sábado, 29 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (32): A Justiça e os Desvalores

A justiça não é um sentimento que induz à contemplação, mas à ação e à revolução. Não podemos deixar de reconhecer a presença dela no movimento Occupy Wall Street, nas manifestações de meados de 2013, no Brasil, nos confrontos de fevereiro de 2014, na Ucrânia, e nas revoltas desta semana, nos Estados Unidos. Em todos esses casos, o sentimento de justiça motivou movimentos e transformações sociais importantes.
O filósofo do direito italiano Giorgio del Vecchio referiu-se a esse sentimento em termos translúcidos: “O homem tem uma faculdade originária, não induzível da experiência, graças à qual nos é possível distinguir a Justiça da injustiça. Aristóteles já punha em relevo essa faculdade, também designada por sentimento do justo e do injusto [...] Deve admitir-se, portanto, que o sentimento jurídico, inerente à nossa própria natureza, é uma  força viva, originária e autônoma, e a fonte primária da evolução do Direito” (DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Armênio Amado, 1951. p. 394).
Como podemos entender a importância da justiça para as transformações sociais, à luz do princípio da prevalência das causas econômicas dos acontecimentos enunciado por Marx? Se a justiça é uma simples ideia ou um sentimento, não um fato econômico, como pode ter tanto peso nos acontecimentos? Ocorre que a justiça nunca é pensada à parte dos fatos ou, se preferirmos o enunciado inverso, os atos humanos não são eventos brutos, mas acontecimentos movidos por ideias e sentimentos. Por isso, quando nos referimos à prevalência das causas econômicas, incluímos nelas os pensamentos característicos dos fatos humanos.
Kelsen apontou, com razão, o quanto o conteúdo da justiça nos escapa. Podemos acrescentar que, quando isso ocorre, o valor social da justiça deixa de exercer influência sobre os acontecimentos. Porém, tanto a obscuridade como a não influência da justiça só se manifestam na medida em que tentamos extraí-la de relações numerosas demais, no espaço ou no tempo. Nesses casos, a justiça se torna indeterminada e irrelevante. Porém, quando a pensamos em contextos mais limitados, a justiça permanece clara e exerce a força conformadora dos acontecimentos a que já nos referimos.
Ubi societas, ibi jus, diz o brocardo milenar. Se o alterássemos ligeiramente, de modo a enunciar Ubi societas, ibi justitia, o brocardo exprimiria algo ainda mais profundo. Diria que onde há sociedade, há justiça. Portanto, que a justiça é tão real quanto a sociedade em que vigora. Mas, talvez por ser um sentimento, ela é de algum modo vaga e vaporosa, o que cria a necessidade de o jurista e o filósofo do direito precisarem o seu conteúdo. 
O método de determinação do conteúdo da justiça proposto nos últimos textos tem essa finalidade. Permite precisar o que é a justiça, não em todas as sociedades, mas para cada uma delas em particular e nas suas condições específicas de existência. Vimos que a justiça é sempre o vetor resultante dos valores que fundamentam as instituições. Toda instituição se funda em valores. A religião estriba-se na fé, na esperança e na caridade. O direito à vida fundamenta-se na vingança de sangue, nas sociedades em que o Estado ainda não se organizou, já que, onde não há Estado, não há reação coletiva à ofensa à vida, a não ser a vindita. A partir de quando o Estado se organiza, o direito à vida passa a repousar nele.
Por isso, nas sociedades em que a religião se desenvolveu e o Estado ainda não, a caridade coexiste com a vingança. Podemos afirmar que, em tais sociedades, a justiça inclui tanto a caridade quanto a vingança e que o critério de inclusão das duas é de ordem prática: se a justiça não incluísse um dos dois valores, ele ficaria sem proteção, o que seria prejudicial para a religião ou para o direito à vida.
A existência da vingança não importa a inexistência da justiça. O mesmo pode ser dito de instituições e desvalores como a escravidão e a exploração. Nenhuma delas é justa em si mesma ou em todas as situações, mas encontra justificação na medida em que a sua supressão implica a não proteção de valores fundamentais, como a produção dos meios de vida e a sobrevivência. 
Não precisamos negar a existência da vingança, da escravidão ou da exploração econômica, na História, para afirmar a da justiça. Em todos os modos de produção, sempre houve exploração. Podemos admitir até mesmo que ela foi essencial aos arranjos econômicos de todas as épocas e que só deixará de haver exploração, numa sociedade, quando a luta de classes e a dominação forem eliminadas. Mas não é isso que a História mostra, como Marx e Engels provaram no Manifesto comunista. A História é fortemente marcada pela luta de classes, que leva à dominação e à exploração dos mais fracos pelos mais fortes.
Porém, nem a luta, nem a dominação ou a exploração são casuais. Elas são consequências de leis sociais. Marx e Engels mostraram que os modos de produção são regidos por leis. É auspicioso que, no seu livro recente, Thomas Piketty tenha reconhecido a existência dessas leis e derivado delas a sua intepretação da desigualdade (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 57 e 165).
Prestemos atenção a este ponto. Piketty postula que a desigualdade não pode ser entendida, se as leis que a produzem não o forem. Mas, se assim é, a desigualdade é uma florescência de leis sociais. E, como toda lei é uma relação necessária, temos de concluir que a desigualdade é um fenômeno necessário. Como nenhum fato baseado em necessidade pode ser injusto, segue-se que a desigualdade, na medida em que necessária, não é injusta. Ressalto que essa conclusão decorre do estudo da desigualdade pelo método adotado por Piketty, ou seja, a partir de leis.
