quarta-feira, 26 de março de 2014

Planejamento (4): A Nova Roma

No fim da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética arrebatou os territórios do leste europeu à Alemanha nazista e impôs às nações aliadas o fato consumado da sua influência naquela parte do mundo. Por isso, apesar das negociações realizadas para redesenhar o mapa da Europa, desde a Carta do Atlântico, não foi possível evitar que os países surgidos no Leste Europeu, após a Guerra, se tornassem satélites dos invasores soviéticos e socialistas assim como eles.
Esses acontecimentos marcaram o início do aumento da influência soviética no mundo. Muitos outros países fizeram-se socialistas, depois, a maioria sob influência maior ou menor da União Soviética. E chama a atenção que, enquanto perdurou a distribuição do poder mundial em dois blocos (um capitalista, outro socialista), a teoria social refletiu-a fielmente.
Aliás, a reflexão da ordem mundial no espelho da teoria não se limitou aos aspectos objetivos dela. Mais do que retratar os dois blocos como realidade surgida do sacrifício e do sucesso militar da União Soviética na Segunda Guerra, os estudiosos da sociedade passaram a acreditar que a bipolaridade mundial refletia duas interpretações e dois grandes modos de pensar a sociedade, cujos pilares econômicos eram, respectivamente, o livre mercado e a propriedade estatal dos meios de produção.
Assim, enquanto vigorou a ordem mundial bipolar, a vanguarda intelectual aderiu ou ao menos simpatizou com o socialismo e, não raro, com o marxismo, ao passo que o pensamento conservador tendeu à justificação do regime capitalista. E é bom lembrar que, em ambos os casos, as elaborações doutrinárias foram do extremo das propostas autoritárias ao extremo contrário da plena democracia.
Porém, o alinhamento entre teoria e práxis é tal e tão profundo que, no início da década de 90, com o desmoronamento do mundo soviético, a preponderância teórica do socialismo desfez-se, sem que, em lugar das suas teorias características, se elevassem outras com o mesmo alcance e influência. É verdade que, por algum tempo, doutrinas de inspiração neoliberal ganharam terreno, após a queda do Muro de Berlim, mas a sua escalada não alcançou a proporção anterior do socialismo, por duas ou três razões: em primeiro lugar, porque o sucesso dos regimes que adotaram ideias neoliberais não foi bastante duradouro, mas também pela prevenção arraigada contra o liberalismo clássico e pela falta de consenso mínimo sobre quais seriam as ideias nucleares do novo liberalismo. O Consenso de Washington, proposto em novembro de 1989 e adotado pelo FMI na década seguinte, chegou a ser apontado como expressão autorizada do ideário neoliberal emergente, mas sua gênese no setor financeiro logo tornou visível a impossibilidade de utilizá-lo como núcleo de uma teoria suficientemente ampla da sociedade.
Entramos agora num momento histórico aparentemente distinto do que se caracterizou pelo desmoronamento do socialismo real e teórico. Distinto porque nos coloca o desafio de encontrar um alinhamento entre práxis e teoria social que reflita, ao mesmo tempo, a derrocada do socialismo e a insuficiência do liberalismo. Pergunta-se frequentemente que espécie de práxis emerge das transformações por que o mundo passou, nos últimos 25 anos. Sem dúvida, o desmoronamento do socialismo continua a compor o pano de fundo do nosso mundo social, já que as experiências com aquele regime foram tão malsucedidas, e a liquidação do mundo soviético, tão fragorosa que o aprendizado que produziram orientou boa parte das transformações das últimas décadas.
Mas outro aspecto do mundo atual precisa ser levado ainda mais em conta que a dissolução do socialismo. Refiro-me ao sucesso econômico de proporções gigantescas dos Estados Unidos. Verdade é que o modo de produção dos EUA reproduziu, simplesmente, o dos países europeus, notadamente o da Inglaterra, do qual se originou. Porém, se diferenciarmos o conceito de modo de produção do de modelo produtivo, concluiremos que, apesar de terem mantido o regime capitalista, os Estados Unidos criaram uma variante específica dele: um modelo de produção próprio e muito bem-sucedido.
Não é possível entender a variante norteamericana do capitalismo à parte da intervenção estatal. A economia dos Estados Unidos funda-se em bem sedimentados princípios de liberdade econômica. Tem, por isso, clara e profunda orientação liberal. Mas é, ao mesmo tempo, um capitalismo emergente do New Deal, em que a intervenção do Estado desempenha papel primordial.
Tudo isso é verdadeiro, mas, até aí, o modelo norteamericano não se diferencia suficientemente do de países que não alcançaram pujança semelhante à dele. Muitos ou mesmo todos os países capitalistas combinam liberdade econômica com intervencionismo estatal. Por que, então, o modelo norteamericano se cobriu de tamanho sucesso, sem emitir sinais claros de exaustão, enquanto aqueles países permanecem em níveis bastante inferiores de produção? A diferença há de estar não na combinação de liberdade e intervenção, mas no modo peculiar como isso acontece nos Estados Unidos.
Raymond Aron mostrou que quase todos os sistemas de poder da História caracterizaram-se pelo equilíbrio de forças. Tenderam, por isso, a dois tipos de organização principais: o dos sistemas multipolares e o dos bipolares. Em ambos, o poder de uma nação ou grupo sempre encontrou o devido contraste no de outra nação ou grupo. Não que certos países não tenham lançado empreendimentos mais vastos de dominação, mas os que o tentaram foram nisso frustrados, mais ou menos rapidamente.
O princípio do equilíbrio de poder se enuncia de maneira simples: “Nenhum Estado deve possuir uma força tal que os Estados vizinhos sejam incapazes de defender, contra ele, seus direitos” (ARON, Raymond. “Os sistemas pluripolares e os sistemas bipolares”. In Curso de Introdução às Relações Internacionais – relações internacionais de poder. 2ª ed., Brasília: UnB, 1983. p. 13). A mais importante e notável exceção histórica a esse princípio, segundo Aron, é Roma: “Se os antigos passam por haver ignorado a política do equilíbrio de forças, isto se deve à espantosa história do império romano. De fato, Roma pôde subjugar, um após o outro, todos os seus adversários, sem que estes tivessem sido capazes de concluir as alianças que os teriam preservado” (idem. p. 12).
Não há dúvida de que o sucesso de Roma em ampliar seu poder teve causas políticas. As alianças com outros povos e a tolerância de diferenças culturais, no espaço da República e depois do Império, foram algumas delas. Porém, questão mais profunda é a das causas econômicas da dominação romana. Identificaremos essas causas ao percebermos que, na Antiguidade, o poder econômico e a expansão territorial praticamente se confundiam. A agricultura era a principal fonte de riqueza. Por isso, a conquista de novas terras era o meio precípuo de enriquecimento.
A interpenetração de economia e expansão, na Antiguidade, permite-nos estender o equilíbrio do poder mencionado por Aron tão bem ao aspecto político quanto ao econômico. Permite-nos entender, até mesmo, que o sucesso incomum alcançado por Roma consistiu em romper esse duplo equilíbrio não tanto por meios políticos quanto por econômicos. De fato, apesar do sucesso militar que alcançou e que foi tantas vezes exaltado, Roma conheceu reveses bastantes, na guerra, para pôr em risco a expansão do seu Estado, a qual sempre foi, no fundo, um processo econômico. Aníbal é apenas um exemplo disso. Os perigos que arrostou, no campo político e militar, só não foram fatais para Roma, como para outros povos, porque ela foi capaz de romper, em seu favor, o equilíbrio econômico e colocar essa ruptura a serviço da sua contínua expansão.
Para entendermos como isso se deu, é útil sondar as bases de funcionamento da economia romana. Kautsky escreveu: “O modo de produção, nos países que o Império [Romano] abarcava, era a agricultura. Além desta havia, em muito menor escala, a indústria artesanal e o comércio” (KAUTSKY, Karl. A origem do cristianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 69). Ele próprio esclareceu, porém, que, “além da escravidão existiam duas outras formas de exploração na sociedade antiga [...] a usura e a pilhagem das províncias subjugadas pelo poder central” (idem. p. 109) e que “a aristocracia romana considerava a usura uma ocupação decente, não o comércio” (idem. p. 111).
É um bom resumo da economia romana, mas serviria igualmente para descrever o modo de produção de outros povos. Do que se conclui que a diferença específica de Roma não consistiu em gerar riqueza de maneira distinta de outras nações, mas em produzir por mais tempo da mesma maneira que elas, o que equivale a afirmar que Roma conseguiu conquistar e pilhar outros povos por tempo mais longo, sem sucumbir a inimigos externos e a lutas intestinas.
Não que essas lutas não tenham ocorrido. A expansão territorial produziu contingentes plebeus com direitos inferiores aos dos patrícios romanos de modo mais ou menos contínuo, na História da República e do Império. Quanto mais distantes essas classes estavam do núcleo do poder situado em Roma mais difícil se tornava controlá-las. Por isso, as rebeliões de plebeus, invariavelmente, terminavam com a vitória das classes novas sobre a antiga aristocracia. No entanto, na prática, isso não se traduzia em outra coisa que na ampliação da aristocracia pela incorporação das classes novas. Haja vista a concessão da cidadania romana a contingentes cada vez maiores, até Caracala universalizá-la em 212.
Esse modo específico de resolução da luta de classes aperfeiçoou-se a tal ponto, na História, que os reveses frente a inimigos não foram capazes de enfraquecer o vigor romano a ponto de restaurar o equilíbrio de poder com outros povos. Pelo sucesso alcançado na resolução de suas contradições internas, Roma sempre obteve o tempo e as condições necessários para superar alianças de inimigos que a teriam derrotado, em outro espaço de tempo e sob condições distintas.
Assim, “a democracia, ou o domínio sobre toda a população do Império [...] exercida por algumas centenas de milhares de cidadãos romanos, transformou-se em um dos meios mais efetivos de expandir a pilhagem ao mais alto grau e ao mais completo saque das províncias, na medida em que cada um deles [cidadãos romanos] levava consigo uma legião de amigos, que os tinham ajudado a eleger-se e, como recompensa, roubavam e pilhavam sob sua proteção” (idem. p. 124).
A capacidade de resolver contradições internas sem se desintegrar foi a causa precípua da longevidade do mecanismo de produção romano, a qual lhe permitiu acumular maior poder que todos os outros impérios antigos. Simplesmente, não observamos o mesmo mecanismo a funcionar tão bem ou tão prolongadamente em outros povos. Com base nele, os romanos foram capazes de escapar do equilíbrio de poder que caracteriza não só os sistemas políticos, mas também os econômicos.
Ao olharmos para os Estados Unidos de hoje, somos tentados a perguntar se o seu sucesso não nos oferece outro caso de dominação unipolar raríssimo na História. Assim como em Roma, a capacidade de resolver suas contradições sem golpes de Estado e com um único conflito interno de grandes proporções explica o sucesso da organização norteamericana. Mas, diferentemente de Roma, a resolução dos conflitos internos, nos Estados Unidos, não serviu apenas para aumentar o tempo durante o qual o modo de produção foi mantido em funcionamento, mas para aumentar a intensidade do funcionamento dele. A intensidade da produção americana é o que explica o sucesso econômico dessa nação, assim como o sucesso econômico explica a dominação política, a chamada pax americana.
A obra de Marx ajuda-nos a entender como esse processo pôde ocorrer, até porque foi deliberadamente composta para explicar o desenvolvimento capitalista. Marx acertou quase todas as vezes em que se debruçou sobre o passado e o presente; quando se referiu ao futuro, errou muito mais. E, se esse balanço da sua obra nos permite uma conclusão, é a de que a luta de classes pôs fim às grandes organizações sociais do passado. Em Roma, encontramos a confirmação dessa regra pela exceção. Roma desafiou o princípio da dissolução quase sempre rápida (em termos históricos) das grandes organizações sociais. Por mais de um milênio, ela não se desintegrou. Por quê? Porque soube desintegrar as lutas de classes que a ameaçaram.
O mesmo acontece, em princípio, com a segunda grande exceção ao equilíbrio de poder que encontramos na História: os Estados Unidos da América. Esse país foi capaz de escapar ao equilíbrio de outras nações por ter resolvido as suas contradições de classes com rara eficiência. Uma das mais graves delas explodiu sob a forma da Guerra de Secessão, mas terminou com a derrota do escravagismo e maior harmonia de classes. O empobrecimento causado pela Grande Depressão também se reverteu numa década, sem que um regime fascista emergisse. A limitação dos salários ao mínimo vital foi superada, de modo pioneiro, na época do fordismo. E, apesar de ter sido o epicentro da crise financeira de 2008, o país se tornou a primeira nação adiantada a superar os efeitos nefastos dela. Note-se que essa série de intempéries sociais foi vencida, sob a regência de uma e a mesma Constituição, portanto com incrível demonstração de estabilidade política.
Por ter anexado a Crimeia, a Rússia sofre, hoje, sanções internacionais. País após país e organismo após organismo internacional ergue sua voz para impor-lhe certas restrições e prometer outras mil. É o modo moderno que as nações encontram de exercer o controle de poder umas sobre as outras. Suas sanções não chegam com atraso, já que o poder da Rússia está hoje tão sob controle quanto é historicamente possível estar. Na época da União Soviética, as superpotências opunham-se restrições recíprocas. Assim se produzia o que Aron denominou sistema bipolar de equilíbrio. Hoje, tantas nações opõem-se ao mesmo tempo à Rússia, enquanto os Estados Unidos escapam ao equilíbrio de poder. 
Pergunto se o desmoronamento do socialismo e o aumento exponencial do poderio econômico americano, que se seguiu, não são um e o mesmo processo: o escape dos EUA ao equilíbrio do poder sob um sistema bipolar ou multipolar. Dirão que não houve aumento algum do poder americano? Que a economia da América do Norte estava à beira do abismo, e a crise de 2008 empurrou-a abismo abaixo? Indago, de minha parte, se essa visão de mundo não se obtém com óculos coloridos. Os que distribuem os óculos sustentam que estamos num brave new world multipolar. Pergunto se não estamos nos tempos da Nova Roma.

sábado, 22 de março de 2014

Livre Exame de Romanos (26): Que É Virtude?

