quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Filosofia e Direito (2): Deus e a Justiça

Uma das obras de Filosofia do Direito que causaram maior impacto nos últimos anos é Justiça – o que é fazer a coisa certa, na qual Michael Sandel, professor em Harvard, combate a teoria política liberal. Na página 296 da 13ª edição em português, lemos:
“A teoria política liberal nasceu de uma tentativa de poupar a política e a lei de se emaranharem em controvérsias morais e religiosas. As filosofias de Kant e Rawls são a expressão mais completa e clara dessa pretensão.
“Essa pretensão, no entanto, não pode ser bem-sucedida. Muitas das questões mais ardentemente contestadas de justiça e direitos não podem ser discutidas sem que sejam consideradas controversas questões morais e religiosas” (SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., Civilização Brasileira, p. 296).
Sandel afirma que os Estados Unidos começaram a admitir, mais claramente, essa nova orientação política, a partir dos governos de Barack Obama, que declarou, num famoso discurso sobre o papel da religião na política, que “os secularistas estão errados quando pedem aos crentes que deixem sua religião para trás antes de entrar na vida pública. Frederick Douglass, Abraham Lincoln, William Jennings Bryan, Dorothy Day, Martin Luther King – na verdade, a maioria dos grandes reformistas da história dos Estados Unidos – não somente eram movidos pela fé como frequentemente usavam a linguagem da religião para defender suas causas. Assim, dizer que homens e mulheres não deveriam levar sua moral pessoal para os debates sobre políticas públicas é um absurdo. Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaico-cristã” (OBAMA, Barack. “Chamamento à renovação”. Citado em SANDEL, Michael. Ob. cit. p. 307).
Em 1993, publiquei Filosofia do direito positivo, sob essa exata perspectiva. Por tratar de Filosofia, o livro procurava alicerçar na Metafísica a posição favorável à reintrodução da temática moral e religiosa no debate acadêmico. E a proposta que formulava não se restringia ao reconhecimento da importância dos temas morais e religiosos para a Filosofia do Direito, mas também para o direito positivo.  
No entanto, um problema tornava difícil a aceitação da proposta naquela época: as críticas que tinham sido dirigidas à Metafísica, ao longo dos últimos séculos. Por isso, no capítulo 1 do livro, procurei apresentar um balanço das maneiras pelas quais ainda é possível justificar aquela disciplina, após a revolução científica. Identifiquei dois métodos pelos quais a Metafísica pode ser justificada sem apequenar o papel da Teodiceia, que é a parte dela que cuida da questão de Deus. Pareceu-me que ou afirmamos uma Metafísica sem Deus, ou, se pretendemos construir uma que preserve os valores religiosos, devemos voltar-nos às propostas filosóficas de Kant e Kierkegaard.
“O filósofo alemão [Kant] afirmou que ‘o ser supremo, segundo aquilo que é em si mesmo, é para nós inteiramente impenetrável e até, de modo determinado, impensável; somos assim impedidos [...] de determinar a natureza divina, mediante propriedades, que, no entanto, são sempre tiradas da natureza humana’” (idem. pp. 43-44).
Vê-se que, para Kant, o mundo continua a ser pensado como efeito da ação divina. O problema é que Deus não pode ser conhecido em si mesmo: “A natureza da causa suprema permanece-me desconhecida; comparo somente o seu efeito, que me é conhecido (a ordem do mundo), e a sua conformidade à razão com os efeitos também de mim conhecidos da razão humana e dou, por isso, à causa suprema o nome de razão, sem lhe atribuir como propriedade o que precisamente entendo no homem por esta expressão” (KANT, Emmanuel. Prolegômenos a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70. p. 155).
A justificação da Metafísica de Kant permanece uma das mais hábeis construídas, após o desenvolvimento da ciência. Em nada se confunde com as justificações do pensamento religioso com base em interpretações literais de crenças que atribuem características humanas a Deus. Daí Kant ter afirmado que Deus é incompreensível à razão e que a tradição religiosa errou ao concebê-lo como um ser dotado de atributos humanos. Claramente, ao atualizar o pensamento metafísico, Kant propôs que o erro antropomórfico fosse corrigido. Porém, por ter rejeitado a verdade das tradições antropomórficas e ter mantido Deus afastado dos assuntos humanos, Kant foi considerado um pensador deísta. 
