensamento se inspire, sem se orientar pelo passado. O que me conduz à
admissão de que, para partir da Doutrina da Igreja, precisarei buscar a ruptura epistemológica por conta própria, posto que o Magistério não a realiza. Mesmo assim, a crítica das teorias sociais de esquerda e direita, por
parte da Igreja, contém uma abertura para o pensamento social de ruptura que vale a pena explorar.
A doutrina social
católica começou a ser formulada no pontificado de Leão XIII (1878-1903), que publicou
uma série de textos sobre a questão social, dentre os quais merecem realce a Rerum
novarum (1891), que contém as bases do pensamento social católico, Arcanum
(1881), sobre a família e o matrimônio, Diuturnum (1881), que trata da
autoridade civil, Immortale Dei (1885), acerca das relações entre
Estado e Igreja, Sapientiae christianae (1890), que se detém nos deveres
dos cidadãos católicos, Quod apostolici muneris (1878), a respeito do
socialismo, e Libertas (1888), dedicada ao combate às falsas doutrinas
da liberdade.
Pelas datas dessas
encíclicas, percebemos que, ao lançar a mais importante delas, a Rerum novarum, Leão já se tinha
celebrizado como o Papa da questão social. Mesmo sem ter recebido educação
formal em ciências sociais, ele foi logo aclamado não apenas como fundador da
doutrina social católica, mas como uma das mais importantes vozes da História sobre
as interfaces da questão social com a moral e a religião.
Não muito depois de Leão, em 1931, Pio XI brindou-nos
com outra encíclica social, a Quadragesimo anno, que contém uma das mais
hábeis sínteses do pensamento social católico. Na parte do texto dedicada ao direito
de propriedade, lemos que “o homem é anterior ao Estado” e “a sociedade
doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade
real [...] Não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da
propriedade individual” (Pio XI. Quadragesimo anno. II, 1, nº 49).
Nesses trechos, Pio encadeia três citações da Rerum
novarum, cujo quadragésimo aniversário ele comemorava, para transmitir a
noção de que o direito antecede o homem e a família, e ambos, a sociedade civil. As
citações têm o claro propósito de antepor o natural ao jurídico. Por
isso mesmo, sugerem que o direito deve seguir os modelos de ordenação presentes na natureza.
A razão para isso é clara. A natureza não apenas se
organizou como foi criada por Deus. Na Doutrina da Igreja, esse é sempre um
ponto de honra, uma ideia fundamental. Pio, porém, o ultrapassa ao afirmar que Deus não apenas criou o Universo como inspirou os homens do passado a forjarem uma ordem social
que reflete a razão natural: “O que temos ensinado acerca da
restauração e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá
realizar-se sem a reforma dos costumes, como até a mesma história
eloquentemente demonstra. De fato, houve já uma ordem social que, apesar de
imperfeita e incompleta, era de algum modo, dadas as circunstâncias e
exigências do tempo, conforme à reta razão. E se essa ordem já de há muito se
extinguiu não foi de certo por ser incapaz de evolucionar e alargar-se” (idem.
II, 5).
A palavra restauração sugere que a doutrina social
católica não tem por finalidade implantar algo novo, mas recuperar o que
existiu em outras épocas. Para não pensarmos que as coisas que carecem de restauração são uns poucos elementos antigos, é importante notar que o texto se
refere a toda “uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de
algum modo [...] conforme à reta razão”. O ideal natural católico não é só
ideal, nem só natural. Ele se realizou. Tomou a forma visível não de um ou de outro
costume, mas de toda uma sociedade.
A que época Pio XI alude? À medieval, pois nela e
só nela a Igreja realmente reinou, às vezes sobre boa parte do orbe. Não por
acaso, a Idade Média é também a época a que a Igreja retorna para haurir a
teologia que entende sobressair a todas as outras: a de Santo Tomás.
