sábado, 22 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (31): A Justiça e os Outros Valores

A faculdade pela qual o homem se distingue dos outros animais é a consciência reflexiva ou poder de conhecer objetos que não estão presentes aos sentidos. Contudo, no ser humano, essa espécie peculiar de consciência emerge de outra que ele compartilha com os animais e que é amplamente determinada pelo sentido.
Os animais conhecem o mundo fora deles, porém não como é em si mesmo. Podemos afirmar que o conhecem como o mundo exterior os afeta. O experimento narrado a seguir deixa isso claro:
“Lettvin e seus colegas inseriram um pequenino eletrodo no nervo ótico da rã para registrar sua reação aos estímulos externos. Os olhos da rã foram então expostos a vários estímulos óticos e se registraram os impulsos elétricos das fibras do nervo ótico do animal. Os resultados foram uma revelação [...] Algumas células reagiam, por exemplo, se um pequeno objeto passasse pelo campo visual. A equipe de pesquisa escreveu: ‘Fomos tentados a chamá-las detectoras de insetos’. Naturalmente, o olho da rã precisa reagir a pequenos objetos voadores – insetos. Os insetos são um dos alimentos da rã. Outra classe de fibras reagia quando uma grande sombra passava repentinamente pelo seu campo visual. Essas fibras poderiam ser chamadas de detectoras de cegonhas. Detectar aves predatórias que se aproximam repentinamente é tão importante para a rã como detectar insetos. Significativamente, se os pequenos objetos ou as grandes sombras não estavam se movendo, as células óticas paravam de reagir; moscas e mosquitos não ficam parados no ar, nem uma cegonha em mergulho” (SZAMOSI, Gésa. Tempo e espaço – as dimensões gêmeas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 33).
O experimento mostra, de maneira clara, que a consciência animal não forma uma imagem do mundo como ele é, mas elimina certas características e seleciona outras do mundo, de acordo com a utilidade de que se revestem para a sobrevivência da espécie, no ambiente em que ela evoluiu. Como a sobrevivência é facultada pelo instinto peculiar de cada espécie, podemos afirmar que a consciência animal é essencialmente instintiva.
Mas o instinto, que é? Podemos defini-lo como o conhecimento de reações corporais que se seguem, de maneira automática, a estímulos do meio ambiente. Assim concebido, o instinto coincide com a emoção, no sentido que William James conferiu a essa palavra. De acordo com esse pensador, “nosso modo natural de pensar as emoções mais grosseiras é que a percepção mental de algum fato excita a afeição chamada emoção e que esse último estado da mente gera a expressão corporal”. Essa é, porém, apenas a maneira comum de pensar. A ciência, porém, demonstra que a sequência dos fatos é um pouco diferente, pois "as mudanças corpóreas seguem diretamente a percepção dos ,fatos e o nosso sentimento das mesmas mudanças é a emoção” (JAMES, William. Principles of Psychology. In Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 53, p. 743).
O núcleo da lição de James pode ser identificado com a afirmativa de que a emoção não prepara a mudança corporal, mas se segue a ela. Ele cita uma série de fatos que provam essa ordem dos elementos na experiência emocional. Não é o caso de os repetirmos aqui, mas de retermos a conclusão a que ele chega de que a emoção é o conhecimento que a mente desenvolve de mudanças corporais provocadas, nos animais e no homem, por estímulos do mundo exterior.
Ocorre que, se as emoções correspondentes às reações corporais parecem automáticas, pois se desencadeiam imediatamente, assim como o estado de alerta ou o medo que resultam da presença de um predador, as reações corporais que as antecedem o são ainda mais. O animal vê o predador, seu corpo reage, e essa reação provoca emoções. Essa é a sequência de fatos que desencadeiam as emoções e que William James fez questão de clarificar.
A sequência mostra que a emoção acontece sem que o animal tome qualquer deliberação, ao contrário do que ocorre nos estados de consciência reflexiva, em que o conhecimento e as reações que o seguem são dirigidos, ao mesmo tempo, por forças externas e pela mente do sujeito. Porém, a consciência reflexiva preserva marcas da outra mais primitiva da qual emerge. A marca principal é o fato de ela estruturar-se a partir das emoções. O homem pensa o infinitamente pequeno, a partícula, o átomo, assim como o infinitamente vasto, o Universo, mas ele sempre o faz com vistas a fins ditados por emoções e sentimentos.
Como o homem tem consciência reflexiva, tanto as emoções que ele sente, a exemplo da fome e do medo, quanto os sentimentos que forma, como o amor e o ódio, fazem-se acompanhar de pensamentos racionais. Os pensamentos primeiros que ele concebe nas situações que lhe inspiram emoções e sentimentos são relacionados a interesses: “A cada emoção [e sentimento] correspondem interesses bem definidos. Por exemplo, ao amor que um homem sente por uma mulher correspondem os interesses de ser correspondido por ela e, em alguns casos, de unir-se em matrimônio com ela. A pessoa faminta tem interesse em comer, a sedenta se interessa em beber, e a cansada, em descansar” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 365-366).