A segunda maneira de justificar a Metafísica foi proposta pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, para quem as descobertas da ciência confirmam que Deus pertence ao campo do que chamamos incognoscível. “Nenhuma lógica, nenhuma demonstração real, disse Kierkegaard, dão apoio à fé” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 45). Mas, exatamente por Deus não ser conforme a razão, a revelação sobre ele pode ser aceita, com base na fé, nos termos em que nos foi entregue pela tradição. Se nenhuma doutrina a respeito de Deus é superior a outra, não há por que modificarmos a que a tradição nos transmitiu. Devemos, ao contrário, aceitar ou rejeitar, por fé, tal doutrina. Se a aceitarmos, como fez Kierkegaard, não estaremos mais plantados no território deísta e sim no da filosofia teísta. 
Este o balanço que apresentei dos modos como ainda é possível justificar o papel da Metafísica na Filosofia. Após tê-lo exposto, concluí que “Kant pretendeu um meio-termo entre o ateísmo e o antropomorfismo, julgando fugir assim ao dogmatismo, mas temo que o meio-termo desejável não seja esse, e sim aquele entre o ateísmo e o próprio dogmatismo”. Declarei ainda que esse “meio-termo é o antropomorfismo” (idem. p. 45). A posição assim construída corresponde à que foi “advogada, com certas variações, por Kierkegaard e seus seguidores”, que resgataram o teísmo por inteiro, exceto na sua racionalidade antropomórfica”, colocando-o “num dos únicos lugares absolutamente seguros e inatingíveis pelas farpas da ciência: a irracionalidade” (idem. p. 48). 
O trecho citado esclarece que a fundamentação desejável da Metafísica não coincide com o dogmatismo, já que se afasta dele tanto quanto do ateísmo. Isso faz claro que a fundamentação que eu buscava, em 1993, não era dogmática. Por outro lado, o meio-termo entre os extremos do ateísmo e do dogmatismo foi identificado com o teísmo. E, para definir que espécie de filosofia teísta propunha, o texto admite que é impossível referir-se a Deus sem utilizar fórmulas antropomórficas. Assim, se me mantinha distante do ateísmo e do dogmatismo, eu rejeitava também o deísmo de Kant, por ser antiantropomórfico.
Kierkegaard reconhecia os problemas do antropomorfismo das religiões ditas superiores, mas o fazia de modo diferente de Kant, que o repelia em definitivo, ao verificar que não satisfaz as exigências da razão. Kierkegaard percebia a inconformidade do antropomorfismo à razão, mas o aceitava, por meio da fé, como existencialmente imprescindível para o homem. 
O antropomorfismo das representações religiosas é, assim, o ponto no qual se travam as principais disputas sobre o papel de uma Metafísica que ainda reconhece importância à ideia de Deus. A rejeição categórica do antropomorfismo caracteriza a posição de Kant. Sua aceitação pela fé define a doutrina de Kierkegaard. Porém, a natureza racional do homem exige que a última posição seja complementada de alguma maneira. A simples invocação da fé para fundamentar a Metafísica na irracionalidade não é satisfatória para um ser racional. As coisas ficam ainda piores quando consideramos que a Metafísica é parte da Filosofia, na qual vigora o primado da razão e não o da fé. Falta, portanto, algo (um complemento) para que a fundamentação de Kierkegaard possa ser aceita. O complemento que propus, em 1993, foi a demonstração de que as doutrinas antropomórficas mais importantes não foram refutadas pela ciência.
É intuitivo que essa conclusão não se estende a todas as doutrinas antropomórficas, sem distinção. Há mitos que atribuem traços humanos a Deus sem qualquer critério racional, enquanto outras tradições religiosas se assemelham mais à razão. É o caso particular da doutrina cristã da criação do Universo por Deus. A primeira parte de Filosofia do direito positivo procura mostrar que essa doutrina, cujo colorido antropomórfico é inegável, não foi refutada pela ciência.
