Adam Smith considerava que o desenvolvimento comercial dos séculos
XVI e XVII beneficiara a sociedade europeia como um todo e não só as classes
superiores. De acordo com ele, o
trabalhador jornaleiro da Grã Bretanha ou da Holanda “suporta em seus ombros todo
o edifício da sociedade humana”. Nada parece pior que a sua situação. Porém,
“esse humílimo e desprezadíssimo membro da sociedade evoluída” é mais rico que
um príncipe pele-vermelha, o qual é “o dono absoluto da vida e da liberdade de
um milhar de selvagens nus” (citado em COLLETTI, Lucio. Ultrapassando o marxismo – e as
ideologias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983. p. 159).
Em O capital no século XXI, Thomas Piketty mostrou que não dispomos de dados
que nos permitam julgar se essa avaliação do capitalismo dos séculos XVI e XVII
é correta ou não. Só a partir do final do século XVIII, informações confiáveis sobre as sociedades europeias começaram a ser reunidas. Piketty utiliza esses dados para mostrar que a participação tanto do décimo como do centésimo superiores na
riqueza do Reino Unido e da França, aumentou de modo sustentado, durante todo o século XIX (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2014. pp. 332, 335). No Reino Unido, o centésimo mais rico
passou de 55% a 70%, e o décimo superior, de 82% a 92% da riqueza total, de 1810 a 1910. Na
França, as variações foram de 45% a 60% e de 80% a 89%.
Esses dados comprovam o que a literatura sempre nos informou, a
saber: que a Revolução Industrial do século XIX, de certo modo, empobreceu a população urbana
da Europa. Marx, por exemplo, escreveu que, “como resultado do movimento
industrial [...] já não são os pobres surgidos naturalmente e oprimidos pela
sociedade, mas as camadas artificialmente empobrecidas pela dissolução drástica
da sociedade, sobretudo a classe média, que vem a formar o proletariado atual”
(MARX, Karl. Critique of Hegel’s Philosophy
of Right. Introduction. Disponível em www.marxists.org).
Esses fatos foram razoavelmente comprovados. Porém, devemo-nos precaver contra a manipulação imprecisa deles. O filósofo Olavo de Carvalho preveniu-nos contra esse perigo, antes mesmo de Piketty ter publicado suas estatísticas. Numa afamada discussão na Internet, ele afirmou: "Saí do
Partido [Comunista] [...] e durante 25 anos não dei
palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e
tentando chegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é imenso, e me
leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista. Por exemplo,
para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos mais ricos e os pobres
mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à mão, a
Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na época, e o
melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento. Quando
Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário do que ele estava
dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que é que ele fez?
Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros estão na
biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas
como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os
registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que
seja" (http://www.olavodecarvalho.org/ textos/ debate_usp_1.htm).
Se deixarmos de lado o tom polêmico e até acusatório da fala de Carvalho, sua afirmativa de que os dados sobre desigualdade disponíveis, na maior parte das nações, no século XIX, não eram confiáveis coincide, aproximadamente, com a avaliação de Piketty. E o mais curioso é que eles convergem até onde parecem divergir, vale dizer, no ponto relativo à condição da classe trabalhadora. Carvalho afirma que os dados a que Marx teve acesso mostravam que essa condição melhorara. As informações de Piketty, por sua vez, mostram o aumento da desigualdade a partir de 1810. Porém, já vimos que esse aumento normalmente nada tem a ver com piora da condição de classe. Portanto, Carvalho e Piketty concordam nesse particular. Assim, se pudermos juntar os dados de meados do século XIX (que Carvalho afirma terem sido lidos e omitidos por Marx) com os de Piketty sobre o período de 1810 a 1910, concluiremos que a condição da classe trabalhadora melhorou até mesmo na parte do século XIX em que a desigualdade aumentou.