Assim concebido, o direito natural católico deixa
de se basear apenas na ordem natural que antecede o próprio homem para se pautar, também e principalmente, num modelo
histórico de sociedade. Em outras palavras, o parâmetro do direito natural
católico não é a natureza, na sua imutabilidade, mas a sociedade como setor dela e uma sociedade particular, que a Igreja considera o modelo prático da
reta razão: a que existiu na Idade Média.
Embora a atração católica pelo medieval pareça bastante questionável, a historicização do ideal de uma sociedade, vale dizer, a sua realização
parcial tem grande interesse, pois provê ao direito natural uma face histórica
que, a um tempo, aumenta a sua nitidez e permite explicar as imperfeições
da justiça humana sem deixar de conectá-la à que se inspira na natureza. Para a Igreja, nenhuma sociedade é um espelho perfeito da
razão natural. Nem sequer a que ela toma como modelo. Porém, isso não impede
que ela constitua uma manifestação privilegiada do direito natural.
Até aqui, não vislumbramos abertura alguma para o
pensamento social de vanguarda. Porém, a Doutrina da Igreja não inclui somente
a defesa de um modelo social do passado, de corte medieval, mas também a
crítica das sociedades presentes. Essa é a vertente na qual ela se abre para o
pensamento progressista. Vejamos o que ela tem a dizer-nos a esse respeito.
Pio recorda que, “no fim do século XIX, em
consequência de um novo gênero de economia, que se ia formando, e dos grandes
progressos da indústria em muitas nações, aparecia a sociedade cada vez mais
dividida em duas classes: das quais uma, pequena em número, gozava de quase
todas as comodidades que as invenções modernas fornecem em abundância; ao passo
que a outra, composta de uma multidão imensa de operários, a gemer na mais
calamitosa miséria, em vão se esforçava por sair da penúria” (idem. nº 3).
No esforço de compreender esse estado de coisas, a
Igreja identifica a dominação econômica dos mais fracos pelos poderosos e a denuncia decididamente: “Desde que as artes mecânicas e a indústria
moderna em pouquíssimo tempo invadiram completamente e dominaram regiões
inumeráveis, tanto as terras chamadas novas, como o remoto Oriente cultivado já
na Antiguidade, cresceu desmesuradamente o número de proletários pobres” (idem.
II, 3).
Fica, assim, claro que o princípio por trás da Doutrina
da Igreja, o ponto em que ela se torna mais útil ao progresso social, é
a identificação e a denúncia de males sociais como “violações da justiça, não
só toleradas, mas por vezes até impostas pelos legisladores” (idem. nº 4). Expressões
como essas tornaram-se comuns, nos documentos da Igreja, desde o final do
século XIX. A justiça a que Pio se referiu é obviamente a natural. É, porém, uma
justiça natural historicizada ou encarnada, para nos valermos do evocativo termo da doutrina teológica em que ela se inspira.
A justiça historicizada da Igreja não é um ideal
naturalizado, mas encarnado. Todo valor tem a realizabilidade por atributo. Tanto
os valores individuais como os sociais realizam-se, em alguma medida, na História. Não é diferente com a aparição e o desenvolvimento da justiça, no interior de uma sociedade. Também eles constituem a realização parcial de um valor, pela sua transposição do plano ideal ao da História.
A mesma lógica permite identificar o que nega o
ideal da justiça, no âmbito histórico: “Por muito tempo pôde o capital arrogar-se demasiados
direitos. Todos os produtos e todos os lucros reclamava-os ele para si” (idem.
II, 2). Pio condenou nesses termos a traição do caráter social da propriedade. Para
ele, quando essa forma de relação se difundiu, no século XIX, “apregoava-se
que, por fatal lei econômica, pertencia aos patrões acumular todo o capital, e
que a mesma lei condenava e acorrentava os operários à perpétua pobreza e vida
miserável” (idem).
