A expressão cristianismo secular é, no mínimo, ambígua. Temos de nos esforçar para conceber algo real que possa corresponder a ela. Perguntamo-nos: será coisa de padre moderno? Mundo com Cristo e sem padre? Mas que espécie de mundo é essa? Confessemos a insuficiência da nossa imaginação para responder tais perguntas.
Lennon cantou um mundo sem países e sem religião. Tentemos imaginar, mais simplesmente, o que seja um cristianismo secular. O que seja um mundo com o evangelho, mas sem igrejas e organizações clericais. Um mundo em que a fé não se manifeste como hierarquia e poder, um mundo que a Tolerância governe a tal ponto que crer ou não crer, ser cristão ou ateu, já não seja motivo de discórdia. Enfim, um mundo em que o cristão aceite o ateísmo como expressão sincera de consciência, e o ateu, o cristianismo como um dos pontos culminantes da espiritualidade humana.
Minha experiência da arte não vai muito longe. Não passo de um escutador frequente de música e de um leitor de verso e de prosa. Mas, se encontro na arte uma obra que expressa, mais do que outras, a utopia do cristianismo secular é a de Chico Buarque de Hollanda. Quantas vezes, ao ouvir Chico, sinto tremer a corda do coração que vibra quando leio a Bíblia! Desvaneço e admiro-me dessa experiência, mas não tenho como a negar.
Será porque Deus está em tantas estrofes das canções de Chico? Porque o amor ao próximo e a sensibilidade para com os desfavorecidos pulsam em partes ainda mais numerosas delas? Desconfio que sim. Deus não precisa ser mencionado, de certo jeito ou do jeito certo, para que a corda da piedade vibre no nosso coração. Não precisa ser citado do jeito eclesiástico, clerical, ritual ou teológico. Basta a boca o invocar para que o coração se derreta no calor da sua presença.
No samba “Pedro pedreiro”, composto por Chico na tenra idade, já se nota o divino, o transcendente: “Pedro não sabe/ Mas talvez no fundo/ Espere alguma coisa/ Mais linda que o mundo/ Maior do que o mar”. E que dizer de “Deus lhe pague”? Nela, o Criador não só está no refrão como lhe é suplicada paga por tudo. Por coisas boas, como “a piada no bar e o futebol pra aplaudir”, e pelas ruins, como “o crime pra comentar”. O jeito de suplicar também muda. Ora o poeta pede com piedade, ora sem ela. Sobra até para o sarcasmo: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague”. Nunca pede, porém, sem dor.
Esse modo de compor não é gratuito, nem casual. Chico recebeu educação católica. Foi bastante influenciado pelo pensamento cristão, inclusive tradicionalista, na juventude. Sua mãe, Maria Amélia, era mulher devota. Esses dados ajudam a entender a presença cristã em Chico e o seu modo sempre muito próprio de refleti-la. Ajuda a entender, também, que há um cristianismo cultural fortemente secularizado que a música reflete.
Mas o que há de próprio, nesse cristianismo, além do conteúdo secular, é a multidão de aspectos que o manifestam. Chico retrata a vida, e a vida é concreta. Por isso, seu cristianismo, se houver motivo para encontrá-lo nas suas canções, é também concreto. E, talvez mais do que outros setores da existência, a fé é o território em que o homem se mostra contraditório, partido. O homem crê e não crê. Confia em Deus, mas se rende a crendices, como na canção em que Chico e Toquinho homenageiam Vinícius de Morais e que termina com “Vinícius, mestre, saravá!”
A contradição inerente ao cristianismo secular tem o seu clímax em “Gente humilde”, poema de Chico e Vinícius que recebeu música de Garoto. Leonardo Boff chamou-o “a mais comovente e perfeita” canção de uma obra “que é tão fecunda que desafia vários saberes” (BOFF, Leonardo. “Chico Buarque e a cultura humanista e cristã”. In Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. pp. 89, 94). Não sei se é a mais perfeita música, mas é das mais ricas em contrastes. Retrata a gente simples que anda a pé por não ter dinheiro para a condução, e o poeta “muito bem vindo de trem de algum lugar”. No entanto, embora vá muito bem, o poeta sente-se menos do que essa gente. Inveja-a por ir “em frente/ sem nem ter com quem contar”. Mas o maior de todos os contrastes, reserva-o o final: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente”.