Porém, no início da Revolução Industrial, a produção da pobreza, de fato, deixou de ocorrer pelos antigos métodos de opressão, que foram substituídos pela dissolução de
camadas sociais inteiras, “sobretudo a classe média”. Marx presenciou esse
processo e o registrou, como Smith vivera o anterior e o registrara. A
diferença é que a ciência social pôde resgatar dados confiáveis do século XIX,
que comprovaram o processo descrito por Marx, porém não dados capazes de atestar o processo a que Smith aludiu e que teria tornado o menor, “humílimo e
desprezadíssimo membro da sociedade evoluída mais rico que um príncipe
pele-vermelha”.
Chamemos proletarização o processo de pauperização da classe média
ocorrido entre o fim do século XVIII e o fim do XIX. Sabemos que ele se deveu, acima de tudo,
à substituição da força de trabalho humana por máquinas. Digno de destaque é
que as estatísticas publicadas por Piketty confirmam e descrevem, com precisão,
a extensão desse processo.
É importante observar que a proletarização não foi revertida pelas
altas taxas de crescimento verificadas durante a Revolução Industrial, que
teriam sido suficientes para melhorar de modo substancial a condição do
proletariado, se a substituição maciça de força de trabalho por máquinas não
tivesse ocorrido. Como o crescimento acima de certo limiar é o fator principal
de melhora da condição das classes sociais, é espantoso que taxas tão elevadas
quanto as do século XIX não tenham sido suficientes para elevar a condição do proletariado.
E que os acontecimentos tenham mostrado que, ainda assim, a proletarização se
reverteu, entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX.
Vale a pena comparar essas considerações com o que Peter Drucker escreveu no fim do século passado: “Até a Primeira Guerra Mundial, nenhum governo na história havia conseguido – mesmo em tempo de guerra – obter do seu povo mais que uma pequena fração da renda nacional do país, talvez 5 ou 6 por cento. Mas na Primeira Guerra Mundial todos os beligerantes, até mesmo os mais pobres, descobriram que praticamente não havia limites para aquilo que o governo pode extrair da população. Quando começou a guerra as economias de todas as nações beligerantes estavam plenamente monetizadas. Como resultado os dois mais pobres, a Áustria-Hungria e a Rússia, conseguiram, em vários anos da guerra, taxar e tomar emprestado mais que a renda total anual das suas respectivas populações. Elas conseguiram liquidar o capital acumulado ao longo de muitas décadas e transformá-lo em material bélico. Joseph Schumpeter, que então ainda vivia na Áustria, entendeu imediatamente o que havia acontecido. Mas os outros economistas e a maior parte dos governos precisaram de mais uma lição: a Segunda Guerra Mundial” (DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. pp. 90-91).
Drucker sugere que as duas Guerras Mundiais levaram à descoberta dos meios pelos quais o limite de 5 ou 6% do PIB (pouco mais, em alguns casos), ao qual a tributação sempre estivera sujeita, podia ser excedido. A descoberta teve alcance comparável à invenção do computador, pois nunca mais a carga tributária foi a mesma. E é indispensável observar que o aumento dela não se deveu a necessidades incontornáveis, mas à expansão pura e simples da capacidade arrecadatória dos Estados pela monetização econômica.
Drucker prossegue na sua análise do fenômeno que denomina Estado fiscal: “A União Soviética, oficialmente dedicada à igualdade, criou uma grande nomenklatura de funcionários privilegiados, com níveis de renda muito superiores àqueles dos ricos no tempo dos czares. Quanto mais estagnava a produtividade soviética, maior se tornava a desigualdade de renda” (idem. p. 95).
Contudo, os soviéticos não detinham o monopólio da combinação de concentração de riqueza e desigualdade de renda. Nos Estados Unidos, “a partir da Guerra do Vietnã, a desigualdade de renda começou a crescer firmemente, a despeito da taxação. Fez pouca diferença os ricos serem pesadamente taxados nos governos Nixon e Carter e muito menos taxados no governo Reagan. Da mesma forma, no Reino Unido, a despeito de um compromisso declarado com o igualitarismo e de um sistema fiscal concebido para minimizar a desigualdade de renda, a distribuição de renda vem se tornando cada vez mais desigual nos últimos trinta anos, quando a produtividade parou de crescer” (idem. p. 96).