Porém, uma série de ressalvas aninha-se
nessas denúncias, de modo a afastar a aparente coincidência delas com as posições
da esquerda social. A primeira ressalva nos lembra que a natureza
do regime capitalista “não é viciosa” e que “só viola a reta ordem, quando o
capital escraviza os operários ou a classe proletária” (idem. III, 1).
Pode parecer estranho a Igreja sustentar a natureza
não viciosa do capital e, ao mesmo tempo, defender a função social da propriedade.
Quadragesimo anno desfaz a aparente contradição,
na passagem em que lemos: “O direito de propriedade é distinto do seu uso. Com
efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão
dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio
domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente,
é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento não pode
urgir-se por vias jurídicas” (idem. II, 1).
A justiça comutativa impõe que A não viole a
propriedade de B, ou B, a de A. Porém, nada sabemos de uma justiça que obrigue os
proprietários a usar o que é seu de modo altruísta. Agir com altruísmo não
importa satisfazer a justiça, comutativa ou distributiva, mas outras virtudes, como
a magnificência. Pio tem claro que a justiça, numa concepção social, não é a magnificência. Aquela é tutelada pelo direito, esta não. Nunca se
viu a lei obrigar o pedestre a dar esmola ao mendigo que lhe suplica. A generosidade,
como o altruísmo, não são valores tuteláveis juridicamente. Por isso, como um direito
natural, a propriedade se orienta ao benefício de todos, porém não
compulsoriamente.
Essa lição não se encontra somente em Pio, mas
também em Leão, em João XXIII e em Francisco. Enfim, está em toda parte na Doutrina
Católica. A justiça envolve as outras virtudes, mas em medida atenuada. É uma espécie de compêndio de versões mitigadas dos outros valores.
Nem o liberalismo, nem o socialismo conduzem à realização
da justiça. No primeiro, as classes lutam para “alcançar o predomínio
econômico; depois combatem-se renhidamente por obter predomínio no governo da
nação [...] enfim lutam os Estados entre si” (idem. III, 1). No socialismo, as
liberdades individuais são sacrificadas, sem ganhos notáveis para o conjunto da
sociedade.
Não é difícil perceber, nessas palavras, que a Igreja utiliza o flagelo crítico para condenar tanto os males do liberalismo quanto os da esquerda social. Porém, ao condená-los tão veementemente e poupar o ideal de ruptura epistemológica, ela remove coisas bastantes para que a cisão com partes do pensamento antigo possa penetrar no seu sistema. Feliz ou infelizmente, a própria Igreja não leva a cabo essa cisão. Deixa, porém, explícito que é possível realizá-la a partir da doutrina cristã.
A cisão é tentada, de certa maneira, pelas correntes que compõem o pensamento cristão de esquerda, entre as quais se destaca a Teologia da Libertação. Duas coisas sobressaem à primeira leitura dos autores dessa corrente teológica: sua consciência privilegiada da realidade histórica dos pobres e o risco em que incorre de tornar secundária a orientação da doutrina cristã ao divino. Os teólogos da libertação sempre procuraram desenvolver aquela consciência, mantendo sob controle o risco que ela envolve. Leonardo Boff encontra na encarnação do Verbo, descrita no prólogo do Evangelho de João (1:14), o princípio desse equilíbrio: "Que nos diz a tradição dogmática sobre a encarnação? Que o Filho de Deus deixou sua transcendência e assumiu em Jesus de Nazaré a natureza humana em situação de carne, quer dizer, limitada, vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito, aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma ‘inconfundível, imutável, indivisa e inseparável’ sendo Jesus, a um só tempo, ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem’ (Calcedônia, ano 451). Mas a encarnação não se limita a Jesus. Comenta a Gaudium et spes: ‘Por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem’ (nº 22)" (BOFF, Leonardo. “Pelos pobres, contra a estreiteza do método”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271).
