domingo, 16 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (29): O Estado de Bem-Estar

Enquanto a lei natural atua, incessantemente, ao longo de milhões de anos, porque as condições que permitem o seu funcionamento são extremamente estáveis, as leis históricas permanecem contingentes, posto que os pressupostos para a sua verificação podem não existir ou ser eliminados após terem existido. Por exemplo, as condições necessárias à constituição do feudalismo podem não se verificar ou deixar de existir, após se verificarem, o que conduz à desorganização fatal do modo de produção feudal.
Por outro lado, embora os modos de produção sejam regidos por leis, as casualidades e o entrechoque de forças, que também se verificam neles, fazem com que os resultados da operação das leis não sejam certos. Há razões para considerarmos a função social do lucro um resultado específico que as leis do modo de produção capitalista tendem a produzir, mas que pode não ser alcançado por força de casualidades e contingências.
Em outras palavras, o fato de o capitalismo funcionar de acordo com leis, e essas leis produzirem a função social do lucro, em condições específicas, não significa que o mesmo resultado será alcançado sempre. No primeiro século após a invenção da máquina a vapor, ocorreu a substituição maciça de investimentos em salários por investimentos em máquinas, o que fez surgir o exército industrial de reserva (trabalhadores desempregados), estagnar os salários e explodir a miséria urbana. Nesse período, a função social do lucro foi suprimida.
Impõe-se, portanto, a conclusão de que a função social da mais-valia das empresas não é um resultado necessário, mas contingente da produção capitalista. A busca do lucro tende a fazer com que os empreendimentos baseados no capital desenvolvam função social, porém, em determinadas circunstâncias, o desenvolvimento pode ser suspenso. Foi o que ocorreu em alguns períodos da Revolução Industrial.
Para entendermos quando e por que a função social do lucro é suspensa, é útil fixarmos com maior precisão aquele conceito. Uma prática adquire função social quando beneficia não apenas um segmento, mas toda a sociedade. Particularmente, o lucro assume função social quando a sua cobrança redunda em benefícios para a sociedade. E, como a mais-valia é recebida pelo dono do capital situado numa camada intermediária ou superior da sociedade, sua função social consiste, mais precisamente, na irradiação dos benefícios dela às camadas inferiores.
Essa transmissão é o que afirmei que pode ou não ocorrer e que, quando ocorre, pode resultar em efeitos mais ou menos significativos, a depender da intensidade do processo. A função social será mais forte, mais fraca ou nula, de acordo com tal intensidade. Porém, sempre que se verificar, ela consistirá na superação das barreiras que impedem a propagação dos benefícios do lucro das camadas superiores e médias para os estratos inferiores da organização social.
A propagação dos benefícios do lucro às camadas inferiores é diretamente garantida pela geração de empregos e, em maior medida, pelo aumento real dos salários, que tende a ocorrer mais intensamente com o desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, ela é também fomentada pela forte relação que se verifica entre o lucro e o crescimento econômico, a qual estimula o aumento da riqueza e a ampliação do acesso das pessoas a ela. O próprio Piketty reconhece o potencial distributivo do crescimento, em diversas passagens 
da sua obra recente, como ao declarar que "não há dúvida alguma de que o crescimento econômico proporcionou uma melhoria considerável das condições de vida durante longos períodos, multiplicando, segundo as melhores estimativas disponíveis, por um fator maior que dez a renda média mundial [em termos reais] entre 1700 e 2012 (de 70 euros para 760 euros por mês) e por um fator maior que vinte no caso dos países mais ricos (de 100 euros para 2.500 euros por mês)" (idem. p. 96). No entanto, todos esses benefícios indiscutíveis podem ser cortados pelo aumento do desemprego e o arrocho salarial, ainda que o crescimento persista. Nesses casos, a função social do lucro é suspensa.
Mas, se o lucro possui ou pode possuir inequívoca função social, outras instituições também a possuem, o que cria a necessidade de as compararmos para entendermos as suas vantagens e desvantagens, bem como o modo como a justiça social pode ser realizada por meio delas. Dentre as instituições com utilidade social mais manifesta, estão a previdência social e os serviços públicos de educação e saúde.