Podemos tomar a Carta aos Romanos como uma mensagem que desceu à Terra do modo como uma folha desprende-se e cai de uma árvore, sem qualquer mediação da cultura humana. Durante milhões de anos, tantas folhas que se soltaram e caíram de árvores o fizeram pela mesma e única causa: a ação da força gravitacional. No entanto, não é assim com objetos culturais como palavras. A utilização de um verbo não é como a queda de uma folha. Dependendo da época e do contexto cultural em que é empregado, o mesmo verbo pode assumir significados bastante distintos.
A inspiração divina da Bíblia não existe para tratarmos as palavras como se fossem folhas. Deus ter inspirado a Epístola aos Romanos não significa que as suas palavras sejam independentes das convenções linguísticas e teológicas da época em que foram escritas. Pelo contrário, a inspiração supõe a diferença bem demarcada entre natureza e cultura, o que significa que não podemos desconsiderar o significado específico do texto para os leitores do primeiro século.
Para exemplificar, quando fala de Jesus de Nazaré e sua morte, Paulo se refere ao que as pessoas daquela época sabiam a respeito deles. E, quando trata da virtude, nos capítulos 12 a 15, da mesma forma, ele pressupõe o que essa ideia significava no contexto cultural do primeiro século.
Porém, diferenças culturais podem ser tão grandes que grupos distintos de pessoas podem ter concepções opostas sobre a virtude, na mesma época. Por isso, para entender o que era virtude para Paulo, devemos estabelecer primeiro a que contexto cultural ele pertenceu. Sabemos que Paulo foi judeu e cidadão romano, que residiu em Tarso, na Cilícia, e estudou aos pés de Gamaliel, em Jerusalém. Está, pois, claro que ele recebeu duas formações e pertenceu, de certa maneira, a dois mundos: o judeu e o romano.
No entanto, se olharmos para a figura de Saulo de Tarso, nos capítulos 8 e 9 de Atos dos Apóstolos, perceberemos que a dupla formação que recebeu resultou numa orientação de vida única e bastante clara. Saulo foi, antes de tudo, alguém devotado à religião judaica. Tudo o que ele sabia moldava-se à relação privilegiada que tinha com a fé dos judeus, especialmente como afirmada pela seita dos fariseus. Por isso, o contexto cultural em que Paulo deve ser situado preponderantemente é o da cidade de Jerusalém e do Templo da sua época.
Nas obras que publicou sobre Jesus, Bento XVI utilizou-se dos resultados da pesquisa sobre o judaísmo do primeiro século apresentados por Martin Hengel, em 1993, em A questão joanina. De acordo com o Papa, “no tempo de Herodes se formou em Jerusalém uma autêntica classe alta judaica mais ou menos helenizada com uma cultura especial” (BENTO XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planetas, 2007. p. 195).
Essa informação de suma importância permite entender que não apenas Tarso da Cilícia, onde Paulo morou, mas a própria Jerusalém, onde estudou, haviam sido permeadas pela cultura grega. Nesses lugares, muitas pessoas falavam grego e usavam palavras e ideias carregadas de significados gregos.
Com toda probabilidade, esse era o caso da ideia particular de virtude que Paulo utilizou em Romanos 12 a 15. Não devemos supor que essa ideia fosse impermeável à maneira grega de pensar. O conteúdo dela era estabelecido, sem dúvida, pela Lei de Moisés. Porém, o significado mosaico da virtude não colidia com as mais prestigiadas ideias gregas sobre ela. É improvável que Paulo tivesse divergências fundamentais com o modo de conceber a virtude de Platão, Aristóteles e os filósofos da Estoá (estoicos). Aliás, essas concepções estavam entretecidas umas às outras e, às vezes, entretecidas também com o Antigo Testamento, no ambiente amplo de Jerusalém.
Um exame detido de Romanos 12 a 15 mostrará, por exemplo, que Paulo evita conceber as virtudes como extremos morais. Ao tecer o elogio da moderação, em 12:3, ele mostra não situar a virtude nos extremos: “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense com moderação segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um”. Moderação, nesse ponto, indica a virtude moderada por uma medida.
A moderação não é um esforço individual, mas um limite que a situação no corpo de Cristo impõe a cada um. E, se identificarmos a virtude, em geral, com uma medida de moderação, teremos de concluir que ninguém, enquanto indivíduo, pode estabelecer o que é certo e errado, já que a moderação como tal se exerce no âmbito do corpo de Cristo: “Porque, assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função; assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros, tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina, esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta, faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia com alegria” (12:4-8).
No final desses versos, as virtudes cristãs tomam forma clara. Paulo refere-se à liberalidade, à diligência, à misericórdia como se tudo o que foi dito antes devesse conduzir a elas. Para ele, a função de um membro do corpo não é apenas um exercício ou trabalho, mas a manifestação de uma virtude particular. A cada função está ligada uma virtude: à contribuição para o sustento de outras pessoas está associada a liberalidade; à liderança, a diligência; ao exercício da misericórdia, a alegria. Assim, a afirmação de que cada um deve exercer a sua função conforme a medida da fé equivale a propor que a virtude correspondente deve ser exercida com medida.
Assim, a concepção extremada da virtude parece estranha ao pensamento de Paulo em Romanos. Para ele, agir bem é o resultado de um hábito exercido moderadamente, o que nos conduz à noção de mesótes desenvolvida por Aristóteles. Mesótes é o ponto médio entre extremos que são dois vícios. Para exemplificar, a generosidade (virtude) é o ponto médio entre a avareza e a prodigalidade, que são dois vícios. E a coragem (virtude) é o meio-termo entre os vícios da covardia e da temeridade.
Para o filósofo grego, um dos extremos se caracteriza pela simples carência da virtude. A avareza, por exemplo, é a falta de generosidade, e a covardia, a falta de coragem. O outro extremo corresponde ao excesso da virtude ou de algo semelhante a ela: a prodigalidade é o hábito de gastar demais, e a temeridade, a coragem excessiva.
Não estou a afirmar que Paulo concebe as virtudes exatamente como Aristóteles, mas que, por uma espécie de infusão cultural, o seu pensamento reflete certas nuanças e concorda em vários pontos com o daquele filósofo. Estou a afirmar que as palavras de Paulo, em Romanos, não são folhas de árvores, mas objetos culturais. Se Deus inspirou aquelas palavras, ele as usou como o que são, não como outra coisa. Por isso, a referência às virtudes como hábitos moderados, como medidas ou proporções do agir humano pode bem estar em paralelo com o pensamento de Aristóteles como tinha sido incorporado, particularmente, ao judaísmo de Jerusalém.
Nas suas epístolas, Paulo quase sempre se refere às virtudes como conceitos abstratos. Ele quase nunca se preocupa em mostrar em que consiste a virtude numa situação concreta. Deixa a determinação desse ponto para os destinatários das suas epístolas. Mas, em Romanos 12, ao abrir a seção sobre os valores cristãos com alusões à moderação, à medida e à proporção da fé, ele emite sinais claros de uma concepção geral da virtude como hábito equidistante de extremos viciosos.
Esse modo de pensar de Paulo não fica sem consequências. Se a virtude é o ponto médio entre a carência e o excesso, o pecado da sodomia deve ser caracterizado não como orientação sexual divergente da média da população, mas como um excesso disso. Como um homossexualismo levado ao ponto da monstruosidade. Admitamos que Paulo considerasse a heterossexualidade o paradigma do comportamento sexual virtuoso. É muito provável que ele, de fato, o fizesse. O problema é que, para tratá-lo como paradigma, ele tinha de situar toda uma gama de comportamentos entre dois vícios, um correspondente à falta de impulso sexual (assexualismo), e o outro, ao impulso sexual monstruoso (sodomia). Sob essa concepção, nem a castidade forçada é virtuosa, já que coincide com o assexualismo, nem as variedades de comportamento sexual do mundo grecorromano são pecaminosas, na medida em que permanecem afastadas da sodomia.
Em 1ª aos Coríntios 6:9, Paulo condena quatro comportamentos sexuais: a devassidão (impureza), o adultério, o homossexualismo e a sodomia. Se Romanos e 1ª aos Coríntios estiverem suficientemente de acordo um com o outro, teremos de concluir que a cada um desses vícios corresponde outro oposto. Portanto, se a devassidão é o descontrole do ímpeto sexual, seu oposto há de ser o controle demasiado, a castração, o voto de castidade sem qualquer sentido. Se o adultério é o desrespeito pelo vínculo matrimonial, seu contrário deve ser a proibição total do divórcio. Se o homossexualismo é a inclinação contrária ao aparelho sexual provido pela natureza, o oposto é a proibição da orientação divergente da natureza. E se a sodomia é o homossexualismo que se prevalece da força contra a opção sexual alheia, como vemos em Gênesis 19, o contrário há de ser o homossexualismo inerte, passivo e infenso a toda prática sexual.
Esse modo de entender as virtudes e os vícios ultrapassa o sentido literal de Romanos 12, mas não o conjunto de ideias que circulava em Jerusalém (e tanto mais em Tarso), naquele tempo. Interpretar o texto de Paulo à letra pode implicar e frequentemente implica considerar as suas palavras objetos naturais. Mas elas não o são. Há em Romanos e nas Epístolas de Paulo, em geral, um conceito subjacente de virtude colhido não só a Moisés, mas também ao pensamento grego. O fato de Romanos ter sido escrita em grego é, por si, o primeiro indício disso.
E, se os vícios hão de ser entendidos como extremos relacionados ao excesso e à privação de certas práticas, a virtude terá de ser interpretada não como uma única prática, mas como uma gama situada entre aqueles extremos. Isso não significa que o pensamento moral de Paulo reproduza Aristóteles, mas que há uma inspiração aristotélica nele. Essa inspiração parece ter levado Paulo a conceber a virtude como meio-termo entre vícios opostos. Não podemos, é claro, tecer essas afirmativas de modo peremptório, mas elas parecem condizentes com a orientação geral dos textos do apóstolo e com o ambiente cultural em que ele vivia.
Em 1ª aos Coríntios 7:10,12, Paulo escreveu: “Aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido [...] Aos mais, digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula e esta consente em morar com ele, não a abandone”. Notem que Paulo se referiu a duas classes de pessoas unidas sexualmente a outras: os casados e “os mais”. A estes não ordenou que se separassem de seus pares, por considerar ilícito o relacionamento sexual que mantinham. Pelo contrário, ordenou que permanecessem com seus companheiros ou companheiras, embora não fossem casados com eles. Isso mostra, com toda clareza, que o pensamento moral do apóstolo, em questões sexuais, não tinha a estreiteza que se tornou comum no meio evangélico.
Infelizmente, a história da interpretação protestante da Bíblia é tão rica em estreitamentos! Apenas recentemente, a consciência desse mal se disseminou o bastante para que o início de uma abertura passasse a ser buscado. Mas a que preço! Se não são como folhas, ideias tampouco são como obras de arte. Estas se sucedem sem se refutarem umas às outras. Portanto, sem cancelarem cada qual o valor da outra. A arte é pura soma. Mas não é possível adotar uma ideia nova sem negar outra antiga. O avanço na verdade não se faz só por somas, mas também por subtrações. E não há fim no somar e no subtrair. Não há ideia nova e revolucionária que não envelheça e se faça conservadora. Não há verdade humana que não prescreva, nem teoria que não se transforme em erro. Por isso, buscar a verdade é somar e subtrair ideias incessantemente. E o que torna essa atividade dramática não é o seu nunca acabar, mas o fato de, como seres humanos, termos muito mais deficiências na arte de subtrair que na de somar.

quarta-feira, 19 de março de 2014

História Hipotética da Igreja (3): Os Grandes Apócrifos

O período que antecedeu a difusão da fé cristã no mundo foi marcado pelo florescimento sem precedentes da literatura entre os judeus. A composição do Antigo Testamento se completou e um longo rol de outros textos foi redigido, nessa época. De modo que, quando Jesus e os apóstolos fizeram ressoar sua mensagem, não só os judeus da Palestina como os que se achavam dispersos pelo Império Romano estavam preparados para interpretá-la e pregá-la ao mundo, com base naquela literatura.
O que nem sempre se discute é o papel desempenhado pelos livros apócrifos nesse processo de interpretação e pregação da mensagem cristã. Por apócrifos, entendemos as obras que foram suficientemente acolhidas e copiadas para chegar até nós, mas não entraram no cânon das Sagradas Escrituras. Por se distinguirem pela não inclusão na Bíblia, esses livros são geralmente tomados como verdadeiros acréscimos às tradições conservadas nela.
Mas, se isso for mesmo verdade, será uma verdade incompleta, já que o papel da literatura apócrifa não se restringiu a introduzir acréscimos à mensagem cristã. Os apócrifos tiveram função mais ampla que a de suplementar o Novo Testamento. Serviram também para explicá-lo, regulamentá-lo e até para questioná-lo (no caso dos apócrifos derivados de seitas como as gnósticas).
Se nos ativermos apenas à Bíblia e aos apócrifos, pondo de parte as cartas, os textos de edificação, os escritos apologéticos e todas as outras obras que têm autores conhecidos, poderemos concluir que o estabelecimento dos fatos, do ensino e do sentido da vida de Jesus realizou-se nas páginas do Novo Testamento, porém não a transformação desse material numa regra de vida individual e coletiva bastante clara para ser preservada, ao longo dos séculos. Essa última função foi exercida, em grande medida, pela literatura apócrifa.
Dentre os apócrifos do período neotestamentário, alguns tiveram maior aceitação, como o Livro de Enoque, a Didaqué, a Epístola de Barnabé e O pastor de Hermas. O primeiro é a única obra apócrifa citada diretamente nas Escrituras (Jd 14-15). O interesse e a alta estima que despertou talvez se expliquem por esclarecer o papel escatológico de uma figura, cujo título Jesus utilizara para se referir a si mesmo, a saber: o filho do homem. Em Enoque, o filho do homem é, de fato, um juiz que se manifestará no final dos tempos.
Porém, passado o intenso interesse escatológico por Enoque, o apócrifo neotestamentário que teve influência mais duradoura nas comunidades cristãs parece ter sido a Didaqué ou Ensino dos doze apóstolos. Da leitura desse livro depreende-se a intenção tipicamente judaica de seu autor de dar concretude à mensagem cristã, mediante uma prática individual e comunitária que a tornasse manifesta ao mundo. É exatamente isso que a Didaqué realiza.
Ao realizá-lo, ela deixa de lado a intenção de complementar ou acrescer às tradições do Novo Testamento. Quase nada encontramos, na Didaqué, com esse caráter. Tudo nela, ao contrário, transparece a intenção de transformar em vivência individual e coletiva a mensagem cristã. Daí o nome pelo qual se tornou conhecida e que a identifica como compêndio de ensinamentos dos apóstolos.
Há hoje um consenso de que a Didaqué foi escrita por um judeu cristão, por volta da última década do século I d. C. Essa época e a autoria judaica indicam que o livro foi escrito com um propósito não muito distinto do dos escribas e rabis judeus que usavam as glosas ao Antigo Testamento para regulamentar um ensino considerado sagrado. No caso dos escribas e dos rabis, esse ensino era a Torá; no do autor da Didaqué, era a mensagem de Jesus.
O livro executa esse trabalho em quatro seções, a primeira dedicada à ética, a segunda ao culto cristão, a terceira à ordem interna da comunidade, e a última à perseverança no caminho de vida apresentado por Jesus. A parte relacionada à ética mostra que a fé cristã foi logo concebida como uma prática da virtude. É nela evidente a intenção de simplificar a observância da lei de Deus pela redução dos seus mandamentos ao amor a Deus e ao próximo, como Jesus ensinara ao intérprete da lei (Mt 22:34-40).
Essa é uma chave interpretativa extraordinariamente importante. O Decálogo, com seus vários mandamentos relativos a Deus e ao próximo, reduz-se a esses dois. Não ter outros deuses, não usar o nome de Deus em vão, não cultuar imagens de escultura e guardar o sábado reduzem-se a amar a Deus. Honrar pai e mãe, não matar, não adulterar, não furtar, não prestar falso testemunho e não cobiçar dizem respeito ao amor ao próximo.
Com a redução da lei a esses únicos mandamentos, o cristianismo pretendeu não só tornar inteligível a vontade de Deus na Torá, mas indicar como ela pode ser posta em prática de maneira eficaz. Na dúvida entre proteger ou apedrejar o culpado de um crime, deve-se optar pelo que mais exprime o amor; na contingência de optar entre o dízimo e o culto de coração a Deus, deve-se preferir o que exprime com maior perfeição o afeto ao Criador.
Se ouvir a palavra de Cristo é a parte da experiência cristã que se realiza no coração, o cumprimento dos preceitos do amor a Deus e ao próximo é essa mesma fé posta em movimento. E visto que toda prática se manifesta como poder, o amor cristão é uma espécie de violência contra os instintos e os costumes baseados neles: “Não se deixe levar pelos impulsos instintivos. Se alguém lhe dá uma bofetada na face direita, ofereça-lhe também a outra face, e você será perfeito. Se alguém o força a acompanhá-lo pelo espaço de um quilômetro, acompanha-o por dois; se alguém tira o seu manto, entregue-lhe também a túnica. Se alguém toma alguma coisa que pertence a você, não a peça de volta” (Didaqué. In Padres apostólicos. 4ª e., São Paulo: Paulus, 2008. p. 344).
Em Romanos, Paulo se demora na descrição da experiência do coração, isto é, na internalização da lei de Deus. Mostra que, além de trazer a lume os mandamentos do amor, a prática de meditar a lei de Deus revela a fraqueza do mandamento por causa da carne, isto é, dos instintos que a enfraquecem e tornam o homem incapaz de colocar a lei em prática. Mas o autor da Didaqué não retorna a esse ensinamento, até porque a doutrina que ele transmite é a dos Doze, não a de Paulo.
Essa forma de apresentação da experiência cristã não é casual. Mostra que, por volta do ano 100 d. C., a interpretação do evangelho encontrada nos escritos de Paulo estava em vias de ser encoberta pela interpretação da Didaqué, segundo a qual a vontade divina se reduz ao amor a Deus e ao próximo, sem qualquer necessidade de diferenciar, como em Romanos, se a fonte desse amor é o próprio Deus ou a vontade do homem. O cuidado com essa diferenciação reaparecerá, aqui e ali, nos séculos seguintes, mas ela só será afirmada com energia máxima (antes da Reforma) nas obras de Santo Agostinho e dos autores que o seguem a respeito da graça.
A segunda seção da Didaqué define o que se deve fazer para celebrar a nova vida em Cristo. Em primeiro lugar, o cristão deve ser batizado. O autor o afirma, sem se preocupar em esclarecer que o batismo expressa o arrependimento diante de Deus. Preocupa-se mais em transmitir que ele deve ocorrer em água fria e corrente. A preocupação com a forma do ato mostra como era urgente a necessidade de dar concretude à vida cristã, no fim do primeiro século.
O batismo é apresentado como o ato que introduz a pessoa na vida cristã, como a prática vestibular da fé. Só depois dele são mencionadas as práticas por excelência do culto individual: o jejum e a oração. O primeiro deve ocorrer em dias certos, e a última há de conter determinadas palavras (idem. pp. 352-353).
Em tudo, nota-se a preocupação de definir o que deve ser feito no culto a Deus, não de um ponto de vista mecânico, mas a fim de expressar a fé do coração. No plano coletivo, o culto se centra na Eucaristia, da qual só os batizados podem participar. O autor estabelece, sucintamente, mas de modo completo, como há de ser celebrada essa comemoração. Cita as frases, as orações que devem ser pronunciadas em cada parte dela. Mas não diz o que vem antes ou depois da Eucaristia, o que permite entender que ela era o culto cristão inteiro (idem. pp. 353-354).
Na parte relativa à vida comunitária, a Didaqué trata principalmente da pregação. Esboça uma separação entre culto e vida comunitária que sugere que o primeiroéa o memorial de ação de graças da assembleia a fim de comemorar a salvação, ao passo que a pregação é o núcleo da vida comunitária, ou seja, do restante da vida cristã coletiva.
O culto cristão requer o complemento de uma vida comunitária intensa e ordenada. Se o primeiro se confunde com a Eucaristia, o centro da última é a pregação, à qual a terceira seção do livro é quase inteiramente dedicada. O pregador é geralmente chamado profeta e, às vezes, também apóstolo. Com isso, pretende-se destacar que é alguém inteiramente devotado à palavra de Deus, como o profeta do Antigo Testamento, mas não um profissional da palavra, como os advogados ou retóricos da época.
Esse perfil de pregador é ressaltado quase ao ponto do exagero: “Todo apóstolo que vem até vocês seja recebido como o Senhor. Ele não deverá ficar mais que um dia ou, se for necessário, mais outro. Se ficar por três dias, é um falso profeta. Ao partir, o apóstolo não deve levar nada, a não ser o pão necessário até o lugar em que for parar. Se pedir dinheiro, é um falso profeta [...] Por isso, tomem os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os deem para os profetas, pois eles são os sumos sacerdotes de vocês. Se, porém, vocês não têm nenhum profeta, deem aos pobres” (idem. pp. 355, 357).
O apostolado e o ofício profético estão relacionados a uma economia ou regime de distribuição de bens materiais. Os pregadores itinerantes (apóstolos) não podem ser pesados às famílias que os recebem. Não podem pedir dinheiro, comida podem. Ao menos é o está implícito na afirmação do direito dos pregadores de receber alimento de quem os hospeda. E os pregadores não itinerantes (chamados simplesmente profetas) têm direito de receber seu sustento não de certa família, como os apóstolos, mas da comunidade inteira, por meio do dízimo. No Antigo Testamento, esse era destinado aos sacerdotes; no Novo, é oferecido aos pregadores.
Embora se preocupe tanto em definir as bases da vida comunitária, o apócrifo atribuído aos apóstolos não se refere aos presbíteros ou aos diáconos, mas apenas aos pregadores. É como se a essência da liderança cristã se contivesse na pregação e fosse exercida por meio dela. Lutero reafirmará esse ponto, com a energia das suas palavras, quase um milênio e meio mais tarde.
Na ordem instituída pelos apóstolos, o ministério da palavra antecede a ajuda aos pobres. Por isso se diz: “Se não têm profeta, deem aos pobres”. A comunidade cristã existe para manter aceso o candeeiro da palavra de Deus. Essa é a sua missão principal no mundo. Sua missão segunda é prestar socorro aos necessitados.
A última parte da obra é dedicada à perseverança. Sua intenção é mostrar que não adianta ser cristão por uma hora. É preciso manter essa identidade, mediante as práticas da Didaqué, até o fim, já que, para Deus, a hora final é mais importante que as outras: “De nada lhes servirá todo o tempo que vocês viveram a fé, se no último momento vocês não estiverem perfeitos” (idem. p. 359).
A Didaqué transmite-nos mais que a visão de uma pessoa. É o testemunho mais completo que possuímos do modo de ver predominante, nas comunidades cristãs, no final da era apostólica. A visão do evangelho que nos transmite tem as características necessárias para ser considerada genuinamente apostólica. Verdade é que, aqui e ali, o texto diverge de Paulo, porém, como o título da obra esclarece, a Didaqué é uma interpretação do ensino dos Doze, não do de Paulo. E, se os Doze eram judeus, é provável que a sua preocupação com a prática e a exteriorização da fé se tenha refletido na doutrina que nos legaram. Aliás, a referência aos Doze indica que a Didaqué transmite o padrão, a posição predominante entre os cristãos, da qual o ensinamento de Paulo diverge, em certos momentos, por representar o ápice da pregação apostólica.
Tanto quanto a Didaqué o revele, o cristianismo primitivo era uma pregação e uma prática da palavra de Deus revelada nas Escrituras. O texto como o encontramos em manuscritos antigos nada retira, acrescenta, pretende retirar ou acrescentar àquela palavra. Seu objetivo, ao contrário, é mostrar de que modo, após a vinda de Cristo, o comando dado por Deus, em seguida à entrega dos Dez Mandamentos, se fez entender pelo povo de Deus: “Agora, pois, ó Israel, que é que o Senhor requer de ti? Não é que temas o Senhor, teu Deus, andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma?” (Dt 10:12). A Didaqué é a resposta inspirada na encarnação do Verbo a essa pergunta da lei.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Planejamento (7): A Política Errática do Governo Grego