Não é difícil perceber, nessas palavras, que a Igreja utiliza o flagelo crítico para condenar tanto os males do liberalismo quanto os da esquerda social. Porém, ao condená-los tão veementemente e poupar o ideal de ruptura epistemológica, ela remove coisas bastantes para que a cisão com partes do pensamento antigo possa penetrar no seu sistema. Feliz ou infelizmente, a própria Igreja não leva a cabo essa cisão. Deixa, porém, explícito que é possível realizá-la a partir da doutrina cristã.
A cisão é tentada, de certa maneira, pelas correntes que compõem o pensamento cristão de esquerda, entre as quais se destaca a Teologia da Libertação. Duas coisas sobressaem à primeira leitura dos autores dessa corrente teológica: sua consciência privilegiada da realidade histórica dos pobres e o risco em que incorre de tornar secundária a orientação da doutrina cristã ao divino. Os teólogos da libertação sempre procuraram desenvolver aquela consciência, mantendo sob controle o risco que ela envolve. Leonardo Boff encontra na encarnação do Verbo, descrita no prólogo do Evangelho de João (1:14), o princípio desse equilíbrio: "Que nos diz a tradição dogmática sobre a encarnação? Que o Filho de Deus deixou sua transcendência e assumiu em Jesus de Nazaré a natureza humana em situação de carne, quer dizer, limitada, vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito, aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma ‘inconfundível, imutável, indivisa e inseparável’ sendo Jesus, a um só tempo, ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem’ (Calcedônia, ano 451). Mas a encarnação não se limita a Jesus. Comenta a Gaudium et spes: ‘Por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem’ (nº 22)" (BOFF, Leonardo. “Pelos pobres, contra a estreiteza do método”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271).
Boff bem poderia ter mencionado outras passagens da Gaudium et spes em prol de sua posição, como a que afirma que "o Verbo de Deus [...] entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a" [47]. De fato, na fé católica, o princípio da encarnação envolve não só a assunção de um corpo, mas da História por Deus. Esse é o princípio que anima a Teologia da Libertação, se a compreendo. A costura que ela realiza da pobreza em Deus não é exterior, aparente ou superficial. Não é um remendo, mas um enxerto dela na natureza divina.
Contra os excessos dessa visão, um dos mais eminentes teólogos da libertação entre nós Clodovis Boff insurgiu-se, recentemente, ao propor que o princípio Cristo (o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, enquanto fundamento da fé) não inclui a pobreza. Na linguagem do teólogo brasileiro, isso implica reconhecer a ambiguidade da Teologia da Libertação, ao identificar o pobre com Cristo, em sentido absoluto e não relativo. Cristo e só Cristo deve ser afirmado como princípio fundamental e absoluto da fé. Sem se esquecer que "princípio é princípio. É coisa límpida, inequívoca, efeito da reductio ad unum. Agora, quando se começa a vacilar, falando nestes termos: ‘princípio, sim, mas mediado’, princípio-fé, sim, mas também princípio-misericórdia’, ‘Deus, sim, mas sempre com os pobres’ [como faz a Teologia da Libertação], pronto, acabou-se o princípio e começou a derivação" (BOFF, Clodovis. “Volta ao fundamento –
réplica”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271,
2008).
Parece existir, de fato, uma discrepância entre a ligação da pobreza à natureza divina, que a Teologia da Libertação realiza, e a interpretação mais aceita da encarnação. Duas fórmulas tradicionais sintetizam essa interpretação: o cânon de Niceia (325 d. C.) que declara que Cristo “é gerado, não criado, homoousios (consubstancial) ao Pai” e o do Concílio de Calcedônia (451 d. C.), segundo o qual se deve “confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito em divindade e perfeito em humanidade, o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto de uma alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade [...] um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão”.
