Em Romanos 10:4, Paulo se refere à mensagem nuclear das Escrituras como o fim (télos) da lei: “Pois o fim da lei é Cristo para justificação de todo aquele que crê”. Chega a essa conclusão, após ter discutido amplamente com os judeus o vasto conjunto de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento que então circulavam. Infelizmente, a conclusão não era compartilhada pela maioria dos seus compatriotas, mas o modo de ver o Antigo Testamento deles e de Paulo é o mesmo. Podemos dizer que consiste em reconhecer a inspiração divina de todo o conjunto de manuscritos existente.
Os originais e a tradução grega reconhecidos pelos judeus eram praticamente todos os textos que possuíam das Escrituras. Sabemos da existência de uma ou outra tradução parcial do Antigo Testamento fora desse conjunto, porém, na prática, elas eram muito difíceis de encontrar. Não estavam realmente disponíveis para a maioria dos judeus. De modo que o conceito de Sagrada Escritura implicava a aceitação da quase totalidade dos manuscritos como inspirados.Chama atenção o fato de que esses numerosos textos divergiam em muitos pontos, sem que isso causasse perplexidade aos judeus. Para eles, a palavra de Deus era o conjunto completo de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento, com todas as divergências que apresentavam. Não é preciso acrescentar que essa concepção é muito distinta da dos católicos e protestantes do nosso tempo, que veem a Bíblia sob o ângulo limitado do feixe de manuscritos utilizado em traduções centenárias e rejeitam outros, por causa das variações que contêm em relação a eles.
Essas concepções antiga e moderna da Bíblia são como dois idiomas. É impossível nos entendermos com quem abraça uma delas, utilizando a outra. E, como Paulo adotava a primeira concepção, é impossível entendermos o que ele diz, com base na ideia moderna. Ao afirmar que toda Escritura é inspirada por Deus, 2ª a Timóteo 3:16 se refere aos incontáveis manuscritos hebraicos e à Septuaginta. Nós não dizemos a mesma coisa, quando sustentamos que as Escrituras são a palavra de Deus. E as consequências de ideias tão distintas não são de pequena monta. Para dizer o mínimo, uma ideia é aberta, não comprime a palavra de Deus num dogma, considera-a tão insondável quanto o próprio Deus, ao passo que a outra resolve todas as coisas e o próprio Universo no dogma que cristaliza.
Com base na primeira concepção, Paulo afirma que a justiça da lei e sua consequência (a vida eterna) estão claramente reveladas no versículo em que Deus ordena: “Guardareis os meus estatutos e as minhas leis, cumprindo os quais o homem viverá” (Lv 18:5). Mas o apóstolo conclui que não há um judeu ou prosélito capaz de cumprir todos os mandamentos da lei. Assim, ele se afasta da teologia rabínica, que supunha o contrário. Devemos indagar por que o faz. Que o leva a pagar o alto preço da discordância em relação aos seus compatriotas?
Paulo extrai a conclusão da incapacidade do homem de cumprir a lei da observação do que acontece. Qualquer um pode chegar a conclusão idêntica, se observar os atos humanos como ele o faz, ou seja, de mente aberta e sem preconceitos. A pecaminosidade humana não é uma ideia genial ou acessível apenas aos muito inteligentes. É acessível também aos menos dotados, desde que não sejam menos dotados de realismo.
No entanto, essa conclusão do bom senso fecha o acesso à salvação tão eficazmente quanto o querubim com a espada obstruiu o caminho para a árvore da vida, em Gênesis 3:24. Como Moisés diante da Terra Prometida, quem alcança essa consciência é capaz de vislumbrar, mas não de alcançar a salvação pelo caminho apontado em Levítico.
Paulo, porém, não desiste. A obstrução de um caminho coloca-o em busca de outro. Já o tinha encontrado no verso de Habacuque que afirma que “o justo viverá pela fé”. Reencontra-o em Deuteronômio 30. Nessa passagem, Moisés pronuncia as bênçãos e as maldições em que Israel haveria de incidir, respectivamente, pela obediência e pela desobediência a Deus. Nas bênçãos, Paulo acha “a justiça que provém da fé”: “Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu?” (10:6). E interpreta: “Para fazer descer Cristo” (10:6). “Ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos” (10:7).
Sabemos que, em Deuteronômio, Moisés se refere ao mandamento da lei outorgada a Israel. Afirma que ele não está no céu ou no além-mar para que Israel os tenha de buscar tão longe. De que técnica interpretativa Paulo se vale para encontrar Cristo e não o mandamento em Deuteronômio? Da técnica da escola rabínica de Alexandria, cujo expoente maior, Fílon, se referira ao Logos (palavra) como um ser pessoal gerado de Deus. Se o mandamento da lei é palavra (Logos), é legítimo descrevê-lo como esse ser, ou seja, como o próprio Cristo. Como a passagem de Deuteronômio afirma, em seguida, que o mandamento está no coração e na boca de quem o conhece, não é equivocado espiritualizá-lo do modo como faz Paulo.