Os leitores do Pasquim, que circulou nos anos de chumbo da ditadura militar, riam às fartas da sua irreverência e das críticas implacáveis que dirigia aos governos da época. Mas, conscientes dos riscos que corriam com as críticas, seus editores os preveniam, fazendo estampar abaixo do nome do periódico, na primeira página, a mordaz explicação: “órgão de oposição ao governo grego”. Assim, quem lesse o Pasquim entendia que falava mal do governo, mas não, é claro, do nosso.
Ao tratar da questão espinhosa do planejamento, nesta série de textos, não posso me furtar a abordá-la, também, em relação às políticas adotadas, no Brasil, durante o seu desenvolvimento capitalista. Mas não o pretendo fazer com o preconceito dos que permanecem incapazes de reconhecer os méritos deste ou daquele governo, porque seus chefes não pisavam em determinado campo do território político. Pretendo, ao contrário e de boa-fé, tratar das políticas dos governos recentes com a maior isenção possível. Porém, se não o lograr, neste tempo pré-eleitoral conturbado, peço que entendam que me referi a todos eles como “governos gregos”.
O desenvolvimento econômico se fez, entre nós (como em outras grandes nações), sob o conselho e o signo da intervenção estatal. Sem intenção de desculpar os sacrifícios de direitos realizados naquele tempo, do ponto de vista econômico, o processo foi bem-sucedido, já que o desafio formidável do desenvolvimento foi superado. Deixou, porém, uma herança, sob a forma da disposição excessiva a resolver problemas econômicos pelo método da intervenção estatal.
O problema da intervenção é que um só remédio não pode curar todas as doenças. Se o desenvolvimento se fez, entre nós, por recurso à intervenção, os males que o sucederam já não puderam ser curados pelo mesmo método. Uma, portanto, no cravo, outra na ferradura. E é claro que não padecemos de um único mal, nem tivemos um só problema econômico, após termos atingido o primeiro plano da produção mundial, nos anos 70. Porém, um problema se destacou dos demais e atraiu mais esforços dos governos para combatê-lo. Refiro-me à inflação crescente, que se instalou no Brasil a partir dos choques do petróleo.
Quem, como eu, alcançou a idade adulta nesse período acostumou-se logo com a mudança cada vez mais veloz dos preços das coisas. Não entrarei em detalhes a respeito da gênese e da espécie do processo inflacionário da época. Tampouco discutirei se tivemos processos vários e sobrepostos ou se causas diversas desencadearam um só fenômeno galopante de carestia. O que importa ao olhar retrospectivo é que, em certo momento, a inflação atingiu patamar e índole tais que se tornou a sua própria causa, passou a alimentar-se de si mesma e se fez um fenômeno inercial.
O uso popular atribui à palavra inércia o sentido comum de resistência ao trabalho ou ao movimento. Estar inerte é nada fazer. Porém, em Física, inércia é o princípio segundo o qual um corpo tende a manter o estado (de repouso ou de movimento) em que se encontra.
O que os economistas fizeram foi lançar mão da imagem de um movimento (não do repouso) físico para descrever a inflação brasileira daquele período. Como a carestia devastava o país independentemente das causas clássicas da inflação, os economistas passaram a denominar inercial o processo de aumento de preços que se autoalimentava.
Mas por que a inflação se tornou a sua própria causa? A explicação mais simples talvez seja a que mostra a relação do fenômeno com as expectativas. Num sistema econômico fechado ou aberto, quanto mais inflação se produz, mais se espera, mas não só isso: quanto mais a inflação persiste, por causas várias, mais os agentes econômicos passam a antecipar os aumentos de preços para se protegerem da desvalorização da moeda.
É inevitável que os bens de um agente tenham determinado valor em moeda, em dado momento histórico. No contexto de uma inflação inercial, para evitar que esse valor se deprecie rapidamente, os agentes aumentam os preços dos bens em circulação, independentemente da atuação de qualquer outra causa inflacionária. Fazem-no simplesmente por esperarem mais inflação. Ao se generalizar, esse comportamento empresta à inflação o caráter inercial. E, não poucas vezes, a ele se segue, ainda, o aumento concertado e ritmado dos preços pelos agentes, a fim de corrigir distorções causadas pelo aumento espontâneo deles. Essa recomposição dos preços relativos costuma ocorrer por mecanismos como os gatilhos e os índices inflacionários.
Se, a princípio, a inflação que assolou o Brasil, entre meados da década de 70 e meados da de 90, teve causas específicas e distintas da própria inflação, como as ameaças à oferta internacional de petróleo e o déficit público interno, a partir de determinado momento, o componente inercial tornou-se o mais importante. Para combatê-lo, o país lançou mão do método de ação maciça no mercado que tradicionalmente utilizara para promover o crescimento econômico e ao qual estava habituado, a saber: a intervenção estatal.
O emprego antiinflacionário da intervenção materializou-se nos planos econômicos conhecidos como Cruzado I e II, Bresser, Verão e Collor I e II. Todos tiveram por núcleo o alto grau de intervenção estatal, a fim de baixar os preços. Nos quatro primeiros, a intervenção assumiu a forma do congelamento de preços. Nos outros, teve por fundamento o sequestro de dinheiro das pessoas físicas e jurídicas. Esses planos tiveram sucesso, maior ou menor, em reduzir a inflação no curtíssimo prazo. Nada mais do que isso. Passado o alívio da primeira hora, a inflação retornou mais forte do que antes dos planos.
A recordação desses acontecimentos não é intempestiva, já que o país ainda se ressente não só do insucesso dos planos para conter a inflação, mas de consequências negativas que eles ainda produzem. Falemos apenas do dia de hoje e da semana em curso: o Supremo Tribunal Federal está prestes a julgar as perdas causadas por vários daqueles planos a correntistas e poupadores. Tal é a sombra que o julgamento projeta sobre o país e tal a ameaça que os planos ainda representam para o sistema financeiro que os bancos propuseram ao STF beneficiar um pequeno grupo de poupadores e correntistas em troca do encerramento das demandas. A alternativa a esse acordo, segundo os próprios bancos, é um rombo nas suas contas de cerca de R$ 150 bilhões.
É claro que o acordo ou a condenação dos bancos em última instância ocorrerá porque eles teriam sido beneficiados pelos expurgos inflacionários e outras medidas decretadas no bojo dos planos. Puseram dinheiro no bolso: terão de devolvê-lo. Mas as coisas não são tão nítidas, no país da matemática. Delfim Netto assim se pronunciou sobre o tema:
“Trata-se, no final, de uma questão objetiva e simples: o poder de compra dos depósitos das cadernetas de poupança diminuiu entre o período imediatamente anterior e imediatamente posterior aos planos? Uma honesta e competente Nota de 18/11/2008, da Secretaria Extraordinária de Reformas Econômicas e Fiscais do Ministério da Fazenda, demonstrou que não!
É possível que haja uma pequena exceção no Collor 2. Estudos posteriores (Ernest & Young Terco, agosto de 2013, e Eric S. Maskin, fevereiro de 2014), mostraram, por outro lado, que não há evidência empírica que os planos tenham resultado em lucros excepcionais para o sistema bancário público e privado” (DELFIM NETTO, Antonio. Folha de S. Paulo. 12/11/2014, p. A 2).
Devemos, pois, concluir que os planos impuseram graves perdas à população e às empresas, sem mitigar o problema inflacionário. Não beneficiaram, claramente, segmento econômico algum, nem mesmo os bancos. E ainda deixaram a bomba das indenizações a serem pagas, não só pelo sistema financeiro, mas também pela União. É ainda de hoje a notícia de que a União terá de pagar a bagatela de R$ 6 bilhões à antiga Varig como indenização pelo congelamento das tarifas aéreas, nos anos 80 e 90. Ainda não saímos do noticiário do dia e já concluímos que os planos beliscaram o dragão da inflação, piscaram para ele, provocaram sua fúria, não o mataram e ainda deixaram despesas altíssimas de funeral deles próprios para serem pagas.
Não é demais lembrar que só uma pequena parte das pessoas lesadas requereu a indenização a que tinha direito. Mesmo assim, os valores a serem pagos sobem às cifras citadas. Imaginem se todos os que sofreram prejuízo tivessem reivindicado a reparação devida. Imaginem se o ordenamento jurídico tivesse sido aplicado inteiramente, como é normal, aos planos econômicos. Que teriam eles, então, produzido para a nação?
Os planos antiinflacionários ilustram sobejamente os perigos do excesso de intervenção estatal na economia. E, para que não digam que o grau de intervenção foi casual e não refletiu um elenco de princípios, cumpre lembrar que os planos foram criados por economistas abertamente favoráveis à intervenção mais acerba.
Pobre país o que não preserva a memória de fatos como esses. Claro: aprendemos muito com os planos antiinflacionários, o que não é uma pequena vantagem. O fracasso das medidas interventivas do Cruzado, do Bresser, do Verão e do Collor foi condição sine qua non do sucesso do Plano Real, que controlou finalmente a inflação no país. Mas o fato de termos aprendido com o fracasso não o torna recomendável, nem credencia a sua reprodução.
E o mais importante a se extrair de um fracasso são as lições que nos lega sob a forma da confirmação de princípios. A primeira lição emana da gênese e da estreita relação dos planos com o excesso de intervenção estatal. Não reconhecer, nessa gênese e nessa relação, um ensinamento é não aprender com a História.
A intervenção estatal é sempre necessária e, muitas vezes, benéfica. No entanto, há uma diferença entre intervenção planejada e política errática. A diferença define o que é joio e o que é trigo, em matéria econômica. No entanto, os planos conseguiram ser, ao mesmo tempo, exemplos de planejamento desastroso e de intervenção errática. Digo-o, na oportunidade das mudanças que o país atravessa e da eleição que se avizinha e não apenas para avivar o passado. O Brasil precisa acertar o caminho que leva a um futuro luminoso. Não pode, portanto, errar. Menos ainda errar grosseiramente.
Precisamos de política econômica, isso é certo. O difícil é acertar o tom dela. Qual deve ser a essência dessa política? Talvez possamos afirmar que ela deve consistir em caracterizar o processo atual do país como uma emergência continuada. O Brasil foi progressivamente visto como um dos principais e mais promissores países emergentes do mundo, depois de ter controlado a inflação. A tarefa dos próximos governos consiste em promover as condições necessária para que não percamos essa situação e as vantagens que decorrem dela.
Alguns mercados começam a emitir sinais contrários à ideia de que somos um país emergente. Cada vez mais, ouvem-se argumentos contrários à inclusão do Brasil nos BRICS e ao papel grandioso destes e dos emergentes na cena mundial. Olham para o Brasil e perguntam: ainda é um país emergente? O próprio sentido da ascensão econômica de nações está em xeque. Sabemos o que era emergência até a crise financeira de 2008. Mas, depois dela, continuamos a sabê-lo? Os que respondem prontamente sim não parecem entender bem a crise e seus reflexos atuais. Por isso, superar o desafio de continuar a ser um país emergente deve constituir o núcleo de toda política econômica do país, nas próximas décadas.
Para crescer a taxas típicas de emergente, com aceitável distribuição de renda, o Brasil não pode incidir repetidamente no erro das políticas orientadas a fins eleitorais ou voltadas à hegemonia política de uma ou outra coalizão. As políticas públicas, inclusive as de menor alcance, devem trazer a marca do planejamento, não de coalizões e, muito menos, de interesses partidários.
Não é o que tem acontecido, no país, nos últimos quatro anos. Nesse período, cometemos, sim, erros que contribuíram para que os analistas formulassem as perguntas já mencionadas, que põem em xeque a nossa condição emergente. As perguntas são menos tolas, e a situação do país envolve mais riscos do que pode parecer à primeira vista. Assim é, em parte, por causa dos erros que temos recentemente cometido.
O autoritarismo do atual governo democrático, sua truculência na relação com outras forças organizadas e até com as que apoiam o governo, mas estão fora do seu núcleo duro, são exemplos desses problemas. Mas muitos outros podem ser citados, assim como o método recentemente adotado para reduzir as contas de luz dos consumidores e que conduziu à quebra da Eletrobrás. Desde a implantação dessa política, a queda das ações da estatal foi vertiginosa, o que importou a redução brutal do seu valor de mercado. Sem mencionar os prejuízos que a redução da tarifa gerou para outras empresas do setor elétrico. E sem esquecer, é claro, outras medidas erráticas do governo, a exemplo da maquiagem das contas públicas para reduzir déficits e aumentar superávits, o financiamento da redução do IPI de automóveis e eletrodomésticos e de outros encargos das empresas com recursos de fundos destinados aos Estados e Municípios. Portanto, com prejuízo para as políticas dessas entidades. E que dizer da Petrobrás? Na época dos regimes autoritários, o ditado prevalecente era "A lei? Ora, a lei..." Hoje parece ser "A Petrobrás? Ora, a Petrobrás..."
O conjunto das políticas governamentais citadas é responsável por parte significativa da perda de dinamismo que aflige o mecanismo econômico do país no presente. Ao afirmá-lo, é preciso acrescentar o princípio de que partimos: a intervenção planejada na ordem social pode ser benfazeja e exercer um papel fundamental no desenvolvimento integral de um país, mas é difícil de conceber e implantar. Contrariamente, a intervenção errática facilmente implanta a desordem na economia e, conseguintemente, na ordem social como um todo. É o que estamos a observar no Brasil.
Digo-o do modo mais equidistante possível dos interesses do mercado e do próprio governo. Não me refiro a uma redução grave da atividade econômica, como fazem os mais assaltados de nervosismo, mas reconheço que a redução tenderá a se tornar grave se apenas continuar leve por muito tempo. Para reduzir a zero a distância  que nos separa do desastre, hoje, não precisamos de mais do que complacência com problemas como os que foram apontados, já que é da índole do capitalismo converter problemas localizados e persistentes em crises de dimensões imprevistas.
Manter o país na trilha da emergência, num mundo que não sabe mais o que é emergência, por certo, não é tarefa simples. Entendê-la é entender a essência da posição que ocupamos e do papel que nos cabe, no tabuleiro das nações. E realizá-la é um desafio ainda mais tremendo. Muitos países começaram a emergência econômica e pararam no meio do caminho, às vezes por causa das circunstâncias, mas geralmente em virtude dos seus próprios erros. A emergência não tem um teto a priori, como o exemplo dos Estados Unidos, que passaram de colônia a potência maior que as maiores metrópoles, demonstra sobejamente. Afastarmo-nos da situação caracterizada pela emergência incompleta e aproximarmo-nos da completa é o desafio que está colocado diante de nós e quase a nos dizer que tarefas não privilegiadas não podem ser realizadas.
O objetivo maior da economia é a justiça social. O Brasil realizou o desenvolvimento capitalista e controlou a inflação. Não foram pequenos feitos. Para realizar a justiça social em maior medida, precisa manter o papel de emergente e as vantagens daí decorrentes, pelo maior tempo possível. Para o nosso potencial, é pouco continuarmos a ser um país emergente, mas vocacionado à sofreguidão. A pobreza e as desigualdades regionais só recuarão significativamente, se formos capazes de provar a nossa emergência continuada.

