Qual é o fundamento do direito, se é que ele existe? Que dados as instituições responsáveis pela distribuição da justiça entendem constituir a base desse valor social? Ou, para dizê-lo sinteticamente, que vem a ser a justiça? Tenho-me feito essas perguntas há anos e procurado estabelecer, ao menos, os lineamentos das respostas possíveis para elas.
Em Filosofia do direito positivo (Campinas: EV, 1993), assentei que o direito, na nossa cultura, tem fundamento metafísico e está atrelado à ideia de Deus. Isso cria um grave problema de interpretação da missão do Estado que, nas nossas sociedades, apresenta caráter inteiramente laico. Se o fundamento metafísico do direito está ligado a Deus, como o Estado laico pode ser capaz de entender o seu espírito e aplicá-lo?
O problema reaparece em meus textos posteriores. Em A função social do lucro, lembrei que “o sentimento religioso não pode ser transformado em nota de rodapé da história” e “que a missão da religião não é separável da missão política” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo: Themis, 2010. p. 52). Porém, como é possível conciliar missões tão heterogêneas e, às vezes, até opostas?
A perfeição do ideal do Estado laico foram os Estados ateus do século XX, alguns dos quais sobrevivem ainda hoje. No entanto, o fato de quase todos esses Estados terem desmoronado, não só economicamente, mas também do ponto de vista político, devido ao fracasso em conciliar o seu ateísmo com a religiosidade popular, sugere a existência de um problema básico com o ideal. Em outras palavras, já é tempo de repensarmos o princípio do Estado laico, o que não significa que ele deva ser abolido, mas modificado com base no ideal alternativo proposto por ninguém menos que Montesquieu. É de lamentar que os teóricos do Estado laico não tenham atribuído a devida atenção a essa proposta:
“Montesquieu louvou a atitude do Imperador Augusto, que ‘proibiu pessoas jovens de qualquer sexo de frequentar cerimônias religiosas noturnas, quando não acompanhadas de um parente mais velho’” (MONTESQUIEU. The spirit of laws. In Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 35, p. 204). Para o pensador setecentista, a intervenção do Estado na religião era [...] benfazeja, assim como a influência reversa, da religião na política: ‘A religião é capaz de dar sustentação a um Estado, quando as leis não o conseguem fazer. Quando um reino é frequentemente agitado por guerras civis, a religião pode contribuir muito, obrigando uma parte do Estado a se aquietar. Entre os gregos, os sacerdotes de Apolo sempre viveram em paz. No Japão, a cidade sagrada de Meaco desfruta de uma constante paz. A religião é o esteio dessa regra e império, que é único sobre a terra e que não depende, como jamais dependerá, de estrangeiros para manter um comércio que a guerra é incapaz de arruinar’” (idem. pp. 204-205).
A ideia defendida por Montesquieu não é a da separação radical, mas a da preservação da autonomia e, ao mesmo tempo, da colaboração entre religião e Estado. Com base nesse princípio, a solução mais adequada para o problema da incompatibilidade da base metafísica do direito com o Estado laico não consiste na negação daquela base ou na abolição do laicismo estatal. Consiste na compatibilização dos dois. Porém, como a compatibilização pode operar-se? No livro publicado em 1993, adotei o ponto de vista de que religião e Estado aproximam-se, sobretudo, na tentativa de realizar a justiça num sentido superior, que transcende os propósitos da ética subjetivista:
“O casamento de um modo, estribado em certos valores, é tão válido e legitimado quanto o [que se dá] de outro modo, estribado em outros valores. Tudo depende da cabeça de cada um. Poder-se-ia chamar tal tendência de ética subjetivista”. É o que prevalece amplamente no nosso tempo. No entanto, a tendência há de ser criticada, pois "a falta de parâmetros objetivos para a construção de qualquer sistema moral só pode ser catastrófica. Assim como a afirmação de um sistema ético, seja ele qual for, não pode prescindir de um elemento subjetivo [...] tampouco pode ela abrir mão de um elemento objetivo” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. pp. 283-284).