Se Drucker tem alguma razão, o aumento de impostos não pode ser associado necessariamente à queda da desigualdade. À maior tributação pode ou não se seguir tal queda. Portanto, se o aumento dos impostos sobre o capital é efetivamente capaz de explicar a queda da desigualdade, no século XX, como Piketty sugere e podemos aceitar, a capacidade é específica daquela modalidade tributária. Não se estende a outras modalidades de impostos. Muito menos à tributação em geral.
Piketty assevera que o aumento dos impostos promove “uma grande dispersão da riqueza” (PIKETTY, Thomas. Ob. cit. p. 364). Não há, nessas palavras conclusivas, nem nos dados de Piketty mais geralmente considerados, qualquer garantia de que a "grande dispersão" equivalha a uma transferência patrimonial do décimo ou do centésimo mais rico para as camadas pobres da população. Pelo contrário, o próprio Piketty esclarece que a transferência efetivamente observada, no século passado, se deu dos estratos superiores para os intermediários da pirâmide social (idem. pp. 329, 364).
Digamos, pois, claramente: se desproletarização é a melhora da condição socioeconômica das camadas mais desfavorecidas de todas, e o aumento de impostos reverteu em favor das classes intermediárias, ele não explica, de maneira alguma, a desproletarização. Aliás, a cronologia do aumento de impostos fornecida por Piketty e Drucker dá conta de que a tributação só alcançou o nível atual após a 2ª Guerra, quando a desproletarização já fizera progressos consideráveis, o que confirma que a relação de causa e efeito entre elas é bastante tênue.
Em A função social do lucro, propus que a desproletarização foi causada pela alocação crescente dos investimentos sob a forma de salário. Como é possível testar essa afirmação com base nos dados fornecidos por Piketty? No gráfico da página 341 de O capital no século XXI, nosso autor mostra que a participação do centésimo e do décimo superiores dos Estados Unidos na riqueza total despencou, entre 1920 e 1940. Na Europa, isso ocorreu, durante um período maior (1910 a 1970), e foi levado mais longe, resultando em maior transferência proporcional de riqueza.
O impressionante nesses dados é o fato de nos revelarem que, nos dois continentes, o mesmo processo de redução produziu o mesmo resultado básico, no entanto a Europa levou 60 anos para alcançar esse resultado, e os Estados Unidos, apenas 20. Pensamos que a rapidez da mudança, nos EUA, deveu-se à relação maior dela com acontecimentos no interior do mercado (revolução fordista etc.), enquanto na Europa ela teve relação também com a atuação estatal. E que, desse modo, fica comprovada a relação entre a redução da desigualdade e a produção capitalista.
Se, na Europa, o período de queda da desigualdade coincide, em parte, com o aumento da intervenção estatal, nos Estados Unidos, o aumento foi tão precoce quanto rápido. Ocorreu entre 1920 e 1940, quando a intervenção estatal ainda era diminuta, e o imposto sobre o capital ainda não existia (idem. pp. 518-519). A que podemos atribuí-lo? Piketty atribui-o quase inteiramente aos choques induzidos pelas Guerras Mundiais, mas isso não o dispensa de explicar quais foram os mecanismos econômicos pelos quais os conflitos se traduziram em compressão da desigualdade. Esse é, a meu ver, o principal problema da obra de Thomas Piketty. Uma das raras passagens que citam um desses mecanismos é a que se refere à Europa da Belle Époque: "Podemos calcular que 1% dos herdeiros parisienses mais ricos dispunham, na Belle Époque, de um patrimônio que lhes permitia financiar um nível de vida da ordem de oitenta a cem vezes mais alto do que o salário médio da época e ainda reinvestir uma pequena parte do capital, de modo a aumentar um pouco a riqueza que foi recebida [...] O equilíbrio se quebra, nitidamente, no entreguerras: o 0,1% dos herdeiros parisienses mais ricos continuam vivendo mais ou menos como no passado, mas o que eles deixam permite financiar entre trinta e quarenta vezes o salário médio da época" (idem. p. 360).