sábado, 8 de março de 2014

O País do Samba

É incrível, mas aos olhos do mundo o Brasil ainda se confunde tanto com o futebol ou, quando muito, com o futebol e as mulheres. Metade do globo  nos vê assim; a outra simplesmente não nos vê. E eis-nos próximos de uma Copa do Mundo, a ser disputada no país do futebol. Um pouco de realismo fará concluir que isso significa sermos exibidos e transmitidos como nunca para todo o planeta. Via Internet, no celular e no computador, pela televisão, na mídia impressa, enfim por todos os meios, seremos representados, de novo e até enjoar, como futebol.
O show já começou e não só sob a forma de preparativos para a Copa ou de tentativas de direcionar a influência que ela irá exercer sobre a economia, a política e as eleições, mas também nos protestos e manifestações de rua que a acompanham e deverão continuar a acompanhá-la. A relação do torneio com a política foi antecipada, no ano passado, quando a Copa das Confederações foi aqui disputada num ambiente de intensas manifestações populares.
Na superfície, é claro, as manifestações daquela época questionaram a Copa, assim como os protestos de hoje o fazem. Porém, num nível mais profundo, o antagonismo com a Copa não me parece tão óbvio, se é verdade que nos vemos como a pátria de chuteiras. Pelo contrário, se a nossa identidade tem especial relação com o esporte e o futebol em particular, é preciso suspeitar se as manifestações, combatendo embora a Copa, não reafirmam dialeticamente nossa autoimagem de país da bola, cujo coroamento é de certa forma o torneio. Sobre esse tema, pretendo deter-me um pouco no presente artigo.
A simultaneidade da Copa e das manifestações de meados de 2013 não foi casual. Foi consequência do modo como nos vemos e que guarda estranha semelhança com aquele como nos veem lá fora. Dizem que as manifestações do ano passado foram mais espontâneas e que as de hoje são mais manipuladas por grupos e movimentos sociais. Isso é em parte verdade, mas, se considerarmos a relação das manifestações do ano passado e deste ano com a nossa identidade esportiva, teremos de admitir que a espontaneidade prossegue, vai muito bem, obrigado, já que, no Brasil, as coisas emanam, sim, e naturalmente, do futebol.
Há nisso espontaneidade. Mas há, ao mesmo tempo, inculcação. A imagem que se conserva do Brasil, lá fora, como país do futebol e de mulheres seminuas, mais do que exagerada, é distorcida. Não representa as coisas como realmente são. E, por razões parecidas, a autoimagem que forjamos aqui e que nos leva a ligar tantas coisas ao futebol não é menos falsa, se não for até mais invertida. Não passa de uma imagem inculcada.
E, se o é, não há tanto espontaneísmo nas manifestações de rua. É claro que os protestos de junho e julho de 2013 tomaram forma nas redes sociais. Nesse sentido, eles foram descentralizados, mas não teriam sido o que foram se grupos e movimentos organizados não tivessem exercido o papel de catalisadores deles. Claro também que as organizações por trás dos protestos não só do ano passado como deste ano vão do extremo da criminalidade ao extremo oposto de movimentos sociais legítimos. Mas o que liga os extremos, entre outras coisas, é a tendência dos protestos de reforçar nossa falsa identidade de país do futebol, pela ligação umbilical com as Copas.
Somos o que fazemos e, se fazemos protestos tão associados ao futebol, é porque nos entendemos, sim, como país do futebol. Mas a simplificação que nos apresenta como o país da bola não é simples, nem verdadeira. É complexa e tão exagerada que distorce significativamente a realidade. Não somos nosso futebol, embora esse esporte revele tanto da nossa alma.
Mais do que isso, se as considerações acima fazem algum sentido, podemos identificar a atuação de dois fatores nas manifestações: o fator político, mais evidente, e o cultural, mais profundo. Prometi deter-me no segundo fator, mas nem por isso deixo de reconhecer o primeiro. Porém, o número de participantes  nas manifestações do ano passado (864 mil, só durante a Copa das Confederações, de acordo com o Ministério da Justiça) já sugere que o fator mais profundo explica, em maior medida, a espontaneidade e a relação dos protestos com o futebol.
As práticas mais arraigadas a que a identidade nacional está associada são espontâneas e pouco relacionadas ao poder. É difícil imaginar que, sendo assim, o orgulho nacional autorize um verdadeiro protesto contra a Copa. Estou a sugerir que não há verdade nos protestos? De modo nenhum. Porém, a verdade deles não radica na contrariedade propriamente dita, mas nos graves problemas do país nas áreas de educação e saúde. Os protestos não exprimem tanto a contrariedade ao torneio mundial ou o desejo da maioria dos manifestantes de que os investimentos necessários à realização dele fossem canalizados à educação e à saúde. Tal desejo seria contrário à relação do nosso povo com o futebol. Por isso, não pode ser facilmente concedido. É de universal conhecimento que, em muitas áreas, o país gasta mais do que investiu para sediar a Copa. Não podemos duvidar de que a população tenha disso, ao menos, um conhecimento intuitivo. E, se o país gasta mais, por exemplo, em juros da dívida pública, por que não se organizam protestos contra a elevação da Selic em 0,25%? Por que não tivemos manifestações contra as consecutivas altas da taxa nesse percentual ou em outro ainda mais gravoso no último ano? Tudo isso indica que as manifestações contra a Copa são tão problemáticas quanto a própria identificação do país com o futebol.
Há fontes muito mais profundas da nossa cultura do que o futebol. A música é uma delas. Desconfio que, no Brasil, o futebol reflita maior influência e expresse mais a música do que o contrário. O samba e outros ritmos são, para nós, decisivos. Explicam tanta coisa. Se no século passado se discutia se o samba nasce no morro ou na cidade, podia-se debater, com igual propriedade, se o futebol vem de um ou de outro. Noel Rosa respondeu, com razão, que o samba não é privativo do morro ou da cidade. Pode-se afirmar outro tanto do futebol. Mas, mesmo assim, a pergunta sobre a fonte primária deles nunca foi descabida.
Vindo da cidade, do morro ou de outra parte, não importa, o futebol vem do samba, mais do que o samba procede dele. O Brasil é a sua música, num sentido mais fundamental do que é o seu futebol. Mesmo assim, percebem-nos e nos percebemos muito mais como futebol do que como samba.
Para Noel, o samba revestia a vida. Dava-lhe forma própria e original. Quem conceberia elogio tão belo e autoafirmativo quanto o que ele rasgou à Vila Isabel, em “Feitiço da Vila”? Sim, “tenho de dizer/ Modéstia à parte, meus senhores/ Eu sou da Vila”! A Vila e seu samba formam uma identidade que nada tem de bairrista. É antes movida pela grandeza do artista que exaltou Estácio, após ter exaltado a Vila. Não o ouvimos cantar, em “O X do problema” “Eu sou diretora da escola de Estácio de Sá/ E felicidade maior neste mundo não há/ Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema/ Ser estrela é bem fácil/Sair do Estácio é que é o X do problema”? Não escreveu “Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira/ Oswaldo Cruz e Matriz”?
O que há de espontâneo mesmo, no Brasil, é assim. Nasce do morro e da cidade, sob forma de música. E renasce depois, da música, sob outras formas, inclusive a do futebol. Toda uma autoimagem forma-se por esse processo. E, à diferença da outra, que nos assemelha e reduz ao futebol, essa segunda imagem é muito mais verdadeira, pois além de espontânea é inclusiva como o é nossa cultura.
O futebol, nos melhores momentos, é arte. Mas o é sem deixar de ser competição e exclusão. Ninguém torce para todos os times. Torce por um e exclui os demais. Não que isso esteja errado, mas não é muito digno da arte que o futebol chega a ser em seus momentos mágicos. Em alguns casos, a paixão exacerba a competitividade a tal ponto que o resultado é a pura violência e o querer o pior do pior para os outros times e seus torcedores.
Tive um amigo que era torcedor fanático da Ponte Preta. Porém, seu amor não o impedia de confessar que maior era o ódio que tinha pelo Guarani. Quantas vezes o ouvi bradá-lo! Dirão que as escolas e os morros se digladiam, por causa do samba? Mas a penetração da música é muito maior que a da bola e, mesmo assim, a violência é menor. O samba envolve muito mais gente que o futebol. “Quem nasce lá na Vila/ Nem sequer vacila ao abraçar o samba”. O genuíno samba é uma herança. A música conforma o morro. A bola não o faz tanto assim. Por décadas, as mulheres não iam aos estádios, no Brasil. As que iam, no mais das vezes, era para ganhar a vida vendendo sorvete ou o corpo.
Não estou a afirmar que somos só nossa música. Dou a música por exemplo do que somos. Podem incluir outros ritmos: a bossa nova, o forró, o baião, o frevo, o chorinho, tantos outros. Não é o caso de reduzir o ser brasileiro a qualquer dessas fontes da nossa cultura. Muito menos de entregar a redução assim alcançada à apropriação política, como chego a pensar que as manifestações de rua fazem. Mas cabe lembrar que certas fontes da nossa cultura têm peso maior do que outras.
O país do futebol não é uma criação da mídia? A palavra mídia quer dizer meio. É o que ela devia ser e, tantas vezes, realmente é. Quando bem exercida, a mídia é um meio não só de comunicação, mas de construção da realidade social. Porém, quando mal exercida, ela cria e propaga conceitos absurdos. O país do futebol é um deles. A força desse conceito é tal que o cremos verdadeiro. Vemo-nos como nos veem lá fora, isto é, falsamente.
A relação das manifestações de rua com a Copa seria positiva, se não reforçasse uma autoimagem distorcida. Se não fosse fruto da metamorfose do real que a mídia, às vezes, opera. A canção popular já o tinha captado, na simplicidade vadia que a tipifica. Quem não se lembra de “Notícia de jornal”, que Haroldo Barbosa e Luís Reis compuseram e Chico Buarque gravou nos anos 70? “Tentou contra a existência/ Num humilde barracão/ Joana de Tal, por causa de um tal João/ Depois de medicada/ Retirou-se pro seu lar/ Aí a notícia carece de exatidão/ O lar não mais existe/ Ninguém volta ao que acabou/ Joana é mais uma mulata triste que errou/ Errou na dose/ Errou no amor/ Joana errou de João/ Ninguém notou/ Ninguém morou a dor que era o seu mal/ A dor da gente não sai no jornal”.
Se Joana apenas tivesse amado outro João! Essa é a verdade da sua história: o erro de escolha e a dor que ele lhe trouxe. Ao deslizar sobre os fatos, a notícia deixa entrever um lapso mais profundo do que aquele em que incorre sobre eles: o erro consistente em retratar o acontecimento sem a dor.
Há uma crônica de Fernando Sabino com o mesmo nome da canção: “Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome” Até aqui, a notícia. Não é ela ainda um erro, mas nem por isso é já uma verdade. Falta à notícia o esclarecimento, que o escritor lhe acrescenta: “O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome” (SABINO, Fernando. Notícia de jornal. Disponível em http://jcconcursos.uol.com.br/vip/Arquivos/"href=http://jcconcursos.uol.com.br/vip/Arquivos/">http://jcconcursos.uol.com.br/ vip/Arquivos/ProvaAnterior/12462.pdf).
Não há tantas obras, na nossa música e literatura, que se chamem “Notícia de jornal”. Não é coincidência que as que levam esse nome mostrem falhas de notícias. É proposital. Tanto a canção como a crônica são libelos. Quando deixa de ser meio e se torna um fim, a mídia altera a representação do mundo e faz as pessoas acreditarem que a realidade transfigurada é a verdadeira.
É diferente com a nova mídia? Com os blogs, as redes sociais e outros meios eletrônicos? Absolutamente não. Aliás, uma das novas e falsas representações que esses meios têm propagado consiste em afirmar que assumiram a direção da política, depois da Primavera Árabe. Meios nada dirigem: são dirigidos. Se as redes sociais têm servido para organizar manifestações e protestos, é enquanto meios que se dão a essa função, não como redes de inteligência artificial que receberam um sopro, viveram e passaram a governar o mundo.
Uma parte da sócio-cultura brota do solo. Outra parte a recobre como uma cúpula. A economia e as manifestações culturais (em geral, artísticas e religiosas) mais influentes costumam integrar o primeiro complexo. A ciência, os meios de comunicação, o direito e todo o restante compõem a superestrutura. Devemos desconfiar quando a imagem que uma sociedade forma de si ou de outra coletividade emana da superestrutura. Essa imagem é geralmente falsa.
Talvez a música exprima tão bem a alma do povo brasileiro, porque “ninguém aprende samba no colégio”. Não o disse Noel e, como de costume, tão bem? O samba é o regime que o morro impõe à tristeza, quando ousa desafiá-la. O que é ensinado nas escolas é bem outra coisa e tem outra gênese. Não nasce de baixo, vem de cima. Não procede do solo, mas da superestrutura. Precisa, por isso, ser tomado com muito maior reserva.
Ao imbróglio que a falsa representação nos prepara para junho tanta coisa se seguirá! Luta política, rua, quartel, eleições, tentativas em todos esses níveis de apropriação da ilusão para fins práticos. Felizmente, nem tudo no andar de cima é falso. A verdade tem a força incrível do que resiste aos golpes que lhe assestam para se reerguer e se impor ao final. Mas quão longe estará, a esta hora, o final?

terça-feira, 4 de março de 2014

O Exagero da Fé (e o da Descrença)

Mequinho enfrenta o campeão mundial
Boris Spassky
"Ruy: Ó bucéfalo anácrono! Não te interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito de minha habitação, levando meus onívoros à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência do que o vulgo denomina nada.
Ladrão: Dotô, eu levo ou deixo os pato?"

A anedota acima é uma caricatura dos absurdos a que a linguagem pode levar, quando transformamos seu uso em culto irracional. Ruy Barbosa foi, talvez, o caso maior de manejo a um tempo belo e abstruso da língua portuguesa. No relato acima, surpreende o ladrão a subtrair uns patos de seu quintal. Interpela-o veementemente e recebe resposta tão magnífica quanto perplexa.
Conhecimento e linguagem são inseparáveis. O problema é que os dois são vizinhos do absurdo. E o pior é que a fronteira entre eles nem sempre é bem demarcada e, portanto, respeitada. Os desprecavidos podem passar de um a outro sem o perceberem.
A Teologia também é um conhecimento. É possível afirmar que a própria fé também o é. O texto de Isaías o trai: “O  meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos” (Is 53:11). Sabemos que o texto em que esse verso se encontra foi tomado como a mais clara predição do Messias, no Antigo Testamento. Como tal, foi aplicado incontáveis vezes a Jesus. Por isso, quando o verso diz que o servo justificará a muitos, devemos entender que o fará pela fé, pois nada é tão cristalino nos escritos autênticos de Paulo quanto que a justificação se dá pela fé. Porém, no verso de Isaías, o que justifica é o conhecimento. Só resta concluir que, no pensamento bíblico, a fé não é o contrário do conhecimento, mas uma de suas espécies.
Isso se torna evidente, quando percebemos quanto a fé se reporta ao princípio conhecido como tertium non datur. Com a identidade e a não contradição, esse princípio
, também conhecido como terceiro excluído, compõe o elenco dos cânones fundamentais e primeiros da Lógica. Afirma, sucintamente, que algo é ou não é. Não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Chamamos primeiro princípio o que não se fundamenta em qualquer premissa ou em outro conhecimento. O que constitui a sua própria base. Observamos os princípios lógicos, simplesmente, porque pensamos assim.
Deus é ou não é: tertium non datur. Não há outra possibilidade. Mas exatamente por isso, a fé é tão fundamentada. Ela é conforme aquilo que costumamos denominar pensamento consistente. Já por esse motivo e até prova em contrário, podemos considerar que a existência de Deus é 50% provável. Mas, com 50% ou menos de probabilidade de cair um temporal, ao nos ausentarmos de casa, fechamos as janelas. E, com 50% de chance de ser assaltados, não vamos a certo lugar. Que dizer de coisas ainda mais importantes que um temporal e um assalto!
Para dizê-lo numa paráfrase, se Deus não existe, comamos e bebamos porque amanhã morreremos. Mas, se a verdade estiver no outro prato da balança das probabilidades, as consequências devem ser muito mais certas e ter muito maior impacto do que não ir a um lugar para não ser assaltado. Se Deus existe, nosso pensamento deve elevar-se muito mais amiúde a ele. Revelações de Deus ao homem devem ser procuradas. E a vida deve passar a refletir os princípios encontrados nessa comunicação como diretrizes fundamentais. Tudo porque Deus é ou não é.
Porém, por ser lógica, a fé corre constantemente o risco da redução ao absurdo. Não é novidade que, nos tempos modernos, os exageros da fé, as várias espécies de fanatismo, foram desmascarados como contrassensos e de fato o são. O que nem sempre se repara é que as pessoas, ao mesmo tempo, crédulas e muito brilhantes tendem a cair em contrassensos pelo procedimento particular da redução ao absurdo. Exageram a fé até dar à luz o contrassenso.
A Teologia está cheia de exemplos disso. Um dos mais proeminentes (para os críticos da fé, pelo menos) é o do brasileiro Henrique da Costa Mecking. Mequinho, como é conhecido, era um dos três maiores ídolos esportivos do Brasil, nos anos 70, pelo seu extraordinário desempenho no xadrez e pela incongruência de um gênio desse esporte surgir num país tão atrasado em ciência e outros campos do pensamento analítico quanto o Brasil. Por meio da propaganda, o regime militar, no auge de seu poder, criou a ufania de um Brasil imbatível da cabeça aos pés, numa alusão a Mequinho e Pelé.
Infelizmente, Mequinho foi acometido de uma doença mortal, quando ocupava o terceiro lugar no ranking mundial: a miastenia gravis. Foi desenganado pelos médicos, antes de visitar uma senhora da Renovação Carismática Católica, conhecida como tia Laura, da qual se dizia ter o dom sobrenatural de cura. Ao chegar à casa de tia Laura, Mequinho tremia de frio, por causa do estágio avançado da doença degenerativa. Tia Laura disse-lhe para tirar a camisa, pois Jesus o aqueceria. Ele o fez. Ela orou por ele e, a partir daquele dia, contra todos os prognósticos, Mequinho começou a melhorar. Atribuiu sua cura a Jesus e escreveu um livro (Como Jesus Cristo salvou minha vida) para dar testemunho disso.
O relato da cura de Mequinho é parecido com dezenas de outros, nos quatro Evangelhos. Sob esse aspecto, não surpreende. Mas choca e chama atenção a incompreensão com que a sua experiência é até hoje recebida, pelos de tendência cética. Numa entrevista concedida em 2010 à Rádio Xadrez (http://vidaemminiatura.blogspot.com.br/2010/12/ rx26-henrique-costa-mecking.html), Mequinho tornou a narrar sua cura. Disse que quer retornar à parte mais alta do ranking mundial, o que é impossível em atividades como o xadrez e a matemática, em que o apogeu costuma ser alcançado entre os 20 e os 30 anos de idade, e o declínio tende a ser inevitável a partir daí.
O que mais espanta, na entrevista, permitam-me dizê-lo, não é Mequinho crer contra toda essa improbabilidade que voltará ao topo do ranking. O espantoso são os comentários que se seguem à entrevista, que, em vez de focar igualmente os vários assuntos dos quais ele fala, tratam quase exclusivamente dos planos esportivos de Mequinho. E os tratam como delírio ou alucinação. Quase como uma demência religiosa.
Mequinho estudou Teologia e Filosofia Católica, depois de sua cura. É, para mim, patente que desenvolveu sua aspiração, com base nessa formação. E que não há delírio ou demência alguma nisso. Um pouco da sua entrevista bastará para mostrá-lo:
“Rádio Xadrez: Que planos tem para o futuro?
Mequinho: Voltarei a ser um dos melhores jogadores do mundo. Para Deus, tudo é possível. A maioria das pessoas acha que não conseguirei. A cura que Jesus me deu é progressiva e estou quase bom. Em 1979, estive à beira da morte. Não conseguia mais mastigar, só ingeria alimento líquido e não tinha força sequer para escovar os dentes. Hoje, estou quase curado e retornando ao xadrez. Tenho 58 anos de idade [62 em 2014] e, por minhas próprias forças, não teria a menor condição de alcançar esse nível novamente. Minha idade é só 10% da dificuldade. O que resta da doença corresponde aos outros 90%. Mas, assim que estiver totalmente curado, creio que retornarei ao topo. Meu rating [número de pontos que define a posição do enxadrista no ranking mundial] aumentará e meu jogo ficará progressivamente mais forte [...] Deus quer fazer coisas em que ninguém acredita, apenas para que entendam que foi ele quem as fez”.
É claro que os aficcionados e comentadores da entrevista se escalpelaram sobre essas declarações. Abandonaram o resto para deter-se na inspiração religiosa de Mequinho. Debateram, principalmente e de modo apaixonado, se ela é delirante. É uma boa pergunta: há delírio nas declarações de Mequinho? Duvido, apesar de ele levar uma vida monástica dedicada à fé e aos seus planos de retornar ao xadrez.
Mequinho encontrou a cura na Renovação Carismática: que há de errado em seu poderoso intelecto dobrar-se a essa experiência fortíssima? Ele estudou Teologia a fundo: que mal há em escorar sua esperança de retorno ao xadrez numa representação teológica de Deus? Haveria problema, talvez, se a escorasse numa representação ufológica ou política, mas teológica convenhamos...