A falta de parâmetros objetivos suficientes mutila o sistema ético e o torna disfuncional. A questão é como estabelecer esses parâmetros de maneira lógica sem incidir em arbitrariedade. Para isso, o caminho mais adequado é atrelar tanto a Ética como o Direito à justiça concebida como valor, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo. O fundamento subjetivo da justiça são as opções que os fundadores de um sistema moral ou jurídico realizam ao definirem o seu conteúdo. É intuitivo que a definição não pode incluir vetores axiológicos tão contraditórios que impeçam a formação de um vetor resultante. A justiça só é um valor social na medida em que permanece inteligível às pessoas, o que se dá quando os vetores axiológicos que a compõem convergem, de modo a permitir a formação de um vetor resultante nítido. Podemos afirmar que o fundamento objetivo da justiça é, precisamente, esse vetor resultante.
“Montesquieu louvou a atitude do Imperador Augusto, que ‘proibiu pessoas jovens de qualquer sexo de frequentar cerimônias religiosas noturnas, quando não acompanhadas de um parente mais velho’” (MONTESQUIEU. The spirit of laws. In Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 35, p. 204). Para o pensador setecentista, a intervenção do Estado na religião era [...] benfazeja, assim como a influência reversa, da religião na política: ‘A religião é capaz de dar sustentação a um Estado, quando as leis não o conseguem fazer. Quando um reino é frequentemente agitado por guerras civis, a religião pode contribuir muito, obrigando uma parte do Estado a se aquietar. Entre os gregos, os sacerdotes de Apolo sempre viveram em paz. No Japão, a cidade sagrada de Meaco desfruta de uma constante paz. A religião é o esteio dessa regra e império, que é único sobre a terra e que não depende, como jamais dependerá, de estrangeiros para manter um comércio que a guerra é incapaz de arruinar’” (idem. pp. 204-205).
A ideia defendida por Montesquieu não é a da separação radical, mas a da preservação da autonomia e, ao mesmo tempo, da colaboração entre religião e Estado. Com base nesse princípio, a solução mais adequada para o problema da incompatibilidade da base metafísica do direito com o Estado laico não consiste na negação daquela base ou na abolição do laicismo estatal. Consiste na compatibilização dos dois. Porém, como a compatibilização pode operar-se? No livro publicado em 1993, adotei o ponto de vista de que religião e Estado aproximam-se, sobretudo, na tentativa de realizar a justiça num sentido superior, que transcende os propósitos da ética subjetivista:
“O casamento de um modo, estribado em certos valores, é tão válido e legitimado quanto o [que se dá] de outro modo, estribado em outros valores. Tudo depende da cabeça de cada um. Poder-se-ia chamar tal tendência de ética subjetivista”. É o que prevalece amplamente no nosso tempo. No entanto, a tendência há de ser criticada, pois "a falta de parâmetros objetivos para a construção de qualquer sistema moral só pode ser catastrófica. Assim como a afirmação de um sistema ético, seja ele qual for, não pode prescindir de um elemento subjetivo [...] tampouco pode ela abrir mão de um elemento objetivo” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. pp. 283-284).
A falta de parâmetros objetivos suficientes mutila o sistema ético e o torna disfuncional. A questão é como estabelecer esses parâmetros de maneira lógica sem incidir em arbitrariedade. Para isso, o caminho mais adequado é atrelar tanto a Ética como o Direito à justiça concebida como valor, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo. O fundamento subjetivo da justiça são as opções que os fundadores de um sistema moral ou jurídico realizam ao definirem o seu conteúdo. É intuitivo que a definição não pode incluir vetores axiológicos tão contraditórios que impeçam a formação de um vetor resultante. A justiça só é um valor social na medida em que permanece inteligível às pessoas, o que se dá quando os vetores axiológicos que a compõem convergem, de modo a permitir a formação de um vetor resultante nítido. Podemos afirmar que o fundamento objetivo da justiça é, precisamente, esse vetor resultante.
