segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Livre Exame de Romanos (21): Crer e Invocar

Em Romanos 10:4, Paulo se refere à mensagem nuclear das Escrituras como o fim (télos) da lei: “Pois o fim da lei é Cristo para justificação de todo aquele que crê”. Chega a essa conclusão, após ter discutido amplamente com os judeus o vasto conjunto de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento que então circulavam. Infelizmente, a conclusão não era compartilhada pela maioria dos seus compatriotas, mas o modo de ver o Antigo Testamento deles e de Paulo é o mesmo. Podemos dizer que consiste em reconhecer a inspiração divina de todo o conjunto de manuscritos existente.
Os originais e a tradução grega reconhecidos pelos judeus eram praticamente todos os textos que possuíam das Escrituras. Sabemos da existência de uma ou outra tradução parcial do Antigo Testamento fora desse conjunto, porém, na prática, elas eram muito difíceis de encontrar. Não estavam realmente disponíveis para a maioria dos judeus. De modo que o conceito de Sagrada Escritura implicava a aceitação da quase totalidade dos manuscritos como inspirados.
Chama atenção o fato de que esses numerosos textos divergiam em muitos pontos, sem que isso causasse perplexidade aos judeus. Para eles, a palavra de Deus era o conjunto completo de manuscritos hebraicos e a tradução grega do Antigo Testamento, com todas as divergências que apresentavam. Não é preciso acrescentar que essa concepção é muito distinta da dos católicos e protestantes do nosso tempo, que veem a Bíblia sob o ângulo limitado do feixe de manuscritos utilizado em traduções centenárias e rejeitam outros, por causa das variações que contêm em relação a eles.
Essas concepções antiga e moderna da Bíblia são como dois idiomas. É impossível nos entendermos com quem abraça uma delas, utilizando a outra. E, como Paulo adotava a primeira concepção, é impossível entendermos o que ele diz, com base na ideia moderna. Ao afirmar que toda Escritura é inspirada por Deus, 2ª a Timóteo 3:16 se refere aos incontáveis manuscritos hebraicos e à Septuaginta. Nós não dizemos a mesma coisa, quando sustentamos que as Escrituras são a palavra de Deus. E as consequências de ideias tão distintas não são de pequena monta. Para dizer o mínimo, uma ideia é aberta, não comprime a palavra de Deus num dogma, considera-a tão insondável quanto o próprio Deus, ao passo que a outra resolve todas as coisas e o próprio Universo no dogma que cristaliza.
Com base na primeira concepção, Paulo afirma que a justiça da lei e sua consequência (a vida eterna) estão claramente reveladas no versículo em que Deus ordena: “Guardareis os meus estatutos e as minhas leis, cumprindo os quais o homem viverá” (Lv 18:5). Mas o apóstolo conclui que não há um judeu ou prosélito capaz de cumprir todos os mandamentos da lei. Assim, ele se afasta da teologia rabínica, que supunha o contrário. Devemos indagar por que o faz. Que o leva a pagar o alto preço da discordância em relação aos seus compatriotas?
Paulo extrai a conclusão da incapacidade do homem de cumprir a lei da observação do que acontece. Qualquer um pode chegar a conclusão idêntica, se observar os atos humanos como ele o faz, ou seja, de mente aberta e sem preconceitos. A pecaminosidade humana não é uma ideia genial ou acessível apenas aos muito inteligentes. É acessível também aos menos dotados, desde que não sejam menos dotados de realismo.
No entanto, essa conclusão do bom senso fecha o acesso à salvação tão eficazmente quanto o querubim com a espada obstruiu o caminho para a árvore da vida, em Gênesis 3:24. Como Moisés diante da Terra Prometida, quem alcança essa consciência é capaz de vislumbrar, mas não de alcançar a salvação pelo caminho apontado em Levítico.
Paulo, porém, não desiste. A obstrução de um caminho coloca-o em busca de outro. Já o tinha encontrado no verso de Habacuque que afirma que “o justo viverá pela fé”. Reencontra-o em Deuteronômio 30. Nessa passagem, Moisés pronuncia as bênçãos e as maldições em que Israel haveria de incidir, respectivamente, pela obediência e pela desobediência a Deus. Nas bênçãos, Paulo acha “a justiça que provém da fé”: “Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu?” (10:6). E interpreta: “Para fazer descer Cristo” (10:6). “Ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos” (10:7).
Sabemos que, em Deuteronômio, Moisés se refere ao mandamento da lei outorgada a Israel. Afirma que ele não está no céu ou no além-mar para que Israel os tenha de buscar tão longe. De que técnica interpretativa Paulo se vale para encontrar Cristo e não o mandamento em Deuteronômio? Da técnica da escola rabínica de Alexandria, cujo expoente maior, Fílon, se referira ao Logos (palavra) como um ser pessoal gerado de Deus. Se o mandamento da lei é palavra (Logos), é legítimo descrevê-lo como esse ser, ou seja, como o próprio Cristo. Como a passagem de Deuteronômio afirma, em seguida, que o mandamento está no coração e na boca de quem o conhece, não é equivocado espiritualizá-lo do modo como faz Paulo.
Lançada, pois, a base dessa interpretação, o apóstolo avança em direção à conclusão que quer compartilhar com os romanos. Se há, na lei, uma justiça inalcançável e outra alcançável, por estar perto de nós, no nosso coração e na nossa boca , Paulo não hesita em interpretar a proximidade dessa segunda justiça por meio dos versículos: “Quem nele crê não será confundido” (10:11; Is 28:16) e “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (10:13, Jl 3:5).
Diz mais: “Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? Como pregarão se não forem enviados? Pois está escrito: Quão belos são sobre os montes os pés do que anuncia boas-novas sobre coisas boas!" (10:14-15).
Cada palavra, nesses versículos, foi escolhida para exprimir o cerne da experiência inicial de salvação. Invocar é a continuação necessária de crer, como crer é o prosseguimento normal de ouvir. Mas, do modo como nem toda fé conduz à justificação, o invocar a que Paulo alude é específico. Para nada aproveita crer como os demônios creem (Tg 2:19) ou invocar como os que dizem “Senhor, Senhor” e não entram no reino dos céus (Mt 7:21). Crer é algo específico; invocar também o é.
No Antigo Testamento, Deus se tornou conhecido como Iahweh. Por isso, invocar era invocar esse nome (Gn 4:26). Se o nome de Iahweh não devia ser usado em vão (Êx 20:7), invocá-lo era o único meio de salvação disponível para o homem. Não era uma transgressão do terceiro mandamento, mas o contrário exato disso. No Novo Testamento, porém, a revelação foi além desse ponto. Invocar passou a ser invocar Jesus como Iahweh. Sob essa luz, “todo aquele que invocar o nome do Senhor” significa todo o que invocar Jesus como Senhor. As palavras Jesus, Senhor e Iahweh não são elementos de um rito. Por isso, o que importa não é a ordem ou a frase em que as pronunciamos, mas o sentido que lhes atribuímos ao pronunciá-las.
Paulo é muito claro nesse ponto. Afirma que com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa para salvação. Atrela, assim, a justificação à fé e a salvação, à confissão. Para ter valor, a invocação do nome de Jesus deve corresponder a uma confissão, exatamente como a fé, para ter validade, deve ser um ato do coração.
A confissão verdadeira é diferente de dizer apenas “Senhor, Senhor”. Em grego, confessar é homologéo, que significa dizer o mesmo. A palavra da salvação é a mesma que Cristo pregou. É a mesma que os apóstolos anunciaram. Não é outra, pois “se alguém, ainda que nós ou um anjo do céu, vos anunciar evangelho diferente do que vos temos pregado seja anátema” (Gl 1:8).
Quanto mais nos apartamos dessa palavra, menos capazes de invocar o nome do Senhor nos tornamos. Não importa o quanto falamos. A salvação não é uma experiência de loquacidade. É questão de falar o mesmo, de confessar o senhorio de Jesus: “Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos serás salvo” (10:9). Confessa-o quem diz “Senhor, Senhor”? Não, mas quem afirma, publicamente, por fé, que se sujeita ao jugo de Cristo.
E se a pessoa, após invocar desse modo o Senhor, retornar aos pecados? Essa complicação do problema da salvação é resolvida, em Hebreus, pelo arrependimento. Se nós, que somos maus, devemos perdoar o irmão arrependido 70 vezes sete, como Deus, que é bom, pode negar o perdão a alguém?
Quando diz que não é possível ao crente que retornou ao pecado lançar novamente a base do arrependimento, Hebreus 6:6 se refere à fé em Deus, à confissão e ao batismo (Hb 6:1) que concretizam o arrependimento. A confissão é um ato simbólico. Como tal, ela deve assimilar-se àquilo que representa: o ato de justiça de Cristo. Se Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, devemo-nos arrepender também uma vez. Se, após tê-lo feito, voltamos a pecar, não devemos lançar novamente a base de arrependimento, mas apenas retornar a ela.
Como não cabe discutir que palavras, quando pronunciadas, implicam usar o nome do Senhor em vão, não é o caso de estabelecermos fórmulas invariáveis de confissão. Invocar o nome do Senhor não é dizer palavras sacramentais, mas dizê-las com o sentido de uma confissão. É confessar a mesma verdade, não a mesma palavra, pois a verdade pode ser expressa por diferentes palavras.
Paulo descreve assim o processo da justificação e da salvação inicial. Não utiliza estas duas palavras como sinônimos. Refere-se à justificação como parte da salvação inicial e a divide em quatro passos: o envio, a pregação, a escuta e a fé. O primeiro desses passos é dado por Deus; o segundo, pelo pregador, os dois últimos, pelo ouvinte da palavra de Deus. A esses passos podemos acrescentar o entendimento, pois Paulo afirma que muitos judeus têm zelo por Deus, mas sem entendimento (10:2), o que os impede de crer e de ser justificados.
A salvação completa, porém, inclui um passo adicional: a confissão. No Evangelho de Marcos, inclui também o batismo, que acompanha a confissão (Mc 16:16). Tudo considerado, chegamos a sete passos: o envio, a pregação, a escuta, o entendimento, a fé, a confissão e o batismo. Esse é o inteiro processo da salvação inicial.
Uma consequência prática emerge da diferença entre a justificação e a salvação: a de que algumas pessoas podem ser justificadas e não completar o processo da salvação inicial, por falta da confissão e do batismo. Paulo parece não só admitir essa consequência como entender a situação de alguns de seus compatriotas com base nela. Ao distinguir as experiências de crer e invocar, ele torna possível um entendimento mais flexível da situação espiritual dos seus concidadãos. Evita votá-los todos a um destino idêntico.