O enxadrista contorna todas as pedras lógicas que o entrevistador coloca no seu caminho. Diz que retornará ao topo, mas explica, em seguida, que essa é a sua fé e que ela se sustenta na onipotência de Deus. A Teologia não ensina que Deus é, de fato, onipotente? Sim e, de novo por causa do terceiro excluído, Deus é ou não é. Se é, pode todas as coisas. Que mal pode haver em um homem, que recebeu formação teológica, comportar-se de acordo com a sua formação? O perigoso, o doentio, não é o contrário? Não é receber essa formação e tratá-la como nada?
Mequinho não deixa de reconhecer aspecto algum da realidade. Sabe que a idade, quanto mais avançada, mais prejudica o desempenho no xadrez. Só considera que a sua doença é um obstáculo maior que a idade. Ele e só ele está em sua pele. Só ele e seus médicos podem avaliar a proporção dos desafios postos pela idade e pela doença.
Quando o repórter sugere que a idade é um óbice intransponível, Mequinho não diz que não é. Não espera que Deus opere milagres contra a natureza. Argumenta somente que não saiu daquela faixa em que é possível alto desempenho enxadrístico. E o prova por meio de fatos:
"Rádio Xadrez: Karpov e Korchnoi [campeão mundial e segundo do ranking, quando Mequinho estava no auge] não estão mais entre os 20 maiores.
Mequinho: Um minuto, Korchnoi tem 21 anos mais do que eu. Então essa comparação não existe. Cerca de seis anos atrás, Korchnoi ainda conseguia ganhar torneios internacionais e fazia partidas brilhantes.”
Percebam as veredas que o pensamento de Mecking percorre. Ele crê no milagre, mas reconhece os limites postos pela natureza. Não os toma como limites ao poder de Deus, mas ao alcance do próprio milagre. Destoa, assim, do conceito teológico de que o milagre é a suspensão da lei natural. Acha que é um ato contra probabilidades muito reduzidas, mas compatíveis com a lei natural. Um ato, portanto, improvável, mas não impossível. E faz questão de demonstrar, pelo exemplo de Viktor Korchnoi, onde estão postas as probabilidades. Que é isso, afinal: racionalidade ou demência?
Na entrevista, não faltam sequer perguntas irônicas:
"Rádio Xadrez: O seu primeiro retorno, no Torneio Interzonal da América do Sul, em 1993, não foi muito bem-sucedido [...] Foi porque os outros jogadores oraram mais que você?
Mequinho: Cada pessoa tem a sua fé. Jesus disse: “Pedi e recebereis”. Então, eu posso pedir. Naturalmente, Jesus concede o que quer. Se tivesse de me conceder tudo, eu já seria campeão mundial."
Nenhum desprezo à fé de outras pessoas. Nenhum egocentrismo. Raciocínio consequente: Jesus é Deus; ele disse “Pedi e dar-se-vos-á”, então podemos pedir. Fé sem megalomania ou perda do senso do real: pedir é devido, receber é possível. Pedimos mais do que Deus pode distribuir. Se não é um limite, essa é a especial conformação que a justiça impõe à onipotência divina. Se não a impusesse, Mequinho teria conquistado o título mundial à força de encher os ouvidos de Deus.
Devemo-nos precaver contra os exageros da fé tanto quanto contra os da linguagem. Mas, tanto ou mais do que frente a eles, havemos de colocar-nos em guarda contra os exageros da descrença, que ouve a primeira possibilidade e ensurdece para a segunda, ouve que Deus pode não existir, jamais que ele “pode existir”.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Livre Exame de Romanos (capítulos 9 a 11)

A ELEIÇÃO DE DEUS



Após discorrer sobre a condenação universal e a salvação de judeus e gregos realizada por Deus em Cristo, Paulo não dá sua exposição do evangelho por encerrada. Passa a enfrentar o duro fato de que uns recebem essa salvação e outros, não. Enfrenta-o, em particular, no seio do seu próprio povo, Israel: “Tenho grande tristeza e incessante dor no coração; porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne” (9:2-3).
Paulo tem esse cruel sentimento, por causa dos judeus que não receberam Cristo como o Messias e o Filho de Deus e que, por isso, não foram salvos: “Israel que buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por quê? Porque não decorreu da fé, e, sim, como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). 
Seria muito fácil explicar a rejeição dos judeus só pelas obras. Paulo já havia estabelecido a condenação universal. Havia também mostrado que Deus, em Cristo, provera o remédio para essa situação. Seria consequente, da sua parte, afirmar que, se alguém rejeitasse o remédio, continuaria com a moléstia e morreria dela, isto é, que tanto os judeus como os gregos incrédulos permaneceriam sob condenação.
Mas Paulo não adota o princípio das obras e sim o da graça. Por meio de Cristo, Deus salva gratuitamente o homem perdido nos seus pecados. E, se assim é, como explicar o fato desconcertante de que alguns não abraçam a fé e permanecem na condenação? Se não vem do homem crer no evangelho, pode vir dele o não crer?
Fiel ao seu princípio de exposição, Paulo não vacila em enfrentar essa dificuldade do mesmo modo como lidara com a justificação, ou seja, olhando-a pelo ângulo de Deus e não do homem. Como a salvação procede de Deus, não é diferente, em princípio, com a rejeição do evangelho. O ato de Deus escolher a uns implica o de não escolher a outros, pura e simplesmente.
Assim, a rejeição do evangelho pelos que não creem é descrita como o resultado de uma predestinação negativa. Repito que isso está implícito no fato de Deus escolher alguns para serem salvos. A eleição implica a não eleição. Por isso, os que não foram escolhidos para serem salvos foram destinados à rejeição e a permanecerem sob condenação. Paulo chora e deplora esse fato, mas o aceita, pois nada pode fazer para mudá-lo, se Deus sumamente bom não pôde. Paulo pode ter “grande tristeza e incessante dor no coração”, e estamos certos de que Deus também as sentiu, mas nada é possível fazer quanto a isso.   
Precisamos, porém, introduzir uma diferenciação entre a predestinação positiva e a negativa, isto é, entre a predestinação à glória e à perdição. A primeira é absoluta. Não admite, por isso, o menor contraste. Nenhuma obra humana, seja interna, do coração, seja externa, do comportamento, pode ser causa da salvação. Isso porque a salvação é a concessão de um dom divino, e o divino é incomensurável, incomparável com qualquer coisa humana. Ou Deus o concede esse dom ao homem, ou ele permanecerá totalmente inacessível. Porém, quando entramos no campo da predestinação negativa, o contrário se torna verdade. A Bíblia afirma, o tempo todo, que o ímpio perece por causa das suas obras. A morte é o salário do pecado (6:23), não o dom gratuito de Deus. Isso exige uma reformulação da doutrina, no tocante à predestinação negativa. Essa modalidade de determinação deve consistir num condicionamento e não no estabelecimento de um destino inescapável. As circunstâncias da vida do pecador são condicionadas de maneira a incliná-lo à perdição, porém ela pode ser evitada, mediante o arrependimento.   
Isso não significa que o pecador possa alcançar a glória a que Deus predestina seus eleitos. Se essa glória é inalcançável por meio das obras, ninguém a pode lograr pelo arrependimento, mas apenas pela eleição divina. Porém, deve haver destinos e estados eternos que não se confundem com a bem-aventurança à qual Deus predestina, nem com a perdição. Esses destinos intermediários, que não equivalem ao purgatório, são uma consequência necessária da doutrina da predestinação como Paulo a formula em Romanos.
Deus não tem de que se queixar, se alguns o rejeitam em razão de um decreto imutável dele próprio. Mas não ter de que se queixar não é o mesmo que não sentir “grande tristeza e incessante dor no coração”. Podemos crer que Deus as sentiu e sente. Dirão: mas se sente, por que não escolheu os que rejeitam o evangelho para serem salvos também? Seria tão fácil para Deus pôr fim a essa tristeza...A resposta de Paulo é que seria fácil, mas não justo. Ele pergunta: “Há injustiça da parte de Deus?” E responde: “De modo nenhum” (9:14). Podemos, pois, responder o questionamento sobre a não eleição dos que se perdem, admitindo que seria fácil para Deus sobrepor sua vontade à deles, mas não o faz porque não é justo. Dirão por acaso que essa explicação nos leva de volta às obras? Leva, de fato, mas a Escritura diz, todo o tempo, que o ímpio perece pela sua impiedade, isto é, pelas suas obras. Só não diz que o justo se salva pela sua capacidade, mas por um dom de Deus.
Podemos, pois, admitir que, em algum ponto e de alguma maneira, a justiça obriga Deus a não ouvir a “grande tristeza e a incessante dor no coração”. Sei que os adversários dessas ponderações não se contentarão com a minha explicação. Dirão insaciáveis: por que não ouvir a tristeza e a dor, em vez de a justiça? Diante disso, só nos resta replicar: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (9:20).
A tristeza e a dor pela perdição de alguns não devem obstruir o caminho da justiça de Deus, que consiste em estender a muitos o mérito de um só. O Universo tem todos esses motivos de lamento. Mas eles não devem parar a história da salvação. Nem nos devem levar a desassociar a salvação da graça e a associá-la às obras. Paulo paga o alto preço da tristeza e da dor para manter a verdade basilar da graça.
E vai buscar na Escritura o fundamento para a sua posição: “Ainda não eram os gêmeos [Esaú e Jacó] nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já lhe fora dito: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (9:11-13). Paulo vê o amor e o aborrecimento de Deus como sinais de eleição. Deus amou porque escolheu, não escolheu porque era amável. Aborreceu, porém, Esaú, porque era digno de aborrecimento.
A indignidade de Esaú aparece com todas as letras em Hebreus 12:16-17: “Não haja algum impuro, ou profano, como foi Esaú, o qual, por um repasto, vendeu o seu direito de primogenitura. Pois sabeis também que, posteriormente, querendo herdar a bênção, foi rejeitado, pois não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o tivesse buscado”.
Esses versos alijam Esaú completamente da bênção a Israel. Excluem-no não por ter dado origem a outra descendência, mas por não ser parte de Israel em espírito, isto é, por não ter o coração circuncidado. Um homem assim, ainda que busque a bênção com lágrimas, não um só dia, mas mil, não a alcançará, pois não possui o princípio necessário para alcançá-la. Esse princípio é a eleição de Deus.
Notem que Esaú cria em Deus. Mas essa fé era uma construção sua. Não vinha de Deus. Não era um dom divino. Portanto, nem mesmo a fé, como gênero, basta para garantir a bênção de Deus. O que basta é a fé que é dom. Em Apocalipse 3:14, Cristo é chamado o Amém. Nenhum vocábulo simboliza tanto a fé nas promessas de Deus quanto esse que se pronuncia ao final de toda palavra inspirada. No entanto, o amém não está em nós, não vem de nós: é o próprio Cristo. Dele é a fé que Esaú não possuía.
Assim Paulo responde a inquietação sobre a eleição dos santos, que implica a dos incrédulos. Assim ele demarca com força, no chão da própria casa de Isaque, o campo dos que se salvam e o dos que não se salvam. É levado a isso pela contemplação do terrível espetáculo da incredulidade dos judeus. Paulo olha para tantos compatriotas, amáveis sob outros aspectos, e chora a sua incredulidade. Olha, por outro lado, para si, para os outros apóstolos e para os judeus cristãos e diz: há também vasos de misericórdia. Na mesma casa, ele vê “vasos de ira, preparados para a perdição” e “vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (9:22-23).
Não vacila em escrever desses últimos: “os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (9:24). Ao observar a piedade sincera em alguns, Paulo não se reprime: admite-a como sinal de eleição. Chama vasos de misericórdia os que têm o coração repleto dessa piedade. Isso pode parecer preconceituoso, na medida em que tantos outros são excluídos por ele de idêntica condição. Mas é consistente com o princípio em que toda a exposição de Romanos se baseia. Esse princípio é o da evidência empírica. Paulo escreveu Romanos 1 a 3 constrangido pela impiedade que grassava no mundo à sua época. Mas, se admitia o fato evidente da impiedade, por que Paulo não admitiria a piedade de outros? Por que deveria olhar para os ímpios e reconhecer que eram ímpios e olhar para os justos e calar que eram justos?
A evidência da piedade existente no mundo levou Paulo a identificar os vasos de misericórdia como determinadas pessoas. E não há erro algum nisso. Só não devemos pensar que a identificação tenha validade absoluta. Podemos considerar alguém um vaso de misericórdia hoje e amanhã concluir que não é. O conhecimento dos vasos de misericórdia é essencialmente provisório. Só se sedimenta após longo tempo. Para usar a linguagem de Santo Agostinho, só podemos ter certeza de quem perseverará até o fim, após ter perseverado.
Quando se refere à bênção introduzida pelo evangelho, Paulo tem em vista a vida eterna em glória. Afirma que Deus dará a vida eterna aos que procuram glória, honra e incorruptibilidade. Lembra que a criação aguarda a glória e a liberdade da glória dos filhos de Deus (8:19,21). E que aqueles a quem Deus, de antemão, conheceu e predestinou também os chamou, justificou e glorificou (8:29-30). Por fim, reitera que os vasos de misericórdia foram preparados para a glória (9:23).
A salvação tem em vista um fim, que é a glória, a não salvação, outro fim: a perdição (9:22). Embora especulemos, não sabemos como será a glória a que o apóstolo se refere. E, se há algum equilíbrio na revelação de Deus, tampouco sabemos em que consistirá a perdição dos ímpios. Sobre esse ponto, é preciso fazer reinar um prudente silêncio.
Mesmo assim, aquilo que não sabemos o que é estamos certos de que virá. O Livro de Apocalipse, ao revelar-nos “as coisas que hão de acontecer” (Ap 1:19), não nos confunde com uma série de julgamentos finais e uma série de paraísos vindouros, mas apresenta um só juízo e uma só Nova Jerusalém. Isso torna absolutamente claro que não haverá mais do que dois destinos finais para os que viverem até aquele momento.
Esses destinos constituem um limite importante para os purgatórios localizados no futuro. Não há lugar, no pensamento de Paulo ou no Apocalipse, para tais lugares intermediários. Talvez por isso, por volta do ano 150 d. C., tenha vindo a lume um livro chamado O pastor de Hermas, que trata do arrependimento dos cristãos que retornaram ao pecado. A lição do livro é de que essas pessoas podem alcançar estados os mais diversos e receber tratamentos também diversos de Deus. Porém, isso acontece no período em que a igreja é edificada, não no tempo de vida de cada pessoa na Terra.
Talvez o mais significativo sobre O pastor de Hermas tenha sido a acolhida que teve no meio cristão, durante os primeiros séculos. Muitas igrejas incluíram o Pastor no rol das Sagradas Escrituras para mais tarde excluí-lo, não sem razões. Porém, a ideia fundamental da obra continuou a ser aceita por muitos e discutida por um número ainda maior. E não pode haver dúvida de que ela constituía um novo desdobramento do problema enfrentado por Paulo em Romanos 9: se a salvação é pela graça, que envolve a predestinação, torna-se difícil admitir que todos os eleitos que recaem em pecado sejam restaurados antes da morte. No entanto, o próprio Paulo não se manifestou sobre esse ponto. Nunca houve silêncio mais eloquente...

