Na Idade Média, os europeus esperavam o fim repentino do mundo. Previram-no e se prepararam para ele, durante séculos, mas sempre encerraram o mundo uma só vez. Nunca liquidaram em parcelas o imenso empreendimento do braço humano.
Quanta coisa mudou, de lá para cá! O mundo se transfigurou, mas a consciência do grande destino, que nos atrai com a precisão de um relógio, permanece misteriosamente aninhada na alma do homem. Drummond descreve a expectativa do fim do mundo, numa metrópole contemporânea:
"Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes
Helena, que amava os homens
Sebastião, que se arruinava
Artur, que não dizia nada
embarcam para a eternidade
Tudo era irreparável
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
que o mundo ia acabar às 7 e 45"
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião - 10 Livros de Poesia. São Paulo: José Olympio. p. 30)
Porém, a criação mais recente, em matéria de fim do mundo, é o método Jack, o estripador. Na Idade Média, os homens esperavam o fim repentino do mundo todo; hoje, acabam com ele em partes. Tornou-se moda decretar o fim de partes da realidade conhecida há séculos. Deus, a fé, a religião, a metafísica, a ideologia, a utopia, a história, o Estado, foram todos liquidados, por este ou aquele pensador, em diferentes momentos históricos. Para não mencionar as classes sociais, o direito, o capitalismo, que são destinados à desgraça eterna de tempos em tempos, mas principalmente quando a crise atraca no cais ou se condensa nas nuvens de possibilidades dos pregões das bolsas.
Estamos realmente diante de um modo nunca antes visto de pôr termo ao mundo, de uma escatologia secular e por partes. Curioso: na Idade Média, era o mundo a acabar de uma vez; hoje, o mundo é só parte do que chega a termo. Antes dele, acabam com Deus e a sua maior criatura: a alma humana. Soou a trombeta: o homem não tem, nunca teve, alma. Forjou essa invenção para fundamentar a esperança ilusória de que continuará a existir depois da morte. "Tirem do homem a ilusão, e tirarão a sua esperança!” É o que proclamam.
Tal é a mistura de doutrinas céticas, no nosso tempo, que é preciso cuidado para discernir o que cada uma realmente propõe. No caso da alma humana, é preciso critério para entender que entidade espiritual cada doutrina aniquila com convicção que diríamos crédula se seus autores não a proclamassem ateia. Há dois modos principais, ambos clássicos, de entender a alma. O mais antigo a concebe como princípio dos movimentos do corpo. Nesse sentido amplo, a alma não é concebida como imortal, nem como oposta à matéria. É simplesmente o que explica o fato de um ser possuir a capacidade de mover-se ou de mudar independentemente de causas exteriores. Porém, no segundo sentido, a alma se opõe não só ao corpo que habita, mas a todos os corpos. É o que se opõe à matéria e que é considerado imortal, por se opor a ela. A obsessão moderna dirige-se contra essa segunda concepção. Dirige-se à alma imortal, já que a outra nunca foi concebida como indestrutível.
A defesa racional mais arguta da primeira concepção foi-nos legada por Aristóteles, no seu livro De anima. A da segunda talvez seja a de Santo Agostinho, no diálogo A grandeza da alma, que sustenta que esta é destituída de grandeza espacial, portanto é inextensa. Nas palavras do próprio Santo, "a alma não é nem extensa, nem larga, nem forte, nem possui alguma dessas propriedades que se costuma encontrar nas medidas dos corpos" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 263). O segundo modo de pensar a alma dominou amplamente as discussões até a época de Descartes.
No presente texto, cuidarei da última concepção, pois é a mais controvertida. De todos os argumentos apresentados em favor da existência da alma imortal, o mais inexpugnável talvez seja o que reconhece que "as faculdades superiores [do homem] podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores" (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). "Os sentidos não podem perceber nada além da matéria" (idem), porque o inferior não compreende o superior, nem o mais simples, o mais complexo.
O argumento assim apresentado por Boécio decorre da doutrina dos graus de atividade da alma, que Santo Agostinho desenvolveu (HIPONA, Agostinho de. Ob. cit. pp. 339-344). Os dois primeiros graus são aqueles pelos quais conhecemos os corpos. É em parte possível explicá-los com base no movimento dos próprios corpos. Porém, por ser mais simples, a atividade dos dois primeiros graus não explica a dos outros cinco, que tem de ser produzida por um espírito imaterial.