Muitos judeus creram em Jesus, mas não o confessaram. Nicodemos é um dos casos notórios. Em Romanos 10, Paulo parece inseri-los numa situação peculiar caracterizada pela presença da fé e pela ausência da confissão. É muito difícil entender o que isso significa em termos do destino eterno da pessoa. Mais ainda afirmar que essas experiências diferentes implicarão uma só consequência.
Porém, o capítulo 8 ajuda-nos a resolver o dilema: “Aqueles que de antemão conheceu também os predestinou [...] e aqueles a quem predestinou a esses também chamou, e aqueles a quem chamou, a esses também justificou, e aqueles a quem justificou a esses também glorificou” (8:29). É possível inverter a ordem dessas afirmações? É possível afirmar, por exemplo, que aqueles que glorificou, justificou e chamou Deus também predestinou?
Parece que não, pois Jesus declarou que “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos” (Mt 22:14). Se a diferença entre os grupos constituídos pelos chamados e pelos escolhidos puder ser estendida ao grupo dos justificados, será possível ser justificado sem ter sido predestinado, do modo como é possível ser chamado sem ter sido escolhido.
Na parábola do banquete, em Lucas 14:15-24, um homem convida muitas pessoas para um banquete, mas apenas alguns (os menos dotados) comparecem. O convite é, assim, um símbolo do chamamento. Mas ao símbolo basta ter algo em comum com o que é simbolizado para cumprir a sua função. Não é preciso que ele seja semelhante à coisa simbolizada em todos os outros aspectos. Por isso, Jesus pôde se referir a Deus como um juiz iníquo. Na parábola do banquete, o fato de o convite ter sido recusado não implica que o chamamento de Deus seja comumente rejeitado. A parábola não foca esse aspecto do chamamento. Alguns dos que foram convidados e não compareceram à festa podem ter mantido excelente relação com o anfitrião, tanto antes como depois do convite. Devemos até supô-lo, pois o princípio da urbanidade o exige. Porém, se assim é, o chamamento não constitui um convite que, declinado, ponha fim à relação de Deus com o homem.
A frase “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” deve ser interpretada literalmente. O chamamento de Deus é real. A eleição também. Não há motivo algum para a entendermos alegoricamente. Por isso, muitos são muitos, e poucos são poucos, não outra coisa. A lição da parábola é de que o número dos chamados é maior que o dos escolhidos, sem que uns ou outros estejam excluídos da relação com o anfitrião que representa Cristo.
Essa é a ideia presente, também, em Romanos 8:29-30 e 10:14-15. Paulo sugere que o grupo dos que creem e são justificados não é idêntico ao dos que invocam e são salvos. Há muitos pontos de semelhança entre os grupos, mas eles não são idênticos em tudo.
Podemos prosseguir, na senda de Romanos, e perguntar se a glória não é como a justificação e o chamamento. Se o número dos glorificados não excede o dos predestinados. Não podemos negar que as respostas a essas perguntas estão implícitas, não manifestas, nas parábolas e em Romanos. Aqui e ali, Deus semeou mistérios na revelação. Não entendemos mistérios, como não ceifamos sementes. Apenas as reconhecemos, esperamos que cresçam e se tornem vegetais maduros. Esse esperar não é destituído do mais fundo sentimento. Como o agricultor espera a messe com que sonha, também nós esperamos que as sementes da revelação se transformem em luz meridiana. E, enquanto esperamos, lembramo-nos dos entes queridos e rogamos por eles, como Paulo lembrava dos seus compatriotas (9:1-5) e intercedia em favor deles (10:1). Mas Deus é quem faz crescer a messe. Fará crescer isso ou aquilo, como lhe apraz, mas também como esperamos nele.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Deus é Pai (1): Introdução

De todos os fatos sociais, a religião é, sem dúvida, o mais fundamental e misterioso. Pensadores de áreas tão diferentes quanto Durkheim, Freud, Toynbee, Huntington e Girard são unânimes em sustentar que a cultura se funda na religião. No entanto, a fé religiosa é o único fenômeno social a que a maioria dos pensadores contemporâneos nega um objeto real ou confessa a sua própria impotência para determiná-lo. Em poucas palavras, a religião ainda é tratada, pelas ciências humanas, como ilusão e fantasmagoria.  
Esse julgamento é justo? Em que consiste a religião? A que corresponde o seu objeto? Qual é o valor de verdade que ela encerra? Este texto e os que o seguirão têm por objetivo tratar das perguntas acima, sob o ponto de vista de todas as religiões, mas especialmente das monoteístas. Cada religião (do latim religatio: ato ou efeito de reatar) desenvolve a sua essência de modo peculiar. Por isso, produz resultados diversos de todos os outros sistemas de crenças. Porém, ao mesmo tempo, cada religião vale na medida em que o seu desenvolvimento mantém certa concordância com a essência das outras religiões. Há um ponto de convergência mínima e nuclear, uma essência do ato de crer que transcende a especificidade das religiões. 
Proponho que a essência das religiões pode ser compreendida, em relação à família e à figura do pai. Panteões inteiros foram construídos com base em tramas familiares. Não é diferente com as religiões bíblicas. Esses dados etnológicos chegam a ser irrefutáveis. Indagar o seu significado é o objetivo da presente série. 
A relação entre Deus e a família é mais ou menos explícita, na Bíblia, embora nem sempre seja considerada em toda a sua profundidade. Não apenas o Novo Testamento fala de Deus como Pai. O Antigo também o faz, de outra maneira. É que o conceito de pai se altera, quando passamos de um para o outro Testamento. De modo que tanto a religião bíblica como a estruturação social da família, nos povos monoteístas, dependem antes de tudo do conceito de pai.   
Infelizmente, uma série de acontecimentos, no último século e meio, provocou forte desagregação da família, nas sociedades ocidentais. Essa desagregação está, intimamente, associada à dessacralização da vida que se verificou nesses povos. Ao percebermos que as religiões são o desenvolvimento da espiritualidade humana numa direção relacionada ao pai e à família, perguntamo-nos se esses fatos não são facetas do desgaste profundo e atroz da figura paterna e das mudanças por que passa a família na atualidade.  
Se a religião é a construção da família suprema, divina, como sugiro, o neoateísmo e o neoagnosticismo podem ser vistos como reflexos da crise atual da família, no campo da religião. E, se assim é, seus adeptos e porta-vozes estão a exprimir um aspecto do problema civilizacional mais amplo, que afeta a família.   
No entanto, as relações da família com a religião não se dão apenas nesse sentido, mas também na direção oposta. A família nuclear também é influenciada pelos desenvolvimentos no campo da religião. Ela é um reflexo social duradouro da religião e do que acontece com ela. Por isso, não se pode negar que, no último meio século, a família passou a refletir os descaminhos da dessacralização em andamento no meio social.  
Essa é a síntese do que irei abordar, na série que se inicia. Neste texto e nos próximos, procurarei dar foros de concepção filosófica a uma intuição tão comum que é expressa em jargão popular, a saber: a noção de que a ideia da divindade é a reconstrução da noção social do pai. Ou, como dizemos em linguagem direta, Deus é pai. O que não se percebe, quando se pronuncia essa frase, é que ela encerra um modo de ver o fenômeno religioso que sugere a experiência monoteísta em toda a sua amplitude, vale dizer, tanto a adoração como o sacrifício do Pai.
Após a proposição de uma série de teorias ousadas e inovadoras sobre o religioso, pode ser oportuno analisar a simples intuição, que acabo de mencionar. A ideia nada tem de desconhecida: os adultos sempre tranquilizaram as crianças com ela; os aflitos sempre apaziguaram com ela o seu coração. No entanto, apesar do tempo transcorrido, ela não foi guarnecida por uma real demonstração da sua verdade.
As intuições à base da maior parte das modernas teorias da religião não coincidem com noções populares. E o pior é que, ao se afastarem de intuições mais comuns, em vez de explicarem a religião, elas a contraem a experiências e instituições particulares. Reduzem o essencial do fenômeno religioso aos seus acessórios. A ideia que proporei a seguir evita essa espécie de inovação ao interpretar a religião em estrita consonância com uma noção popular. Procura, exatamente, dar foros de teoria ou concepção filosófica a essa noção.  

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Deus é Pai (2): A Experiência Fundadora


Em 1913, Freud publicou Totem e tabu, que causou alvoroço ao propor que a religião decorre de uma experiência ancestral que determinou o seu significado durante milênios. Essa experiência teria consistido no assassinato do chefe de um clã primitivo por seus filhos revoltados com a apropriação exclusiva das mulheres por ele. Após o assassinato do pai, os filhos teriam sido tomados de remorso e instituído um memorial com o objetivo de cultuar o pai morto: a adoração do animal ou vegetal totêmico, que desde então simboliza o falecido patriarca. O mesmo remorso teria levado os filhos a proibirem o assassinato do totem, como se observa nas religiões primitivas ainda hoje. E, sempre de acordo com Freud, a tradição teria perpetuado a lembrança desse assassinato primordial, por meio de cerimônias em que o totem é oferecido em sacrifício.
Há amplo consenso de que a teoria esboçada por Freud, em Totem e tabu, parte de uma premissa histórica falsa, dada a inexistência de indícios do assassinato primordial a que se refere. Porém, se a teoria peca no tocante a essa premissa, a intuição de que a religião se estrutura a partir de uma experiência primordial até hoje não foi refutada. Não se pode afastar a hipótese de que as religiões se reportem a uma experiência fundadora, análoga ou não à do parricídio original.
Por isso, o legado de Freud, a parte não superada do seu pensamento sobre a religião, não é a teoria do parricídio, mas o método investigativo que ele adotou para construí-la, que é o da experiência fundadora. Se a origem da religião não pode ser determinada por essa experiência, o sentido fundamental dela certamente o pode. O que já constitui contribuição significativa para a compreensão daquilo que o homem considera o sagrado. Adotarei esse método nos textos seguintes da presente série.

A proibição da violência

Os fatos narrados em Gênesis 2 a 4 podem ser entendidos sob essa ótica. Podem ser interpretados como a experiência fundadora da religião monoteísta. Sabemos que, nessa passagem, Deus proibiu Adão de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Interessa indagar por quê. No Livro de Gênesis, conhecer o bem e o mal é possuir a capacidade de diferenciar o pecaminoso do não pecaminoso. A Bíblia não especifica os atos cuja pecaminosidade Deus deu a conhecer a Adão. Não devemos entender que tenham sido muitos, pois Adão não recebeu uma multidão de mandamentos, mas apenas um. Vale a pena examinar mais de perto o conteúdo desse mandamento para determinarmos a que exatamente se refere.
