Muitas passagens do Novo Testamento revelam os atributos da igreja. É o caso de Efésios 5:27, que afirma: “Para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito”. Não há dúvida de que a glória, a santidade e a perfeição mencionadas nesse verso são atributos e ajudam a formar o retrato neotestamentário da igreja.
Porém, precisamos acautelar-nos contra a tendência a construir verdadeiras eclesiologias sobre a base de um ou dois versículos bíblicos. Até porque versos como Efésios 5:27, ao mesmo tempo em que se referem à igreja, são aplicáveis a cada fiel individualmente. Como não são exclusivos do aspecto coletivo de Cristo, ainda que se refiram à igreja, esses versos não a definem propriamente. De modo que, para entender o que a igreja é, precisamos procurar definições que caibam com exclusividade à dimensão coletiva da fé cristã e não também aos cristãos individuais. No Novo Testamento, essas definições sempre aparecem em forma de disjunções, como a que estabelece que a igreja é universal ou local e a que a descreve como o conjunto de todos os que apresentam sinais de fé ou como o contingente mais reduzido dos eleitos de Deus. Nesses dois casos, disjunções são enunciados que se excluem e, por isso, têm de se manifestar em entidades distintas. Por exemplo, o caráter local exclui o universal. Por isso, a igreja local é diferente da universal. Do mesmo modo, as pessoas que participam dos sinais exteriores de fé (inclusive os sacramentos) não são necessariamente os eleitos de Deus.As definições da igreja, no Novo Testamento, estão contidas em disjunções como essas. Mas, se nos fornecem uma descrição mais precisa da igreja, ao mesmo tempo elas geram um problema, pois a cada definição corresponde outra oposta. Por um lado, a igreja é o corpo formado por todos os que creem; por outro lado, é o conjunto dos que participam dos sinais exteriores de fé. Por um lado, ela é universal; por outro, é local. De sorte que a igreja, como o Novo Testamento a define, é antes de tudo uma realidade com aspectos opostos.
E, se precisamos recorrer às disjunções para entender o que a igreja é, precisamos identificá-las também nos acontecimentos para entender a sua história. A História da Igreja é composta por fatos, nos quais a união dos eleitos e dos que apresentam sinais de fé se manifesta, em nível local e universal. Por essa razão, os melhores relatos já escritos a respeito dela valorizam um dos aspectos, em prejuízo dos demais. Ou valorizam os acontecimentos que se repetem em escala universal, em detrimento do local e do particular, ou o local e o particular em detrimento do universal, ou contam a saga dos que ostentam sinais de fé, ou ainda as experiências características da eleição de Deus. Nunca esses vários planos da realidade histórica são apresentados ao mesmo tempo, já que ninguém é capaz de apreender a sua complexidade. Para possuirmos o quadro completo da História, precisamos dispor das descrições complementares e ligá-las de modo a formar um quadro geral.
Pode-se propor que, das quatro dimensões da História Eclesiástica e da limitação de cada autor a uma delas, procedem quatro narrativas básicas, que se tornaram clássicas. São elas a narrativa secular, a católica, a protestante e a ecumênica. A narrativa secular é focada no poder, que costuma se concentrar nas instituições eclesiásticas mais abrangentes. Tende, por isso, à universalização, ou seja, ao princípio da igreja universal. Mas, por ser secular, não valoriza tanto o elemento de fé e o entrelaça frequentemente à política.
A narrativa católica, por sua vez, privilegia a dimensão sacramental da igreja. Sacramentos são sinais visíveis de fé e de participação na graça. A Igreja de Roma e seus historiadores creem que os sacramentos são sete: o Batismo, o Crisma, a Confissão, a Eucaristia, o Casamento, a Ordem e a Unção dos Enfermos. Os protestantes só admitem dois (o Batismo e a Eucaristia) e, por não se concentrarem na dimensão sacramental, sequer os enfatizam como os católicos. Há proporcionalmente mais evangélicos não batizados do que católicos, e a Ceia do Senhor é um acontecimento menos frequente entre os protestantes do que na Igreja de Roma.
