Mas, para essa continuidade ser verdadeira e não ilusória, é preciso mostrar, um pouco melhor, em que consiste a unidade de escolas cujo entrechoque é evidente. Penso que essa unidade é, antes de tudo, explicada pelo fato de as correntes de pensamento e seus representantes agruparem-se em dois campos principais, com base na afinidade que se estabelece entre eles.
De fato, embora se afastem umas das outras em tantos assuntos, as escolas também têm pontos de contato, em função dos quais se aproximam. E, ao se aproximarem, elas dão origem ao que denomino visões de visões de mundo, famílias de mundivisões ou, se preferirmos, metavisões filosóficas. As metavisões principais da História da Filosofia são as de cunho materialista e metafísico.
Os primeiros de todos os filósofos, conhecidos como pré-socráticos, foram materialistas. E o foram por razões tão culturais que não houve, praticamente, dissidência entre eles no tocante a esse ponto. Coube a Platão e Aristóteles desafiar o materialismo antigo, ao promoverem a primeira reação vigorosa às visões de mundo dos pré-socráticos. E o método pelo qual eles levaram a cabo essa reação foi o da Metafísica. Assim, fica claro que a oposição entre as metavisões data dos próprios primórdios da Filosofia.
Curioso é que, embora não existisse antes, a oposição não desapareceu com a morte de Platão e Aristóteles. Prosseguiu ao menos até a difusão do cristianismo no mundo romano se completar. Porém, no período que vai de Aristóteles ao cristianismo, a metavisão predominante entre os filósofos continuou a ser o materialismo. E, embora o sucesso do cristianismo tenha feito as doutrinas materialistas recuarem, durante a Idade Média e início da Modernidade, do século XVIII em diante, observamos o retorno vigoroso da metavisão mais antiga, tanto no campo da ciência quanto no da Filosofia.
Assim, o agrupamento das doutrinas filosóficas em um território materialista e outro metafísico é extremamente nítido, do século VI a. C. ao V d. C. Por causa desse agrupamento, é que, tão tarde quanto no século IV, a trajetória de Santo Agostinho do academicismo de Cícero ao maniqueísmo e deste ao neoplatonismo, até se fixar no pensamento patrístico, só se compreende à luz da atração que o materialismo exerceu sobre ele. E tão nítida quanto a oposição entre materialismo e metafísica, naqueles dez primeiros séculos, continua a ser a que se restabeleceu na Filosofia, a partir do século XVIII.
Contudo, se o agrupamento das doutrinas, por treze séculos, deu-se com base na polarização, em outro período de treze séculos, a visão metafísica reinou de maneira inconteste. Do início do século V ao início do XVIII, os espíritos continuaram a divergir no que tange às visões de mundo, no entanto observamos forte convergência no tocante às metavisões. Nesse período, onde quer que a Filosofia tenha sido cultivada, os filósofos se apresentaram como cultores da Metafísica. E, até em terras onde o cristianismo não prevaleceu, como entre os judeus e os muçulmanos, a Metafísica não deixou de constituir o fundamento de toda a reflexão filosófica.
Não precisamos olhar para esse período intermediário, em que a tensão entre Metafísica e materialismo se dissipou, como se um houvesse suprimido o outro. É preferível afirmar que, ao longo da Idade Média, o materialismo tornou-se prático, que ele se refugiou na aplicação das artes do Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). De fato, por serem vistos como artes e terem fins práticos, esses conhecimentos permaneceram autônomos em relação à Filosofia governada pela Metafísica. Serviram para orientar o trato do homem medieval com a matéria e mostrar que, ao contrário do que se tornou habitual afirmar hoje em dia, ele não apequenou a dimensão material ao ampliar a espiritual.
Numa metade da História da Filosofia, portanto, as escolas se agrupam, nitidamente, nos territórios materialista e metafísico. Na outra metade, a Metafísica parece suprimir o materialismo, mas não sem que ele continue a constituir, de certa maneira, a face oculta dela. De sorte que, opostos ou conjugados, ocultos ou manifestos, os dois constituíram as principais metavisões, isto é, as visões de visões de mundo filosóficas. Por isso também, ao transitarmos entre as doutrinas filosóficas, só enxergamos as cores da paisagem na medida em que mantemos consciência dos espectros materialista e metafísico que a dominam.
A História da Filosofia não pode ser bem compreendida, sem essa consciência. Tampouco pode a filosofia ser praticada sem ela. No entanto, as metavisões também são visões do mundo. Remetem-nos e devem-nos remeter ao que é, não como esfera ideal, mas real. Filosofar é filosofar sobre o mundo como ele é. Daí a necessidade de perguntarmos o que é o real e, no caso da Filosofia do Direito, o que é a realidade social.
Não pode ser absurdo a Filosofia do Direito construir-se a partir de uma reflexão sobre a sociedade atual. Pelo contrário, é imperativo que isso aconteça. Contudo, ao chegarmos ao plano da visão social, sentimos de imediato a necessidade de utilizar categorias de análise diferentes das que usamos para pensar a natureza. Mas que categorias devemos usar e na análise de que dados havemos de empregá-las?
Essas questões podem ser examinadas, com especial proveito, à luz das estatísticas divulgadas por Thomas Piketty no seu livro de 2013 intitulado O capital no século XXI. A obra se abre com a afirmação de que, “para trazer à tona a questão distributiva, é preciso começar reunindo a base de dados históricos mais completa possível” (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 23).