Não retomarei a antiga discussão sobre o sentido literal ou simbólico da proibição a Adão e do seu pecado. Creio tê-lo realizado, em alguma minúcia, em textos anteriores. Partirei, mais simplesmente, da ideia de que o dado a ser entendido de modo literal, em Gênesis 2:17, é o próprio mandamento. É o fato de Deus ter ordenado alguma coisa a Adão. O conteúdo do mandamento, porém, admitirei que está transmitido em linguagem simbólica. Isso implica que Deus não pretendia que Adão se abstivesse de comer algo físico, no Jardim do Éden, mas que se abstivesse de outra conduta. Trata-se de indagar que conduta teria sido essa.
Para que a narrativa da queda faça sentido, é preciso supor que Adão entendeu o que Deus lhe proibiu com as palavras "da árvore que está no centro do jardim não comerás". E que a compreensão só pode estar relacionada à experiência anterior de Adão com Deus. Tanto quanto a Bíblia a relate, essa experiência se reduz às palavras que Deus disse a Adão, após o abençoar: "Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento” (Gn 1:29). Não há qualquer outra experiência de Adão com Deus narrada entre esse versículo e o relato da queda.
Aparentemente, o versículo não estabelece proibição alguma. No entanto, se atentarmos, perceberemos que as palavras "Isso vos será para mantimento" implicam que tudo o que não estivesse incluído na permissão de Deus não devia servir de alimento ao homem. Por um raciocínio a contrario sensu, se Deus lhe permitiu comer de todas as ervas e árvores, Adão não podia se alimentar de carne. Esse é o significado claro de Gênesis 1:29.
O verso contém uma proibição não ritual. Não visa à observância de um rito, mas de um valor moral: a não-violência. A proibição de matar para comer importa uma interdição muito ampla da violência, já que, para comer um animal, é preciso matá-lo. Mais do que isso, está implícito que a proibição do menos grave (matar para se alimentar) implica a do mais grave (matar sem necessidade). De sorte que Gênesis 1:29 contém uma ampla proibição de matar tanto seres humanos quanto animais. É como se o versículo estendesse a proibição do sexto mandamento do Decálogo a toda a natureza capaz de sensações.
A essa proibição devemos associar o mandamento posterior a Adão: "Da árvore que está no centro do jardim não comerás". Os dois são um só mandamento. A única diferença é que o mandamento único está em linguagem literal, em Gênesis 1:29, e simbólica, em 2:17. O sentido do símbolo se descortina pela palavra conhecimento, que dá nome à árvore proibida. Conhecimento do mal é o aspecto subjetivo da transgressão. O mal cometido sem consciência não é levado em conta. O que se comete com consciência constitui propriamente pecado. Portanto, se Gênesis 2:17 se elucida por meio de 1:29, o mandamento do capítulo 1 nos revela o ato que Deus proíbe, e o do capítulo 2, a motivação que o torna pecaminoso.
Se isso estiver correto, a experiência fundadora do monoteísmo (o pecado original de Adão) consistiu na violação do mandamento de não-violência. Para corrigir esse mal, Deus interveio, pessoalmente, em seguida.

O sacrifício original

Em A violência e o sagrado, o antropólogo René Girard mostra, por meio de exemplos, que a noção de sacrifício é uma das mais basilares, em todas as religiões. Girard estende a sua interpretação do sacrifício a toda forma de religião e à cultura em geral. Para ele, todos os aspectos da sociedade refletem o mandamento de expiar o pecado por meio do sacrifício. Proposta de validade tão ampla é difícil de ser aceita, mesmo se considerarmos a religião a base da organização social. Mas isso não nos impede de reconhecer que a importância do sacrifício, nas religiões, é indiscutível. O mérito de Girard consiste em ter fornecido uma explicação suficientemente ampla para a prática não menos ampla de sacrifícios.
Para o antropólogo francês, o sacrifício é a reação primordial da sociedade à escalada da violência. Em todas as religiões, a oferta da vítima a Deus tem por objetivo criar uma disposição que substitua a violência recíproca no interior da sociedade. Por violência recíproca, devemos entender a que tende a se generalizar pela multiplicação. Essa a concepção sacrificial de Girard. Digamos que ele explica a religião como um mecanismo de autodefesa social.
Muito antes de Girard, os antigos já acreditavam que o sacrifício despertava uma atitude favorável em Deus ou nos deuses, que exigiam uma violência final (exatamente o sacrifício) para pôr termo à sequência infindável de atos de violência. Essa opinião difundida entre os membros de uma sociedade gerava a convicção de que a vítima ocupava o lugar de todos os que haviam praticado a violência recíproca e mereciam receber uma paga. Em poucas palavras, o homem antigo percebia que a reciprocidade da violência envolvia a sociedade numa espiral tendente ao extermínio de todos. E reagia a esse fato, por meio do sacrifício e da religião. Em Coisas ocultas desde a fundação do mundo, Girard mostra que o Cristianismo é a única exceção à mecânica sacrificial. A vida de Cristo expõe o desatino dos sacrifícios. A sua morte põe fim à roda das imolações. Cessa o oferecimento constante de vítimas, para compensar e encobrir outras violências.
Porém, o cristianismo como toda religião monoteísta depende de Gênesis 2 a 4. Daí toda a narrativa pós-bíblica do pecado original. Em Gênesis, Deus realiza pessoalmente o primeiro sacrifício, o que confere autoridade extrema à prática. Ainda que os profetas tenham desenvolvido uma ampla crítica dos sacrifícios, é preciso diferenciá-la da instituição do sacrifício por Deus. Os primeiros cristãos souberam realizar essa diferenciação, de modo insuperável, pela dissociação do sacrifício-solução de Gênesis 3 do sacrifício-problema criado pela exacerbação ritual da prática.
Como há uma proibição original (de cometer violência) e um pecado original (a violência), Gênesis 3 e 4 apresentam um sacrifício primordial, por meio do qual Deus proveu vestimentas de pele a Adão e Eva e que foi imitado por Abel. Esse sacrifício foi instituído pelo próprio Deus contra a violência. Mais tarde, quando o pecado se generalizou, ele foi estendido a todos os outros atos pecaminosos.
Mas por que Deus usa a violência do sacrifício contra a do pecado? Por que opõe uma violência a outra? A resposta de Gênesis parece ser que Deus recua, ante a alternativa de exterminar a humanidade contumaz para fazer respeitar a proibição de matar. Ante o fato consumado da violência em que o homem incidiu por seu livre arbítrio, Deus admite o sacrifício e institui uma lógica sacrificial, na experiência fundadora de Gênesis 2 a 4.
Não me parece que os sacrifícios realizados, em diferentes cultos e religiões, se subsumam a uma lógica. Tampouco que tenham o mesmo valor. Ritos sacrificiais diferentes enraízam-se em experiências fundadoras diversas e com sentidos também diversos. A que narrei é a experiência fundadora da religião monoteísta. Somente ela tem o potencial de explicar toda a religião. Não há religião em que a divindade não seja retratada como pai. A concepção de pai varia de época para época e de lugar para lugar. Variam com ela as espécies de pais celestes. Mas, em tudo isso, a divindade é sempre concebida como pai.
O atentado ao pai teorizado por Freud merece ser recordado, aqui, pois depõe a favor dessa conclusão. Tem o mérito de relacionar o divino com o pai, e a religião com a relação problemática entre Deus e o homem. Se depurarmos a teoria da interpretação de fundo sexual que o fundador da Psicanálise lhe atribuiu e a relacionarmos à lógica sacrificial do monoteísmo, o assassinato talvez represente a rejeição de Deus pelos povos que o representam nos ritos sacrificiais. Analisar minimamente essa possibilidade é o objetivo da série de textos publicada neste espaço.
Se Deus é pai, e o pai é um, deve haver um só Deus. A experiência fundadora da religião em geral deve coincidir com a do monoteísmo, não do ângulo histórico, pois nesse plano as cartas se embaralham, mas de um ponto de vista hermenêutico.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Os Franciscos (2): Bergoglio, o Papa

A eleição de Jorge Mario Bergoglio como sucessor de Bento XVI foi marcada pelo descompasso entre o pensamento dos cardeais eleitores e o noticiário da mídia internacional. O nome de Bergoglio estava nas listas de líderes com chances de serem eleitos, mas não em posição de destaque. Em contraste, na eleição anterior, de Bento, os cardeais já lhe tinham dado tantos votos que um eleitor inconfidente relatou que foi preciso o próprio Bergoglio pedir que seus pares votassem em Ratzinger para que o impasse no escrutínio se desfizesse.
Oito anos mais tarde, sem a concorrência de Bento, Bergoglio simplesmente ampliou a margem de preferência construída no conclave anterior. De modo que a divulgação da sua escolha pode ser considerada tudo, menos uma surpresa, do ponto de vista da cúpula católica. Mesmo assim, enquanto ela tinha lugar, os jornalistas ao redor do mundo empalideciam.
O reconhecimento alcançado  por Bergoglio, nessa cúpula, ajuda a entender o que ele representa no mundo católico. Por que o cardeal latinoamericano angariou tanto apoio? É verdade que o estilo despojado dele, havia muito, atraía a simpatia do povo católico, mas já aprendemos o bastante para não confundir as perspectivas do povo e do colégio de cardeais. De fato, a cúpula da Igreja Católica, antes do conclave que o elegeu, olhava para Bergoglio com um misto de admiração e reserva. Admiração, sem dúvida, pela sua espiritualidade, inteligência e estilo despojado de pastorear. Mas reserva suficiente para não basear só nesses atributos a escolha do novo Papa.
Mais do que eles, pesaram na eleição do cardeal argentino seu perfil doutrinário conservador e o vínculo com a região com maior número de adeptos do Catolicismo (a América Latina). Esses parecem ter sido os fatores principais da eleição de Bergoglio, a mensagem dos eleitores que ele, por certo, despenderá todo esforço para recordar doravante.
