segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Livre Exame de Romanos (23): As Duas Oliveiras

Romanos 11:32 traz uma declaração exatamente inversa à de 3:23. Enquanto este último verso atesta que “todos pecaram e carecem da glória de Deus”, o capítulo 11 se encerra com a afirmação de que “Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos”. Na estrutura cuidadosamente concebida da Carta aos Romanos, esse não é um pormenor irrelevante. Indica, ao contrário, que, como o pecado se tornou universal, a misericórdia divina também atinge todos os homens.
Simplesmente não é correto enfatizar a condenação geral e não a misericórdia de Deus para com todos. Mais do que isso, a condenação é a situação inicial; a misericórdia, a situação final, na linha do tempo em que Paulo situa a revelação do evangelho. Temos, portanto, motivos para nos perguntarmos se, por vir depois da condenação, a misericórdia não a suplanta e cancela. Mas, para concluir se isso de fato acontece, precisamos considerar primeiro o que Paulo ensina no capítulo 11.
Logo no início, ele afirma a distinção existente entre o povo de Deus e Israel. Diz que o primeiro foi preconhecido por Deus (11:2). Sabemos que o que Deus conhece, conhece totalmente. Portanto, não só conhece o seu povo como sabe que ele será salvo. O preconhecimento de Deus implica que o que ele conhece realizar-se-á. Não é o conhecimento do possível, mas do certo. É, por isso, inseparável da predestinação (8:29).
O povo de Deus mencionado em 11:1-2 é, portanto, o conjunto de todos os que haverão de ser salvos. Mas Israel, citado a seguir, não o é. É uma nação igualmente eleita por Deus, pois Paulo diz que os judeus são inimigos quanto ao evangelho e amados quanto à eleição (11:28). Porém, a eleição deles é distinta da que a igreja cristã recebe. Visa a cumprir o propósito secular de Deus, ao passo que a igreja cumpre o seu propósito espiritual.
Por isso, a eleição dos membros da igreja é chamada da graça (11:5). É formada por pessoas como os sete mil que não curvaram os joelhos a Baal (11:4). O Israel secular, porém, inclui não só os sete mil, mas também aqueles a quem “Deus deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (11:8). Dos quais diz o salmo: “Torne-se-lhes a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos para que não vejam, e fiquem para sempre encurvadas as suas costas” (11:9-10).
Trata-se de grupos bastante distintos, porém entrelaçados. E o que os entrelaça é a vontade de Deus expressa pela palavra eleição. Tanto um como o outro grupo foi eleito por Deus. E, embora se trate de eleições distintas, eles devem conviver harmonicamente por terem sido escolhidos pelo mesmo Deus. O propósito das duas eleições não é entrarem em conflito. Daí o entrelaçamento do povo de Deus com o Israel secular.
A oliveira cultivada é a imagem perfeita disso. Ela não foi plantada, nem veio a existir, no momento em que os gentios foram enxertados. Já existia antes. E, se alguns ramos dessa oliveira foram cortados, é claro que ela não inclui somente a eleição da graça, mas também a da lei.
A oliveira cultivada não é a assembleia dos eleitos, a igreja invisível, universal ou como mais a chamemos. É, antes, a mescla das duas eleições: o Israel histórico, no qual coexistiam judeus de sangue e os eleitos para receberem a graça de Cristo.
Porém, a situação da oliveira mudou, quando os ramos incrédulos (judeus) foram cortados, e os crentes gentios, enxertados. Essa mudança separou a eleição da graça da eleição da lei e a relacionou a um terceiro grupo representado pela oliveira brava. As árvores cultivada e selvagem não se tornaram uma só, o que indica que o mundo e a igreja não foram mesclados, como Israel e a igreja antes foram, mas muitos ramos da oliveira brava foram enxertados na cultivada.
A oliveira brava representa uma terceira eleição. Não a eleição da lei, nem a da graça. Mas, se acompanharmos cuidadosamente a narrativa de Gênesis, perceberemos que os gentios mencionados pelas Escrituras descendem dos filhos de Noé, com quem Deus celebrou uma aliança ao dizer: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais [...] Disse também Deus a Noé a seus filhos: Eis que estabeleço a minha aliança convosco e com a vossa descendência” (Gn 9:1-2,8-9).
Quando Deus rejeitou os judeus, a eleição da graça foi separada da lei. Os ramos incrédulos foram cortados da boa oliveira, e os da oliveira brava foram enxertados. Nem por isso, deve reinar a desarmonia entre judeus e cristãos, pois Deus pretende reintroduzir o Israel secular na sua oliveira. Mas a ligação estreita, no tempo atual, da boa oliveira não é mais com os judeus e sim com os descendentes de Noé, ou seja, com o mundo gentio.