Lançada, pois, a base dessa interpretação, o apóstolo avança em direção à conclusão que quer compartilhar com os romanos. Se há, na lei, uma justiça inalcançável e outra alcançável, por estar perto de nós, no nosso coração e na nossa boca , Paulo não hesita em interpretar a proximidade dessa segunda justiça por meio dos versículos: “Quem nele crê não será confundido” (10:11; Is 28:16) e “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (10:13, Jl 3:5).
Diz mais: “Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? Como pregarão se não forem enviados? Pois está escrito: Quão belos são sobre os montes os pés do que anuncia boas-novas sobre coisas boas!" (10:14-15).
Cada palavra, nesses versículos, foi escolhida para exprimir o cerne da experiência inicial de salvação. Invocar é a continuação necessária de crer, como crer é o prosseguimento normal de ouvir. Mas, do modo como nem toda fé conduz à justificação, o invocar a que Paulo alude é específico. Para nada aproveita crer como os demônios creem (Tg 2:19) ou invocar como os que dizem “Senhor, Senhor” e não entram no reino dos céus (Mt 7:21). Crer é algo específico; invocar também o é.
No Antigo Testamento, Deus se tornou conhecido como Iahweh. Por isso, invocar era invocar esse nome (Gn 4:26). Se o nome de Iahweh não devia ser usado em vão (Êx 20:7), invocá-lo era o único meio de salvação disponível para o homem. Não era uma transgressão do terceiro mandamento, mas o contrário exato disso. No Novo Testamento, porém, a revelação foi além desse ponto. Invocar passou a ser invocar Jesus como Iahweh. Sob essa luz, “todo aquele que invocar o nome do Senhor” significa todo o que invocar Jesus como Senhor. As palavras Jesus, Senhor e Iahweh não são elementos de um rito. Por isso, o que importa não é a ordem ou a frase em que as pronunciamos, mas o sentido que lhes atribuímos ao pronunciá-las.
Paulo é muito claro nesse ponto. Afirma que com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa para salvação. Atrela, assim, a justificação à fé e a salvação, à confissão. Para ter valor, a invocação do nome de Jesus deve corresponder a uma confissão, exatamente como a fé, para ter validade, deve ser um ato do coração.
A confissão verdadeira é diferente de dizer apenas “Senhor, Senhor”. Em grego, confessar é homologéo, que significa dizer o mesmo. A palavra da salvação é a mesma que Cristo pregou. É a mesma que os apóstolos anunciaram. Não é outra, pois “se alguém, ainda que nós ou um anjo do céu, vos anunciar evangelho diferente do que vos temos pregado seja anátema” (Gl 1:8).
Quanto mais nos apartamos dessa palavra, menos capazes de invocar o nome do Senhor nos tornamos. Não importa o quanto falamos. A salvação não é uma experiência de loquacidade. É questão de falar o mesmo, de confessar o senhorio de Jesus: “Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo” (10:9). Confessa-o quem diz “Senhor, Senhor”? Não, mas quem afirma, publicamente, por fé, que se sujeita ao jugo de Cristo.
E se a pessoa, após invocar desse modo o Senhor, retornar aos pecados? Essa complicação do problema da salvação é resolvida, em Hebreus, pelo arrependimento. Se nós, que somos maus, devemos perdoar o irmão arrependido 70 vezes sete, como Deus, que é bom, pode negar o perdão a alguém?
Quando diz que não é possível ao crente que retornou ao pecado lançar novamente a base do arrependimento, Hebreus 6:6 se refere à fé em Deus, à confissão e ao batismo (Hb 6:1) que concretizam o arrependimento. A confissão é um ato simbólico. Como tal, ela deve assimilar-se àquilo que representa: o ato de justiça de Cristo. Se Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, devemo-nos arrepender também uma vez. Se, após tê-lo feito, voltamos a pecar, não devemos lançar novamente a base de arrependimento, mas apenas retornar a ela.
Como não cabe discutir que palavras, quando pronunciadas, implicam usar o nome do Senhor em vão, não é o caso de estabelecermos fórmulas invariáveis de confissão. Invocar o nome do Senhor não é dizer palavras sacramentais, mas dizê-las com o sentido de uma confissão. É confessar a mesma verdade, não a mesma palavra, pois a verdade pode ser expressa por diferentes palavras.