O REMANESCENTE
O quadro das divisões ocorridas ao longo da História leva os cristãos a se perguntarem que ramos da enorme árvore de igrejas representam a comunidade que Jesus fundou. Não raro, a resposta oferecida à pergunta exige que uma igreja seja suficientemente antiga ou tenha vínculos claros com igrejas antigas para ser considerada legítima.
Por um instante, isso pode parecer insensato aos que pensam que não adianta uma igreja existir há muito tempo, se abandonou a fé dos apóstolos. Contudo, os defensores do critério da antiguidade não o pretendem aplicar a comunidades apóstatas, mas apenas às que professam a fé dos apóstolos. Assim utilizado, o critério faz mais sentido, por duas razões: desautoriza qualquer divisão não baseada numa necessidade e impede que a igreja seja refundada, sob pretexto dos erros ocorridos nela. Nesses casos, a antiguidade ergue barreiras à desunião e à presunção.
Todos concordam que a igreja cristã deve ser identificada pela fé no evangelho. Romanos confirma esse ponto de vista, mas o faz de modo diferente daquele pelo qual os cristãos costumam responder a pergunta sobre a igreja. De fato, ou os cristãos afirmam que os limites da igreja são invisíveis, por coincidirem com a fé dos seus integrantes, ou os associam a uma instituição, como a Igreja Católica.
A ideia de Paulo em Romanos é diferente. Por um lado, ele enfatiza a suficiência da fé como critério de determinação dos limites do povo de Deus. Por outro lado, trata esse povo, o tempo todo, como Israel. Quer dizer que o povo é uma descendência, uma linhagem histórica, não corações crentes que não sabemos a quem pertencem por formarem uma igreja invisível.
Como judeu, Paulo concebe Israel em termos genealógicos. Esse modo de pensar está implícito na palavra povo, que ele utiliza em vários versículos. Para o homem antigo e Israel em particular, todo povo era uma descendência. Não é diferente com o Israel espiritual, que Paulo também considera uma estirpe, linhagem ou descendência.
É correto definir esse povo, Israel, com base na fé. Paulo o faz e com grande ênfase. Mas é importante lembrar que a fé muito genérica não define bem Israel. No versículo 7, o povo de Deus é tratado como o conjunto dos filhos de Abraão. Isso significa que ele começou com esse patriarca. Portanto, não é qualquer fé, mas a fé de Abraão que o define.
Adão não creu na promessa a Abraão, pelo motivo óbvio de que a promessa não existia na sua época. As promessas de Deus a Adão não são idênticas, em conteúdo, às que ele formulou a Abraão. Se fossem, Paulo teria construído Romanos 4 e 9, bem como o Livro de Gálatas sobre Adão, não sobre Abraão. Mas ele os construiu sobre Abraão. Por outro lado, se Adão tivesse recebido promessa tão gloriosa quanto a de Abraão, Paulo não teria feito referências sempre tão negativas a ele, em Romanos 5 e 1ª aos Coríntios 15. Para que eclipsar promessa tão radiante de Deus, vinculando Adão ao pecado, como Paulo faz nesses capítulos?
Em Romanos 11, Paulo se refere ao povo de Deus como uma árvore cuja raiz é constituída pelos patriarcas (11:16). Reafirma, assim, o que diz no capítulo 9, a saber: que Israel existiu a partir dos patriarcas. Isso não significa que Adão e seus descendentes anteriores a Abraão não tenham sido salvos. Em Hebreus 11:4-7, lemos que Abel, Enoque e Noé tornaram-se aceitáveis a Deus pela fé. Porém, nesse mesmo capítulo, nenhuma promessa é citada, até Abraão e Sara entrarem em cena. Sobre eles, diz o autor bíblico: “Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu [...] Pela fé, também, a própria Sara recebeu o poder para ser mãe, não obstante o avançado de sua idade, pois teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa [...] Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas” (Hb 11:8,11,13).
Portanto, se Adão e Noé receberam promessas de Deus, elas não devem ser equiparadas às que foram formuladas, mais tarde, a Abraão, Isaque e Jacó. As promessas a Adão e Noé foram de salvação; as que foram feitas a Abraão, Isaque e Jacó foram também fundadoras do povo de Deus. Por isso, os que creram nas promessas, antes de Abraão, serão introduzidos no povo de Deus no futuro, mas não fizeram parte dele no passado.
Para Paulo, o povo de Deus, Israel, situava-se entre Abraão e a sua própria época. Mas, se assim é, não faz sentido os cristãos travarem tantos conflitos, a fim de estabelecerem qual é a legítima igreja de Cristo. O Israel de Deus é a única igreja e começou com Abraão.
Característica importante da igreja é a antiguidade. No entanto, devemos conceber essa antiguidade em toda a sua extensão. A Igreja de Roma é antiga. Tem peso e importância por isso. Mas Israel é muito mais antigo que ela. E, se é absurda a pretensão de fundar ou refundar a igreja, no nosso próprio tempo, devemo-nos integrar à que existiu desde o princípio, isto é, a Israel.
Quando Jesus declarou “Tu és Pedro e sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18), não quis dizer que a igreja cristã seria edificada sobre Pedro. No capítulo 11 de Romanos, Paulo compara a igreja a uma oliveira. Pedro é um ramo dessa oliveira, não sua raiz. Não faz sentido pensar que a oliveira deve crescer sobre ele, mas sobre as raízes.
Nenhum ramo tem o direito de se gloriar sobre outros: “Não te glories contra os [outros] ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti” (11:18). Acaso essa exortação não se aplica também aos ramos naturais? Não se aplica, em particular, a Pedro como ramo natural da oliveira? Um ramo atribuir-se importância superior à de outros é sinal de soberba: “Dirás: Alguns ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Bem! Pela sua incredulidade foram quebrados; tu, porém, mediante a fé estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme” (11:19-20).
Está claro que Paulo identifica o povo de Deus com Israel e, por isso, o localiza quase inteiramente no passado. Não faz sentido pensarmos nesse povo como uma coletividade centrada no bispo de Roma. Pedro não tinha sequer se estabelecido em Roma, quando Paulo escreveu Romanos, como se depreende da ausência de qualquer referência a ele na carta. No entanto, o povo de Deus é mencionado como já existente. Quando diz “nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (9:7), Paulo quer dizer que o povo de Deus vem de Abraão, portanto é tão antigo quanto ele.
Quando travam tão grande conflito, a fim de estabelecer qual é a legítima igreja, os cristãos esquecem-se de que o povo de Deus antecede a encarnação do Verbo. Não há solução de continuidade na sua existência. Existiu no Antigo Testamento e continua a existir até hoje. Por isso, se a intenção de fundar ou refundar esse povo denota soberba, devemos recuar ao passado para encontrá-lo, porém não ao passado que interessa a essa ou àquela igreja em particular, mas a um passado suficientemente longínquo para constituir a origem dele. Devemos recuar ao tempo da raiz da oliveira.
Nenhum recuo menor do que esse é suficiente. Porém, o recuo é dificultado pela afirmação de Paulo de que “Israel que buscava a lei de justiça não chegou a atingir essa lei [...] Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). Só uma minoria de judeus, um remanescente, acreditou em Cristo: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo” (9:27). A nação como um todo, a maioria do povo e dos líderes, rejeitou a Cristo. E, se isso ocorreu, como devemos realizar o necessário recuo a Israel, a fim de nos integrarmos ao povo de Deus em toda a extensão necessária?
Sobre esse grave problema, Paulo se debruça nos capítulos 9 a 11. E não o faz por motivos estritamente judaicos, mas como algo de interesse também dos gentios. O interesse dos gentios por Israel decorre de o povo de Deus continuar a ser Israel. Não o Israel que foi rejeitado, mas o “que o é interiormente, cuja circuncisão é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (2:29). Que se passou com esse Israel?
Paulo o responde, com base numa série de profecias do Antigo Testamento: “Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada à que não era amada; e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo; ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo” (9:25-26). Aplica esses versos claramente aos gentios, mas prestemos bastante atenção, pois o faz de modo a identificá-los com Israel. Ou alguém pensa que o povo que Deus chama seu, em Oseias, é algum outro? Não é outro, mas o próprio Israel.
Oseias prediz um milagre: pela fé, os gentios tornar-se-iam Israel. Mas, para que o fariam, a não ser para seguirem a fé de Israel? Os gentios tornarem-se Israel tem o propósito de que Israel seja a regra de fé para eles. E, se Israel se perdera, integrar-se a ele só podia significar integrar-se a um remanescente: “Ainda que [...] Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo”.
Esse remanescente, que não dobrou os joelhos a Baal (11:2-4), tornou-se o padrão para a igreja de Deus. A quem seguimos hoje? A Jesus, mas por meio dos judeus Pedro e Paulo. Por meio de João e Tiago. Mas, assim como só nos miramos em Lucas enquanto reflete Paulo, imitamos Pedro enquanto permanece judeu. O Pedro católico nada tem de judeu. É o bispo de Roma, o primeiro Papa, uma autoridade ocidental. Que Igreja esse Pedro encabeça? A que se formou na Idade Média, regida pelo Direito Canônico e pela teologia medieval. Não a igreja que é Israel.
Dos dons feitos por Deus à humanidade, o remanescente judeu é o mais precioso depois do Verbo encarnado. Mas, como é próprio dos dons mais excelsos, ele se dissipou quase sem deixar rastros. A geração dos Doze passou, sem que outra semelhante a sucedesse. Além do que está no Novo Testamento, temos muito pouco a respeito dela. Os católicos creem que Pedro deixou uma cátedra. Mas, se isso tiver ocorrido, e há dúvidas, a cátedra se fez um império medieval, e isso é certo. Apartou-se de tudo o que se assemelha a Israel e, do ponto de vista criado por essa inovação, rege até hoje boa parte dos cristãos. Claro que nada disso nos permite identificar, na Igreja Católica, a autoridade espiritual que ela se atribui.
Paulo trata esse assunto como um grande mistério: “Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério” (11:25). Não mereceria o nome de mistério, se fosse um tema nacional e terreno. Mas, exatamente por ser mistério, é pouco palpável. Temos dele não mais que um conhecimento precário. Da ofuscante visão do cometa que enche de luz o céu, ao passar, restou-nos o brilho que emana das páginas do Novo Testamento.
O brilho é, porém, uma regra tão forte quanto a que o navegante deriva do astro que o orienta. Descoberta por milagre a seus olhos, dada a distância que os separa, essa luz não é muda. Fala-lhe e até mesmo lhe ordena: “Esse é o caminho. Segue-o.”
Deus nos deu instituições, mas não muito grandiosas. Agradou-lhe governar a noite pela luz em extinção de um povo remanescente. Não abrasará mais o céu para a vermos. Quer, ao contrário, que a nossa visão dependa mais da atenção com que olhamos do que da intensidade da luz. “A candeia do corpo são os olhos” (Mt 6:22). A luz mensageira está dada. Vê-la depende do nosso olhar.
CRER E INVOCAR
Em Romanos 10:4, Paulo se refere à mensagem nuclear das Escrituras como o fim (télos) da lei: “Pois o fim da lei é Cristo para justificação de todo aquele que crê”. Chega a essa conclusão, após ter discutido amplamente com os judeus o vasto conjunto de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento que então circulavam. Infelizmente, a conclusão não era compartilhada pela maioria dos seus compatriotas, mas o modo de ver o Antigo Testamento deles e de Paulo é o mesmo. Podemos dizer que consiste em reconhecer a inspiração divina de todo o conjunto de manuscritos existente.
Os originais e a tradução grega reconhecidos pelos judeus eram praticamente todos os textos que possuíam das Escrituras. Sabemos da existência de uma ou outra tradução parcial do Antigo Testamento fora desse conjunto, porém, na prática, elas eram muito difíceis de encontrar. Não estavam realmente disponíveis para a maioria dos judeus. De modo que o conceito de Sagrada Escritura implicava a aceitação da quase totalidade dos manuscritos como inspirados.
Chama atenção o fato de que esses numerosos textos divergiam em muitos pontos, sem que isso causasse perplexidade aos judeus. Para eles, a palavra de Deus era o conjunto completo de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento, com todas as divergências que apresentavam. Não é preciso acrescentar que essa concepção é muito distinta da dos católicos e protestantes do nosso tempo, que veem a Bíblia sob o ângulo limitado do feixe de manuscritos utilizado em traduções centenárias e rejeitam outros, por causa das variações que contêm em relação a eles.
Essas concepções antiga e moderna da Bíblia são como dois idiomas. É impossível nos entendermos com quem abraça uma delas, utilizando a outra. E, como Paulo adotava a primeira concepção, é impossível entendermos o que ele diz, com base na ideia moderna. Ao afirmar que toda Escritura é inspirada por Deus, 2ª a Timóteo 3:16 se refere aos incontáveis manuscritos hebraicos e à Septuaginta. Nós não dizemos a mesma coisa, quando sustentamos que as Escrituras são a palavra de Deus. E as consequências de ideias tão distintas não são de pequena monta. Para dizer o mínimo, uma ideia é aberta, não comprime a palavra de Deus num dogma, considera-a tão insondável quanto o próprio Deus, ao passo que a outra resolve todas as coisas e o próprio Universo no dogma que cristaliza.
Com base na primeira concepção, Paulo afirma que a justiça da lei e sua consequência (a vida eterna) estão claramente reveladas no versículo em que Deus ordena: “Guardareis os meus estatutos e as minhas leis, cumprindo os quais o homem viverá” (Lv 18:5). Mas o apóstolo conclui que não há um judeu ou prosélito capaz de cumprir todos os mandamentos da lei. Assim, ele se afasta da teologia rabínica, que supunha o contrário. Devemos indagar por que o faz. Que o leva a pagar o alto preço da discordância em relação aos seus compatriotas?
Paulo extrai a conclusão da incapacidade do homem de cumprir a lei da observação do que acontece. Qualquer um pode chegar a conclusão idêntica, se observar os atos humanos como ele o faz, ou seja, de mente aberta e sem preconceitos. A pecaminosidade humana não é uma ideia genial ou acessível apenas aos muito inteligentes. É acessível também aos menos dotados, desde que não sejam menos dotados de realismo.
No entanto, essa conclusão do bom senso fecha o acesso à salvação tão eficazmente quanto o querubim com a espada obstruiu o caminho para a árvore da vida, em Gênesis 3:24. Como Moisés diante da Terra Prometida, quem alcança essa consciência é capaz de vislumbrar, mas não de alcançar a salvação pelo caminho apontado em Levítico.
Paulo, porém, não desiste. A obstrução de um caminho coloca-o em busca de outro. Já o tinha encontrado no verso de Habacuque que afirma que “o justo viverá pela fé”. Reencontra-o em Deuteronômio 30. Nessa passagem, Moisés pronuncia as bênçãos e as maldições em que Israel haveria de incidir, respectivamente, pela obediência e pela desobediência a Deus. Nas bênçãos, Paulo acha “a justiça que provém da fé”: “Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu?” (10:6). E interpreta: “Para fazer descer Cristo” (10:6). “Ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos” (10:7).
Sabemos que, em Deuteronômio, Moisés se refere ao mandamento da lei outorgada a Israel. Afirma que ele não está no céu ou no além-mar para que Israel os tenha de buscar tão longe. De que técnica interpretativa Paulo se vale para encontrar Cristo e não o mandamento em Deuteronômio? Da técnica da escola rabínica de Alexandria, cujo expoente maior, Fílon, se referira ao Logos (palavra) como um ser pessoal gerado de Deus. Se o mandamento da lei é palavra (Logos), é legítimo descrevê-lo como esse ser, ou seja, como o próprio Cristo. Como a passagem de Deuteronômio afirma, em seguida, que o mandamento está no coração e na boca de quem o conhece, não é equivocado espiritualizá-lo do modo como faz Paulo.
Lançada, pois, a base dessa interpretação, o apóstolo avança em direção à conclusão que quer compartilhar com os romanos. Se há, na lei, uma justiça inalcançável e outra alcançável, por estar perto de nós, no nosso coração e na nossa boca , Paulo não hesita em interpretar a proximidade dessa segunda justiça por meio dos versículos: “Quem nele crê não será confundido” (10:11; Is 28:16) e “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (10:13, Jl 3:5).
Diz mais: “Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? Como pregarão se não forem enviados? Pois está escrito: Quão belos são sobre os montes os pés do que anuncia boas-novas sobre coisas boas!" (10:14-15).
Cada palavra, nesses versículos, foi escolhida para exprimir o cerne da experiência inicial de salvação. Invocar é a continuação necessária de crer, como crer é o prosseguimento normal de ouvir. Mas, do modo como nem toda fé conduz à justificação, o invocar a que Paulo alude é específico. Para nada aproveita crer como os demônios creem (Tg 2:19) ou invocar como os que dizem “Senhor, Senhor” e não entram no reino dos céus (Mt 7:21). Crer é algo específico; invocar também o é.
No Antigo Testamento, Deus se tornou conhecido como Iahweh. Por isso, invocar era invocar esse nome (Gn 4:26). Se o nome de Iahweh não devia ser usado em vão (Êx 20:7), invocá-lo era o único meio de salvação disponível para o homem. Não era uma transgressão do terceiro mandamento, mas o contrário exato disso. No Novo Testamento, porém, a revelação foi além desse ponto. Invocar passou a ser invocar Jesus como Iahweh. Sob essa luz, “todo aquele que invocar o nome do Senhor” significa todo o que invocar Jesus como Senhor. As palavras Jesus, Senhor e Iahweh não são elementos de um rito. Por isso, o que importa não é a ordem ou a frase em que as pronunciamos, mas o sentido que lhes atribuímos ao pronunciá-las.
Paulo é muito claro nesse ponto. Afirma que com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa para salvação. Atrela, assim, a justificação à fé e a salvação, à confissão. Para ter valor, a invocação do nome de Jesus deve corresponder a uma confissão, exatamente como a fé, para ter validade, deve ser um ato do coração.
A confissão verdadeira é diferente de dizer apenas “Senhor, Senhor”. Em grego, confessar é homologéo, que significa dizer o mesmo. A palavra da salvação é a mesma que Cristo pregou. É a mesma que os apóstolos anunciaram. Não é outra, pois “se alguém, ainda que nós ou um anjo do céu, vos anunciar evangelho diferente do que vos temos pregado seja anátema” (Gl 1:8).
Quanto mais nos apartamos dessa palavra, menos capazes de invocar o nome do Senhor nos tornamos. Não importa o quanto falamos. A salvação não é uma experiência de loquacidade. É questão de falar o mesmo, de confessar o senhorio de Jesus: “Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo” (10:9). Confessa-o quem diz “Senhor, Senhor”? Não, mas quem afirma, publicamente, por fé, que se sujeita ao jugo de Cristo.
E se a pessoa, após invocar desse modo o Senhor, retornar aos pecados? Essa complicação do problema da salvação é resolvida, em Hebreus, pelo arrependimento. Se nós, que somos maus, devemos perdoar o irmão arrependido 70 vezes sete, como Deus, que é bom, pode negar o perdão a alguém?
Quando diz que não é possível ao crente que retornou ao pecado lançar novamente a base do arrependimento, Hebreus 6:6 se refere à fé em Deus, à confissão e ao batismo (Hb 6:1) que concretizam o arrependimento. A confissão é um ato simbólico. Como tal, ela deve assimilar-se àquilo que representa: o ato de justiça de Cristo. Se Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, devemo-nos arrepender também uma vez. Se, após tê-lo feito, voltamos a pecar, não devemos lançar novamente a base de arrependimento, mas apenas retornar a ela.
Como não cabe discutir que palavras, quando pronunciadas, implicam usar o nome do Senhor em vão, não é o caso de estabelecermos fórmulas invariáveis de confissão. Invocar o nome do Senhor não é dizer palavras sacramentais, mas dizê-las com o sentido de uma confissão. É confessar a mesma verdade, não a mesma palavra, pois a verdade pode ser expressa por diferentes palavras.
Paulo descreve assim o processo da justificação e da salvação inicial. Não utiliza estas duas palavras como sinônimos. Refere-se à justificação como parte da salvação inicial e a divide em quatro passos: o envio, a pregação, a escuta e a fé. O primeiro desses passos é dado por Deus; o segundo, pelo pregador, os dois últimos, pelo ouvinte da palavra de Deus. A esses passos podemos acrescentar o entendimento, pois Paulo afirma que muitos judeus têm zelo por Deus, mas sem entendimento (10:2), o que os impede de crer e de ser justificados.
A salvação completa, porém, inclui um passo adicional: a confissão. No Evangelho de Marcos, inclui também o batismo, que acompanha a confissão (Mc 16:16). Tudo considerado, chegamos a sete passos: o envio, a pregação, a escuta, o entendimento, a fé, a confissão e o batismo. Esse é o inteiro processo da salvação inicial.
Uma consequência prática emerge da diferença entre a justificação e a salvação: a de que algumas pessoas podem ser justificadas e não completar o processo da salvação inicial, por falta da confissão e do batismo. Paulo parece não só admitir essa consequência como entender a situação de alguns de seus compatriotas com base nela. Ao distinguir as experiências de crer e invocar, ele torna possível um entendimento mais flexível da situação espiritual dos seus concidadãos. Evita votá-los todos a um destino idêntico.
Muitos judeus creram em Jesus, mas não o confessaram. Nicodemos é um dos casos notórios. Em Romanos 10, Paulo parece inseri-los numa situação peculiar caracterizada pela presença da fé e pela ausência da confissão. É muito difícil entender o que isso significa em termos do destino eterno da pessoa. Mais ainda afirmar que essas experiências diferentes implicarão uma só consequência.
Porém, o capítulo 8 ajuda-nos a resolver o dilema: “Aqueles que de antemão conheceu também os predestinou [...] e aqueles a quem predestinou a esses também chamou, e aqueles a quem chamou, a esses também justificou, e aqueles a quem justificou a esses também glorificou” (8:29). É possível inverter a ordem dessas afirmações? É possível afirmar, por exemplo, que aqueles que glorificou, justificou e chamou Deus também predestinou?
Parece que não, pois Jesus declarou que “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos” (Mt 22:14). Se a diferença entre os grupos constituídos pelos chamados e pelos escolhidos puder ser estendida ao grupo dos justificados, será possível ser justificado sem ter sido predestinado, do modo como é possível ser chamado sem ter sido escolhido.
Na parábola do banquete, em Lucas 14:15-24, um homem convida muitas pessoas para um banquete, mas apenas alguns (os menos dotados) comparecem. O convite é, assim, um símbolo do chamamento. Mas ao símbolo basta ter algo em comum com o que é simbolizado para cumprir a sua função. Não é preciso que ele seja semelhante à coisa simbolizada em todos os outros aspectos. Por isso, Jesus pôde se referir a Deus como um juiz iníquo. Na parábola do banquete, o fato de o convite ter sido recusado não implica que o chamamento de Deus seja comumente rejeitado. A parábola não foca esse aspecto do chamamento. Alguns dos que foram convidados e não compareceram à festa podem ter mantido excelente relação com o anfitrião, tanto antes como depois do convite. Devemos até supô-lo, pois o princípio da urbanidade o exige. Porém, se assim é, o chamamento não constitui um convite que, declinado, ponha fim à relação de Deus com o homem.
A frase “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” deve ser interpretada literalmente. O chamamento de Deus é real. A eleição também. Não há motivo algum para a entendermos alegoricamente. Por isso, muitos são muitos, e poucos são poucos, não outra coisa. A lição da parábola é de que o número dos chamados é maior que o dos escolhidos, sem que uns ou outros estejam excluídos da relação com o anfitrião que representa Cristo.
Essa é a ideia presente, também, em Romanos 8:29-30 e 10:14-15. Paulo sugere que o grupo dos que creem e são justificados não é idêntico ao dos que invocam e são salvos. Há muitos pontos de semelhança entre os grupos, mas eles não são idênticos em tudo.
Podemos prosseguir, na senda de Romanos, e perguntar se a glória não é como a justificação e o chamamento. Se o número dos glorificados não excede o dos predestinados. Não podemos negar que as respostas a essas perguntas estão implícitas, não manifestas, nas parábolas e em Romanos. Aqui e ali, Deus semeou mistérios na revelação. Não entendemos mistérios, como não ceifamos sementes. Apenas as reconhecemos, esperamos que cresçam e se tornem vegetais maduros. Esse esperar não é destituído do mais fundo sentimento. Como o agricultor espera a messe com que sonha, também nós esperamos que as sementes da revelação se transformem em luz meridiana. E, enquanto esperamos, lembramo-nos dos entes queridos e rogamos por eles, como Paulo lembrava dos seus compatriotas (9:1-5) e intercedia em favor deles (10:1). Mas Deus é quem faz crescer a messe. Fará crescer isso ou aquilo, como lhe apraz, mas também como esperamos nele.