As emoções e os sentimentos não se formam  racionalmente, ao contrário dos interesses, que são ideias racionais. Porém, os interesses são ideias de uma espécie particular. “Devido ao fato de os interesses e os valores serem, em geral, designados por substantivos e as regras por orações, tendemos a pensar nos interesses e nos valores como entidades substanciais ou, pelo menos, como objetos ideais relacionados a [coisas e situações] definidas. Precisamos recordar, entretanto, que nem toda regra é expressa por meio de uma oração com sujeito, verbo e predicado. Há regras expressas por uma única palavra. Quando diz ao enfermeiro: ‘Bisturi’, o cirurgião quer dizer ‘Dê-me o bisturi’. O substantivo é empregado sozinho como uma regra, como uma proposição de dever-ser. No fundo, embora designados por substantivos, os interesses e os valores têm a natureza de regras. Ter um interesse não é um ato puramente lógico ou neutro. Ter um interesse é ter uma regra para a própria conduta. O mesmo é verdade em relação aos valores” (idem. p. 367). 
Podemos afirmar, portanto, que o mundo das normas se ergue sobre a emoção e o sentimento. Isso significa que, por mais que a Ética e o Direito tenham a aparência de disciplinas racionais, o seu fundamento é de ordem irracional. Chegamos, assim, ao problema nuclear das duas disciplinas, que consiste no fato de tanto os interesses como os valores serem incomensuráveis, ou seja, não poderem ser comparados ou julgados em função de qualquer critério. De fato, a característica principal dessas normas é se referirem a bens que não podem ser comparados em abstrato. Por exemplo, é impossível comparar a vida com a liberdade, de modo a definir qual das duas é mais importante. Também é impossível definir se o interesse de se alimentar é mais importante que o de se relacionar com outras pessoas. Trata-se de bens tão diversos que não é possível medi-los por uma escala, qualquer que ela seja. E ainda mais difícil é medir a importância relativa dos interesse e dos valores em abstrato. Assim, por não poderem ser comparados, os interesses e os valores tampouco podem ser dispostos numa escala hierárquico.
Essa é uma dificuldade que a doutrina do direito natural enfrenta. O direito natural é concebido como sistema de normas. Goffredo Telles Júnior afirma que “um Direito autenticamente natural é sempre um conjunto de normas jurídicas [...] consoante com o sistema ético de referência da coletividade em que ele vigora” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico – ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 7ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. pp. 325-326). Porém, existe de fato um sistema ético de referência? Se a Ética e o Direito baseiam-se em valores incomensuráveis, como eles podem formar um sistema? 
Apesar dessas dúvidas, é amplamente aceito que as normas morais e jurídicas formam ordenamentos. Nem umas, nem outras dispõem-se caoticamente. Tampouco se dão à utilização arbitrária. Ora, o fato de as normas formarem ordenações implica que elas são, em algum grau, sistematizáveis. Portanto que existe um sistema ético de referência, com o qual o sistema jurídico se coordena. Trata-se de descobrir o método pelo qual esses sistemas se formam.
Kelsen propôs que os sistemas de normas jurídicas se formam por um método formal. Cada norma do ordenamento é considerada válida se for criada de acordo com esse método. Porém, essa concepção formal é frequentemente rejeitada com base no fato de que o ter sido criada por certo método não garante que a norma seja obedecida. E, se não for obedecida, a norma não será norma. De modo que o método formal de Kelsen não explica como os ordenamentos de normas se formam.
O enigma da formação dos sistemas éticos e jurídicos pode ser resolvido com base no valor da justiça. Para isso, basta adotarmos o método apresentado no último texto, que parte das instituições sociais, identifica os valores específicos que elas promovem e verifica se eles são compatíveis, isto é, se a realização de um valor não exclui a dos demais. O método prevê que, quando dois valores se excluírem, o que atentar contra o outro deve ser eliminado do conceito de justiça social, que resultará da conjugação dos demais. Assim os valores e as outras normas éticas e jurídicas poderão coexistir num sistema.
A configuração geral do sistema não será tão rígida quanto sob a concepção de que as normas se articulam em diversas camadas, com base no método de criação. Não será mais possível falar do ordenamento jurídico, por exemplo, como uma pirâmide de normas claramente articuladas em diversos níveis. A sistematização das normas será garantida, simplesmente, pela ideia de justiça, que funcionará como a argamassa que mantém unidos os outros valores e normas. A importância será, então, a mesma de toda argamassa: ela e só ela tornará viável a construção. Sem a justiça, não será possível manter a coesão dos valores por absoluta falta de liame lógico. Por isso também, sem ela, o inteiro conjunto das normas se desarticulará, o edifício da Ética e do Direito desabará e terá de ser substituído por uma só palavra: arbítrio.