Esse foi um mecanismo específico, pelo qual os choques da 1ª Guerra traduziram-se em redução da desigualdade. Mas, como já disse, é uma das poucas passagens de O capital no século XXI em que a alusão genérica aos choques é traduzida em mecanismos específicos. Mesmo assim, os gráficos de Piketty mostram que a queda do nível de desigualdade, a partir da 1ª Guerra, foi abrupta demais para não ter relação com os conflitos bélicos. A relação entre ela e as Guerras foi real, mas quero ressaltar que, ao menos no caso dos Estados Unidos, entre 1920 e 1940, não se pode negar que ela mascara uma causa de todo distinta. A ilação mais lógica que se pode estabelecer entre as Guerras e os mecanismos econômicos de redução da desigualdade é que a destruição contínua do capital (indústrias etc.) pelas duas Guerras reduziu drasticamente a taxa de retorno dele. Esse deve ter sido o mecanismo principal, pelo qual os "choques das Guerras" se traduziu em redução da desigualdade. Porém, o mecanismo só funcionou ali onde houve destruição. Os Estados Unidos praticamente não sofreram destruição territorial, durante as Guerras. Pearl Harbor foi exceção e ficava no Havaí. Além disso, a queda da desigualdade, nos Estados Unidos, no século XX, começou após a 1ª Guerra (1920) e terminou antes de o país ingressar na 2ª (1940). É difícil aceitar que os "choques das Guerras" tenham sido responsáveis pela redução da desigualdade americana, exatamente nesse período.
Seria de espantar que efeito tão espetacular quanto a queda da desigualdade no século XX não tivesse concausas provindas de mais de um dos subsistemas da sociedade: no caso, do subsistema político e também do econômico. Piketty quer confinar as causas primárias ao subsistema político, mas os fatos parecem mostrar que elas operaram também no outro. A revolução do fordismo é um exemplo claro de causa econômica que contribuiu, decisivamente, para a queda da desigualdade nos Estados Unidos, entre 1920 e 1940. E, se contribuiu decisivamente nos Estados Unidos, essa causa deve ter feito o mesmo na Europa.
Vale a pena comparar essas considerações com o que Peter Drucker escreveu no fim do século passado: “Até a Primeira Guerra Mundial, nenhum governo na história havia conseguido – mesmo em tempo de guerra – obter do seu povo mais que uma pequena fração da renda nacional do país, talvez 5 ou 6 por cento. Mas na Primeira Guerra Mundial todos os beligerantes, até mesmo os mais pobres, descobriram que praticamente não havia limites para aquilo que o governo pode extrair da população. Quando começou a guerra as economias de todas as nações beligerantes estavam plenamente monetizadas. Como resultado os dois mais pobres, a Áustria-Hungria e a Rússia, conseguiram, em vários anos da guerra, taxar e tomar emprestado mais que a renda total anual das suas respectivas populações. Elas conseguiram liquidar o capital acumulado ao longo de muitas décadas e transformá-lo em material bélico. Joseph Schumpeter, que então ainda vivia na Áustria, entendeu imediatamente o que havia acontecido. Mas os outros economistas e a maior parte dos governos precisaram de mais uma lição: a Segunda Guerra Mundial” (DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. pp. 90-91).
Drucker sugere que as duas Guerras Mundiais levaram à descoberta dos meios pelos quais o limite de 5 ou 6% do PIB (pouco mais, em alguns casos), ao qual a tributação sempre estivera sujeita, podia ser excedido. A descoberta teve alcance comparável à invenção do computador, pois nunca mais a carga tributária foi a mesma. E é indispensável observar que o aumento dela não se deveu a necessidades incontornáveis, mas à expansão pura e simples da capacidade arrecadatória dos Estados pela monetização econômica.
Drucker prossegue na sua análise do fenômeno que denomina Estado fiscal: “A União Soviética, oficialmente dedicada à igualdade, criou uma grande nomenklatura de funcionários privilegiados, com níveis de renda muito superiores àqueles dos ricos no tempo dos czares. Quanto mais estagnava a produtividade soviética, maior se tornava a desigualdade de renda” (idem. p. 95).