No entanto, o carisma pessoal é uma realidade forte demais para se moldar a imposições coletivas. Bergoglio pode ter sido eleito pelos motivos acima, mas o modo como exerceceu o pontificado, até aqui, exorbita bastante deles. Não que Bergoglio tenha traído a confiança dos cardeais. Pelo contrário, ele correspondeu a ela. Reafirmou, nos pronunciamentos mais importantes, sua adesão não apenas ao Credo Católico como às correntes teológicas conservadoras. E deu grande atenção às necessidades da Igreja da América Latina. Mas uma característica imprevista (para os cardeais como para o povo e a mídia) assinalou mais fortemente os seus primeiros atos como Papa do que o conservadorismo teológico e a relação com o nosso continente. Refiro-me à ética que anima e motiva o trabalho de Jorge Bergoglio, Francisco de Roma, que adotou esse nome como uma mensagem de que o seu pontificado estará voltado à espiritualidade e à ética que, no pensamento católico, não se desacopla dela.
O primeiro documento papal redigido apenas por Francisco, a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, está repleta dessa ética e do sentimento que a orienta. Nela, a ética ajusta-se à espiritualidade de modo clássico, mas com ardor e clarividência totalmente renovados. Mais que a doutrina teológica e a própria ética, esse ardor e essa clarividência ocupam o primeiro plano do documento papal.
Não por outro motivo, a Exortação se abre com a pregação da alegria associada à fé no evangelho. Crer em Cristo é ter o coração borbulhante da alegria de ter recebido tudo o que falta ao homem, na atual condição pecadora. Não pensemos que essa alegria é apenas um sentimento místico. Mais do que  isso, ela é o sentimento que há de mover a reviravolta de que a Igreja necessita, em todos os quadrantes do mundo.
Porém, não nos enganemos: tanto a alegria como as outras virtudes têm, para Francisco, o sentido mais concreto. Podemos até dizer: são virtudes concretas e sociais, mais do que filosóficas ou teologais. Cabe, aliás, a ressalva: nada, no documento, autoriza a interpretação de que as virtudes não sejam também filosóficas. Elas o são e, no acordo sempre vasto em que se coloca com o ensino oficial da Igreja, Francisco reconhece esse dado explicitamente. Mas as virtudes cristãs não são só filosóficas. São antes de tudo práticas e até mesmo concretas e sociais.
Isso poderia ser interpretado como mero discurso, se a ética não fosse tão mais importante para a Igreja Católica do que é, por exemplo, para os protestantes. A existência de uma doutrina social da Igreja, associada à interpretação concreta e ao significado prático que Francisco atribui às virtudes, permite entender que ele vê “a fé que opera pelo amor” (Gl 5:6) como um ministério fortemente contextualizado no tempo e no espaço. Até mesmo como a resposta a uma situação social dada e muito bem delimitada.
Que situação é essa? É principalmente a pobreza. Devo admitir que interpreto um pouco extensivamente a Exortação Apostólica. Que, porém, nos resta fazer, ao analisar o primeiro escrito de fôlego de um novo Papa, a não ser procurar reter-lhe mais o espírito do que as palavras, sem as atraiçoar, é claro? É o que procuro realizar neste breve texto.
Diz a Exortação: “São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’ (Gal 5,6). As obras de amor ao próximo são a manifestação mais perfeita da graça interior do Espírito”. Cita, em seguida, um trecho de São Tomás consagrado pela Unitatis redintegratio, no Concílio Vaticano II: “Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias”. E conclui: “É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar [...] Se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da palavra de Deus” (FRANCISCO. Evangelii gaudium. Cap. II, III, 37).
A ênfase na hierarquia das virtudes tem significado peculiar. Que virtude Francisco entroniza sobre as demais? A misericórdia, que é o amor no momento particular em que se volta para a miséria. A escolha da misericórdia não é casual. É parte integrante da opção preferencial pelos pobres, até mesmo a sua justificação. A opção não extrai sua base da teologia dogmática, mas da ética que se conecta a ela. Para a misericórdia se situar no topo das virtudes, é preciso que os miseráveis tenham o primeiro lugar,na lista de destinatários da mensagem cristã: “A Igreja há de chegar a todos, sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, àqueles que não têm com que retribuir (Lc 14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”  (idem. Cap. II, V, 48).
Precisamos lembrar que a Igreja crê-se depositária de dois bens divinos: o evangelho e a lei natural. Sem isso, não entendemos os porquês do seu ensino. O evangelho exige que o foco da pregação eclesial seja posto na graça, que é de novo lembrada, e bem, por Francisco: “A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há ação humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a si” (idem. Cap. III, 1, 112). Porém, essa misericórdia que Deus exerce ao salvar é, ao mesmo tempo, o fundamento da lei natural, que a Igreja está incumbida de pregar.
Por isso, sem se desviar da graça, apurando-se, o foco da pregação é posto na misericórdia e, por meio dela, nos pobres. Não pensemos um único instante que a Igreja creia que esse ajuste fino do foco decorra de uma escolha dela própria. Decorre antes da lei natural. Aos pobres deve ser dispensada atenção preferencial, porque essa é a ordem natural das coisas. Embora Francisco não o reafirme, creio que esse ponto não está só implícito, mas constitui o próprio fundamento da urgência que ele deposita no ministério aos pobres e necessitados.
Como Jesus pronunciou os ais de Mateus 23 sobre as mazelas do seu tempo, Francisco proclama uma série de nãos no seu documento: não à economia da exclusão (idem. Cap. II, I, 53-54), não à idolatria do dinheiro (idem. Cap. II, I, 55-56), não ao dinheiro que governa, em vez de servir (idem. Cap. II, I, 57-58), não à desigualdade social que gera violência (idem. Cap. II, I, 59-60). Vejamos algumas passagens em que esses nãos são desenvolvidos.
“Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão.” Exclusão não é o mesmo que exploração: “Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são explorados, mas resíduos, sobras” (idem. Cap. II, I, 53).
A doutrina social da Igreja, em que Bergoglio se escora o tempo todo, foi desenvolvida por causa da pobreza. É uma resposta a ela, que veio se somar ao assistencialismo milenar da Igreja Católica. O caráter benigno dessas iniciativas não pode ser suficientemente exaltado. Mas, desde que abandonou o terreno apenas assistencial, para desenvolver uma doutrina ética sobre a pobreza e os modos de combatê-la, a Igreja passou a atuar, cada vez mais, no território das lutas sociais. A esse ponto levou-a a crença no depósito da lei natural.
Respeito, mas não compartilho esse ponto da fé da Igreja. O que não significa que exclua do rol de consequências da fé o cuidado dos pobres e, mais amplamente, as preocupações sociais. Cada vez mais, sinto-me distante daquela forma de fé sobre a qual perguntamos: “Qual é a sua relação direta com a atualidade?” E nos vemos constrangidos a responder: “Nenhuma”. Esse é um problema imenso, no mundo evangélico, em que os católicos não incidem no mesmo grau.
Incidem, porém, numa concepção superada da lei natural oriunda do período patrístico. A concepção trai uma doutrina do pecado original que tem algo de exagerado. Agostinho afirmou que a natureza humana foi totalmente corrompida pela queda. Nada persiste nela que agrade a Deus. Seja, até pelo sentimento de dívida que temos para com Agostinho. Mas seja em termos. Paulo afirma que “o homem é a imagem de Deus” (1Co 11:7), no presente, não que ele o foi, no passado.
Se a natureza humana se corrompeu, tornou-se carne de pecado (Rm 8:3), algo divino permaneceu no homem:a imagem de Deus manifesta na razão, que o inspira a cumprir a lei de Deus (Rm 7:22,25). Pergunto em que parte se encontra esse elemento e só consigo responder que na natureza do próprio homem, que é antes de tudo racional. Portanto, se a natureza humana se corrompeu, com a queda, não o fez totalmente. Algo divino permaneceu nela.
Esse quê de divino reflete-se, também, na sociedade. Por causa dele, não devemos deixar de mitigar o pessimismo que o pecado de Adão inspira também no tocante à sociedade humana. Mas a ideia de pecado original herdada de Santo Agostinho impõe à Igreja a conclusão de que a sociedade está corrompida, de modo tal que nada resta de bom na sua natureza. A Exortação de Francisco exala essa concepção em cada linha. Por mais que conclame os cristãos ao otimismo, ela faz essa atitude depender, o tempo todo, do sentido que Cristo dá à sociedade humana. Não, também, do que há de intrinsecamente racional e até mesmo divino na sociedade.
Por mais que teólogos importantes, inclusive romanos, se esforcem para mitigar a concepção de pecado original de Santo Agostinho, e o esforço é um fato, o Catecismo da Igreja Católica não labora na mesma direção. Afirma, em consonância com o teólogo antigo, que “o pecado [original] é transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais” e que “a Igreja ministra o batismo para remissão dos pecados mesmo às crianças que não cometeram pecado pessoal” (Catecismo da Igreja Católica. 6ª ed., São Paulo: Paulinas, Vozes, Loyola e Ave Maria, 1993. p. 101). Para que o ministra, a não ser para o fim claro, que Agostinho atrelou ao batismo, de livrá-las da morte eterna? Disse aquele teólogo que “as crianças não batizadas são levadas desta vida para a morte eterna” (HIPONA, Agostinho de. O dom da perseverança. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2002. p. 245). Não é, pois, sem razão que o Catecismo sustenta que "a doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original adquiriu precisão sobretudo no século V, em especial sob impulso da reflexão de Santo Agostinho” (Catecismo da Igreja Católica. 6ª ed., São Paulo: Paulinas, Vozes, Loyola e Ave Maria, 1993. p. 102). Assim foi e nada mudou até hoje.
Por esse e outros motivos, não posso deixar de me precaver contra o que, na condenação do capitalismo por Francisco, ecoa o pessimismo a que a doutrina do pecado original induz. Diz o Papa: “A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano” (FRANCISCO. Evangelii gaudium. Cap. II, I, 55).
Seja, de novo, mas em termos. É claro que a paixão pelo dinheiro é um grande mal e se tornou comum. Mas a ideia de que o dinheiro é mau por natureza só parece opôr-se a ela. Na verdade, é outro grande mal, um corolário da ideia de que a sociedade está a tal ponto corrompida que, só pela redenção de Cristo, o dinheiro e os outros elementos dela podem tornar-se bons. O amor a Mamon deve ser curado por outro remédio, não por essa pajelança.
