Se o princípio da religião é a ideia do pai celeste, é natural indagarmos por que existem tantos deuses, tantos olimpos e panteões. Embora a religião seja, antes de tudo, mistério, é necessário responder, de algum modo, essa indagação para continuar a sustentar a interpretação até aqui defendida sobre o sentido dela.
A resposta que vislumbramos passa pela consciência de que o conhecimento que o homem tem de seu pai terreno é sempre ambíguo. Envolve, de um lado, a gratidão pela proteção que o pai lhe dispensa. Por outro lado, na maior parte dos grupos neolíticos e das sociedades históricas, a figura paterna era a do patriarca que impõe sua vontade ao clã, não raro com base na força. E, se assim era, necessário se faz que as religiões impliquem, ao mesmo tempo, a afirmação e a negação do pai. O politeísmo só pode ser entendido a partir dessa ambiguidade. O pai é um só, mas a religião, como reflexo imperfeito de relações humanas, não tem só necessidade de o afirmar, mas também de o negar. O pai que ela conhece é, ao mesmo tempo, venerável e odioso. Enquanto venerável, ela o afirma; enquanto odioso, ela o nega.
Mas, se Deus é pai, não é possível negá-lo com toda a força do desejo humano, a não ser afirmando outro pai. Nasce daí o impulso politeísta inerente à religião. Após uma das mais vastas pesquisas já empreendidas sobre tema histórico ou científico, antropólogos e arqueólogos tendem a considerar que não é possível estabelecer se o monoteísmo surgiu antes do politeísmo ou o contrário. Ideias e ritos monoteístas existiram ao lado de outros politeístas, desde os primórdios da religião, de modo que não é possível afirmar a antecedência de uns ou de outros.
Mas, se a questão sobre a precedência no tempo não pode ser decidida a favor do monoteísmo ou do politeísmo, a situação é diferente no tocante ao sentido de um e de outro grupo de religiões. Do ponto de vista hermenêutico, o monoteísmo deve ser considerado mais fundamental que o politeísmo. Por isso, o princípio fundador deste último deve ter derivado do primeiro, o que equivale a dizer que os deuses são reproduções modificadas do único Deus. São múltiplos pais que o horror ao pai terreno fez surgir.
Vejamos se essa derivação pode ser comprovada no interior de uma religião específica. Tomarei o politeísmo grecorromano como exemplo, mas a mesma comprovação pode ser tentada e talvez levada a bom termo em outros cultos.
A mitologia grega afirma que, antes do nascimento do mundo, existia o Caos, a mistura dos elementos. Pela atuação de uma força estranha, esses elementos foram separados. Surgiram o Céu estrelado, a Terra, os Mares revoltos e o Ar que a luz atravessa.
Urano é o Céu, o mais velho de todos os deuses. Cibele ou Gaia é a Terra, sua companheira, de quem Urano teve muitos filhos. Esses primeiros deuses distinguem-se por não serem antropomórficos (não terem forma humana). São simplesmente o Céu e a Terra físicos que conhecemos.
Esses dados fazem pensar se as tradições sobre Urano, Cibele e seus filhos são fruto de uma concepção teológica distinta da religião olímpica (de Zeus e dos deuses). Sabe-se que, quando a tradição teológica do Olimpo se constituiu, Urano, Cibele e seus filhos Titã e Cronos perderam o papel de deuses supremos, que haviam possuído. Essa revolução é representada no mito da guerra entre eles e os deuses olímpicos.
O mito se encontra na Teogonia, de Hesíodo. Nele, Urano cobre a Terra todas as noites, mistura-se assim com ela, leva-a a conceber e a dar à luz filhos. Porém, por odiar os seus filhos, Urano aprisiona alguns deles no Tártaro, o seio da Terra. Tomada de dor por esse ato, Gaia, a mãe deles, forja uma foice e insta seus filhos a castrarem Urano. Todos se recusaram, com exceção de Cronos, que embosca o próprio pai, corta-lhe os testículos com a foice e os lança ao mar.
Esse não é o único caso de revolta contra os primeiros deuses, na mitologia grecorromana. Cronos, filho de Urano passa a devorar os próprios filhos, desde que um oráculo afirma que um deles haveria de derrubá-lo. Mas, como Gaia se indignara com os maus tratos de Urano a seus filhos, Reia, esposa de Cronos, enche-se de ira pelos infanticídios de seu marido. Mediante um ardil, ela esconde três de seus filhos com Cronos (Zeus, Hades e Poseidon), na ilha de Creta. Depois de crescerem, eles se levantam contra o pai, fazem-lhe guerra e o destituem, juntamente com os outros deuses pré-olímpicos. Com essa derrota de Urano e Cronos, o Céu nunca mais pôde unir-se à Terra. Foi separado dela para sempre. Zeus foi habitar no Olimpo, localizado no Céu, Hades assumiu o governo da Terra, e Poseidon, o do Mar.
