No texto sobre a oliveira cultivada, Paulo não vacila em afirmar que os ramos desobedientes serão cortados. A afirmação é feita de maneira tão clara que somos levados a concluir que a reprovação da pessoa que inicialmente creu no evangelho era uma possibilidade clara, na mente do apóstolo. Todo aquele que um dia creu pode permanecer nessa fé ou decair dela.
Paulo não desenvolve além desse ponto a doutrina do desvio da fé. Limita-se a afirmar que essa é uma possibilidade real, mas não esclarece se os desviados podem ou não ser restaurados e até quando a chance de restauração lhes é oferecida. Duas são as razões principais da omissão: primeiramente, Paulo não tem o objetivo de entrar em detalhes sobre esse ponto específico; em segundo lugar, parece implícito que, se a fé produz o enxerto, não importa o momento em que o indivíduo crê: se ele o faz ou não após uma queda; em todos os casos, o que crê é enxertado.A declaração “se não permanecerem na incredulidade serão enxertados” (11:23) aplica-se tanto aos que creem, na primeira oportunidade que lhes é oferecida, quanto aos que se arrependem, após terem caído da fé. Seria cruel Deus cortar pela falta de fé e não enxertar pela fé. Portanto, Se corta, ele também enxerta. Se corta sempre que há incredulidade, enxerta todas as vezes em que há fé, inclusive após uma queda espiritual.
Mas há quem duvide de que seja assim. O motivo da dúvida são textos como Hebreus 6:4-6, que declara ser “impossível que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que de novo estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia”.
Contudo, a impossibilidade a que Hebreus se refere não é de que o pecador seja restaurado. É, antes, impossibilidade de renovação do arrependimento ou, como o autor já dissera, de lançar novamente a base do arrependimento (Hb 6:1). O judaísmo envolvia muitos atos de purificação, o que levava o judeu a questionar se o arrependimento devia ser renovado cada vez em que ele se purificava. Porém, em grego, arrependimento (metanoia) significa mudança de mente. Não é possível, ao ser humano, mudar tantas vezes de mente. Embora possamos sentir arrependimento em muitas ocasiões, só podemos lançar uma vez a base do arrependimento. Como Efésios afirma que há um só batismo (Ef 4:5), o qual é para arrependimento (At 13:24), devemos entender que há um só arrependimento.
Embora Paulo não entre em detalhes, está implícito no seu pensamento que os ramos cortados da oliveira podem ser restaurados, pelo retorno à base do arrependimento. Resta, portanto, indagar até quando a chance de restauração permanece para eles. Podem os decaídos ser restaurados até o instante da sua morte ou mesmo depois dela?
Que o homem será julgado pelo que tiver feito no corpo está claro, nas Escrituras. Paulo afirma que “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2 Co 5:10). Porém, no versículo anterior a esse, o apóstolo diz que “nos esforçamos, quer presentes, quer ausentes, para ser agradáveis” a Deus (2 Co 5:9). Ausentes significa ausentes de Cristo, pois a passagem esclarece que, “enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor” (2 Co 5:6). É, pois, fácil entender, por essa passagem, que o cristão pode esforçar-se para agradar a Deus não só enquanto permanece no corpo, mas também depois de se despojar dele.
Digamos que uma pessoa se desvie da fé e morra no estado de incredulidade. Estamos em condição de afirmar que, após a morte, ela ainda terá oportunidade de se arrepender? Podemos declarar que a oportunidade lhe será oferecida assim como foi em vida, ou seja, de modo ininterrupto? As Escrituras não respondem essas perguntas de maneira clara. E o que não está claramente revelado pode ser objeto de diferentes opiniões. Mas uma coisa está clara: que a incredulidade leva à separação, e à fé, à reimplantação na oliveira. Disso não podemos duvidar.
O clássico O pastor de Hermas, escrito em meados do século II, ensina que o tempo do arrependimento não é a vida no corpo, mas o período em que a igreja de Cristo é edificada. Enquanto a edificação da igreja não houver terminado, o arrependimento estará à disposição tanto dos vivos quanto dos mortos.
O Pastor foi mantido em alta estima pela igreja cristã, durante muito tempo. Chegou a ser incluído no cânon das Sagradas Escrituras, mas foi finalmente retirado e incluído no rol dos apócrifos. Os termos em que ele coloca a oportunidade do arrependimento são excessivamente fluidos. Não parece diferenciar entre arrependimento dos que um dia creram e dos que nunca chegaram a crer. A todos os tipos de pessoas, em todas as situações possíveis, oferece alguma possibilidade de arrependimento.
Fixa esse ensinamento em visões. Uma delas é a da construção da torre (a igreja). Algumas pedras são incluídas na construção, outras não. “Ouve agora o que se refere às pedras que entram na construção”, diz a mulher que explica a visão a Hermas. “As quadradas e brancas, que se ajustam bem entre si, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos [...] Uns já morreram e outros ainda vivem [...] As [pedras] que entram na construção sem ser talhadas são os que o Senhor aprovou, porque andaram no caminho reto do Senhor e respeitaram perfeitamente seus mandamentos [...] E aquelas que são levadas e postas na construção são os novatos na fé, porém fieis” (O Pastor de Hermas. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. pp. 181-182).