Contudo, os soviéticos não detinham o monopólio da combinação de concentração de riqueza e desigualdade de renda. Nos Estados Unidos, “a partir da Guerra do Vietnã, a desigualdade de renda começou a crescer firmemente, a despeito da taxação. Fez pouca diferença os ricos serem pesadamente taxados nos governos Nixon e Carter e muito menos taxados no governo Reagan. Da mesma forma, no Reino Unido, a despeito de um compromisso declarado com o igualitarismo e de um sistema fiscal concebido para minimizar a desigualdade de renda, a distribuição de renda vem se tornando cada vez mais desigual nos últimos trinta anos, quando a produtividade parou de crescer” (idem. p. 96).
Se Drucker tem alguma razão, o aumento de impostos não pode ser associado necessariamente à queda da desigualdade. À maior tributação pode ou não se seguir tal queda. Portanto, se o aumento dos impostos sobre o capital é efetivamente capaz de explicar a queda da desigualdade, no século XX, como Piketty sugere e podemos aceitar, a capacidade é específica daquela modalidade tributária. Não se estende a outras modalidades de impostos. Muito menos à tributação em geral.
Piketty assevera que o aumento dos impostos promove “uma grande dispersão da riqueza” (PIKETTY, Thomas. Ob. cit. p. 364). Não há, nessas palavras conclusivas, nem nos dados de Piketty mais geralmente considerados, qualquer garantia de que a "grande dispersão" equivalha a uma transferência patrimonial do décimo ou do centésimo mais rico para as camadas pobres da população. Pelo contrário, o próprio Piketty esclarece que a transferência efetivamente observada, no século passado, se deu dos estratos superiores para os intermediários da pirâmide social (idem. pp. 329, 364).
Digamos, pois, claramente: se desproletarização é a melhora da condição socioeconômica das camadas mais desfavorecidas de todas, e o aumento de impostos reverteu em favor das classes intermediárias, ele não explica, de maneira alguma, a desproletarização. Aliás, a cronologia do aumento de impostos fornecida por Piketty e Drucker dá conta de que a tributação só alcançou o nível atual após a 2ª Guerra, quando a desproletarização já fizera progressos consideráveis, o que confirma que a relação de causa e efeito entre elas é bastante tênue.
Em A função social do lucro, propus que a desproletarização foi causada pela alocação crescente dos investimentos sob a forma de salário. Como é possível testar essa afirmação com base nos dados fornecidos por Piketty? No gráfico da página 341 de O capital no século XXI, nosso autor mostra que a participação do centésimo e do décimo superiores dos Estados Unidos na riqueza total despencou, entre 1920 e 1940. Na Europa, isso ocorreu, durante um período maior (1910 a 1970), e foi levado mais longe, resultando em maior transferência proporcional de riqueza.
O impressionante nesses dados é o fato de nos revelarem que, nos dois continentes, o mesmo processo de redução produziu o mesmo resultado básico, no entanto a Europa levou 60 anos para alcançar esse resultado, e os Estados Unidos, apenas 20. Pensamos que a rapidez da mudança, nos EUA, deveu-se à relação maior dela com acontecimentos no interior do mercado (revolução fordista etc.), enquanto na Europa ela teve relação também com a atuação estatal. E que, desse modo, fica comprovada a relação entre a redução da desigualdade e a produção capitalista.
Se, na Europa, o período de queda da desigualdade coincide, em parte, com o aumento da intervenção estatal, nos Estados Unidos, o aumento foi tão precoce quanto rápido. Ocorreu entre 1920 e 1940, quando a intervenção estatal ainda era diminuta, e o imposto sobre o capital ainda não existia (idem. pp. 518-519). A que podemos atribuí-lo? Piketty atribui-o quase inteiramente aos choques induzidos pelas Guerras Mundiais, mas isso não o dispensa de explicar quais foram os mecanismos econômicos pelos quais os conflitos se traduziram em compressão da desigualdade. Esse é, a meu ver, o principal problema da obra de Thomas Piketty. Uma das raras passagens que citam um desses mecanismos é a que se refere à Europa da Belle Époque: "Podemos calcular que 1% dos herdeiros parisienses mais ricos dispunham, na Belle Époque, de um patrimônio que lhes permitia financiar um nível de vida da ordem de oitenta a cem vezes mais alto do que o salário médio da época e ainda reinvestir uma pequena parte do capital, de modo a aumentar um pouco a riqueza que foi recebida [...] O equilíbrio se quebra, nitidamente, no entreguerras: o 0,1% dos herdeiros parisienses mais ricos continuam vivendo mais ou menos como no passado, mas o que eles deixam permite financiar entre trinta e quarenta vezes o salário médio da época" (idem. p. 360).