A terceira narrativa da História, a protestante, se centra na igreja como corpo constituído pelos eleitos de Deus. Embora reconheçam também a igreja visível, os protestantes tendem a concebê-la como uma reprodução parcial e distorcida da assembleia dos eleitos. A ideia de Reforma, tão essencial ao Protestantismo, supõe a ampla degradação da igreja durante a sua História. É, pois, consequente que essa concepção, ao reconhecer a corrupção, proponha um conceito mais aperfeiçoado, embora obscuro de igreja, que é exatamente o dos eleitos.
Por fim, a quarta narrativa da História da Igreja é a ecumênica. Por aceitar, com base em certos critérios, tanto a perspectiva católica como a protestante, o ecumenismo é às vezes pensado como movimento eclético. Mas não o é verdadeiramente, visto que a ótica ecumênica é específica e não uma soma de outras óticas. Por não somar as crenças e práticas católicas e protestantes, o ecumenismo se define em função de outra coisa, a saber: a complementaridade em relação ao Catolicismo e ao Protestantismo. Ele não concorre com um ou com outro. Por isso, em suas melhores vertentes, o movimento ecumênico não enfatiza a realização de cultos próprios. E, por ser complementar e se desenvolver, em grande parte, depois das outras três, a abordagem ecumênica tende a enfatizar o de que as outras menos tratam, isto é, a experiência de fé sem bandeiras ou dependência para com instituições religiosas, que tende a se manifestar em circunstâncias altamente particulares e absorver as características delas.
Como já pude afirmar, nenhuma História da Igreja deve furtar-se à opção entre essas quatro abordagens. Eleger uma delas e desenvolvê-la é, ao que tudo indica, a melhor maneira de narrar os atos do corpo de Cristo no mundo, já que cabe a indivíduos fazê-lo, e eles não são capazes de desenvolver as quatro perspectivas ao mesmo tempo. Portanto, a virtude de uma História não reside em transcender esse imperativo, mas em admiti-lo e manter consciência profunda dele.
Em vez de narrar os acontecimentos em todas as suas dimensões, a História da Igreja deve primar pela nitidez da opção que realiza por uma delas. Torna-se confusa, quando mistura as dimensões, sem discernir as suas peculiaridades e os limites entre elas. Pior ainda, quando se concentra num atributo, como a glória ou a santidade, incapaz de definir a igreja, por não refletir os aspectos disjuntivos dela. É o caso das Histórias de cunho idealista, que tratam da igreja como entidade mais ou menos infalível.
Nos textos seguintes, discorrerei sobre uma só faceta da História da Igreja Cristã, mas uma que me parece fundamental, a saber: a dos eventos de alcance mais ou menos local que refletem a experiência de fé com a menor dependência possível das grandes instituições eclesiásticas. Isso significará privilegiar o dado local em detrimento dos demais, não por os considerar indignos, mas em respeito à limitação já apontada.
Porém, o imperativo da apresentação de um aspecto disjuntivo da Igreja, em prejuízo dos demais, contribui, de certa maneira, para tornar a narrativa menos certa e mais hipotética. A consciência, profunda e incômoda, de narrar uma face dos acontecimentos reveste-a de inevitável grau de subjetividade. Torna-a fruto de uma opção do autor, da sua identificação com um olhar e uma ótica, ao mesmo tempo em que exprime fatos locais e circunscritos. Afasta, enfim, a narrativa do velho figurino de retrato de em desenrolar geral de fatos, de um bird's eye view, aproximando-a de uma hipótese sobre fatos muito mais circunscritos. Daí o nome da série que se inicia.
Mas a série leva esse nome ainda por outra razão: porque é uma história da igreja através dos textos. Os acontecimentos locais, pontuais, a serem contados, serão extraídos de textos que os espelham de modo exemplar e que fixaram uma interpretação significativa deles. Assim, no próximo texto, tratarei das divisões na igreja em Corinto, com base no olhar que Clemente de Roma lhes dirigiu ao escrever sua epístola aos cristãos daquela cidade. Esse é somente um exemplo. Outros se seguirão, ressaltando o caráter hipotético e interpretativo, mais do que o cunho de exposição objetiva de fatos, que pretendo imprimir a esta série.