Creio que há algo, na natureza da sociedade, como ela existe hoje, que é bênção. E que não convém, de modo algum, ignorar esse fato. Como a matéria não é má em si mesma, o elemento a que me refiro tampouco o é. A misericórdia de Deus não é menos concreta que a nossa. É o que observamos, ao longo de toda a História, já que ato após ato, por misericórdia e a mais funda filantropia, Deus preservou o reflexo da sua imagem na sociedade. Desconfio que esse seja, até mesmo, um dos pontos culminantes do otimismo cristão, um dos pressupostos que permitem torná-lo significativo num mundo transfigurado.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Livre Exame de Romanos (20): O Remanescente

O quadro das divisões ocorridas ao longo da História leva os cristãos a se perguntarem que ramos da enorme árvore de igrejas representam a comunidade que Jesus fundou. Não raro, a resposta oferecida à pergunta exige que uma igreja seja suficientemente antiga ou tenha vínculos claros com igrejas antigas para ser considerada legítima.
Por um instante, isso pode parecer insensato aos que pensam que não adianta uma igreja existir há muito tempo, se abandonou a fé dos apóstolos. Contudo, os defensores do critério da antiguidade não o pretendem aplicar a comunidades apóstatas, mas apenas às que professam a fé dos apóstolos. Assim utilizado, o critério faz mais sentido, por duas razões: desautoriza qualquer divisão não baseada numa necessidade e impede que a igreja seja refundada, sob pretexto dos erros ocorridos nela. Nesses casos, a antiguidade ergue barreiras à desunião e à presunção.
Todos concordam que a igreja cristã deve ser identificada pela fé no evangelho. Romanos confirma esse ponto de vista, mas o faz de modo diferente daquele pelo qual os cristãos costumam responder a pergunta sobre a igreja. De fato, ou os cristãos afirmam que os limites da igreja são invisíveis, por coincidirem com a fé dos seus integrantes, ou os associam a uma instituição, como a Igreja Católica.
A ideia de Paulo em Romanos é diferente. Por um lado, ele enfatiza a suficiência da fé como critério de determinação dos limites do povo de Deus. Por outro lado, trata esse povo, o tempo todo, como Israel. Quer dizer que o povo é uma descendência, uma linhagem histórica, não corações crentes que não sabemos a quem pertencem por formarem uma igreja invisível.
Como judeu, Paulo concebe Israel em termos genealógicos. Esse modo de pensar está implícito na palavra povo, que ele utiliza em vários versículos. Para o homem antigo e Israel em particular, todo povo era uma descendência. Não é diferente com o Israel espiritual, que Paulo também considera uma estirpe, linhagem ou descendência.
É correto definir esse povo, Israel, com base na fé. Paulo o faz e com grande ênfase. Mas é importante lembrar que a fé muito genérica não define bem Israel. No versículo 7, o povo de Deus é tratado como o conjunto dos filhos de Abraão. Isso significa que ele começou com esse patriarca. Portanto, não é qualquer fé, mas a fé de Abraão que o define.
Adão não creu na promessa a Abraão, pelo motivo óbvio de que a promessa não existia na sua época. As promessas de Deus a Adão não são idênticas, em conteúdo, às que ele formulou a Abraão. Se fossem, Paulo teria construído Romanos 4 e 9, bem como o Livro de Gálatas sobre Adão, não sobre Abraão. Mas ele os construiu sobre Abraão. Por outro lado, se Adão tivesse recebido promessa tão gloriosa quanto a de Abraão, Paulo não teria feito referências sempre tão negativas a ele, em Romanos 5 e 1ª aos Coríntios 15. Para que eclipsar promessa tão radiante de Deus, vinculando Adão ao pecado, como Paulo faz nesses capítulos?
Em Romanos 11, Paulo se refere ao povo de Deus como uma árvore cuja raiz é constituída pelos patriarcas (11:16). Reafirma, assim, o que diz no capítulo 9, a saber: que Israel existiu a partir dos patriarcas. Isso não significa que Adão e seus descendentes anteriores a Abraão não tenham sido salvos. Em Hebreus 11:4-7, lemos que Abel, Enoque e Noé tornaram-se aceitáveis a Deus pela fé. Porém, nesse mesmo capítulo, nenhuma promessa é citada, até Abraão e Sara entrarem em cena. Sobre eles, diz o autor bíblico: “Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu [...] Pela fé, também, a própria Sara recebeu o poder para ser mãe, não obstante o avançado de sua idade, pois teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa [...] Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas” (Hb 11:8,11,13).
Portanto, se Adão e Noé receberam promessas de Deus, elas não devem ser equiparadas às que foram formuladas, mais tarde, a Abraão, Isaque e Jacó. As promessas a Adão e Noé foram de salvação; as que foram feitas a Abraão, Isaque e Jacó foram também fundadoras do povo de Deus. Por isso, os que creram nas promessas, antes de Abraão, serão introduzidos no povo de Deus no futuro, mas não fizeram parte dele no passado.
Para Paulo, o povo de Deus, Israel, situava-se entre Abraão e a sua própria época. Mas, se assim é, não faz sentido os cristãos travarem tantos conflitos, a fim de estabelecerem qual é a legítima igreja de Cristo. O Israel de Deus é a única igreja e começou com Abraão.
Característica importante da igreja é a antiguidade. No entanto, devemos conceber essa antiguidade em toda a sua extensão. A Igreja de Roma é antiga. Tem peso e importância por isso. Mas Israel é muito mais antigo que ela. E, se é absurda a pretensão de fundar ou refundar a igreja, no nosso próprio tempo, devemo-nos integrar à que existiu desde o princípio, isto é, a Israel.
Quando Jesus declarou “Tu és Pedro e sobre essa rocha edificarei a minha igreja” (Mt 16:18), não quis dizer que a igreja cristã seria edificada sobre Pedro. No capítulo 11 de Romanos, Paulo compara a igreja a uma oliveira. Pedro é um ramo dessa oliveira, não sua raiz. Não faz sentido pensar que a oliveira deve crescer sobre ele, mas sobre as raízes.
Nenhum ramo tem o direito de se gloriar sobre outros: “Não te glories contra os [outros] ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti” (11:18). Acaso essa exortação não se aplica também aos ramos naturais? Não se aplica, em particular, a Pedro como ramo natural da oliveira? Um ramo atribuir-se importância superior à de outros é sinal de soberba: “Dirás: Alguns ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Bem! Pela sua incredulidade foram quebrados; tu, porém, mediante a fé estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme” (11:19-20).
Está claro que Paulo identifica o povo de Deus com Israel e, por isso, o localiza quase inteiramente no passado. Não faz sentido pensarmos nesse povo como uma coletividade centrada no bispo de Roma. Pedro não tinha sequer se estabelecido em Roma, quando Paulo escreveu Romanos, como se depreende da ausência de qualquer referência a ele na carta. No entanto, o povo de Deus é mencionado como já existente. Quando diz “nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (9:7), Paulo quer dizer que o povo de Deus vem de Abraão, portanto é tão antigo quanto ele.
Quando travam tão grande conflito, a fim de estabelecer qual é a legítima igreja, os cristãos esquecem-se de que o povo de Deus antecede a encarnação do Verbo. Não há solução de continuidade na sua existência. Existiu no Antigo Testamento e continua a existir até hoje. Por isso, se a intenção de fundar ou refundar esse povo denota soberba, devemos recuar ao passado para encontrá-lo, porém não ao passado que interessa a essa ou àquela igreja em particular, mas a um passado suficientemente longínquo para constituir a origem dele. Devemos recuar ao tempo da raiz da oliveira.
Nenhum recuo menor do que esse é suficiente. Porém, o recuo é dificultado pela afirmação de Paulo de que “Israel que buscava a lei de justiça não chegou a atingir essa lei [...] Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). Só uma minoria de judeus, um remanescente, acreditou em Cristo: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo” (9:27). A nação como um todo, a maioria do povo e dos líderes, rejeitou a Cristo. E, se isso ocorreu, como devemos realizar o necessário recuo a Israel, a fim de nos integrarmos ao povo de Deus em toda a extensão necessária?
Sobre esse grave problema, Paulo se debruça nos capítulos 9 a 11. E não o faz por motivos estritamente judaicos, mas como algo de interesse também dos gentios. O interesse dos gentios por Israel decorre de o povo de Deus continuar a ser Israel. Não o Israel que foi rejeitado, mas o “que o é interiormente, cuja circuncisão é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (2:29). Que se passou com esse Israel?
Paulo o responde, com base numa série de profecias do Antigo Testamento: “Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada à que não era amada; e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo; ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo” (9:25-26). Aplica esses versos claramente aos gentios, mas prestemos bastante atenção, pois o faz de modo a identificá-los com Israel. Ou alguém pensa que o povo que Deus chama seu, em Oseias, é algum outro? Não é outro, mas o próprio Israel.
Oseias prediz um milagre: pela fé, os gentios tornar-se-iam Israel. Mas, para que o fariam, a não ser para seguirem a fé de Israel? Os gentios tornarem-se Israel tem o propósito de que Israel seja a regra de fé para eles. E, se Israel se perdera, integrar-se a ele só podia significar integrar-se a um remanescente: “Ainda que [...] Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo”.
Esse remanescente, que não dobrou os joelhos a Baal (11:2-4), tornou-se o padrão para a igreja de Deus. A quem seguimos hoje? A Jesus, mas por meio dos judeus Pedro e Paulo. Por meio de João e Tiago. Mas, assim como só nos miramos em Lucas enquanto reflete Paulo, imitamos Pedro enquanto permanece judeu. O Pedro católico nada tem de judeu. É o bispo de Roma, o primeiro Papa, uma autoridade ocidental. Que Igreja esse Pedro encabeça? A que se formou na Idade Média, regida pelo Direito Canônico e pela teologia medieval. Não a igreja que é Israel.
Dos dons feitos por Deus à humanidade, o remanescente judeu é o mais precioso depois do Verbo encarnado. Mas, como é próprio dos dons mais excelsos, ele se dissipou quase sem deixar rastros. A geração dos Doze passou, sem que outra semelhante a sucedesse. Além do que está no Novo Testamento, temos muito pouco a respeito dela. Os católicos creem que Pedro deixou uma cátedra. Mas, se isso tiver ocorrido, e há dúvidas, a cátedra se fez um império medieval, e isso é certo. Apartou-se de tudo o que se assemelha a Israel e, do ponto de vista criado por essa inovação, rege até hoje boa parte dos cristãos. Claro que nada disso nos permite identificar, na Igreja Católica, a autoridade espiritual que ela se atribui.