Essa fundamentação da existência de uma alma independente do corpo foi cada vez mais desafiada, nos tempos modernos, até que, em 2004, onze neurocientistas alemães publicaram um Manifesto sobre a realidade presente e futura da pesquisa do cérebro com "um sóbrio e diferenciado balanço de sua ciência [...] Foram conseguidos importantes avanços", nessa ciência, escreveram eles, "por um lado, ao nível mais elevado – foram pesquisadas as funções e interações das áreas cerebrais mais extensas [...] por outro lado, ao nível menos elevado, entendemos hoje amplamente os processos em nível das células e moléculas individuais [...] mas não em nível intermediário – onde sabemos pouquíssimo o que acontece [...] Atualmente, a pesquisa do cérebro não tem a oferecer sobre a ligação entre cérebro e espírito, entre consciência e sistema nervoso, nenhuma teoria que possa ser empiricamente verificada.” (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas – ciências naturais e religião. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 245-247).
Essa citação deveria bastar para exibir as dificuldades do dilema mente-corpo. No entanto, o consenso que se delineia, não só na Alemanha, mas em muitos outros países, no sentido de que não é possível se refutar ou provar a existência da alma, tem servido de estímulo para os esquartejadores do mundo se erguerem, tomarem a trombeta dourada e anunciarem, do eirado, a consumação da alma. De fato, é impossível mencionar uma a uma as invectivas que têm sido dirigidas aos defensores da ideia de que o dilema alma-corpo não está resolvido. Uma avalanche de artigos e manifestações com tal teor tem inundado a mídia, tornando difícil entender a própria questão controvertida.
E o pior é que a barafunda das opiniões não convence o leitor atento e informado de que o estado real da questão seja bem expresso pelos autores céticos. Para se ter noção dos progressos realmente efetuados, nesse campo, em 2012, o neurocientista Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, propôs uma teoria que tem sido saudada como "um passo gigantesco para a resolução final do problema mente-corpo” (KOCH, Christof. "Is conscience universal?" In Scientifc American. dez/2013). De acordo com ele, a consciência é idêntica ao que costumamos denominar informação integrada (TONONI, Giulio. “Integrated information theory of consciousness: na updated account”. In Archives italiennes de Biologie. Dez/2012, nº 4, pp. 293-329).
Podemos perguntar por que tem de ser assim. Tononi responde que a integração é uma característica de certos sistemas físicos e não de outros. Ela não pode ser quebrada, sem que a consciência desvaneça ao mesmo tempo. Não podemos nos forçar, por exemplo, a ver um objeto azul em preto e branco, pois a consciência é a integração da cor com a forma e muitas outras informações. Eliminar um aspecto da experiência integrada implica extinguir juntamente a consciência.
A integração não decorre do aumento da informação. Ainda que a memória de um computador excedesse a do cérebro humano, nenhuma informação dentro dele seria integrada. Para que a integração se produza, é necessário que cada informação seja, desde o início, conectada a outras. A qualidade integrada tem de estar presente, entre as menores informações, para que o sistema adquira autoconsciência. Do contrário, isso jamais acontecerá.
Em outras palavras, a consciência não é um fenômeno associado à organização essencial da matéria, vale dizer, ao que diferencia o material do imaterial, já que pode não ocorrer quando todos os elementos constitutivos da matéria estão presentes. É, antes, um fenômeno associado de modo imprevisto, porque não causal, a certos corpos materiais. Ao menos é essa a conclusão a que as pesquisas de Tononi conduzem.
Talvez seja útil acrescentar duas palavras sobre a questão mente-corpo, do ponto de vista teológico. Em boa parte do Antigo Testamento, a ideia predominante a respeito da alma é a de uma entidade inseparável do corpo, enquanto o homem vive, e da sepultura, depois que ele morre (Ez 26:20; Is 14:9-10; 26:14,19; 38:18; Jó 14:10-13). Isso não implica que a alma seja, por natureza, imortal. É uma espécie de sombra, uma entidade que não se aparta da matéria enquanto continua a existir. Porém, já no Antigo Testamento, a existência da alma tem duas etapas: enquanto ela permanece unida ao corpo e após a morte (1 Sm 28:19; 2 Sm 12:23).