Essa
concepção coincide, em parte, com a da justiça que Aristóteles chama
universal, que “é comumente pensada como a maior de todas as virtudes".
"Na justiça [em sua acepção universal]", ensinava aquele filósofo,
"estão incluídas todas as virtudes" (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Book V, 1. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britan-nica, 1993. Vol. 8, p. 377). Roscoe
Pound lembra que Aristóteles concorda com Platão no tocante à justiça universal (POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. p. 3.),
embora, nos dois primeiros livros de A república, essa
noção seja apresentada ao lado de várias outras. De todo modo, como percebemos,
a noção da justiça como compêndio de todos os outros valores tem uma longa e
ilustre história.
Se desenvolvermos o exemplo das uniões hetero e homoafetivas com base nesses parâmetros, concluiremos que os valores da primeira (procriação e assistência à prole) podem e até mesmo devem ser considerados compatíveis com os da segunda (assistência recíproca entre os consortes), de modo que as duas formas de convivência sejam consideradas justas. Porém, a partir de quando inserimos entre os valores a obediência ao mandamento de Deus para o homem ou a mulher se casar com alguém do outro sexo, a união homoafetiva passa a ser considerada injusta.
Em ambos os casos, porém, é possível avaliar a compatibilidade dos valores das instituições antagônicas por um procedimento em três passos. No primeiro passo, são identificados os valores em que as instituições assentam. No segundo, verificamos se os valores identificados são reciprocamente compatíveis ou não. Por fim, no terceiro passo, um dos valores incompatíveis é eliminado. Os valores específicos que a união heteroafetiva realiza são a procriação e a assistência à prole. Não que o amparo e o amor entre os consortes não possam ser associados àquela espécie de união, porém eles são visados também pela união homoafetiva. Como os valores que devem ser identificados durante o primeiro passo são os mais específicos da instituição, devemos limitar-nos a citar a procriação e a assistência à prole como fundantes do casamento heteroafetivo. Esses valores não são incompatíveis com o amparo e o amor de um dos consortes ao outro, que fundamentam a outra união. Por isso, temos de concluir que, em princípio, as duas formas de união atendem as exigências da justiça social. Essa conclusão só mudará, se levarmos em consideração o valor adicional do mandamento religioso.
Em Filosofia do direito positivo, chamei objetiva a concepção de justiça a que se chega por esse método lógico. A objetividade da concepção decorre do fato de a compatibilidade dos vetores axiológicos das instituições ser verificável por meios lógicos. Não precisamos sequer refinar a concepção de Lógica para que a verificação se torne possível. A Lógica aristotélica basta para esse fim. Aliás, é a mais adequada ao procedimento de verificação, pois a sua aplicação à realidade social permite extrair, com clareza e simplicidade, as conclusões de que necessitamos sobre os vetores axiológicos das instituições e, consequentemente, sobre o vetor resultante da justiça.
Embora as instituições e os vetores mudem com o tempo, o método de verificação deles permanece válido. Podemos aplicá-lo às instituições de hoje tanto quanto às da época de Aristóteles e chegar às mesmas conclusões, pois a concepção da justiça objetiva não se altera. No máximo, em determinada época, ela pode não ter sido largamente adotada e depois ter passado a ser ou primeiro ter sido admitida e mais tarde abandonada. Porém, em todos os casos, a concepção esteve disponível, pois sempre foi possível compreendê-la e usá-la.
Embora as instituições e os vetores mudem com o tempo, o método de verificação deles permanece válido. Podemos aplicá-lo às instituições de hoje tanto quanto às da época de Aristóteles e chegar às mesmas conclusões, pois a concepção da justiça objetiva não se altera. No máximo, em determinada época, ela pode não ter sido largamente adotada e depois ter passado a ser ou primeiro ter sido admitida e mais tarde abandonada. Porém, em todos os casos, a concepção esteve disponível, pois sempre foi possível compreendê-la e usá-la.