Paulo trata esse assunto como um grande mistério: “Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério” (11:25). Não mereceria o nome de mistério, se fosse um tema nacional e terreno. Mas, exatamente por ser mistério, é pouco palpável. Temos dele não mais que um conhecimento precário. Da ofuscante visão do cometa que enche de luz o céu, ao passar, restou-nos o brilho que emana das páginas do Novo Testamento.
O brilho é, porém, uma regra tão forte quanto a que o navegante deriva do astro que o orienta. Descoberta por milagre a seus olhos, dada a distância que os separa, essa luz não é muda. Fala-lhe e até mesmo lhe ordena: “Esse é o caminho. Segue-o.”
Deus nos deu instituições, mas não muito grandiosas. Agradou-lhe governar a noite pela luz em extinção de um povo remanescente. Não abrasará mais o céu para a vermos. Quer, ao contrário, que a nossa visão dependa mais da atenção com que olhamos do que da intensidade da luz. “A candeia do corpo são os olhos” (Mt 6:22). A luz mensageira está dada. Vê-la depende do nosso olhar.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Os Franciscos (1): O Homem de Assis

O impacto da mensagem cristã deve muito ao otimismo que ela trouxe à luz, num tempo em que as filosofias discutiam arduamente a felicidade, sem o menor acordo quanto ao que poderia significar e sobre como devemos viver para alcançá-la. Se esse encontro da pergunta com a resposta cristã sobre a felicidade for enfocado e todas as questões teóricas forem postas de lado, estaremos perto de compreender por que o evangelho pôde triunfar sobre as doutrinas que circulavam na mesma época e se impor como verdade a tantas pessoas.
De modo paradoxal, num mundo que alcançara progresso e paz nunca vistos, era difícil olhar para o Império, para o mare nostrum e encontrar motivo de esperança. Nunca a força tinha provado reger de modo mais inconteste o mundo do que naquele tempo em que se podia viajar longas distâncias em estradas construídas pelo engenho humano.
O Império Romano não era regido pela bondade, mas pelo poder. Verdade é que, ao mesmo tempo, ele impusera o triunfo da razão em escala nunca antes vista, por meio do seu direito. Mas, já por ter sido imposta, a razão do direito romano não correspondia precisamente ao domínio do bem. Ainda que acreditemos que Roma tornara impossível a condenação de qualquer homem livre sem que as suas razões fossem consideradas por juízes, é ingênuo pensar que o império do direito, como eles o tinham desenvolvido, se resolvesse em outra coisa que não a força. Ter sido imposto, como já disse, é sinal bastante de que o direito romano refletia o poder e até mesmo a força. Para o provar, nem precisamos lembrar que, quando recomendou a submissão às autoridades, o apóstolo Paulo as retratou por meio da espada: “A autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; pois não é sem motivo que ela traz a espada” (Rm 13:4).
Que traduzia a espada, a não ser a imposição do direito? E esse prodígio de força, que tinha a ver com a bondade? Como olhar para o universo romano com otimismo, se a força o regia com tamanha astúcia e espreitava pronta a explodir sob a forma de brutalidade? Se um estado de espírito preparou, portanto, o mundo para a fé cristã, ele se exprime por meio de tais perguntas. E, apesar do seu trato com o pecado e a culpa, o euangélion (as boas-novas) de Cristo veio a ser a resposta perfeita para o suspiro que as perguntas induzem.
Mas, apesar de o evangelho ser as boas-novas, ao longo da História, poucas pessoas foram capazes de captar tão bem o inerente otimismo cristão quanto Francisco de Assis. A razão desse otimismo, como se sabe, é o retrato de Deus estampado em Cristo. Esse retrato é quase o de um Deus risonho. E, se o amor se exprime mais em entranhas do que em carnes e risos, na ternura do coração de Jesus, vemos ainda melhor o mistério de Deus encarnado.
No entanto, são necessárias pessoas para se apropriar desse amor. E poucos o fizeram como Francisco de Assis. O apóstolo Paulo foi um desses poucos, embora os sábios de hoje o vejam mais como um sanguinário que a conversão transformou em dogmático. Outros também o lograram, sem dúvida. Não se trata de estreitar a lista de exemplos até reduzi-la a um nome. Mas é justo destacar a peculiaridade de Francisco.
É impossível conhecer Deus fora do amor. E é impossível conhecer o amor sem sentir suas formas primordiais. A criação é uma dessas formas, pois mostra, acima de tudo, que o Deus que se basta dá-se às criaturas. Francisco o entendeu do modo mais entranhado, como se nota num conhecido cântico que compôs: “Louvado sejas, Senhor meu, junto com todas tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol, que é o dia e nos dá a luz em teu nome”! E continua: “Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã lua e as estrelas, as quais formaste claras, preciosas e belas / Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão vento, e pelo ar, pelas nuvens e o céu claro, e por todos os tempos, pelos quais dás às tuas criaturas sustento / Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta / Louvado sejas, Senhor meu, pelo irmão fogo, por cujo meio a noite alumias, ele que é formoso e alegre e robusto e forte / Louvado sejas, Senhor meu, pela irmã, nossa mãe, a terra, que nos sustenta e nos governa, e dá tantos frutos e coloridas flores, e também as ervas” (ASSIS, Francisco de. Cântico das Criaturas).
Se Deus é amor, suas obras são antes de tudo amáveis. Por isso são ditas nossas irmãs. Essa é uma verdade que, nas palavras de Pascal, não se funda em razões da razão e sim do coração. Mas nós, homens, somos tão tardos em entender tais razões! Os cães consideram os homens seus melhores amigos, mas somente as crianças lhes retribuem o amor. No homem feito, o amor é uma nostalgia que se aviva de raro em raro. Não, porém, em Francisco. O coração do santo ardia em amor, pois descobrira esse amor na criação, e a criação, em Deus.
O canto prossegue: “Louvado sejas, Senhor meu, por nossa irmã, a morte corpórea, da qual nenhum homem vivo pode fugir.” Acaso louvar a Deus pela morte não é atestar a própria insanidade? Para quem tem a morte por inimiga, sim, porém não para alguém que a tem como irmã. Se os estudiosos afirmam que a famosa Oração de São Francisco é um texto anônimo, nenhuma frase, nenhum pensamento, nenhum trecho de introspecção converge tanto com o Cântico das Criaturas quanto o que se encontra na última linha da popular oração: “E é morrendo que se vive/ Para a vida eterna”. A morte é amiga e irmã, se por ela se entra na vida eterna.
Mas a morte de Adão não é um castigo? Deus não o castigou por haver pecado, ao dizer-lhe: “Tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19)? Como podemos amar um castigo? Mas a palavra castigo talvez não descreva tão bem a morte de Adão. Mais que castigo, ela é um rito de penitência, o momento em que a alma assume, em definitivo, o arrependimento de seus pecados. Tertuliano conclui seu livro sobre a penitência com as palavras: “O primeiro, na estirpe humana e na ofensa, Adão, foi restaurado pela exomologese [penitência] no paraíso” (Tertuliano. La penitencia. Madri: Ciudad Nueva, 2011. p. 159). Essa restauração se deu pelas palavras a respeito da morte que Adão ouviu, após ter pecado. Mais que castigo, elas foram o remédio prescrito para acompanhar o seu arrependimento.
Se a criação é o amor em dores de parto, o trato de Deus com o pecado não é outra coisa. Claro que haverá um castigo para os ímpios, mas só após terem rejeitado essas duas ofertas de amor: a da criação e a da redenção. A cruz não foi a primeira oferta de amor de Deus. Paulo disse: “O Deus vivo fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles”. E mostrou em seguida a oferta divina de misericórdia: “Nas gerações passadas ele permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos” (At 14:15-16). Em Atenas, pregou: “Deus fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra” e arrematou: “Não levou Deus em conta os tempos da ignorância” (At 17:24,30). A criação foi a primeira oferta de amor de Deus. A segunda oferta não tarda: “Agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam” (At 17:30). A grandeza de Francisco consistiu em ter entendido a natureza e a cruz como ofertas do amor divino.
Leonardo Boff refere-se ao amor expresso na criação ao escrever: “Como chegou S. Francisco a esta simpatia íntima com todas as coisas? Primeiramente porque S. Francisco fora um grande poeta, um poeta não romântico mas ontológico, vale dizer, um poeta capaz de captar a mensagem transcendente e sacramental que todas as coisas proclamam” (BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis – ternura e vigor. 7ª ed., Petrópolis: Vozes, 1999. p. 51).
A Oração de São Francisco não é considerada autêntica pelos especialistas. Só foi descoberta no século XX, o que é já um primeiro indício de que não foi composta por ele. Mas de tal forma se ajusta ao seu espírito que foi publicada, em 1912, à frente de um retrato do santo. Por isso ficou conhecida como Oração de São Francisco. E por que não a usar para melhor entender a vocação daquele homem?
A súplica “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz” ecoa Isaías e é digna do trecho em que ele clama “Senhor, envia-me a mim” (Is 6:8). Sintetiza a consagração a Deus, a vida que se faz dom, mas dom muito especial, pois “quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja retribuído?" (Jó 41:11; Rm 11:35). Ninguém oferece algo a Deus. Deus dá a si mesmo a consagração do homem. Por isso Davi exclamou, ao dedicar as ofertas para a construção do Templo: “Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos te damos” (1 Cr 29:14).
O dom de Deus é inequívoco. Não tem por finalidade pagar o mal com o mal. "Ouvistes que foi dito aos antigos: Olho por olho, dente por dente" (Mt 5:38). Mas já não há lugar para isso. A nova súplica é “Onde houver ódio que eu leve o amor”! Mas como? Para que levar o amor aos que odeiam? Para que me matem?  Talvez, mas que eu leve o amor de qualquer maneira. Esse amor entranhado não conhece barreiras ou condições. Busca contra todas as barreiras e condições. É o amor do homem que perdeu a ovelha, da mulher que perdeu a dracma e do pai cujo filho o deixou. É o amor que caminha de braços abertos na direção de quem segura o punhal.
O amor de Deus não paga o ódio com o ódio. Não retribui a ofensa com a ofensa, mas com a redenção. Não extirpa o desespero multiplicando os motivos de desesperança. Não troca a tristeza em dor. Não dissipa as trevas, a não ser com a luz. Esse é o amor de Cristo. O amor do Deus que é amor.