CRER E OUVIR
Depois de ter estabelecido que Deus salva o homem da escravidão do pecado, pelo ouvir seguido da fé e da confissão, Paulo passa a explicar por que seus compatriotas, descendentes de Abraão, não alcançaram a salvação. Diz sem rodeios que não foram salvos, porque não creram ou porque, tendo crido, não confessaram a sua fé em Jesus.
Para o afirmar, Paulo se apoia em Isaías, que pergunta quem creu na pregação dos profetas (10:16; Is 13:1). O termo traduzido pregação, nesse verso, é akoi, do qual provém a palavra acústica. Akoi denota o ato de ouvir. A pregação a que Isaías se refere é o ressoar da palavra de Deus aos judeus. A partir dela, o crer ou descrer dos judeus os faz responsáveis diante de Deus.
Giorgio Agamben mostrou o percurso seguido pela instituição do juramento (horkos) na cultura grecorromana. Mostrou que, em todas as etapas desse percurso, o juramento esteve ligado à fé (pistis). E que jurar foi o ato pelo qual gregos e romanos sempre prestaram fé da verdade de um fato ou da intenção de cumprir uma promessa. Nesses povos, o valor violado pela quebra do juramento era tão sobranceiro que nenhum castigo ou sanção humana era imposto ao transgressor para que os deuses, pessoalmente, o punissem.
Essas considerações sobre o juramento e a fé tornam tão evidente o sentido jurídico dos termos grego e latino que os designam que, às vezes, Agamben o antepõe ao próprio uso religioso. Ajudam a entender por que, em Romanos, Paulo tece argumentação tão manifestamente jurídica. A salvação, como a apresenta, é um ato jurídico praticado por Deus. Não poderia ser de outro modo, se a palavra pistis estava permeada de tamanho significado legal. Claro que a inteira discussão sobre o caráter judicial ou orgânico, mais judicial que orgânico, mais orgânico que judicial ou tanto orgânico quanto judicial da salvação, que alguns gostam de sustentar, perde sentido, à luz desses dados. Simplesmente não havia, na palavra pistis, a menor implicação de algo orgânico.
Agamben recorda que a fé é “a confiança que depositamos em alguém – a fé que damos – tanto quanto a confiança com que contamos junto a alguém – a fé, o crédito, que temos” (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem - Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 34). E acrescenta imediatamente que, embora recíproca, a fé não implica uma relação entre iguais. Indica, ao contrário, “a desigualdade das condições [entre as partes que se relacionam]. Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com a proteção sobre aquele que se submete, em troca da sua submissão e na mesma medida desta” (idem. p. 34).
Esse é um ponto por demais fundamental da pistis grega: o fato de relacionar duas partes em situações profundamente desiguais. Não por acaso, Romanos se refere à relação do homem com Deus como  uma servidão. Não por acaso, apregoa que, de escravo do pecado, o homem se faz servo de Deus. A servidão cabe no leque de significações de pistis, por constituir uma relação entre desiguais.
Em todos esses pontos, a descrição que Agamben nos fornece da fé concorda com o que o Novo Testamento revela. Contudo, uma comparação mais atenta dos sentidos do termo, num e no outro âmbito, revela também divergências. E é natural que assim seja, pois Paulo usa a palavra pistis para exprimir uma ideia proveniente da cultura judaica, que era muito distinta da grega. Vale a pena indicar quais as principais diferenças no emprego de pistis por Paulo, em relação ao uso grecorromano.
Vimos que, no mundo romano, pistis exprimia uma relação jurídica. Mas o direito que o termo implicava era um método de poder e um regime de força (kratos). Ao usar a palavra fé, Paulo mantém intacto o sentido jurídico dela, mas elimina a implicação de poder. Emprega a palavra de modo a sugerir que Deus, ao nos salvar, volta o direito contra o poder.
Essa implicação decorre dos três primeiros capítulos de Romanos, em que Paulo descreve o pecador, tanto judeu como grego, como alguém enfermo pelo pecado. O enfermo está a tal ponto destituído de força que é incapaz de contrair relações de poder. Quanto mais uma relação com o Deus Todo-Poderoso! E, se assim é, não há razão alguma para pensarmos na fé como expressão de poder. A força e o poder eram significados do termo, no idioma grego e no mundo romano, não no pensamento de Paulo.
A segunda diferença da fé neotestamentária consiste em designar um ato do coração. “Com o coração se crê” (10:10), diz Paulo. Entre os romanos, "fides era um ato verbal acompanhado em geral de um juramento” (idem. p. 35). Esse ato verbal Paulo o transforma num evento silencioso que se passa no coração, numa espécie de assentimento interior à palavra de Deus.
A fé exclui a loquacidade. Exclui toda forma de verbalização. E, se a exclui, devemos entender que rejeita também outras formas de exteriorização. Fé é um momento em que o homem fica a sós com o seu Criador. Por isso, em outra passagem, Paulo nos diz: “Cri, por isso falei; também nós cremos, por isso falamos” (2 Co 4:13). Nesse verso como em Romanos, a fé exclui o falar, ainda que seja seguida por ele. É secreta e silenciosa. Transcorre diante de Deus e apenas ali. É, por definição, o encontro do homem com Deus. O falar é o seu complemento. É o voltar-se do homem que creu para fora de si. Mas, por ser o seu complemento, o falar não é a própria fé. É um ato que se passa diante dos homens: o invocar que Paulo tanto encarece em Romanos 10.
Estas as características estranhas, porque estrangeiras, que Paulo introduz na pistis grega. Ele as introduz não com base em qualquer tradição ou na sua própria opinião, mas por meio das Escrituras. Do solo bíblico, o apóstolo transplanta esses novos significados ao território do grego koiné. Por meio deles, a fé se torna uma experiência distinta da que os gregos e os romanos conheceram. Torna-se o ato de crer sem amparo do poder e sem apelo à exteriorização ritual.
Que experiência surpreendente é essa que Paulo descreve, meticulosamente e em toda a sua extensão? Que palavra nos transmite a sua suma? A que melhor lhe cai é justiça. Paulo diz, tantas vezes, que crer é submeter-se à justiça de Deus! Não pode deixar de dizer, outras tantas , que os judeus não conheceram a justiça de Deus e, por isso, estabeleceram a sua própria: “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (10:3).
Justiça é a suma da experiência de fé, como confissão o é da experiência de salvação. Por isso, substituir a justiça de Deus pela própria é errar do pior de todos os modos, com as consequências dignas de lástima que daí decorrem e que vão desde a multidão a clamar “Crucifica-o, crucifica-o” até o endurecimento permanente de Israel.
Paulo lança mão de todas as categorias até então apresentadas, na sua epístola, para explicar esse grave desvio. Cita a pergunta cheia de espanto do profeta Isaías: “Senhor, quem creu em nossa pregação?” Sugere, por ela, que os judeus não creram. E encontra, na incredulidade deles, a resposta que tanto busca. Afirma que os judeus estabeleceram a sua própria justiça, por não terem crido na de Deus.
Mas, essa resposta, Paulo a considera ainda parcial. Não se dá por satisfeito, pois continua a indagar por que os judeus não creram. Põe-se em busca de resposta mais profunda. Teriam, os judeus, permanecido na incredulidade por não terem ouvido? Não é o caso, pois, “por toda a terra saiu a sua voz, e até os confins do mundo as suas palavras” (10:18). A terra citada nesse versículo é a que Deus prometeu a Abraão; confins do mundo (oikoumenes) são os países onde os judeus da Diáspora se estabeleceram. Tanto num como no outro lugar, o evangelho foi pregado. Portanto, as comunidades judaicas, em todo o mundo, o ouviram.
Mas, se ouviram, por que se mantiveram incrédulas? Como um médico incansável, Paulo busca o diagnóstico da doença cujos sintomas se tinham tornado evidentes. Questiona: “Porventura não o souberam?”, como quem pergunta se teriam ouvido, mas não entendido (10:19). Responde que não, pois Deuteronômio afirma que Deus haveria de despertar ciúme em Israel “por causa de um povo insensato” (10:19; Dt 32:21). Se Israel não entendeu e não creu, por que os gentios, que eram faltos de entendimento (insensatos), puderam crer?
E, se a falta de entendimento não explica a incredulidade de Israel, poderia explicá-la a ausência de busca espiritual? De novo não é o caso, pois Isaías profetizou: “Consenti em ser encontrado por aqueles que não me procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome disse: Eis-me aqui” (10:20; Is 65:1). Portanto, se os judeus não se mantiveram incrédulos por não terem ouvido, por não terem entendido ou por não terem procurado, segue-se que não creram, simplesmente, porque a fé não lhes foi dada.
Um olhar de águia sobre a História permite-nos entender que a fé romana, tão igual e tão diferente da que Paulo apresenta, ligada como ela ao direito, mas calcada no poder mais cruento, produziu como resultado o hedonismo. Não um hedonismo completo, pois o prazer não reina absoluto onde o punhal interrompe a lei. Nem um hedonismo democratizado, pois os escravos, os bárbaros e os citas nunca tiveram acesso a ele. Mas, de qualquer modo, um hedonismo substancial. Um dos maiores de toda a História. O hedonismo da Corte dos Césares, das casas dos nobres, das classes abastadas e da legião sempre presente dos que, sem o serem, tentavam ser como eles. Nos centros desse hedonismo, a música mais sublime, os poemas e a literatura mais arrebatadores sempre se misturaram à traição e aos bacanais, como fios de um tecido improvável.
 Porém, a civilização calcada no mais extenso poder, em toda a Antiguidade, fracassou ao tentar tornar-se uma civilização do prazer. Após ter-se firmado como a civilização com poder mais extenso, o Ocidente realiza tentativa semelhante, nos nossos dias. Com sua incomparável força, tenta fazer-se uma civilização do prazer. E, como Roma teve de opor o seu hedonismo à fé cristã ao tentar promovê-lo, é necessário que o Ocidente enjeite a fé que o deu ao mundo para propor o seu próprio.
Por que o poder, embora mesclado com a fé, termina assim no hedonismo? Por que terminou assim em Roma e termina do mesmo modo, no nosso tempo? Será porque falte à fé que é poder o elemento capaz de conservar a convivência humana? Será tal poder conservador algo privativo da fé-humildade, que Cristo nos revelou?
A proposta de Cristo ainda se faz ouvir. É a proposta de uma fé sem poder, de uma fé que é humildade e, se é também poder, é poder humilde. Nem por isso o poder é visto pela fé como negativo. Mas ele a vê como tal. Sempre a viu, e isso faz a diferença entre um e outro. Entre fé humilde e poder hedonista. Sobre a histórica cena desse conflito, Santo Agostinho talvez dissesse que duas civilizações tentam erguer duas cidades ao prazer, pela negação de uma só fé. E que a negação nunca trouxe paz ao mundo, somente espada. Trará hoje paz?