Piketty apresenta dados significativos sobre a carga tributária cobrada, no Reino Unido, na França, nos Estados Unidos e na Suécia, para financiar a previdência e os serviços públicos de educação e saúde. Em todos esses países, a carga tributária girava em torno de 7 ou 8%, antes da 1ª Guerra Mundial. Com o desenvolvimento do Estado de bem-estar, ela passou a 35% no Reino Unido e 30% nos outros países, por volta de 1950, e se estabilizou em diferentes patamares, a partir de 1975: 31% nos Estados Unidos, 40% no Reino Unido, 45-50% na França e 55% na Suécia (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 463).
Os 7 ou 8% arrecadados originalmente pelos quatro países serviam para financiar as funções soberanas do Estado até a 1ª Guerra: segurança interna e externa, governo e distribuição da justiça. Ainda hoje, os gastos necessários ao desempenho dessas funções representam menos de 10% do PIB, no Reino Unido, na França, na Suécia e nos Estados Unidos. Portanto, o aumento da arrecadação ocorrido nesses países foi utilizado, quase inteiramente, para financiar novas atividades públicas, que Piketty divide em dois grupos: de um lado, educação e saúde e, de outro, substituição e transferência.
Os gastos dos quatro Estados com educação e saúde situam-se, hoje, entre 10% e 15% do PIB. Aproximadamente o mesmo percentual é gasto com substituição e transferência de renda, que incluem o pagamento de aposentadorias, seguro-desemprego e bolsas de renda mínima (idem. p. 465). Os volumes de dispêndios para pagamento desses benefícios são desiguais, pois o total de gastos com aposentadorias é muito superior às indenizações de seguro-desemprego, e estas, às bolsas de renda mínima. Porém, números significativos de pessoas são beneficiados por todos os três gastos.
Chegamos, assim, à conclusão assentada em bases claras, porque estatísticas, de que a arrecadação de tributos, depois da 2ª Guerra Mundial, teve marcada destinação social. Foi usada, em grande parte, para erradicar a pobreza na terceira idade, que ainda assolava a Europa, para melhorar a qualidade e a expectativa de vida, por meio do seguro-saúde, e para aperfeiçoar o desempenho profissional pela educação.
Parte das realizações desse período foi induzida pelo aumento do nível dos salários, a partir da revolução fordista. O Estado funcionou como garante de que tal aumento não seria 
perdido, em casos de desemprego e aposentadoria. Ao mesmo tempo, assegurou serviços de educação e saúde isentos de custos para os trabalhadores. Assim, a sua atuação se somou ao aumento do nível salarial propiciado pela produção capitalista. Porém, quando olho para o quadro dessa evolução geral, não posso deixar de reconhecer que ele envolve um risco considerável.
Refiro-me ao grau de estatização da renda nacional que o Reino Unido, a França e a Suécia tiveram de implementar para criar a rede de serviços e benefícios públicos de seus Estados. Nos países ricos da Europa considerados em conjunto, cerca de metade da renda total produzida a cada ano vai para o Estado, que a devolve em forma de serviços e benefícios sociais. Porém, o fato de uma enorme concentração da renda ser necessária, antes da sua distribuição, cria riscos de outra forma ausentes. Recorda a estatização ainda maior do patrimônio e da renda existente na antiga União Soviética e faz suspeitar que, por baixo da aparência de solidez e avanço civilizatório, fragilidades também comparáveis às soviéticas possam estar em formação.
A crise financeira e a Grande Recessão que afligiram a economia mundial, entre 2008 e 2011, tiveram maior repercussão na Europa, entre outras coisas, por causa do peso dos Estados de bem-estar ali existentes. Já ouço dizerem-me que os países europeus mais afetados pela crise foram a Grécia, Portugal, Chipre e, a princípio, também a Irlanda, não a Suécia ou a Noruega, que têm os Estados de bem-estar mais dispendiosos do continente. No entanto, a crise não se agravou apenas em função dos gastos sociais dos Estados, mas também, como é óbvio, em razão da capacidade de arrecadação de cada um deles.
Vejamos como essa capacidade de arredação pode ser descrita. Os países da Europa Ocidental podem ser agrupados em três categorias, de acordo com o perfil demográfico e o capital. Num primeiro grupo, situam-se os mais abastados e populosos, como Alemanha, França, Reino Unido e Itália. No segundo grupo, ficam países também abastados, mas menos populosos, como os da Escandinávia, Islândia, Irlanda, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça. Por fim, no terceiro grupo, ficam os países com menor relação renda/população, como Portugal, Grécia e Chipre. Se olharmos atentamente, perceberemos que os países mais afligidos pela crise europeia foram os do último grupo e os menos ricos dos dois primeiros. De modo que os problemas europeus parecem ter relação direta com a capacidade dos Estados já comprometidos com gastos elevados de arrecadar somas adicionais expressivas de um setor privado sobrecarregado de impostos.