Não nego que essa interpretação da justiça conduza a complicações, pois a verificação da compatibilidade dos valores que fundamentaram as instituições de todas as épocas é uma tarefa infinita. Porém, para cada número restrito de instituições, o procedimento se simplifica bastante, como vimos no caso das duas espécies de união. E, uma vez executado, ele permite chegar a conclusões bastante claras sobre a influência de cada valor na formação da ideia de justiça.
À luz dessas considerações, o desafio de Kelsen ao direito natural pode ser recolocado da seguinte maneira: quanto maior o período histórico ou o número de sociedades considerado, maior a probabilidade de não encontrarmos um único valor moral que tenha sido universalmente reconhecido. Todo valor vigente, por certo tempo, numa sociedade, foi negado em outro tempo ou em outra sociedade. De modo que não há valores universais, no espaço ou no tempo. E, por não haver tais valores, não há também um direito natural.
À luz dessas considerações, o desafio de Kelsen ao direito natural pode ser recolocado da seguinte maneira: quanto maior o período histórico ou o número de sociedades considerado, maior a probabilidade de não encontrarmos um único valor moral que tenha sido universalmente reconhecido. Todo valor vigente, por certo tempo, numa sociedade, foi negado em outro tempo ou em outra sociedade. De modo que não há valores universais, no espaço ou no tempo. E, por não haver tais valores, não há também um direito natural.
Essa crítica de Kelsen às noções de justiça universal e direito natural fez escola. Foi adotada na Europa, nos Estados Unidos e em toda outra parte onde o direito não se encontrava profundamente entretecido com a religião. Porém, ainda é possível aprimorá-la ou aprimorar a sua expressão do seguinte modo: em vez de afirmar peremptoriamente que não há valores universais, podemos admitir que o conteúdo desses valores se torna cada vez mais indeterminado, conforme nos referimos a períodos históricos mais e mais amplos.
Assim, embora os povos tenham admitido hipóteses muito distintas em que é possível tirar a vida de alguém sem cometer crime, nenhum povo conhecido jamais permitiu o assassinato indiscriminado. Nenhum admitiu a liberdade de matar, sem mitigação alguma. Com isso, todos elevaram a vida humana à condição de um valor moral. Podemos afirmar que fizeram da vida um bem universal, ainda que a proteção atribuída a ela tenha variado de tal modo que não nos é possível precisar o conteúdo do bem universalmente protegido. E o que se pode afirmar da vida, como princípio axiológico, pode ser reproduzido, de modo muito semelhante, da verdade, da liberdade, da integridade física e moral, da propriedade, do matrimônio, do dever familiar e de outros bens morais.
Assim reformulada, a razão da crítica de Kelsen já não reside na inexistência, mas na indeterminação dos valores universais. A referência a algo tão indefinido quanto esses valores é necessariamente quimérica, vale dizer, destituída de importância prática. Como o direito é uma disciplina prática, não faz sentido calcá-lo em valores quiméricos, cujo conteúdo nos é desconhecido.
Porém, o fato de não ser possível apontar um valor que não tenha sido compreendido de maneiras diversas, em lugares e épocas diferentes, não significa que não possamos situar a variação percebida no tempo e no espaço e utilizar esse dado para entender o ideal de justiça das respectivas sociedades. Quanto mais limitada a variação dos vetores das instituições, no tempo ou no espaço, mais facilmente as pessoas reconhecem o ideal de justiça subjacente. Assim, quando observam que os valores vigentes num espaço geográfico limitado durante um tempo curto são compatíveis entre si, as pessoas tendem a considerá-los parte integrante do ideal de justiça.