O método pelo qual a demonstração é conduzida é a crítica da causalidade. No “grande complexo que Miguel Reale chamou ontognoseológico, tanto a natureza objetiva quanto a razão humana que a estuda e nela se inclui se organizam segundo o princípio geral da causalidade. Tudo o que é natural é causal; apenas o sobrenatural pode não ser causal”. Porém, “a física quântica, a teoria da relatividade e as descobertas da Filosofia da Ciência no século XX desenvolveram uma percuciente crítica do princípio da causalidade, não o refutando, nem exatamente o atacando, mas demonstrando o seu verdadeiro enquadramento na natureza” (idem. p. 51).
O exame crítico da massa de relações causais do Universo permite-nos chegar a conclusões prováveis sobre a intervenção ou não de Deus nela, se as considerarmos à luz dos avanços científicos recentes. Por um lado, esse exame demonstra que “a genial intuição de Charles Darwin, unida a um colossal trabalho de compilação de provas em A origem das espécies” não pode ser negada, nem “o gigantesco e habilidoso labor de seus sucessores propondo teorias, coligindo provas, compulsando toda a literatura, pesquisando exaustivamente em laboratório etc.” (idem. p. 47). Por outro lado, ele permite concluir que a evolução não se deu inteiramente às cegas, mas que a instância superior do real dirigiu o processo evolutivo (idem. p. 23). 
Esse entendimento da evolução foi primeiramente proposto, de modo desenvolvido, pelo padre e paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin. Não se confunde com o design inteligente, pois se baseia na noção de tenteio, que é o acaso dirigido. Na Evolução Teísta, a ação de Deus incide sobre o acaso, modificando-o sem o eliminar. E, como Deus não elimina o acaso, a evolução se mantém compatível com as idas e vindas, os ziguezagues, os avanços e retrocessos, enfim com o desenho não linear de formação das espécies que a ciência descreve. O design, por sua vez, baseia-se num plano racional contrário ao acaso, que se choca com ele e limita o seu papel. 
Essas as linhas gerais da crítica da causalidade desenvolvida em Filosofia do direito positivo. Se tivesse de abranger no menor número de palavras o resultado final dela, seria tentado a afirmar que o papel de Deus na evolução consiste em reforçar as tendências naturais do processo, garantindo o surgimento e a harmonia entre os grandes grupos de seres vivos. Isso se aplica tanto às tendências fortuitas quanto às que decorrem das leis naturais. 
Assim, a crítica dos fenômenos pode ser utilizada para evitar que a Metafísica repouse na pura e simples irracionalidade, como sugeriu Kierkegaard. A crítica tem o potencial de fornecer, e de fato fornece, um complemento à justificação da Metafísica por aquele filósofo, com base na demonstração de que as representações religiosas mais importantes do processo natural, como a criação cristã, não foram refutadas pela ciência.
É claro que eu poderia ter ingressado na discussão dos aspectos morais e religiosos das questões jurídicas, sem desenvolver, como fiz, a crítica da causalidade, nos primeiros capítulos do livro. Porém, pareceu-me que, se fosse assim elaborada, a discussão pareceria privada de fundamento claro. Por isso, procurei propor primeiro aquele fundamento, pela justificação da Metafísica com base na crítica da causalidade.
Tenho consciência de não haver buscado, em meu trabalho, a realização de projeto distinto do que Michael Sandel sugeriu em Justiça. Há ressaltada coincidência de pontos de vista em Filosofia do direito positivo e na obra de Sandel. O que diferencia o meu tratamento da imbricação do Direito com a moral e a religião do que Sandel dispensou ao tema é o fato de eu ter enfatizado a justificação da Metafísica, enquanto ele pôs em destaque a oposição da proposta à teoria liberal. No fundo, porém, tanto quanto eu perceba, as duas obras desenvolvem um só projeto básico.
Por fim, não é menos oportuno ressaltar que a reflexão filosófica que eu elaborava, em 1993, não tinha qualquer propósito de reafirmar a teoria política liberal. Pelo contrário, afastava-se dela. A combinação da doutrina jurídica com temas morais e religiosos é, por si, uma agenda antiliberal. Perde, portanto, tempo e o fio da meada quem tenta encontrar em minhas obras o viés liberal. Perde-os ao menos se a intuição original da reflexão que empreendo for a reintrodução da temática moral e religiosa no Direito, pois, como Bergson bem lembrou, “à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina [...] restituir com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original” (BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 125).