Claro: os gentios são idólatras. Por isso, a oliveira cultivada não é assimilada a eles. Eles é que se transformam na boa oliveira. Porém, embora essa ressalva deva ser formulada, a parábola mostra que a eleição da graça é colocada em união com o mundo. A oliveira cultivada passa a receber ramos não cultivados, com todas as suas características selvagens.
Tanto os ramos naturais da oliveira como os que foram enxertados nela e a própria oliveira brava têm a mesma natureza. Todos são oliveiras: o mesmo vegetal, com a mesma essência e a mesma vida. Isso reforça o que temos afirmado, ao longo deste livre exame: que a salvação não consiste na comunicação de uma nova vida ou numa mudança de natureza no crente ou fiel, mas num procedimento legal realizado por Deus em Cristo. Falamos bastante disso, ao tratar do capítulo 4. Não o retomaremos aqui. Mas cabe ressaltar que a parábola das oliveiras reforça esse ponto.
Uma oliveira, três eleições. Deus não atua por meio das obras do homem, a não ser enquanto preparadas por ele próprio para que andássemos nelas (Ef 2:10). A salvação não procede do homem, mas de Deus. Esse é o princípio, a única base na qual Deus salva. Mas, de certa maneira, a parábola das oliveiras nos fala de três experiências de salvação. Uma é a salvação dos que guardam o pacto com Noé; outra, a dos que são da lei; e ainda outra, a da graça.
Se todas são eleições, todas implicam salvação. Quando Deus escolheu os gentios para encherem a terra de homens, seu propósito não era que isso não se cumprisse. A figura das oliveiras mostra que uma não cumpre o papel da outra. A oliveira selvagem cumpre a missão de encher a Terra com a vida humana e temor a Deus. A outra existe para fim diverso: para dar frutos ao agricultor e àqueles com quem ele os compartilha.
Voltamos, assim, ao princípio com que abrimos este texto. Romanos 11 nos fala da misericórdia geral e irrestrita de Deus. Da sua misericórdia universal, que se estende aos judeus e aos gentios. Tanto aos judeus que creem como aos que são cortados, aos gentios enxertados e aos que permanecem na oliveira brava. Fala, enfim, de uma misericórdia que tem várias espécies e que produz resultados diversos, sem deixar de ser sempre misericórdia.
Vejamos o caso dos judeus incrédulos. Paulo afirma que “quanto ao evangelho, [eles] são inimigos por vossa causa; quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas” (11:28). “Porventura tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum” (11:11). Não há propósito na queda dos judeus. Nem eles quiseram cair, nem Deus quis que caíssem. E quem nunca quis que caíssem, um dia, os restaurará: “Virá de Sião o libertador, ele apartará de Jacó as impiedades” (11:26). Essa é a porção de misericórdia de Deus para os judeus incrédulos.
Mas e os gentios, que vivem nos seus pecados e na vacuidade dos seus pensamentos? Eles foram chamados a povoar a Terra com temor a Deus e respeito aos seus semelhantes. Quer Deus que isso se cumpra ou que não se cumpra? O que Deus quer pode ser frustrado? Nas bênçãos inerentes à aliança do povoamento da Terra consiste a misericórdia de Deus para com os gentios.
Porém, a parábola das oliveiras se centra na que representa a igreja, não na outra. Isso significa que a misericórdia de Deus para com o seu povo consiste em dispensar-lhe o seu cuidado como o agricultor cuida da lavoura. Nem os gentios, nem os judeus que foram cortados recebem esse cuidado. Portanto, o cuidado consistente no cultivo é a misericórdia específica e suprema de Deus para com o seu povo, que só é povo enquanto objeto do cuidado divino.
Na salvação daqueles que creem, o que faz a diferença é o que Deus realiza, não a natureza do homem. Podemos ser bons ou maus, fortes ou fracos, inteligentes ou ignorantes: isso importa para outras coisas, não para a salvação. Só o trabalho de Deus salva, só ele torna a oliveira útil para os homens. E esse trabalho consiste em cortar e enxertar. Deus corta a desobediência e enxerta a fé. Mas o faz de maneira tal que os cortados hoje poderão ser enxertados amanhã, e os enxertados poderão ser cortados (11:22-23).
Há um amor que é vizinho do ódio e se transforma nele. Um amor que motiva o crime passional. A misericórdia de Deus é o contrário dele: é a dissipação da ira. É a ira que o amor transfigura e cai sobre o mundo em forma de misericórdia. Deus, que faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a sua chuva sobre justos e injustos, acaso fará descer a sua misericórdia só sobre alguns? Haverá porventura impossível maior do que esse?
A misericórdia estende-se sobre os homens, como o céu cobre a Terra. Nenhuma parte do mundo lhe escapa. E não há nela traço de ira. Como a flor que não tem um só ponto de que se possa dizer: não é belo!, a misericórdia de Deus é isenta do mais leve aspecto do qual se possa afirmar: não é pura bondade!