Eliminando, portanto, os vetores contraditórios e preservando os que se revelam reciprocamente harmônicos, as pessoas se erguem à noção de justiça objetiva em vigor na sociedade, ainda que não compreendam ou tenham dificuldade para compreender a justiça mais ampla e universal. “A justiça é um valor de ordem natural-cultural. Nem só cultural, nem apenas natural. Existem conotações de justiça peculiares de um tempo e conotações de vigor universal” (ob. cit. p. 291). As conotações peculiares de um tempo são compreendidas pelas pessoas que vivem nele; as universais não são compreendidas. De sorte que, quanto mais universal, mais indeterminada e menos compreendida tende a ser a concepção de justiça.
Como os graus de universalidade variam em função do tempo e do espaço, a partir de um limiar relativamente baixo, a noção de justiça se torna tão determinada que os sociólogos, os juízes, os governantes e o homem comum não têm mais dificuldades para a conceberem. No entanto, quase sempre, eles o fazem de maneira intuitiva. Só isso explica a popularidade do valor da justiça. Só isso explica a frequência com que as pessoas pensam em termos de justiça. Porém, o fato de a ideia de justiça ser entendida com relativa facilidade não significa que não se assente em bases lógicas. Pelo contrário, essa base é bastante evidente e, se não estiver equivocado, pode ser relacionada ao procedimento de verificação discutido acima.
O procedimento envolve uma dificuldade primeira: quando a incompatibilidade de dois valores é detectada, qual deles deve ser eliminado da noção de justiça? Admito que o problema é real, pois, se o método apresentado pretende ser lógico, nenhuma decisão arbitrária sobre os valores em análise pode ser admitida. Porém, parece-me possível resolver o impasse, retomando a afirmativa central do texto anterior, segundo a qual, na justiça, os outros valores apresentam-se em versões atenuadas, com exceção da liberdade e da igualdade, que constituem os vetores principais dela. Por isso, embora a justiça deva ser concebida como um complexo de valores, eles não devem ser situados todos no mesmo plano. Pelo contrário, à liberdade e à igualdade deve ser reconhecido o lugar principal. Por isso, deve-lhes ser reconhecido um peso maior não só na ponderação dos valores que compõem a justiça como também na resolução dos conflitos entre eles. Em outras palavras, os conflito entre os valores que compõem a justiça hão de ser sempre resolvidos pela sua sujeição aos sobreprincípios da liberdade e da igualdade ou, pelo menos, a um dos dois.
Enfim, a justiça pode ser pensada, em diferentes graus de generalidade, até o limiar a partir do qual seu conceito se torna indeterminado. Todas essas concepções gerais são importantes para o direito. Formam, aliás, a própria base dele. Não só isso: nas sociedades cristãs, as concepções gerais de justiça refletem os valores em que as instituições sociais se fundam há séculos. Trata-se de valores estreitamente relacionados ao cristianismo. Por isso, ainda que a epiderme do tempo arrepie, não há como não afirmar que a justiça é, no fundo, uma constelação de valores que só se compreendem em sua histórica relação com a fé.
Assim, embora os povos tenham admitido hipóteses muito distintas em que é possível tirar a vida de alguém sem cometer crime, nenhum povo conhecido jamais permitiu o assassinato indiscriminado. Nenhum admitiu a liberdade de matar, sem mitigação alguma. Com isso, todos elevaram a vida humana à condição de um valor moral. Podemos afirmar que fizeram da vida um bem universal, ainda que a proteção atribuída a ela tenha variado de tal modo que não nos é possível precisar o conteúdo do bem universalmente protegido. E o que se pode afirmar da vida, como princípio axiológico, pode ser reproduzido, de modo muito semelhante, da verdade, da liberdade, da integridade física e moral, da propriedade, do matrimônio, do dever familiar e de outros bens morais.