A MISERICÓRDIA UNIVERSAL
  
Romanos 11:32 traz uma declaração exatamente inversa à de 3:23. Enquanto este último verso atesta que “todos pecaram e carecem da glória de Deus”, o capítulo 11 se encerra com a afirmação de que “Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos”. Na estrutura cuidadosamente concebida da Carta aos Romanos, esse não é um pormenor irrelevante. Indica, ao contrário, que, como o pecado se tornou universal, a misericórdia divina também atinge todos os homens.
Simplesmente não é correto enfatizar a condenação geral e não a misericórdia de Deus para com todos. Mais do que isso, a condenação é a situação inicial; a misericórdia, a situação final, na linha do tempo em que Paulo situa a revelação do evangelho. Temos, portanto, motivos para nos perguntarmos se, por vir depois da condenação, a misericórdia não a suplanta e cancela. Mas, para concluir se isso de fato acontece, precisamos considerar primeiro o que Paulo ensina no capítulo 11.
Logo no início, ele afirma a distinção existente entre o povo de Deus e Israel. Diz que o primeiro foi preconhecido por Deus (11:2). Sabemos que o que Deus conhece, conhece totalmente. Portanto, não só conhece o seu povo como sabe que ele será salvo. O preconhecimento de Deus implica que o que ele conhece realizar-se-á. Não é o conhecimento do possível, mas do certo. É, por isso, inseparável da predestinação (8:29).
O povo de Deus mencionado em 11:1-2 é, portanto, o conjunto de todos os que haverão de ser salvos. Mas Israel, citado a seguir, não o é. É uma nação igualmente eleita por Deus, pois Paulo diz que os judeus são inimigos quanto ao evangelho e amados quanto à eleição (11:28). Porém, a eleição deles é distinta da que a igreja cristã recebe. Visa a cumprir o propósito secular de Deus, ao passo que a igreja cumpre o seu propósito espiritual.
Por isso, a eleição dos membros da igreja é chamada da graça (11:5). É formada por pessoas como os sete mil que não curvaram os joelhos a Baal (11:4). O Israel secular, porém, inclui não só os sete mil, mas também aqueles a quem “Deus deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (11:8). Dos quais diz o salmo: “Torne-se-lhes a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos para que não vejam, e fiquem para sempre encurvadas as suas costas” (11:9-10).
Trata-se de grupos bastante distintos, porém entrelaçados. E o que os entrelaça é a vontade de Deus expressa pela palavra eleição. Tanto um como o outro grupo foi eleito por Deus. E, embora se trate de eleições distintas, eles devem conviver harmonicamente por terem sido escolhidos pelo mesmo Deus. O propósito das duas eleições não é entrarem em conflito. Daí o entrelaçamento do povo de Deus com o Israel secular.
A oliveira cultivada é a imagem perfeita disso. Ela não foi plantada, nem veio a existir, no momento em que os gentios foram enxertados. Já existia antes. E, se alguns ramos dessa oliveira foram cortados, é claro que ela não inclui somente a eleição da graça, mas também a da lei.
A oliveira cultivada não é a assembleia dos eleitos, a igreja invisível, universal ou como mais a chamemos. É, antes, a mescla das duas eleições: o Israel histórico, no qual coexistiam judeus de sangue e os eleitos para receberem a graça de Cristo.
Porém, a situação da oliveira mudou, quando os ramos incrédulos (judeus) foram cortados, e os crentes gentios, enxertados. Essa mudança separou a eleição da graça da eleição da lei e a relacionou a um terceiro grupo representado pela oliveira brava. As árvores cultivada e selvagem não se tornaram uma só, o que indica que o mundo e a igreja não foram mesclados, como Israel e a igreja antes foram, mas muitos ramos da oliveira brava foram enxertados na cultivada.
A oliveira brava representa uma terceira eleição. Não a eleição da lei, nem a da graça. Mas, se acompanharmos cuidadosamente a narrativa de Gênesis, perceberemos que os gentios mencionados pelas Escrituras descendem dos filhos de Noé, com quem Deus celebrou uma aliança ao dizer: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais [...] Disse também Deus a Noé a seus filhos: Eis que estabeleço a minha aliança convosco e com a vossa descendência” (Gn 9:1-2,8-9).
Quando Deus rejeitou os judeus, a eleição da graça foi separada da lei. Os ramos incrédulos foram cortados da boa oliveira, e os da oliveira brava foram enxertados. Nem por isso, deve reinar a desarmonia entre judeus e cristãos, pois Deus pretende reintroduzir o Israel secular na sua oliveira. Mas a ligação estreita, no tempo atual, da boa oliveira não é mais com os judeus e sim com os descendentes de Noé, ou seja, com o mundo gentio.
Claro: os gentios são idólatras. Por isso, a oliveira cultivada não é assimilada a eles. Eles é que se transformam na boa oliveira. Porém, embora essa ressalva deva ser formulada, a parábola mostra que a eleição da graça é colocada em união com o mundo. A oliveira cultivada passa a receber ramos não cultivados, com todas as suas características selvagens.
Tanto os ramos naturais da oliveira como os que foram enxertados nela e a própria oliveira brava têm a mesma natureza. Todos são oliveiras: o mesmo vegetal, com a mesma essência e a mesma vida. Isso reforça o que temos afirmado, ao longo deste livre exame: que a salvação não consiste na comunicação de uma nova vida ou numa mudança de natureza no crente ou fiel, mas num procedimento legal realizado por Deus em Cristo. Falamos bastante disso, ao tratar do capítulo 4. Não o retomaremos aqui. Mas cabe ressaltar que a parábola das oliveiras reforça esse ponto.
Uma oliveira, três eleições. Deus não atua por meio das obras do homem, a não ser enquanto preparadas por ele próprio para que andássemos nelas (Ef 2:10). A salvação não procede do homem, mas de Deus. Esse é o princípio, a única base na qual Deus salva. Mas, de certa maneira, a parábola das oliveiras nos fala de três experiências de salvação. Uma é a salvação dos que guardam o pacto com Noé; outra, a dos que são da lei; e ainda outra, a da graça.
Se todas são eleições, todas implicam salvação. Quando Deus escolheu os gentios para encherem a terra de homens, seu propósito não era que isso não se cumprisse. A figura das oliveiras mostra que uma não cumpre o papel da outra. A oliveira selvagem cumpre a missão de encher a Terra com a vida humana e temor a Deus. A outra existe para fim diverso: para dar frutos ao agricultor e àqueles com quem ele os compartilha.
Voltamos, assim, ao princípio com que abrimos este texto. Romanos 11 nos fala da misericórdia geral e irrestrita de Deus. Misericórdia para com os judeus e misericórdia para com os gentios. Misericórdia para com os judeus que creem e para com os que são cortados, para com os gentios enxertados e para com os que permanecem na oliveira brava. Misericórdia de várias espécies e que produz resultados diversos, mas sempre misericórdia.
Vejamos o caso dos judeus incrédulos. Paulo afirma que “quanto ao evangelho, [eles] são inimigos por vossa causa; quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas” (11:28). “Porventura tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum” (11:11). Não há propósito na queda dos judeus. Nem eles quiseram cair, nem Deus quis que caíssem. E quem nunca quis que caíssem, um dia, os restaurará: “Virá de Sião o libertador, ele apartará de Jacó as impiedades” (11:26). Essa é a porção de misericórdia de Deus para os judeus incrédulos.
Mas e os gentios, que vivem nos seus pecados e na vacuidade dos seus pensamentos? Eles foram chamados a povoar a Terra com temor a Deus e respeito aos seus semelhantes. Quer Deus que isso se cumpra ou que não se cumpra? O que Deus quer pode ser frustrado? Nas bênçãos inerentes à aliança do povoamento da Terra consiste a misericórdia de Deus para com os gentios.
Porém, a parábola das oliveiras se centra na que representa a igreja, não na outra. Isso significa que a misericórdia de Deus para com o seu povo consiste em dispensar-lhe o seu cuidado como o agricultor cuida da lavoura. Nem os gentios, nem os judeus que foram cortados recebem esse cuidado. Portanto, o cuidado consistente no cultivo é a misericórdia específica e suprema de Deus para com o seu povo, que só é povo enquanto objeto do cuidado divino.
Na salvação daqueles que creem, o que faz a diferença é o que Deus realiza, não a natureza do homem. Podemos ser bons ou maus, fortes ou fracos, inteligentes ou ignorantes: isso importa para outras coisas, não para a salvação. Só o trabalho de Deus salva, só ele torna a oliveira útil para os homens. E esse trabalho consiste em cortar e enxertar. Deus corta a desobediência e enxerta a fé. Mas o faz de maneira tal que os cortados hoje poderão ser enxertados amanhã, e os enxertados poderão ser cortados (11:22-23).
Há um amor que é vizinho do ódio e se transforma nele. Um amor que motiva o crime passional. A misericórdia de Deus é o contrário dele: é a dissipação da ira. É a ira que o amor transfigura e cai sobre o mundo em forma de bênção. Deus, que faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a sua chuva sobre justos e injustos, acaso fará descer a sua misericórdia só sobre alguns? Haverá impossível maior do que esse?
A misericórdia estende-se sobre os homens, como o céu cobre a Terra. Nenhuma parte do mundo lhe escapa. E não há nela traço de ira. Como a flor que não tem um só ponto de que se possa dizer: não é belo!, a misericórdia de Deus é isenta do mais leve aspecto do qual se possa afirmar: não é pura bondade!


O TEMPO DO ARREPENDIMENTO

No texto sobre a oliveira cultivada, Paulo não vacila em afirmar que os ramos desobedientes serão cortados. A afirmação é feita de maneira tão clara que somos levados a concluir que a reprovação da pessoa que inicialmente creu no evangelho era uma possibilidade clara, na mente do apóstolo. Todo aquele que um dia creu pode permanecer nessa fé ou decair dela.
Paulo não desenvolve além desse ponto a doutrina do desvio da fé. Limita-se a afirmar que essa é uma possibilidade real, mas não esclarece se os desviados podem ou não ser restaurados e até quando a chance de restauração lhes é oferecida. Duas são as razões principais da omissão: primeiramente, Paulo não tem o objetivo de entrar em detalhes sobre esse ponto específico; em segundo lugar, parece implícito que, se a fé produz o enxerto, não importa o momento em que o indivíduo crê: se ele o faz ou não após uma queda; em todos os casos, o que crê é enxertado.
A declaração “se não permanecerem na incredulidade serão enxertados” (11:23) aplica-se tanto aos que creem, na primeira oportunidade que lhes é oferecida, quanto aos que se arrependem, após terem caído da fé. Seria cruel Deus cortar pela falta de fé e não enxertar pela fé. Portanto, Se corta, ele também enxerta. Se corta sempre que há incredulidade, enxerta todas as vezes em que há fé, inclusive após uma queda espiritual.
Mas há quem duvide de que seja assim. O motivo da dúvida são textos como Hebreus 6:4-6, que declara ser “impossível que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que de novo estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia”.
Contudo, a impossibilidade a que Hebreus se refere não é de que o pecador seja restaurado. É, antes, impossibilidade de renovação do arrependimento ou, como o autor já dissera, de lançar novamente a base do arrependimento (Hb 6:1). O judaísmo envolvia muitos atos de purificação, o que levava o judeu a questionar se o arrependimento devia ser renovado cada vez em que ele se purificava. Porém, em grego, arrependimento (metanoia) significa mudança de mente. Não é possível, ao ser humano, mudar tantas vezes de mente. Embora possamos sentir arrependimento em muitas ocasiões, só podemos lançar uma vez a base do arrependimento. Como Efésios afirma que há um só batismo (Ef 4:5), o qual é para arrependimento (At 13:24), devemos entender que há um só arrependimento.
Embora Paulo não entre em detalhes, está implícito no seu pensamento que os ramos cortados da oliveira podem ser restaurados, pelo retorno à base do arrependimento. Resta, portanto, indagar até quando a chance de restauração permanece para eles. Podem os decaídos ser restaurados até o instante da sua morte ou mesmo depois dela?
Que o homem será julgado pelo que tiver feito no corpo está claro, nas Escrituras. Paulo afirma que “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2 Co 5:10). Porém, no versículo anterior a esse, o apóstolo diz que “nos esforçamos, quer presentes, quer ausentes, para ser agradáveis” a Deus (2 Co 5:9). Ausentes significa ausentes de Cristo, pois a passagem esclarece que, “enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor” (2 Co 5:6). É, pois, fácil entender, por essa passagem, que o cristão pode esforçar-se para agradar a Deus não só enquanto permanece no corpo, mas também depois de se despojar dele.
Digamos que uma pessoa se desvie da fé e morra no estado de incredulidade. Estamos em condição de afirmar que, após a morte, ela ainda terá oportunidade de se arrepender? Podemos declarar que a oportunidade lhe será oferecida assim como foi em vida, ou seja, de modo ininterrupto? As Escrituras não respondem essas perguntas de maneira clara. E o que não está claramente revelado pode ser objeto de diferentes opiniões. Mas uma coisa está clara: que a incredulidade leva à separação, e à fé, à reimplantação na oliveira. Disso não podemos duvidar.
O clássico O pastor de Hermas, escrito em meados do século II, ensina que o tempo do arrependimento não é a vida no corpo, mas o período em que a igreja de Cristo é edificada. Enquanto a edificação da igreja não houver terminado, o arrependimento estará à disposição tanto dos vivos quanto dos mortos.
O Pastor foi mantido em alta estima pela igreja cristã, durante muito tempo. Chegou a ser incluído no cânon das Sagradas Escrituras, mas foi finalmente retirado e incluído no rol dos apócrifos. Os termos em que ele coloca a oportunidade do arrependimento são excessivamente fluidos. Não parece diferenciar entre arrependimento dos que um dia creram e dos que nunca chegaram a crer. A todos os tipos de pessoas, em todas as situações possíveis, oferece alguma possibilidade de arrependimento.
Fixa esse ensinamento em visões. Uma delas é a da construção da torre (a igreja). Algumas pedras são incluídas na construção, outras não. “Ouve agora o que se refere às pedras que entram na construção”, diz a mulher que explica a visão a Hermas. “As quadradas e brancas, que se ajustam bem entre si, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos [...] Uns já morreram e outros ainda vivem [...] As [pedras] que entram na construção sem ser talhadas são os que o Senhor aprovou, porque andaram no caminho reto do Senhor e respeitaram perfeitamente seus mandamentos [...] E aquelas que são levadas e postas na construção são os novatos na fé, porém fieis” (O Pastor de Hermas. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. pp. 181-182).
As pedras não incluídas na torre, porém, “são aqueles que pecaram e que desejam fazer penitência. Por isso não foram jogados muito longe da torre. Se fizerem penitência, serão úteis para a construção [...] contanto que façam penitência agora, enquanto a torre ainda está em construção” (idem. p. 182). Por fim, as pedras “jogadas bem longe da torre são os filhos da iniquidade: têm fé hipócrita e nenhuma forma de maldade se afastou deles. É por isso que não alcançam a salvação” (idem). Esses que foram jogados longe da torre “tiveram fé, mas, devido às suas dúvidas, abandonaram o verdadeiro caminho” (idem. p. 183).
Após essas explicações, o autor pergunta à mulher: “As pedras rejeitadas e impróprias para a construção podem fazer penitência e encontrar lugar na torre? Ela lhe responde: Podem fazer penitência, mas não podem se encaixar nessa torre. Elas se encaixarão em outro lugar muito menor e só depois que tiverem passado pelas provações da penitência e cumprido os dias necessários para expiar seus pecados” (idem. p. 184).
Vê-se que, na visão do Pastor, o tempo do arrependimento é o da construção da torre, ou seja, da igreja (idem. p. 256). Ensina também que, a cada tipo de penitência, corresponde uma espécie de salvação. Os próprios filhos da iniquidade, deixados longe da torre, podem arrepender-se e ser incluídos no “lugar muito menor”, ainda que não na torre. De sorte que não há penitência a que não corresponda salvação.
Pode, porém, não haver penitência alguma, como no caso dos “apóstatas e traidores da igreja que, com seus pecados, blasfemaram o Senhor e que ainda se envergonharam do nome do Senhor invocado sobre eles. Tais indivíduos estão definitivamente mortos para Deus” (idem. p. 240). Os que não alcançam arrependimento não podem ser salvos, porém os que o alcançam, ainda que tarde, não podem deixar de o ser.
Claro que o Pastor não pertence ao cânon das Escrituras. Não tem, por isso, a autoridade de Romanos. Mas ilustra como os cristãos antigos pensavam. No mínimo, deixa claro que eles criam firmemente na eficácia do arrependimento. E esse ensinamento de O pastor de Hermas não desafia o das Escrituras, antes o reflete. Hebreus, por exemplo, não afirma que Esaú arrependeu-se, mas não foi salvo. Diz, ao contrário, que “não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o houvesse buscado” (Hb 12:17). Esaú buscou, mas não encontrou o que buscava. Se tivesse encontrado, teria sido aceito.
Tudo indica, portanto, que o arrependimento verdadeiro e único, aquele no qual Hebreus nos exorta a permanecer, foi posto por Deus como uma base segura e certa de salvação. A vida inteira do homem, não só parte dela, deve refletir o seu arrependimento. Deve ser marcada por ele. Isso significa, com toda simplicidade, que quem um dia se achegou a Cristo não pode e não deve, de maneira alguma ou por pretexto qualquer neste mundo, voltar-lhe as costas. Fazê-lo seria arrepender-se do arrependimento pelo qual foi salvo. E arrepender-se do arrependimento é não se arrepender de maneira alguma.
Vivemos num mundo cheio de cantos de sereia. Cada qual entoa uma tentação. Uns dizem: “Quando a pessoa se acha em estado de desespero, crer é aceitável, mas não quando ela se liberta do desespero”. Outros arrazoam: “Para quem não é instruído ou autossuficiente, a fé pode ser uma boa alternativa de vida, mas não para quem o é”. E ainda outros propõem: “Na idade imatura, crer pode ser uma atitude romântica, mas é preciso abandonar as coisas de criança, quando a razão pede o seu preço”. A esses cantos de sereia, que turvam a mente e alucinam o coração, respondo somente: por que um homem que se arrependeu dos seus pecados deve arrepender-se do seu arrependimento? Não agiu responsavelmente ao se arrepender? Para que deve revogar o seu ato responsável, a não ser para assumir uma vida de pura irresponsabilidade?
Não importa se somos modernos ou antigos, cultos e inteligentes ou ignorantes e ineptos, somos antes de tudo responsáveis para com Deus. Pode parecer lindo o homem inventar o seu próprio pós-cristianismo. No fundo, é um canto de sereia medonho, que leva a trocar a promessa pelo repasto, o bem eterno pelo festival dos prazeres: “Guarda-te não te esqueças do Senhor teu Deus [...] para não suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de haveres edificado boas casas, e morado nelas; depois de se multiplicarem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração e te esqueças do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt 8:11-14).
Esse texto é o evangelho no Antigo Testamento. Exorta-nos a não experimentar o arrependimento como algo fugaz, passageiro, que a mesa que engorda o coração dissipa como uma névoa. Exorta-nos a ter o coração marcado, de modo perene, pelo arrependimento e a terminar por meio dele o que se iniciou com ele.