As pedras não incluídas na torre, porém, “são aqueles que pecaram e que desejam fazer penitência. Por isso não foram jogados muito longe da torre. Se fizerem penitência, serão úteis para a construção [...] contanto que façam penitência agora, enquanto a torre ainda está em construção” (idem. p. 182). Por fim, as pedras “jogadas bem longe da torre são os filhos da iniquidade: têm fé hipócrita e nenhuma forma de maldade se afastou deles. É por isso que não alcançam a salvação” (idem). Esses que foram jogados longe da torre “tiveram fé, mas, devido às suas dúvidas, abandonaram o verdadeiro caminho” (idem. p. 183).
Após essas explicações, o autor pergunta à mulher: “As pedras rejeitadas e impróprias para a construção podem fazer penitência e encontrar lugar na torre? Ela lhe responde: Podem fazer penitência, mas não podem se encaixar nessa torre. Elas se encaixarão em outro lugar muito menor e só depois que tiverem passado pelas provações da penitência e cumprido os dias necessários para expiar seus pecados” (idem. p. 184).
Vê-se que, na visão do Pastor, o tempo do arrependimento é o da construção da torre, ou seja, da igreja (idem. p. 256). Ensina também que, a cada tipo de penitência, corresponde uma espécie de salvação. Os próprios filhos da iniquidade, deixados longe da torre, podem arrepender-se e ser incluídos no “lugar muito menor”, ainda que não na torre. De sorte que não há penitência a que não corresponda salvação.
Pode, porém, não haver penitência alguma, como no caso dos “apóstatas e traidores da igreja que, com seus pecados, blasfemaram o Senhor e que ainda se envergonharam do nome do Senhor invocado sobre eles. Tais indivíduos estão definitivamente mortos para Deus” (idem. p. 240). Os que não alcançam arrependimento não podem ser salvos, porém os que o alcançam, ainda que tarde, não podem deixar de o ser.
Claro que o Pastor não pertence ao cânon das Escrituras. Não tem, por isso, a autoridade de Romanos. Mas ilustra como os cristãos antigos pensavam. No mínimo, deixa claro que eles criam firmemente na eficácia do arrependimento. E esse ensinamento de O pastor de Hermas não desafia o das Escrituras, antes o reflete. Hebreus, por exemplo, não afirma que Esaú arrependeu-se, mas não foi salvo. Diz, ao contrário, que “não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o houvesse buscado” (Hb 12:17). Esaú buscou, mas não encontrou o que buscava. Se tivesse encontrado, teria sido aceito.
Tudo indica, portanto, que o arrependimento verdadeiro e único, aquele no qual Hebreus nos exorta a permanecer, foi posto por Deus como uma base segura e certa de salvação. A vida inteira do homem, não só parte dela, deve refletir o seu arrependimento. Deve ser marcada por ele. Isso significa, com toda simplicidade, que quem um dia se achegou a Cristo não pode e não deve, de maneira alguma ou por pretexto qualquer neste mundo, voltar-lhe as costas. Fazê-lo seria arrepender-se do arrependimento pelo qual foi salvo. E arrepender-se do arrependimento é não se arrepender de maneira alguma.
Vivemos num mundo cheio de cantos de sereia. Cada qual entoa uma tentação. Uns dizem: “Quando a pessoa se acha em estado de desespero, crer é aceitável, mas não quando ela se liberta do desespero”. Outros arrazoam: “Para quem não é instruído ou autossuficiente, a fé pode ser uma boa alternativa de vida, mas não para quem o é”. E ainda outros propõem: “Na idade imatura, crer pode ser uma atitude romântica, mas é preciso abandonar as coisas de criança, quando a razão pede o seu preço”. A esses cantos de sereia, que turvam a mente e alucinam o coração, respondo somente: por que um homem que se arrependeu dos seus pecados deve arrepender-se do seu arrependimento? Não agiu responsavelmente ao se arrepender? Para que deve revogar o seu ato responsável, a não ser para assumir uma vida de pura irresponsabilidade?
Não importa se somos modernos ou antigos, cultos e inteligentes ou ignorantes e ineptos, somos antes de tudo responsáveis para com Deus. Pode parecer lindo o homem inventar o seu próprio pós-cristianismo. No fundo, é um canto de sereia medonho, que leva a trocar a promessa pelo repasto, o bem eterno pelo festival dos prazeres: “Guarda-te não te esqueças do Senhor teu Deus [...] para não suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de haveres edificado boas casas, e morado nelas; depois de se multiplicarem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração e te esqueças do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt 8:11-14).
Esse texto é o evangelho no Antigo Testamento. Exorta-nos a não experimentar o arrependimento como algo fugaz, passageiro, que a mesa que engorda o coração dissipa como uma névoa. Exorta-nos a ter o coração marcado, de modo perene, pelo arrependimento e a terminar por meio dele o que se iniciou com ele.