No contexto da literatura grega, a palavra ousios assume diversos significados. Contudo, o tratamento que lhe foi dado por Aristóteles fez com que um dos significados sobressaísse, ao menos no âmbito filosófico: "A concepção tradicional supõe que o conceito de ousia tenha sido fixado pela discussão de Aristóteles nas Categorias" (STEAD, Christopher. A Filosofia na
Antiguidade Cristã. São Paulo: Paulus, 1999. p. 151). E, assim como Aristóteles influenciou o uso filosófico de ousia, os pais capadócios (Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo) tiveram peso semelhante na definição do sentido teológico: "A distinção entre ousia e hipóstase [...] foi pela primeira vez exposta de modo amplo pelos Padres Capadócios" (idem. p. 165). Consistiu em "restringir o sentido de ousia para a espécie; o indivíduo deveria ser indicado pela palavra hipóstase" (idem. p. 152). Desde os padres capadócios, portanto também em Calcedônia, ousia passou a ser cada vez mais claramente utilizado para indicar a espécie, e hyposthasis, para referir-se ao indivíduo.
Assim, quando os documentos do Concílio de Calcedônia referem-se a Cristo como consubstancial (homoousios) ao Pai e a nós, a ideia é a de alguém dotado da mesma substância ou pertencente à espécie de Deus e do homem. Nesse ponto, o uso teológico concorda com o filosófico, já que a tradição derivada de Aristóteles relaciona substância (ousios) com natureza (physis). Tal o sentido provável da fórmula de Calcedônia citada por Leornardo Boff.
Nenhum versículo do Novo Testamento usa a linguagem metafísica tão amplamente para afirmar a unidade do Pai com o Filho. O que há de mais próximo da linguagem de Calcedônia, no Novo Testamento, é “a expressão exata do ser [do Pai]” (Hb 1:3), que o autor de Hebreus atribui a Cristo. O termo grego aqui traduzido ser não é ousios, nem physis, mas hypóstasis, que não tem o mesmo significado daquelas. Entre outras coisas, hypóstasis indica a pessoa. Portanto, o sentido é de que Cristo não é a pessoa (hypóstasis) do Pai, mas a sua expressão exata, sua marca (semelhante à de um selo ou impressão em relevo).
Porém, a adoção da linguagem metafísica, pelos autores do Novo Testamento e, em maior medida, pelos pais dos primeiros séculos, tem uma consequência que não cabe desconsiderar: ela exclui do mistério da encarnação toda carga relacionada ao contexto ou às circunstâncias históricas. A encarnação é pontual: se assumiu as circunstâncias históricas do seu próprio tempo, Cristo não pode ter feito o mesmo com as circunstâncias das outras épocas. Se se encarnou no primeiro século, ele não assumiu o restante do tempo.
As épocas são históricas; a assunção da natureza humana é metafísica. Cristo tomou a natureza do homem em si mesmo, isto é, na sua pessoa. Ele não assumiu as realidades exteriores da época da mesma forma. Como a pobreza é uma situação social, estender à História o significado dos símbolos de Niceia e Calcedônia a respeito da encarnação parece um procedimento hegeliano, contrário ao sentido das fontes cristãs.
Em segundo lugar, não há evidências de que Jesus tenha nascido pobre, no sentido que o termo tinha no primeiro século. O fato de ter sido posto na manjedoura, após Maria ter dado à luz, explica-se pela falta de “lugar para eles na hospedaria” (Lc 2:7), não por uma condição de pobreza atestável. No século I, não poucas famílias judias, da Galileia inclusive, eram abastadas ou pertenciam à classe emergente, em razão do surto de construções empreendidas por Herodes, o Grande. Não há razão clara para excluirmos a família de Jesus desse número ou para afirmarmos que ele se fez pobre ao nascer. Aparentemente, Jesus só se fez pobre, mais tarde, ao renunciar aos bens materiais a fim de levar a cabo o seu ministério.
Paulo aludiu a esse fato ao declarar, em 2ª aos Coríntios 8:9, que “Jesus Cristo, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos”. Riqueza é um atributo da forma de Deus, mencionada em Filipenses 2:6. É-lhe, pois, inerente e necessária. Pobreza, ao contrário, não é um atributo da condição humana. É, antes, uma situação contingente. Decorre da escassez de bens vitais. Entre a riqueza e a pobreza,há uma antítese clara e total. Por isso, não é possível entender a pobreza como um dado da natureza humana.