Esse foi um mecanismo específico, pelo qual os choques da 1ª Guerra traduziram-se em redução da desigualdade. Mas, como já disse, é uma das poucas passagens de O capital no século XXI em que a alusão genérica aos choques é traduzida em mecanismos específicos. Mesmo assim, os gráficos de Piketty mostram que a queda do nível de desigualdade, a partir da 1ª Guerra, foi abrupta demais para não ter relação com os conflitos bélicos. A relação entre ela e as Guerras foi real, mas quero ressaltar que, ao menos no caso dos Estados Unidos, entre 1920 e 1940, não se pode negar que ela mascara uma causa de todo distinta. A ilação mais lógica que se pode estabelecer entre as Guerras e os mecanismos econômicos de redução da desigualdade é que a destruição contínua do capital (indústrias etc.) pelas duas Guerras reduziu drasticamente a taxa de retorno dele. Esse deve ter sido o mecanismo principal, pelo qual os "choques das Guerras" se traduziu em redução da desigualdade. Porém, o mecanismo só funcionou ali onde houve destruição. Os Estados Unidos praticamente não sofreram destruição territorial, durante as Guerras. Pearl Harbor foi exceção e ficava no Havaí. Além disso, a queda da desigualdade, nos Estados Unidos, no século XX, começou após a 1ª Guerra (1920) e terminou antes de o país ingressar na 2ª (1940). É difícil aceitar que os "choques das Guerras" tenham sido responsáveis pela redução da desigualdade americana, exatamente nesse período.
Seria de espantar que efeito tão espetacular quanto a queda da desigualdade no século XX não tivesse concausas provindas de mais de um dos subsistemas da sociedade: no caso, do subsistema político e também do econômico. Piketty quer confinar as causas primárias ao subsistema político, mas os fatos parecem mostrar que elas operaram também no outro. A revolução do fordismo é um exemplo claro de causa econômica que contribuiu, decisivamente, para a queda da desigualdade nos Estados Unidos, entre 1920 e 1940. E, se contribuiu decisivamente nos Estados Unidos, essa causa deve ter feito o mesmo na Europa.
De qualquer modo, os dados que comprovam mais claramente a desproletarização são os da página 219 do livro de Piketty, onde lemos que houve "queda da participação do capital observada no longuíssimo prazo, de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos 2000-2010, e a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para 70-75%" (idem. p. 219). Ao longo do seu livro, Piketty geralmente tece asseverações sobre a desigualdade, com base em dados sobre o centésimo e o décimo mais ricos. A passagem acima é exceção, pois trata não só da participação dos mais ricos, mas também da classe trabalhadora na riqueza social. Ela confirma, de modo inequívoco, o aumento da fatia do proletariado na renda nacional.
É importante frisar que esse aumento não espelha só transferências em prol da classe média, mas da classe trabalhadora em geral: exatamente o que A função social do lucro postula ter ocorrido no século XX. Do início da Revolução Industrial à atualidade, a participação dos salários na renda aumentou quase 20%. Esse é o dado que mais diretamente comprova a desproletarização.
Juntemos, pois, as conclusões: o Estado tem de suportar gastos substanciais com o funcionalismo, inclusive ao fornecer serviços sociais; por isso, o aumento da arrecadação de impostos, ocorrido em meados do século XX, reverteu substancialmente para a classe média, o que o livro de Piketty comprova. Não nego que o aumento tenha contribuído para a redução da desigualdade, mas que ele responda pela parte dela que redundou em benefício das camadas mais desfavorecidas da população. Só a redução a favor dessas camadas gera a desproletarização. E os fatos parecem indicar que ela pode estar mais associada ao desenvolvimento do capitalismo do que à intervenção estatal.