Assim reformulada, a razão da crítica de Kelsen já não reside na inexistência, mas na indeterminação dos valores universais. A referência a algo tão indefinido quanto esses valores é necessariamente quimérica, vale dizer, destituída de importância prática. Como o direito é uma disciplina prática, não faz sentido calcá-lo em valores quiméricos, cujo conteúdo nos é desconhecido.
Porém, o fato de não ser possível apontar um valor que não tenha sido compreendido de maneiras diversas, em lugares e épocas diferentes, não significa que não possamos situar a variação percebida no tempo e no espaço e utilizar esse dado para entender o ideal de justiça das respectivas sociedades. Quanto mais limitada a variação dos vetores das instituições, no tempo ou no espaço, mais facilmente as pessoas reconhecem o ideal de justiça subjacente. Assim, quando observam que os valores vigentes num espaço geográfico limitado durante um tempo curto são compatíveis entre si, as pessoas tendem a considerá-los parte integrante do ideal de justiça.
Eliminando, portanto, os vetores contraditórios e preservando os que se revelam reciprocamente harmônicos, as pessoas se erguem à noção de justiça objetiva em vigor na sociedade, ainda que não compreendam ou tenham dificuldade para compreender a justiça mais ampla e universal. “A justiça é um valor de ordem natural-cultural. Nem só cultural, nem apenas natural. Existem conotações de justiça peculiares de um tempo e conotações de vigor universal” (ob. cit. p. 291). As conotações peculiares de um tempo são compreendidas pelas pessoas que vivem nele; as universais não são compreendidas. De sorte que, quanto mais universal, mais indeterminada e menos compreendida tende a ser a concepção de justiça.
Como os graus de universalidade variam em função do tempo e do espaço, a partir de um limiar relativamente baixo, a noção de justiça se torna tão determinada que os sociólogos, os juízes, os governantes e o homem comum não têm mais dificuldades para a conceberem. No entanto, quase sempre, eles o fazem de maneira intuitiva. Só isso explica a popularidade do valor da justiça. Só isso explica a frequência com que as pessoas pensam em termos de justiça. Porém, o fato de a ideia de justiça ser entendida com relativa facilidade não significa que não se assente em bases lógicas. Pelo contrário, essa base é bastante evidente e, se não estiver equivocado, pode ser relacionada ao procedimento de verificação discutido acima.
O procedimento envolve uma dificuldade primeira: quando a incompatibilidade de dois valores é detectada, qual deles deve ser eliminado da noção de justiça? Admito que o problema é real, pois, se o método apresentado pretende ser lógico, nenhuma decisão arbitrária sobre os valores em análise pode ser admitida. Porém, parece-me possível resolver o impasse, retomando a afirmativa central do texto anterior, segundo a qual, na justiça, os outros valores apresentam-se em versões atenuadas, com exceção da liberdade e da igualdade, que constituem os vetores principais dela. Por isso, embora a justiça deva ser concebida como um complexo de valores, eles não devem ser situados todos no mesmo plano. Pelo contrário, à liberdade e à igualdade deve ser reconhecido o lugar principal. Por isso, deve-lhes ser reconhecido um peso maior não só na ponderação dos valores que compõem a justiça como também na resolução dos conflitos entre eles. Em outras palavras, os conflito entre os valores que compõem a justiça hão de ser sempre resolvidos pela sua sujeição aos sobreprincípios da liberdade e da igualdade ou, pelo menos, a um dos dois.
Enfim, a justiça pode ser pensada, em diferentes graus de generalidade, até o limiar a partir do qual seu conceito se torna indeterminado. Todas essas concepções gerais são importantes para o direito. Formam, aliás, a própria base dele. Não só isso: nas sociedades cristãs, as concepções gerais de justiça refletem os valores em que as instituições sociais se fundam há séculos. Trata-se de valores estreitamente relacionados ao cristianismo. Por isso, ainda que a epiderme do tempo arrepie, não há como não afirmar que a justiça é, no fundo, uma constelação de valores que só se compreendem em sua histórica relação com a fé.