Assim vai Chico, espalhando a seu modo coisas que, quando não são cristãs, sente-se que foram incensadas pelo evangelho e cheiram ao cristianismo sem cheirar a sacristia. Não se poderia esperar ortodoxia, nem muita reverência desse profeta da fé e da incerteza. Isso está claro. Mas ele é mais irreverente consigo do que com Deus. Em “Partido alto”, o poeta descreve a sua criação por Deus: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/ Pele e osso simplesmente, quase sem recheio/ Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/ Dou pernada três por quatro e nem me despenteio”. Não entende como esse não-ser pôde ser criado e posto num canto tão peculiar do mundo. Explica-o à sua moda: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ Pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro/ Mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ Na barriga da miséria, nasci brasileiro/ Eu sou do Rio de Janeiro”. Nem conto o que mais Chico diz nessa canção...
A irreverência o segue, é verdade. Em “O que será”, o Padre Eterno dá sua bênção à sociedade utópica, “aquele inferno”, “o que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
Tantas facetas da fé e da descrença, do sagrado e do profano, da virtude e do pecado resistem a todo esforço de unificação. O cristianismo secular de Chico não parece ser um, mas mil. Ou, se for um, é um mosaico feito de mil pedacinhos. A imagem do mosaico parece boa, mas, se for mesmo adequada, onde se pode ver o contorno do cristianismo formado com os pedacinhos? Alguma canção o expressa melhor do que outras? “Salmo”, que Chico compôs com Edu Lobo, é uma das candidatas. Está tão crivada de antíteses que parece um poema barroco: “Meu corpo está sofrendo/ É grande o meu torpor/ Eu vou enlanguescendo/ Rendo-vos mil graças, meu Senhor”. E em outra estrofe: “Meu Deus abri-me as portas/ Da eterna servidão/ Lançai-me vossa cólera/ No templo de Sião”.
Mas há uma canção que talvez exprima o mosaico de modo ainda mais perfeito que “Salmo”. É “Umas e outras”, obra de juventude em que sensibilidade religiosa e consciência social contraem núpcias. A canção retrata uma freira e uma prostituta não como duas pessoas, mas como uma só. Enfim, como opostos que, na sua oposição, são um.
“Se uma nunca tem sorriso/ É pra melhor se reservar/ E diz que espera o paraíso/ E a hora de desabafar/ A vida é feita de um rosário/ Que custa tanto a se acabar/ Por isso às vezes ela para/ E senta um pouco pra chorar”. Essa é a freira. A meretriz é a sua antítese: “Se a outra não tem paraíso/ Não dá muita importância, não/ Pois já forjou o seu sorriso/ E fez do mesmo profissão/ A vida é sempre aquela dança/ Onde não se escolhe o par/ Por isso às vezes ela cansa/ E senta um pouco pra chorar”.
Mas nosso artista é tão concreto! Não se contenta em pintar as duas. Detém-se num único dia da vida da religiosa: “Que dia! Nossa, pra que tanta conta/ Já perdi a conta de tanto rezar”. E num dia da vida da outra: “Que dia! Puxa, que vida danada/ Tem tanta calçada pra se caminhar”. Um dia nos proporciona visão mais aguda do que um perfil. Mas nem um dia permite focar plenamente o contraste entre as mulheres. Por isso, o poeta detém-se num só instante do dia delas: aquele em que as duas se encontram. “E toda santa madrugada/ Quando uma já sonhou com Deus/ E a outra, triste namorada/ Coitada, já deitou com os seus/ O acaso faz com que essas duas/ Que a sorte sempre separou/ Se cruzem pela mesma rua/ Olhando-se com a mesma dor”.
O mosaico se forma na última estrofe. Cada mulher não é uma, mas várias. Várias freiras, várias prostitutas. Por isso, a música se chama “Umas e outras”. Mas tantas mulheres são uma na dor que sentem. A dor unifica o diverso. Cola os pedaços do mosaico. O cristianismo vário e concreto se faz um, no lugar geométrico do sofrimento, onde todos se dão as mãos.
Mas a mesma dor não se cura com o mesmo remédio? E, se assim é, a dor dos opostos inconciliáveis não se alivia com o mesmo Deus? São as perguntas que lemos no mosaico. O cristianismo secular conduz até elas. Não oferece a resposta, é verdade. Esta fica para um cristianismo mais essencial ou para a utopia política. Mas faz certamente a pergunta a respeito da dor. Tira-a até mesmo do átimo, em que dois olhares se encontram na rua.
Sim, uma dor tão igual se deve curar com remédio igual. Mas que remédio? A sociedade utópica? Essa foi a resposta de Chico à pergunta, nos anos 70. Deus foi a resposta anterior. Mas, se a dor é igual, e o remédio, o mesmo, dou-me o direito de perguntar se a resposta do moço e a do homem feito não são também uma só.