Ninguém pense que a Grécia, para nos atermos ao caso dela, não tinha um Estado de bem-estar quando a crise estourou. Tinha-o, embora ele fosse menos célebre que o da Suécia. A Grécia empregava 20,55% do PIB em gastos sociais, em 2005. Quase o mesmo percentual da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que era de 20,57%. Apenas para comparar, naquele ano, o Reino Unido utilizou 21,29% do PIB para financiar seus serviços sociais. Não é difícil entender por que, participando do mesmo modelo de Estado social, mas sendo menos pujante que o Reino Unido, a Grécia apresentou mais rapidamente problemas nas contas públicas.
A Grande Recessão iniciada em 2008 foi, antes de tudo, uma crise de liquidez. Nos países em que a renda se concentra no Estado, a adoção de medidas anticíclicas mediante o aumento dos gastos públicos para impedir uma queda ainda maior da atividade econômica revelou-se um flagelo. Se o Estado já recebia ali, em média, 40-50% de tudo o que se produz, como exigir que os que pagam impostos nesse montante contribuam com uma fatia ainda maior, se a renda foi diminuída pela recessão?
Porém, esse exato sacrifício foi demandado, desde que a recessão se instalou, em 2008. O resultado foram déficits públicos crescentes, que se acumularam até a situação se tornar insustentável, por volta de 2010. Portanto, a crise mostrou que, embora a Europa tivesse a relação capital/renda mais alta de toda a História e fosse, nesse sentido, o lugar mais rico do mundo, nenhum país mais pobre que ela sentiu tanto as consequências de médio prazo da crise.
A causa profunda do problema europeu parece ter sido o peso da estatização de metade da renda nacional. Nos Estados Unidos, onde a parcela da renda que passa pelas mãos do Estado é de 30% do PIB, foi mais fácil arrecadar o necessário às políticas anticíclicas dos que detêm os outros 70% do que foi, para as autoridades europeias, coletá-lo dos que possuem apenas 50%. Antes de 2008, essa diferença nas estruturas tributárias dos Estados Unidos e da Europa não era tão sentida, porém a crise se incumbiu de desnudar os limites tanto lógicos quanto práticos a que a estrutura arrecadatória europeia parece sujeita.
Nesse contexto, não é espantoso que os Estados Unidos tenham-se recuperado antes e de forma muito mais robusta da crise mundial do que as potências europeias, embora a relação capital/renda seja maior na Europa. A crise desvendou algo que estava oculto, a saber: que os Estados de bem-estar, embora realizem prodígios distributivos, impõem limites à arrecadação e, portanto, ao aumento dos gastos públicos em situações extraordinárias.
Essa face do Estado de bem-estar social não pode ser ignorada, pois cedo ou tarde está fadada a aparecer e cobrar o seu preço. Não estou a propor, obviamente, que a rede de serviços públicos desses Estados seja desmontada, mas que é melhor reduzirmos as suas proporções onde já foi construída e limitarmos o seu alcance, ali onde se encontra atualmente em construção, como é o caso do Brasil.
Em que princípio havemos de nos basear para conter o custo implicado por esse modelo de Estado? Nenhum princípio parece melhor que o da diferença proposto por Rawls. De acordo com ele, uma prática só pode ser considerada justa, se beneficiar todas as camadas da sociedade. Voltarei ao princípio em outro texto. Por ora, basta-me fixar que uma instituição 
que contribui para a justiça social como o Estado de bem-estar só pode ser substituída, se for mesmo o caso de substituí-la em parte, por outra que exerça a mesma função entendida da mesma maneira, ou seja, de acordo com o princípio de Rawls. Ora, se a empresa capitalista é capaz de desenvolver função social relevante, ao pagar salários justos, por que não a devemos considerar uma alternativa à estatização da renda nacional? Não que a empresa com função social deva substituir realmente a atuação do Poder Público, mas elas podem ser somadas para que, da prova de que não se excluem ao se combinarem, possa quem sabe resultar a melhor solução já tentada para o problema da desigualdade.