Paulo descreve assim o processo da justificação e da salvação inicial. Não utiliza estas duas palavras como sinônimos. Refere-se à justificação como parte da salvação inicial e a divide em quatro passos: o envio, a pregação, a escuta e a fé. O primeiro desses passos é dado por Deus; o segundo, pelo pregador, os dois últimos, pelo ouvinte da palavra de Deus. A esses passos podemos acrescentar o entendimento, pois Paulo afirma que muitos judeus têm zelo por Deus, mas sem entendimento (10:2), o que os impede de crer e de ser justificados.
A salvação completa, porém, inclui um passo adicional: a confissão. No Evangelho de Marcos, inclui também o batismo, que acompanha a confissão (Mc 16:16). Tudo considerado, chegamos a sete passos: o envio, a pregação, a escuta, o entendimento, a fé, a confissão e o batismo. Esse é o inteiro processo da salvação inicial.
Uma consequência prática emerge da diferença entre a justificação e a salvação: a de que algumas pessoas podem ser justificadas e não completar o processo da salvação inicial, por falta da confissão e do batismo. Paulo parece não só admitir essa consequência como entender a situação de alguns de seus compatriotas com base nela. Ao distinguir as experiências de crer e invocar, ele torna possível um entendimento mais flexível da situação espiritual dos seus concidadãos. Evita votá-los todos a um destino idêntico.
Muitos judeus creram em Jesus, mas não o confessaram. Nicodemos é um dos casos notórios. Em Romanos 10, Paulo parece inseri-los numa situação peculiar caracterizada pela presença da fé e pela ausência da confissão. É muito difícil entender o que isso significa em termos do destino eterno da pessoa. Mais ainda afirmar que essas experiências diferentes implicarão uma só consequência.
Porém, o capítulo 8 ajuda-nos a resolver o dilema: “Aqueles que de antemão conheceu também os predestinou [...] e aqueles a quem predestinou a esses também chamou, e aqueles a quem chamou, a esses também justificou, e aqueles a quem justificou a esses também glorificou” (8:29). É possível inverter a ordem dessas afirmações? É possível afirmar, por exemplo, que aqueles que glorificou, justificou e chamou Deus também predestinou?
Parece que não, pois Jesus declarou que “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos” (Mt 22:14). Se a diferença entre os grupos constituídos pelos chamados e pelos escolhidos puder ser estendida ao grupo dos justificados, será possível ser justificado sem ter sido predestinado, do modo como é possível ser chamado sem ter sido escolhido.
Na parábola do banquete, em Lucas 14:15-24, um homem convida muitas pessoas para um banquete, mas apenas alguns (os menos dotados) comparecem. O convite é, assim, um símbolo do chamamento. Mas ao símbolo basta ter algo em comum com o que é simbolizado para cumprir a sua função. Não é preciso que ele seja semelhante à coisa simbolizada em todos os outros aspectos. Por isso, Jesus pôde se referir a Deus como um juiz iníquo. Na parábola do banquete, o fato de o convite ter sido recusado não implica que o chamamento de Deus seja comumente rejeitado. A parábola não foca esse aspecto do chamamento. Alguns dos que foram convidados e não compareceram à festa podem ter mantido excelente relação com o anfitrião, tanto antes como depois do convite. Devemos até supô-lo, pois o princípio da urbanidade o exige. Porém, se assim é, o chamamento não constitui um convite que, declinado, ponha fim à relação de Deus com o homem.
A frase “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” deve ser interpretada literalmente. O chamamento de Deus é real. A eleição também. Não há motivo algum para a entendermos alegoricamente. Por isso, muitos são muitos, e poucos são poucos, não outra coisa. A lição da parábola é de que o número dos chamados é maior que o dos escolhidos, sem que uns ou outros estejam excluídos da relação com o anfitrião que representa Cristo.
Essa é a ideia presente, também, em Romanos 8:29-30 e 10:14-15. Paulo sugere que o grupo dos que creem e são justificados não é idêntico ao dos que invocam e são salvos. Há muitos pontos de semelhança entre os grupos, mas eles não são idênticos em tudo.
Podemos prosseguir, na senda de Romanos, e perguntar se a glória não é como a justificação e o chamamento. Se o número dos glorificados não excede o dos predestinados. Não podemos negar que as respostas a essas perguntas estão implícitas, não manifestas, nas parábolas e em Romanos. Aqui e ali, Deus semeou mistérios na revelação. Não entendemos mistérios, como não ceifamos sementes. Apenas as reconhecemos, esperamos que cresçam e se tornem vegetais maduros. Esse esperar não é destituído do mais fundo sentimento. Como o agricultor espera a messe com que sonha, também nós esperamos que as sementes da revelação se transformem em luz meridiana. E, enquanto esperamos, lembramo-nos dos entes queridos e rogamos por eles, como Paulo lembrava dos seus compatriotas (9:1-5) e intercedia em favor deles (10:1). Mas Deus é quem faz crescer a messe. Fará crescer isso ou aquilo, como lhe apraz, mas também como esperamos nele.