Como Paulo as menciona, a riqueza é espiritual, a pobreza, material; a riqueza é divina, a pobreza, humana; a primeira é necessária, a outra, circunstancial e contingente. Só assim, elas se opõem de todos os modos. Porém assim, também, é afirmado que Cristo, ao encarnar-se, depôs sua riqueza espiritual, inerente e divina para unir-se à natureza humana e, mais tarde, abraçar a pobreza material.
Se Cristo tivesse assumido as circunstâncias do seu próprio tempo ou de todos os tempos, por que responderia ao homem que lhe pediu que mandasse seu irmão repartir a herança com ele: “Quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?”(Lc 12:13-14). Alguma vez Jesus se negou a curar um doente? Não, pois libertar da doença era parte da sua missão. No entanto, ele se recusou a resolver a querela patrimonial de dois homens para mostrar que as obras situadas no domínio da História não são tratadas segundo o princípio da encarnação e sim pelos povos e suas instituições.
Em Betânia, quando Maria, irmã de Marta, ungiu Jesus com óleo caríssimo e foi repreendida por impedir que ele fosse vendido, e o valor, dado aos pobres, Jesus afirmou: “Os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (Mt 26:6-13; Jo 12:1-8). E, insatisfeito, acrescentou: “Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado o que ela fez” (Mt 26:13). A doação aos pobres, a transformação do dinheiro em esmola, era importante e sagrada, mas não havia de ser exagerada ou tornada um exemplo para todos. Seu contrário, o desperdício de Maria, é que foi transformado em exemplo para pessoas de todos os lugares e de todas as épocas.
Um dos textos mais citados pelos representantes da Teologia da Libertação é a parábola do julgamento escatológico. Não poucos teólogos veem no rei que separa as ovelhas dos cabritos um juiz comprometido com os pobres: “Então perguntarão os justos [as ovelhas]: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? [...] O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”(Mt 25:37,40).
No entanto, uma série de dificuldades impede a interpretação de que o rei escatológico julgue de acordo com o comportamento das pessoas em relação aos pobres. Primeiramente, o rei não disse que as ovelhas deram de comer e beber aos pobres, mas aos pequeninos. A condição bem-aventurada, a condição com que Cristo se identifica, não é a pobreza e sim a pequenez, que nos quatro Evangelhos indica a simplicidade de coração. Por isso também, o juiz declarou aos injustos: “Em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer” (Mt 25:45).
Em segundo lugar, é esquecido que o ensino do texto é metafórico. Nem as ovelhas são ovelhas, nem os cabritos são cabritos, nem os pequeninos são crianças, nem a comida é comida, a bebida, bebida e assim por diante. O próprio Jesus afirmou que as ovelhas são os justos, e os cabritos, os ímpios. Nessa linha de pensamento, os pequeninos são os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os perseguidos e assim por diante (Mt 5:3-10). Não são única e exclusivamente os pobres.
Mesmo assim, as Escrituras reservam um lugar importante à atenção aos pobres. Jesus afirmou que “os pobres sempre os tendes convosco” (Mt 26:12). Não quer isso lembrar que a persistência da pobreza nos convoca a não a perder de vista e a dispensar-lhe continuada atenção? A diferença entre essa atenção e a ênfase que a Teologia da Libertação deposita no ministério aos pobres é unicamente de medida. A opção preferencial pelos pobres não pode ser levada ao ponto da atenção preferencial à matéria. Enquanto existir miséria, os cristãos estão convocados a contribuir para atenuá-la. Mas não a transformar a reversão da pobreza em sua missão precípua. O cuidado dos pobres e o envolvimento com a questão da miséria sempre acompanharam a pregação do evangelho. Devem continuar a fazê-lo. Mas, exatamente por acompanharem-na, elas não se confundem com a própria pregação cristã.