A obra de Piketty tem sido aclamada por fazer exatamente isso. Por reunir, pela primeira vez, dados suficientes para uma análise ampla da desigualdade, principalmente nos últimos 200 anos. Esses dados permitiram a Piketty tentar uma reavaliação tão ampla do capital, no século XXI, que tem inspirado paralelos com O capital, de Karl Marx. É como se o autor francês tivesse fornecido uma atualização do balanço de
Marx sobre o capital, no século XIX.
O
próprio Piketty se refere a Marx como um marco da análise do capital. Nem
poderia ser de outro modo. Mas é, no mínimo, surpreendente que, ao tratar do
tema cuja análise Marx esgotou na sua época, Piketty cometa deslizes
conceituais sérios sobre esse autor. É o que ocorre na página 223 da edição
brasileira da sua obra, em que ele se refere ao conceito de taxa de lucro, em
Marx, como sinônimo de taxa de rendimento do capital (idem. p. 223). A
sinonímia claramente afirmada nesse ponto é negada, na página 58, quando
Piketty afirma que a taxa de remuneração "mensura aquilo que ele [o capital] rende ao longo de um ano,
qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, alugueis, dividendos,
juros, royalties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem
do capital investido. Trata-se, portanto, de uma noção mais abrangente do que
o conceito de taxa de lucro" (idem. p. 58).
Esses não são os únicos momentos em que
o livro tropeça ao utilizar conceitos de Marx. Piketty refere-se ainda à “taxa
de exploração, que mede para Marx a parcela da produção de que o capitalista se
apropria” (idem. p. 517). Ocorre
que a taxa de exploração, para Marx, não é isso. É, antes, sinônimo de taxa de
mais-valia ou a razão entre a mais-valia e o capital variável (montante
pago em salários). Em outras palavras, ao mencionar a taxa de exploração em
Marx, Piketty põe corretamente a mais-valia no numerador da fração, mas erra ao
colocar toda a produção no denominador.
É difícil ver como, de uma apropriação
equivocada de conceitos de Marx, possa resultar uma análise superior do
capital, se a teorização de Marx sobre esse tema é, de algum modo, vital para a
teoria econômica. Parece-me, no mínimo, duvidoso que Piketty tenha realmente
superado Marx.
Além disso, em diversos trechos da sua obra, Piketty afirma que a desigualdade que ele descreve foi reduzida apenas em relação à classe média. No entanto, na página 219 da sua obra, surge a informação surpreendente, porquanto não tratada antes, de que houve "queda da participação do capital" na renda nacional " de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos 2000-2010, assim como a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para 70-75%". Esse último dado (aumento da participação dos salários na renda) revela que a desigualdade se reduziu também em relação às classes inferiores.A redução em benefício dos mais desfavorecidos é, de longe, a variedade mais importante, pois inverte a tendência de empobrecimento e proletarização da classe média, cuja relação com a Revolução Industrial Marx considerara irreversível. De fato, para aquele filósofo e estudioso do capitalismo, a mecanização da produção ocorrida no século XIX levaria inevitavelmente à redução da participação dos salários na renda e ao caos social. Piketty, porém, mostrou que o contrário se deu, entre o início da Revolução Industrial e o presente. Só não explicou por que algo tão surpreendente teve lugar.
Digo que não o explicou porque, para Piketty, a redução da desigualdade entre 1914 e 1945 se verificou apenas em relação à classe média. Se uma diminuição de maior alcance ocorreu em período mais longo (1810 a 2010), os mecanismos que a produziram devem ter sido distintos dos que promoveram a igualdade na primeira metade do século passado. Do contrário, a redução de maior alcance teria beneficiado apenas a classe média, assim como a outra. Não foi o que aconteceu. Retornarei a esse assunto nos próximos textos.
Marx pode ser considerado o maior materialista da História, por ter revolucionado a metavisão inicialmente desenvolvida pelos pré-socráticos. Porém, é irônico que ele não o fez aumentando, mas diminuindo o alcance do materialismo até o ponto de torná-lo um método de interpretação da História e não mais do Universo inteiro. Principalmente os escritos de maturidade de Marx mostram como esse método permite entender os modos de produção da História e as sociedades que eles ajudaram a plasmar. Porém, ao abordar o capitalismo, Marx alimentou o seu método com premissas equivocadas. Supôs que, na etapa industrial, esse modo de produção levaria à acumulação cada vez maior do capital e à participação cada vez menor dos salários na renda. Hoje sabemos que o contrário se verificou.
Não podemos, porém, julgar o método de Marx com base em informações que ele não possuía. E, se considerarmos que o capitalismo pode produzir os resultados que Marx apontou tanto quanto outros contrários, chegaremos a conclusões inteiramente novas pelo método do materialismo histórico. Chegaremos a conclusões que não apontarão mais para o colapso necessário do regime do capital e sim para a clara possibilidade de que ele continue a existir por tempo indeterminado.
Talvez a teoria da História de Marx possa ser adotada como as sete artes de um novo tempo, em que a oposição contemporânea de Metafísica e materialismo, espírito e matéria, de novo se dissipará e dará lugar à acomodação recíproca deles. A julgar pela exaltação dos espíritos, a aliança das metavisões é improvável. Contudo, isso torna a sua perspectiva tanto maior.