Pouco antes do tempo de Jesus, porém, a seita judaica mais numerosa (os fariseus) passou a crer numa sobrevivência mais definida da alma à morte. O próprio Jesus professou convicção semelhante ao declarar: “Não temais os que podem matar o corpo, porém não a alma” (Mt 10:28), “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43) e coisas semelhantes. O apóstolo Paulo professou ideia semelhante (2 Co 5:1-8; Fp 1:23).
Mas, apesar da introdução da ideia de imortalidade da alma, não há, no Novo Testamento, sinal explícito da separação radical, platônica, cartesiana, entre a alma e o corpo. A alma neotestamentária não se molda à concepção de alma imortal que se tornou clássica. Esta é a concepção platônico-agostiniana, que Descartes reafirmou, de alma inextensa e imortal. É muito importante que se trace essa distinção, pois a alma bíblica é herdeira da doutrina judaica da inseparabilidade entre corpo e alma, que não se altera entre Gênesis e Apocalipse.
Pode-se perguntar que evidência tem a ciência nas mãos para mostrar que a alma assim concebida não existe? A resposta mais coerente é nenhuma. A concepção platônico-agostiniana e cartesiana de alma, de fato, foi refutada. Não há lugar, na ciência, para a alma inextensa, sem relação com o espaço-tempo. Não há lugar para a alma radicalmente distinta do corpo. Mas o mesmo não ocorre com a noção judaicocristã de alma, que não foi refutada pelo conhecimento moderno.
As evidências geralmente alegadas para negar a existência da alma provam apenas a relação existente entre o sistema nervoso e a mente. A alma sempre aparece em conexão com o cérebro ou com o sistema nervoso. Mas isso é o que Tononi descreve como a emergência imprevista da alma, em certos sistemas físicos.
É importante notar que a proposta desse cientista invalida a descrição causal da relação mente-corpo. Infelizmente, essa descrição sempre foi e ainda é muito comum, mas nunca foi comprovada. A própria ideia de relação é a de uma sucessão de ações e reações entre dois ou mais seres. Normalmente, não é possível predizer, numa relação, qual ser praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem parece predeterminada, já que a causa vem antes do efeito. David Hume, porém, mostrou que ela apenas parece vir antes, sem vir realmente. A predeterminação resulta do hábito mental de simplificar excessivamente a observação e generalizar para todos os acontecimentos o que se passa em alguns.
Quando parte dos cientistas afirma que o dilema mente-corpo não foi resolvido, portanto, um dos motivos é não sabermos o que vem antes e o que vem depois, no nosso pensar: o cérebro ou a alma. A afirmação de que o cérebro vem antes não é mais que ingênua, na medida em que considera causal uma relação mais complexa.
Consideremos o fenômeno da possessão demoníaca, que os céticos costumam reduzir à esquizofrenia ou a outras psicoses. Nessas doenças descritas pela Medicina, o indivíduo não perde a noção de si. O esquizofrênico ouve vozes, vê vultos e interage com eles, mas sabe que ele é quem ouve as vozes e vê os vultos. Isso é completamente claro tanto na observação como na literatura especializada.
O mesmo parece ocorrer nos outros transtornos e doenças psíquicas. Em todos eles, persiste o senso que o indivíduo doente possui de si. Não é diferente nos estados inconscientes não patológicos, como o sono e as alucinações causadas por drogas. Na possessão, porém, impera a sensação de ser outro ente. Temos, pois, evidências empíricas importantes de transtornos que não seguem o figurino das doenças psíquicas e parecem ter raízes muito mais profundas. Claro que a diferença pode perfeitamente corresponder à que existe entre o mental e o cerebral.
Posso afirmar tudo isso com a autoridade do neurologista ou do psicanalista? Não. Posso fazê-lo apenas como investigador atento da religião e do mundo. Mas essas duas investigações, que juntas moem a alma, também a afirmam. E o fazem empiricamente, na medida em que mostram que certos eventos psíquicos possuem uma natureza exclusiva e inteiramente diversa de tudo o que tem causa cerebral aparente.
A verdade das mortes que o homem contemporâneo anunciou e das ezéquias que celebrou tem sido a ressurreição. Os fins revelaram-se novos começos, e as realidades aniquiladas retornaram. Eis o mundo de novo povoado delas. A alma, porém, vai adiante do séquito dos ressurretos. E é impossível esconder o seu antigo sentido bíblico, já que no seu estandarte se lê: “Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo” (“Peca com ardor, mas com mais ardor confia e regozija-te em Cristo”).