"Ó Mestre, fazei que eu procure mais/ Consolar que ser consolado/ Compreender que ser compreendido/Amar que ser amado". São palavras de todo celestiais, pois exprimem a graça. O amor de Deus é um dom. Se não fosse, não teria sido dito: "Fazei que eu procure". Não adianta o homem aumentar o seu próprio amor, assim como não lhe aproveita ter justiça própria. Se há uma sabedoria terrena, animal, diabólica (Tg 3:15), há também uma justiça e um amor terrenos, animais e diabólicos: são aqueles que o homem põe no lugar da justiça e do amor de Deus. Melhor que realizar essa troca do verdadeiro pelo falso, é pedir a Deus que nos faça o dom da sua justiça e do seu amor.
O amor que Deus inspira é puro, mas não de uma pureza desumana. Não é um amor que não pensa em si ou que não se preocupa com a própria felicidade. Nenhum homem vive sobre a Terra sem o anseio de felicidade. Seria desumano o amor que o inclinasse a tal ponto ao próximo que o fizesse esquecer-se de si. E, por ser desumano, esse amor seria falso e fingido. Mas a oração nos inocula contra a falsidade, “pois é dando que se recebe/ É perdoando que se é perdoado/ E é morrendo que se vive para a vida eterna”.
Não damos apenas por dar, é a expressão da verdade. Somos homens, não deuses. Damos por dar, mas também para receber. Esse é o bem como Cristo o ensina ao homens. O bem que não é só bem, nem só sacrifício, mas também felicidade. Essa é a diferença específica do bem que o evangelho introduz. Por um lado, não é um bem que se confunda com o puro prazer, mas por outro não é um que suponha poder sobre-humano. O bem que o evangelho traz é o que é também felicidade.
Francisco acostumou-se a esse bem sublime e, nele, encontrou os tesouros da felicidade. Certa vez, já célebre e renomado, foi achado num canto do salão em que se conduzia o velório de um Papa. Notaram-no, mas não se surpreenderam. Nada havia de incomum em o fundador de uma ordem religiosa comparecer a Roma em momentos solenes. Mas se surpreenderam, horas depois, quando o cansaço esvaziara o salão a ponto de o julgarem deserto até encontrarem, no mesmo canto e com a mesma dor, o infalível irmão Francisco.
Jesus é Deus na História. Francisco é um homem exemplar da História. E, se o é por ter renunciado aos bens e se identificado com os pobres, permitam-me dizer que o é ainda mais por ter sido o homem que assumiu plenamente a sua condição. Como é difícil ao ser humano ser simplesmente ele mesmo! Deseja ser anjo, heroi, semideus, qualquer outra coisa. Assim se aliena. Erra o caminho na vida. Como é difícil ao homem assumir plenamente a sua condição, sem fingimentos, disfarces, fraudes ou qualquer espécie de falsidade, inclusive a da falsa glória! Francisco, porém, mostrou-nos o que é ser digno da humanidade, ao assumir sem pudor o seu próprio nada, nele achar Deus que é todas as coisas e, por meio de todas as coisas, a felicidade.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A Filosofia Perene (13): A Fé e a Antropofagia

A importância da dúvida para o conhecimento humano é tão vasta que não estou certo de que a levamos suficientemente a sério. O proveito que podemos haurir da dúvida não decorre do simples fato de duvidar, assim como os benefícios de pensar não advêm de pensar de qualquer maneira, mas de pensar consistentemente. Pensar todos pensam. Nem por isso pensam bem. Também duvidar todos duvidam. Pouco ou muito, não é o que mais importa: só extraímos da dúvida o que ela tem de mais precioso quando duvidamos com consistência.
Mas que significa duvidar com consistência? Esclarecer este ponto foi o objetivo da presente série. Quis sugerir que a Lógica não pode ser entendida como uma disciplina só do saber e do concluir, mas também do duvidar. Como a conclusão, para ser consistente, deve sujeitar-se a regras lógicas, o duvidar também o deve. Procurei mostrar que a dúvida consistente é a que se sujeita a certos princípios, assim como o que estabelece a relação entre a própria dúvida, a fé e o conhecimento, a passagem da dúvida temporária à permanente e a de ambas à descrença.
Assim como pensar bem não é o mesmo que pensar muito, duvidar com consistência não é duvidar sempre ou muito. Não é morrer abraçado à dúvida como a uma bandeira. Tampouco é endurecê-la até a transformar em descrença. Pelo contrário, duvidar consistentemente é saber passar da dúvida à fé e da fé à dúvida, por um movimento dialético. Mas para isso é indispensável conhecer as regras do duvidar.
Consideremos a dúvida introduzida pelo paradoxo de Zenão. Quando descreve a corrida entre Aquiles e a tartaruga como uma série de reduções da distância à metade, o paradoxo distrai-nos do fato de que a corrida pode ser indiferentemente descrita como reduções da distância a qualquer fração: 1/3, 7/19, 22/100. Passada, porém, a distração, não vemos como admitir que a representação matemática do movimento seja equivocada. Que pode ser mais claro que ela? Se o movimento entre dois pontos não for uma redução da distância a frações, a Matemática não pode ser utilizada para descrever fatos físicos, pois toda Física supõe exatamente isso. Portanto, o problema do paradoxo não se estende só a Aquiles e sua rival, mas a toda a Física. Newton, Einstein, Bohr e Heisenberg não podem estar certos, se a Física não passa pela prova do paradoxo.
Mais do que isso: se a representação matemática  padece de inconsistências, como o paradoxo sugere tão fortemente, nenhuma outra descrição lógica do movimento é possível, pois todas seguem o feitio matemático. Em outras palavras, o problema que o paradoxo coloca é muito mais profundo do que parece à primeira análise.
Dúvida tão fundada e com aplicação tão vasta quanto essa ameaça inviabilizar toda a Física e todo o conhecimento dos sentidos. Mas exatamente por isso, o intelecto não se conforma em perpetuá-la. Sente a necessidade de resolvê-la, pois interrogação assim tão básica não apenas faz rodar a cabeça como torna a vida impossível. E em que podemos dissolver a dúvida suscitada pelo paradoxo, a não ser na fé? Até o mais empedernido cético crê que a Matemática descreve consistentemente a Física. Crê que a incongruência entre o conceitual e o empírico não invalida a utilização do primeiro para descrever o último, como demonstrado pela nossa real necessidade de pensar o movimento em termos matemáticos.
Assim, na instância fundamental do pensar, quando se defronta com as dúvidas axiais, o intelecto percebe que a descrença e a perpetuação da dúvida deixam de ser opções. Só a fé mostra-se funcional, pois só ela é capaz de garantir a higidez mental e a sobrevivência do próprio indivíduo.
São Boaventura escreveu: “Se a verdade não existe, é verdade que não há verdade. Portanto, há verdade”. Já se disse tudo sobre esse arrazoado, mas o seu significado claro, salvo melhor juízo, é de que a verdade acompanha todo o pensamento. Não é possível pensar e se ausentar da verdade. Outra máxima célebre prova que até o falso é, de certo modo, verdadeiro. Ao dizermos “Este enunciado é falso”, não provamos que a falsidade só é falsa enquanto verdadeira? Portanto, a verdade é um dado fortíssimo do pensamento.
Mas enunciados abstratos como esses só têm validade no campo do pensamento formal. Nada provam fora dele. Não provam que a cadeira para que olho é preta. Ela é ou não é preta independentemente de ser verdade que há verdade, pois o plano empírico se diferencia de modo absoluto do conceitual. Consequência disso é que a onipresença da verdade que extraímos do dito de Boaventura aplica-se apenas ao plano conceitual, não ao dos sentidos. Por isso, ela não torna nem um grau mais verdadeiro o conhecimento dos sentidos.
De onde vem, pois, a verdade desse conhecimento? Em que bases é possível sustentar que a revelação dos sentidos é verdadeira? Se a verdade abstrata não se aplica absolutamente aos sentidos, estes só podem ser verdadeiros em si e por si. Aquiles não é capaz de ultrapassar a tartaruga, porque é possível reduzir a frações cada vez menores a distância que o separa dela. A verdade empírica não depende da matemática. Aquiles pode ultrapassar a tartaruga, porque, em muitos casos, um ser mais veloz ultrapassa efetivamente um mais lento. A observação de um fato é o único fundamento da possibilidade de ele se repetir.
No entanto, esse conhecimento não é absoluto. E por que não o é? Porque observamos que os sentidos podem falhar e frequentemente falham. Porque os dados que coletamos por meio deles têm tal irregularidade. Somente por isso podemos duvidar de um conhecimento empírico.
Toda confirmação e toda refutação de conhecimentos empíricos depende da falibilidade intrínseca dos sentidos. Como Bertrand Russell sugeriu, podemos usar a matemática tanto para confirmar como para infirmar enunciados empíricos. Mas só o podemos se, além da matemática, utilizarmos o próprio conhecimento dos sentidos.
A irregularidade interna dos sentidos é a base de toda a dúvida empírica. O conhecimento desse plano seria absoluto como o do ser, se apenas e tão-somente não fosse tão irregular. Mas ele o é. E são os próprios sentidos que o demonstram. Enquanto o conhecimento da razão é saturado de verdade, o dos sentidos é saturado de variações e de erros.
Claro que a refutação de um enunciado empírico pode ser realizada com base na observação do que acontece, ao passo que a confirmação de enunciados é sempre provisória, pois não é possível vasculhar o Universo inteiro em busca da sua refutação. Por isso, a verdade empírica é sempre e também provisória. Mas de modo nenhum essa provisoriedade nos autoriza a afirmar, com Kant, que o noumeno (o objeto empírico) é desconhecido.
Nossa imagem do mundo surge em etapas. A primeira é a da recepção da energia que os objetos desprendem, em conformidade com as leis naturais. A recepção se dá durante a percepção, que é a representação mais objetiva possível ou, se o preferirmos, a representação do primeiro grau.
Essa representação primeira é idêntica ao que o objeto é para nós, pois é a própria energia que se desprendeu dele e se transportou ao sistema nervoso. E, por ser objetiva, ela é, em grande parte, um produto das leis naturais e as reflete. Não é um produto das categorias ou de outras representações abstratas, nem as reflete.
O ato de ver, ouvir ou sentir não se sujeita a categoria alguma. Ele se estrutura e se forma, unicamente, com base nas leis naturais. Ver é ver o material que chega ao órgão da visão em conformidade com essas leis. A realidade é, portanto, regida por leis naturais, não por categorias. Por isso, mesmo quando os objetos parecem assumir formas outras, como as das próprias categorias, é preciso reduzi-los, de novo, àquelas leis.