Estou a afirmar que a desigualdade nunca é injusta? Não. Afirmo que ela pode ser ou não ser injusta e que não o é, quando decorre de uma necessidade. Há uma desigualdade que decorre e outra que não decorre de necessidade. Portanto, há desigualdade que ofende e que não ofende a justiça. O fundamental é que a existência da desigualdade não impede a da justiça, exatamente como a vingança não a impede.
Não é diferente com a luta de classes, a dominação e a exploração econômica. Assim como a desigualdade, esses fenômenos também são corolários das leis que regem os modos de produção. Como corolários de leis, eles são necessários. E, por serem necessários, não ofendem a justiça, antes coexistem com ela.
Teço essas observações para tornar claro que a existência de fenômenos como a desigualdade, a luta de classes, a dominação, a exploração e outros semelhantes não constitui prova de que a justiça não existe. Não estou a afirmar que tais fenômenos são justos. A justiça social é um agregado de valores, nunca de desvalores. Porém, numa sociedade constituída por homens e mulheres imperfeitos, o agregado não exclui os desvalores: coexiste com eles. A justiça não existe em estado de pureza, mas em meio a impurezas. Nem por isso estou a propor uma teoria impura do direito.
Fácil é perceber que não concebo a justiça como aquele ideal etéreo e irrealizável cuja existência é negada peremptoriamente por Kelsen. A justiça não só é realizável como constitui o princípio de tudo o que pode realizar-se no território da ética. Nenhum objeto bom pode existir, se não for conforme a justiça. Nenhum mau o pode, se não coexistir com ela. 
Mais que negar a justiça, portanto, precisamos estabelecer um método que nos permita determinar o conteúdo dela com segurança. Um método que converta a justiça de ideal incerto num conceito socialmente aceito e determinado. Vimos que esse método pode consistir em identificar os valores que as instituições promovem, compará-los e eliminar os que atentam contra outros valores. Assim, a justiça passa a ter configuração clara, em sociedades limitadas no tempo e no espaço.
Essa configuração não é impedida por desequilíbrios persistentes na sociedade. Pensemos na conservação da desigualdade que Piketty descreve e quantifica. Se, em todos os modos de produção, os níveis de desigualdade sempre foram semelhantes, com a notável exceção do século XX, a desigualdade deve ser considerada injusta? A resposta há de ser sim apenas para a desigualdade não baseada em necessidade. Se entendermos que a justiça como harmonia de valores vigora sem excluir os desvalores, o funcionamento básico da sociedade poderá ser considerado justo, e a prática dos desvalores, atribuída à necessidade.
Passemos a um fato mais recente, como a crise financeira de 2007-2008. Ela deveu-se ao endividamento que se seguiu ao arrocho da renda da classe média, nos Estados Unidos. Deveu-se também à criação de obrigações jurídicas nunca antes vistas, que multiplicaram e concentraram as dívidas nas empresas que vieram a falir. Esses foram os fatos. O que invoca os fantasmas da interpretação são as tentativas desastradas de entendê-los em termos de justiça.
À luz da concepção de justiça aqui defendida, o arrocho da classe média que causou a crise não foi justo, mas coexistiu com a justiça do regime capitalista, o que significa que não a eliminou. Por outro lado, a multiplicação de obrigações jurídicas novas que levou à concentração das dívidas tampouco inviabilizou a justiça social, antes coexistiu com ela. A realização simultânea dos opostos - de um lado a justiça inerente ao sistema, de outro os arrochos e a concentração das dívidas - é tão inegável quanto que, num sistema de normas, a justiça responde pelo todo e a injustiça pelas partes. Portanto, uma análise equilibrada conduz à conclusão de que as duas coisas coexistem e não devemos negar uma delas para afirmar a outra. A justiça existe e responde pelo sistema; as injustiças incidem nas partes dele. 
O fundamento em que essa interpretação da sociedade repousa é a admissão de que o que unifica as normas éticas e jurídicas é a justiça, sem a qual elas não formam um sistema. E, se o sistema é constituído precisamente pela justiça, não é possível afirmar que ele é injusto. Injustas são partes dele, nunca o sistema todo, nem suas bases. Portanto, para afirmar a injustiça de um modo de produção, não há outro caminho a não ser negar a sua organização em sistema. Mas o que observamos em todas as sociedades é exatamente o contrário. É que as normas que regem os modos de produção dispõem-se e o dispõem em sistema, pela força unificadora exercida pela justiça. Assim, somos compelidos a admitir que, na medida em que são regidos por normas sistematizadas, os modo de produção são justos.
Vemos que é perfeitamente possível interpretar a sociedade com base na justiça, sem eliminar o contrário dela: os desvalores. Aliás, quanto mais admitirmos que a justiça e os desvalores coexistem, mais a interpretação funcionará, pois mais o comportamento das pessoas  e dos grupos poderá ser explicado sem distorções. O desafio consiste em identificar o princípio dessa coexistência e em demonstrar em que condições ele opera. Sem esse discernimento, tudo o que restará, na ciência social, serão interpretações tão idealizadas quanto incapazes de captar o real funcionamento da sociedade.