Esse mito fundador da religião grecorromana reveste-se de ainda maior interesse, quando nos damos conta de que Urano é o Deus celeste dos gregos, a mais perfeita representação do Deus único. É, pois, o deus que melhor encarna o papel paternal em todas as religiões politeístas. Por isso, o mito da sua destituição não revela um dado qualquer da religião, mas um absolutamente essencial.
Duas linhagens, duas dinastias divinas reinam, sucessivamente, sobre o Universo. Porém, a de Urano é derrotada e destituída pela de Zeus e seus irmãos. A cada uma dessas dinastias corresponde uma religião: a primeira é a religião antiga, a outra, a dos mitos antropomórficos que a sucedem. O mito fundador do antropomorfismo explica, exatamente, a substituição de uma pela outra.
No centro da religião antiga, está Urano, o Deus celeste, ancestral primeiro dos deuses e senhor de tudo o que existe. Por que não dizer Urano, figura do Deus único? Em quase todas as religiões, foi descoberta a figura de um Deus supremo, que não é adorado, nem hostilizado. Na mitologia grega, porém, Urano e os Titãs não só não recebem culto como são humilhados e destituídos.
O ódio e a guerra entre os deuses indicam que a religião mais recente é uma revolta contra a antiga, uma rebelião contra o reinado de Urano, que como os outros deuses de sua geração não se interessava pelos assuntos humanos. É provável que esse desinteresse tenha sido usado, pelos antigos gregos, como justificativa para a rebelião que levaram a efeito contra a adoração pré-olímpica. Tão diferente é o sentimento dos deuses olímpicos para com os homens que assumem frequentemente formas e apresentam características humanas.
A injustiça dos atos de Urano e Cronos contra seus filhos contrapõe-se à justiça da reação destes, o que mostra que o mito da destituição foi composto por adeptos da religião mais recente e antropomórfica. Assim, uma ética particular coroa a revolta, cujos líderes não apenas triunfam, mas se revelam mais justos.
No mito da destituição, a relação entre pai e filho é essencialmente problemática. Odeiam-se e, por isso, se opõem. Contudo, os pais são os algozes, que infligem sofrimento à sua prole. Seus filhos são vítimas, que se defendem por meio da violência. Assim, a semelhança e a proteção muito maior dispensada pelos deuses antropomórficos aos humanos evolui para a incriminação dos deuses antigos.
No fundo, a destituição de Urano e Cronos por Zeus e seus irmãos é a destituição da religião do Deus celeste, pelos adeptos da antropomórfica. Deus é destronado, substituído pelo novo panteão olímpico. E, se a religião grecorromana constitui um momento especialmente relevante na História, é preciso concluir que o politeísmo se funda na revolta contra o Deus único.
Todo um feixe de relações familiares novas surge com a remoção da religião antiga. Os deuses pré-olímpicos tiveram numerosos filhos, porém todos das mesmas deusas. A concepção de família que lhes corresponde é, pois, a monogâmica. Após a destituição deles, os deuses olímpicos, por terem formas e sentimentos humanos, passam a semear a natureza divina, no ventre de mil mulheres. Espalham-na, assim, por toda a Terra. E dessa semeadura nascem outros tantos deuses e herois. Pode-se, pois, concluir que a libertação do jugo dos antigos deuses introduz uma forte liberação dos costumes.
Urano é pai de Cronos, dos ciclopes, dos hecatônquiros e dos titãs. Cronos é pai de Zeus, de Hades e de Poseidon. É também pai de Atena, Apolo, Ártemis, Hermes, Dioniso, Hércules. Em suma, Urano é ancestral direto ou indireto de quase todo o panteão grego. O panteão antigo e o novo formam uma só árvore genealógica, constituem uma só família, encabeçada pelo Deus celeste. Porém, essa família estruturada pela relação fundamental com o pai surge do mais amplo afrouxamento dos costumes.
Freud colocou o parricídio à raiz de todas as religiões. Para isso baseou-se, em grande medida, na trama de Édipo rei. Porém, na mitologia grecorromana, os deuses atentam contra seus pais, não os matam. O propósito de se defender diferencia os atos de Zeus e seus irmãos de um parricídio doloso. O assassinato de Laio por Édipo, na tragédia de Sófocles tão utilizada por Freud, também. Édipo tampouco tem a intenção de assassinar o seu pai.
Mas, mesmo sem parricídios, o mito fundador grego permite-nos perguntar se as religiões não são mecanismos de destituição violenta do Deus celeste. Se o método de investigação com base na experiência fundadora se reveste de alguma eficácia, no caso grego ela indica que a religião antropomórfica tem o sentido de um atentado contra o Deus supremo. E, se o tem, por que as formas menos aperfeiçoadas de politeísmo não poderiam ter o mesmo sentido?
O atentado contra o pai não se restringe à religião grecorromana. Está em muitos outros sistemas de crenças. Algumas vezes, a violência contra o Deus celeste é explícita. Outras vezes, assume a forma dissimulada do sacrifício de um ser colocado em lugar dele. Mas em muitas ocasiões ela está presente. Perguntamos por que não pode funcionar como princípio explicativo de todo o politeísmo.