Claro que esse processo de percepção está sujeito a falhas e erros. Mas as imperfeições são menos frequentes nele do que nas etapas seguintes da representação. Daí o peso da representação primeira, na formação e transformação da nossa imagem do mundo, ser maior que o das representações das outras etapas. Nosso conhecimento deve mais à percepção do que às representações que a sucedem, pois a adota como critério supremo.
Na literatura religiosa, o ato de ver é oposto à fé. Andar por fé é o contrário de andar pela vista. Porém, isso se deve à objetividade muito maior do conhecimento dos sentidos do que à ausência de qualquer medida de fé nele. Ao mesmo tempo em que se opõem, a fé e a visão se implicam. Crer é não ver o objeto crido, mas é ver alguma coisa. Antes de ter sido detectado, o bóson de Higgs (a partícula de Deus) era crido, porque muita coisa tinha sido vista que exigia a sua existência. A fé é, pois, um balanço entre o ver e o não ver. E o contrário também é verdade: o ver é um misto de fé e conhecimento. Não há no conhecimento o que não o seja.
Depois da percepção, têm lugar a preservação de informações abstratas dos objetos e o processamento delas, de modo a produzir nossa imagem do mundo. Enquanto a representação de primeiro grau é o objeto destacado do que o circunda, a de segundo grau consiste no que o sujeito destaca do objeto, como as ideias de árvore, de cão e de lâmpada. E a de terceiro grau é uma espécie de totalização das informações coletadas anteriormente, a exemplo das categorias.
As representações do segundo grau são muito mais distantes do objeto do que as do primeiro. E as do terceiro grau o são ainda mais, pois não apenas prescindem de uma enorme quantidade de dados individuais das coisas como procuram representar porções cada vez mais vastas da realidade.
Claro que a transformação do conhecimento, da objetividade da percepção à imprecisão das categorias e suas espécies, assim como as cores, não pode deixar de inspirar dúvidas e mais dúvidas. A imagem humana do mundo não é construída sem que uma profusão de dúvidas seja produzida. Mas tampouco o é sem que um bom número dessas dúvidas seja suspenso por meio da fé. A dúvida dá sempre lugar à fé, e esta, ao menos enquanto se mantém razoável, também dá lugar à dúvida.
As representações do segundo e do terceiro graus não são cópias ou reproduções do real. Mas tampouco são recriações arbitrárias dele. Parecem-se mais com representações imprecisas, porém significativas do conjunto da realidade. 
Vimos que a dúvida incide, intensamente, em todas essas etapas do conhecimento. Podemos dizer que ela se manifesta, na medida em que a observação se faz insuficiente. O problema é que a insuficiência é ingênita à observação. É o seu pecado original. Observar é ver, ouvir ou sentir de modo insuficiente para ter certeza. Por isso, a dúvida é sempre simultânea ao conhecimento, e a fé, à dúvida.
A dúvida é o prelúdio que a orquestra da mente toca ao anunciar a fé. É a música que introduz e inspira a melodia celeste da crença. Vivemos num tempo que perdeu toda noção desse fato. Num tempo que deseja parar o prelúdio, sem saber que fazê-lo é, no fundo e ao cabo, parar a própria mente.
Após o fatídico, o doloroso 11 de setembro, Sam Harris começou a escrever The end of faith, com o objetivo de anunciar e apressar o que o título do livro propõe. Alguns anos depois, Michael Shermer lançou Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas (São Paulo: JSN, 2011) e Cérebro e crença (São Paulo: JSN, 2012). Há consideráveis diferenças entre os três livros. Todos, porém, insistem nas insuperáveis desvantagens de acreditar. Já não se trata de criticar apenas a fé religiosa, mas toda forma de fé. Trata-se de arrancar a erva daninha inteira do solo, ainda que numa escala de tempo evolucionária. Pergunto-me se o único modo de o fazer não é acabar com o próprio pensamento, parar a orquestra da mente, proibi-la de tocar prelúdios e todas as outras músicas.
The end of faith é um manifesto antropofágico, como o de Oswald de Andrade. Chega à bizarra conclusão de que devorar-se é a consequência final da ciência e de que roer o pensamento é o máximo desenvolvimento que a cultura humana pode alcançar. E esses homens intitulam-se brights!
Só se traduzirmos brigths como iluminados. São, sim, os novos iluminados, os Jim Jones da descrença, pregadores de olhos arregalados e com razão: uma assombração segredou-lhes que é preciso criar o começo com o fim. Desse Dilúvio só emergirão os próprios iluminados, não no alto de uma montanha, é claro, mas no topo de algum pedestal.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Livre Exame de Romanos (19): A Eleição de Deus



Após discorrer sobre a condenação universal e a salvação de judeus e gregos realizada por Deus em Cristo, Paulo não dá sua exposição do evangelho por encerrada. Passa a enfrentar o duro fato de que uns recebem essa salvação e outros, não. Enfrenta-o, em particular, no seio do seu próprio povo, Israel: “Tenho grande tristeza e incessante dor no coração; porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne” (9:2-3).
Paulo tem esse cruel sentimento, por causa dos judeus que não receberam Cristo como o Messias e o Filho de Deus e que, por isso, não foram salvos: “Israel que buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por quê? Porque não decorreu da fé, e, sim, como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço” (9:31-32). 
Seria muito fácil explicar a rejeição dos judeus só pelas obras. Paulo já havia estabelecido a condenação universal. Havia também mostrado que Deus, em Cristo, provera o remédio para essa situação. Seria consequente, da sua parte, afirmar que, se alguém rejeitasse o remédio, continuaria com a moléstia e morreria dela, isto é, que tanto os judeus como os gregos incrédulos permaneceriam sob condenação.
Mas Paulo não adota o princípio das obras e sim o da graça. Por meio de Cristo, Deus salva gratuitamente o homem perdido nos seus pecados. E, se assim é, como explicar o fato desconcertante de que alguns não abraçam a fé e permanecem na condenação? Se não vem do homem crer no evangelho, pode vir dele o não crer?
Fiel ao seu princípio de exposição, Paulo não vacila em enfrentar essa dificuldade do mesmo modo como lidara com a justificação, ou seja, olhando-a pelo ângulo de Deus e não do homem. Como a salvação procede de Deus, não é diferente, em princípio, com a rejeição do evangelho. O ato de Deus escolher a uns implica o de não escolher a outros, pura e simplesmente.
Assim, a rejeição do evangelho pelos que não creem é descrita como o resultado de uma predestinação negativa. Repito que isso está implícito no fato de Deus escolher alguns para serem salvos. A eleição implica a não eleição. Por isso, os que não foram escolhidos para serem salvos foram destinados à rejeição e a permanecerem sob condenação. Paulo chora e deplora esse fato, mas o aceita, pois nada pode fazer para mudá-lo, se Deus sumamente bom não pôde. Paulo pode ter “grande tristeza e incessante dor no coração”, e estamos certos de que Deus também as sentiu, mas nada é possível fazer quanto a isso.   
Precisamos, porém, introduzir uma diferenciação entre a predestinação positiva e a negativa, isto é, entre a predestinação à glória e à perdição. A primeira é absoluta. Não admite, por isso, o menor contraste. Nenhuma obra humana, seja interna, do coração, seja externa, do comportamento, pode ser causa da salvação. Isso porque a salvação é a concessão de um dom divino, e o divino é incomensurável, incomparável com qualquer coisa humana. Ou Deus o concede esse dom ao homem, ou ele permanecerá totalmente inacessível. Porém, quando entramos no campo da predestinação negativa, o contrário se torna verdade. A Bíblia afirma, o tempo todo, que o ímpio perece por causa das suas obras. A morte é o salário do pecado (6:23), não o dom gratuito de Deus. Isso exige uma reformulação da doutrina, no tocante à predestinação negativa. Essa modalidade de determinação deve consistir num condicionamento e não no estabelecimento de um destino inescapável. As circunstâncias da vida do pecador são condicionadas de maneira a incliná-lo à perdição, porém ela pode ser evitada, mediante o arrependimento.   
Isso não significa que o pecador possa alcançar a glória a que Deus predestina seus eleitos. Se essa glória é inalcançável por meio das obras, ninguém a pode lograr pelo arrependimento, mas apenas pela eleição divina. Porém, deve haver destinos e estados eternos que não se confundem com a bem-aventurança à qual Deus predestina, nem com a perdição. Esses destinos intermediários, que não equivalem ao purgatório, são uma consequência necessária da doutrina da predestinação como Paulo a formula em Romanos.
Deus não tem de que se queixar, se alguns o rejeitam em razão de um decreto imutável dele próprio. Mas não ter de que se queixar não é o mesmo que não sentir “grande tristeza e incessante dor no coração”. Podemos crer que Deus as sentiu e sente. Dirão: mas se sente, por que não escolheu os que rejeitam o evangelho para serem salvos também? Seria tão fácil para Deus pôr fim a essa tristeza...A resposta de Paulo é que seria fácil, mas não justo. Ele pergunta: “Há injustiça da parte de Deus?” E responde: “De modo nenhum” (9:14). Podemos, pois, responder o questionamento sobre a não eleição dos que se perdem, admitindo que seria fácil para Deus sobrepor sua vontade à deles, mas não o faz porque não é justo. Dirão por acaso que essa explicação nos leva de volta às obras? Leva, de fato, mas a Escritura diz, todo o tempo, que o ímpio perece pela sua impiedade, isto é, pelas suas obras. Só não diz que o justo se salva pela sua capacidade, mas por um dom de Deus.
Podemos, pois, admitir que, em algum ponto e de alguma maneira, a justiça obriga Deus a não ouvir a “grande tristeza e a incessante dor no coração”. Sei que os adversários dessas ponderações não se contentarão com a minha explicação. Dirão insaciáveis: por que não ouvir a tristeza e a dor, em vez de a justiça? Diante disso, só nos resta replicar: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (9:20).
A tristeza e a dor pela perdição de alguns não devem obstruir o caminho da justiça de Deus, que consiste em estender a muitos o mérito de um só. O Universo tem todos esses motivos de lamento. Mas eles não devem parar a história da salvação. Nem nos devem levar a desassociar a salvação da graça e a associá-la às obras. Paulo paga o alto preço da tristeza e da dor para manter a verdade basilar da graça.
E vai buscar na Escritura o fundamento para a sua posição: “Ainda não eram os gêmeos [Esaú e Jacó] nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já lhe fora dito: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (9:11-13). