A proposta desta série de textos é
retomar e, quiçá, aprofundar o trabalho reflexivo que pude iniciar, há anos, no campo da
Filosofia do Direito. E, como uma retomada deve ocorrer à luz das
intuições originais do trabalho, é fundamental recordar que, no meu caso, elas traduziram um ponto de vista não liberal.
Reconheço,
porém, que as ideias expostas num dos meus últimos livros, A função social do lucro (São Paulo: Themis, 2008), fizeram aumentar a incompreensão desse ponto particular, por implicarem que a produção
capitalista tende a melhorar a condição do proletariado. Essa afirmação é geralmente classificada como liberal, por ser encontrada nos
escritos de vários representantes do liberalismo. Porém, do modo como formulada
em meu livro, ela tem o sentido de uma constatação, do aprendizado de uma lição
histórica, e apenas isso. É mais uma concessão ao liberalismo do que adesão
a ele, já que não se conecta à gama de outras doutrinas daquele sistema, nem
afirma a visão de mundo dele.
A constatação que realizei foi, antes de tudo, de dados
objetivos. Por exemplo, em 1914, Henry Ford reduziu a
jornada e dobrou os salários dos trabalhadores das suas fábricas. O que lhe
permitiu adotar tais medidas foi a invenção da linha de produção, à qual se
seguiu uma verdadeira revolução social. O ponto nuclear dessa revolução foi o
fato de os salários, que haviam gravitado em redor do mínimo necessário à
sobrevivência, descolarem-se daquele valor, a partir da década de 1930.
Bruckberger apresenta os avanços do fordismo, em contraste com a perspectiva sombria que a ciência econômica fizera pairar sobre o mundo contemporâneo: “O crescente fardo das misérias e servidões impostas aos
trabalhadores pela primeira revolução industrial, a crença de que os recursos
do mundo eram limitados, que seriam em breve insuficientes para a população
global, devem ter criado uma atmosfera de catástrofe iminente [...] Num mundo
de recursos limitados, a ordem de urgência impôs aos espíritos lúcidos a
terrível ameaça da miséria generalizada e o problema da sobrevivência material.
Capitalismo e socialismo não viram como o problema poderia ser examinado de
outro modo” (BRUCKBERGER, R. L. A
república americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960. p. 287).
Porém, “a revolução industrial moderna [fordista] coloca o problema e os próprios
termos do problema de maneira inteiramente nova, e por isso permite escapar
tanto à solução socialista quanto à capitalista. Peter Drucker escreveu com
razão: ‘A expansão é possível, eis a grande descoberta da [segunda] revolução
industrial’” (idem. p. 288).
Por expansão, entendamos o crescimento da produção capitalista, sem a necessária geração de desequilíbrios sociais que o inviabilizem. Fatos como esse, apresentados em A função social do lucro, formam o fundamento da afirmativa
de que o desenvolvimento capitalista, quando não obstruído por contingências
contrárias, tende a melhorar a condição de todas as classes sociais, inclusive do proletariado. Tende, enfim, a produzir uma verdadeira revolução social.
Poucos
livros permitem testar melhor essa afirmação do que O capital no século XXI, do economista Thomas Piketty. A
obra foi justamente saudada pela contribuição que oferece à teoria econômica,
ao apresentar grande volume de estatísticas, coligidas com base em rigoroso
método científico, as quais comprovam que o nível de desigualdade pouco se alterou, do início da Revolução Industrial até hoje, nas principais nações
capitalistas.
Chama atenção,
de saída, que, embora crítico, o livro não adota posição radicalmente contrária ao regime capitalista. "Fui vacinado bem cedo", escreve Piketty, "contra os discursos anticapitalistas convencionais e preguiçosos, que parecem às vezes ignorar o fracasso histórico fundamental do comunismo [...] Não me interessa denunciar a desigualdade ou o capitalismo" (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 37).
Não poderia ser diferente, já que os dados de Piketty não conduzem, de nenhum modo claro, seja à condenação, seja ao prognóstico do fim do capitalismo. Na página 337, pelo contrário, ele esclarece que “o nível extremo de
concentração de riqueza –
da ordem de 80-90% do capital detido pelo décimo superior [10% mais ricos da
sociedade], dos quais 50-60% pertenciam ao centésimo superior [1% mais ricos] –
parecia ser mais ou menos o mesmo na maior parte das sociedades até o século
XIX e sobretudo nas sociedades agrárias tradicionais, tanto na época moderna
como na Idade Média e na Antiguidade” (idem. p. 337).
Por esses dados, concluímos que, se o capitalismo há de ser
responsabilizado pela desigualdade na sociedade atual, todos os outros modos de produção devem receber idêntico julgamento.
A
desigualdade não é prerrogativa do capitalismo. Na verdade, Piketty mostra que,
na história desse regime, o nível de desigualdade só chegou a
igualar o verificado em outros modos de produção, em momentos de pico.
A média histórica da desigualdade sob o capitalismo é inferior à dos outros modos de
produção, principalmente quando consideramos os dados do século XX.
Particularmente reveladoras são as informações de O
capital no século XXI sobre a Suécia: “A Suécia apresenta dados [de desigualdade]
bastante detalhados, recolhidos desde os anos 1910”. Porém, esses dados revelam
“uma trajetória muito próxima da observada na França e no Reino Unido [...] Em particular, os dados patrimoniais suecos confirmam o que já
havíamos descoberto graças às declarações de renda: a Suécia não é o país
estruturalmente igualitário que costumamos imaginar. A concentração de riqueza
na Suécia atingiu nos anos 1970-1980 o ponto mais baixo observado em nossas
séries históricas (com um pouco mais de 50% da riqueza total para o décimo
superior e não muito mais do que 15% para o centésimo superior). Entretanto,
mesmo se tratando de uma desigualdade elevada, [ela] aumentou sensivelmente
desde os anos 1980-1990 (a concentração de riqueza no início dos anos 2010
parece pouco menor do que a francesa)” (idem. pp. 336-337).
Não precisamos transformar esses dados em razão suficiente para concluir que o capitalismo é
o modo de produção mais igualitário da História. Porém, a soma deles com outros
dados parece apontar, precisamente, para tal conclusão. Não que o ponto forte
do capitalismo seja a produção da igualdade. Porém, em suas etapas
mais avançadas de desenvolvimento, ele é o modo de produção mais igualitário
dentre aqueles para os quais dispomos de dados suficientemente confiáveis. Ou,
se preferirmos a expressão divertida de Delfim Netto, é o mais desigual dos modos de
produção, exceto todos os outros.
Os
dados de Piketty são expressos, quase sempre, em percentuais e não em números
absolutos. Por isso, o significado primordial deles (a
manutenção do nível de desigualdade) é que a participação do
décimo e do centésimo mais ricos da população na riqueza social alterou-se pouco, nos últimos dois séculos, assim como a participação dos 50% mais pobres. Em
outras palavras, a desigualdade que Piketty informa ter-se mantido tem caráter
proporcional, razão pela qual nada diz sobre a riqueza ou pobreza absolutas.
Se,
além da desigualdade proporcional, considerarmos a condição de classe das
camadas desiguais, veremos que, embora as diferenças de riqueza se tenham
mantido, o acesso de cada camada a bens e serviços aumentou muitas vezes, em termos
gerais. Essa conclusão é tão fortemente proposta, pelos dados de
Piketty, quanto a preservação da desigualdade proporcional.
Por
exemplo: no período de 1820 a 2012, o crescimento médio da economia mundial
passou de 0,5% ao ano para 3% ao ano (idem. p.348). O aumento deve ser considerado vertiginoso, em comparação com os séculos precedentes. E, considerando
que não foi apenas vertiginoso, mas também prolongado, a quantidade absoluta de
riqueza acumulada, no período, não tem precedentes. O único modo de traçar
um retrato, ainda que pálido, das consequências disso, é comparar os
níveis de acesso à riqueza e de desenvolvimento tecnológico das sociedades
pesquisadas, em 1820 e em 2012, assim como o tamanho das respectivas populações.
Piketty está longe de negar essa revolução, no padrão de vida das classes sociais, embora ela tenha assumido extensões diferentes, em países diversos: "É claro que as condições materiais melhoraram de maneira extraordinária desde a Revolução Industrial, fornecendo aos habitantes do planeta formas mais eficazes de se alimentar, vestir, deslocar, informar, cuidar e assim por diante" (idem. p. 93). O mesmo vale para períodos mais curtos: "Nossas vidas foram transformadas radicalmente: no início dos anos 1980 não existiam nem a internet nem os telefones celulares, os transportes aéreos eram inacessíveis para um grande número de pessoas, a maioria das tecnologias de ponta da medicina disponíveis hoje ainda não existia e apenas uma minoria tinha acesso ao ensino superior" (idem. p. 99).
Desse ponto de vista amplo, podemos afirmar, com segurança, que a manutenção do nível de desigualdade foi
acompanhada do enriquecimento de todas as classes, em termos absolutos. Em outras palavras, a condição de classe foi revolucionada, tanto para o centésimo e o
décimo superiores como para os 40% intermediários e os 50% mais pobres. Negá-lo
é negar o significado essencial da evolução econômica observada no período em questão.
Se o nível de desigualdade é importante, a condição de classe
o é ainda mais, pois fornece a melhor medida do acesso efetivo das pessoas aos bens materiais.
Como os dados apresentados por Piketty são relativos às sociedades mais
desenvolvidas do mundo (Estados Unidos e Europa Ocidental), é impossível não
concluir que a melhoria da condição das diversas classes, nesses lugares, não só ocorreu como foi
extremamente significativa.
Resta estabelecer em que grau o enriquecimento a que me refiro foi determinado pelos mecanismos da
produção capitalista. Como o acesso aos bens aumentou na mesma
intensidade, nos anos situados entre 1820 e 1913, quando o nível de intervenção
estatal era baixo, e de 1913 a 2012, quando esse nível subiu aceleradamente,
parece certo que a causa principal do enriquecimento não foi a intervenção, mas o funcionamento dos
mecanismos da produção capitalista. O fato que as estatísticas mais põem em relevo é que
quanto mais intenso o funcionamento da produção, maior tende a ser o crescimento econômico, e quanto maior o crescimento, mais a condição de classe é elevada.
Portanto,
os dados reunidos por Piketty não parecem refutar, mas confirmar que a
produção capitalista induz a melhoria da condição de todas as classes econômicas,
embora contribua pouco para a redução do nível de desigualdade. Isso é verdade
tanto em sociedades em que o livre mercado foi adotado de maneira mais pura (como
os Estados Unidos) quanto em outras que desenvolveram maximamente o Estado de
bem-estar social (a exemplo da Suécia), já que as estatísticas desses países mostram níveis de desigualdade semelhantes.
Conjuguemos,
então, as conclusões: o funcionamento da produção capitalista tende a revolucionar
a condição de todas as classes; por outro lado, o capitalismo não é capaz de
eliminar a desigualdade entendida como a participação
percentual de cada classe na riqueza e na renda. Mas ele contribui para
diminuí-la. Prova disso é que as estatísticas mais confiáveis apresentadas por
Piketty - as da França sobre o período de 1810 a 2010 - mostram uma queda da
participação do décimo superior na riqueza global de 80% para 62% e do
centésimo superior de 45% para 25% (idem. pp. 331-332). Repito que, nas duas metades desse período, a intensidade do processo foi semelhante e que, em todos os outros
países pesquisados, verificaram-se reduções parecidas.
Piketty,
porém, esclarece que essa redução da desigualdade consistiu na transferência
de riqueza das camadas superiores para as intermediárias da pirâmide social. As
classes inferiores não foram beneficiadas pelo processo. Para ele, a redução efetiva da desigualdade concentrou-se no século XX e teve duas causas principais: os choques de 1914 a 1945 e o aumento da tributação do capital, nas nações desenvolvidas, de níveis próximos de zero para cerca de 30% (idem. p. 364).
Não discutirei esses dados e a interpretação que Piketty lhes dá. Só lembrarei que eles não autorizam confundir a redução da desigualdade com a revolução da condição de classe. Trata-se de conceitos distintos, cujas causas podem ser diversas ou coincidir. Se o recuo da desigualdade for atribuído aos choques e ao aumento dos impostos, ainda assim, a revolução da condição de classe terá de ser associado à continuidade da produção capitalista. Isso me parece, de todo, inevitável.
Popper
mostrou que a ciência se constroi mais pela não refutação do que pela
comprovação de afirmações. Ao ler o livro de Piketty, precisamos
atentar não só para o que ele comprova, para os dados que traz e as conclusões que
formula, mas ainda mais para as teses que não refuta. Dentre as teses não
refutadas pelo livro, a mais importante é a da tendência da
produção capitalista a revolucionar a condição de classe. Essa é a sonda que
nos permite examinar e entender em maior profundidade as sociedades em que vivemos.
A revolução da condição de classe e a redução das desigualdades são tarefas que incumbem, ao mesmo tempo, à economia e ao Estado. Afirmar
que elas cabem a um de modo nenhum implica que o outro não tenha contribuição a ofertar ou não esteja obrigado a ofertá-la. Por isso, a tese de que os
mecanismos da produção capitalista tendem a revolucionar a condição de classe
não é suficiente para excluir a contribuição do Estado para a consecução do mesmo fim ou para caracterizar uma doutrina como liberal.
Em
Liberdade e direito escrevi: “Se a
intervenção do Estado se direcionar a objetivos expansionistas ou se tornar
totalitária [...] os resultados tenderão a ser catastróficos. Foi o que aconteceu
na Alemanha nazista, na União Soviética e em tantos outros lugares. Porém, se a
intervenção estatal tiver em vista a regulação da economia, para impedir os
abusos dos mais fortes em prejuízo dos mais fracos, assim como o fornecimento
de serviços básicos acessíveis à população carente, então a tendência passará a
ser de realização da justiça social, sem prejuízo das liberdades” (MORAIS, Luís
Fernando Lobão. Liberdade e direito.
Campinas: Copola, 2000. p. 432).
Afirmei
ainda que, “se as desigualdades se manifestam muito profundamente, como é o
caso em diversos países e no mundo em geral, hoje em dia, a prestação de
serviços essenciais passa a ser a missão principal a que o Estado se deve
devotar” (idem. p. 434). Essa não é uma posição liberal. Só não é uma posição
que suponha que, se o mercado realiza tão bem ou melhor a revolução
da condição de classe e a redução das desigualdades, sua contribuição deva ser
rejeitada para podermos morrer enrolados à bandeira de uma ideologia.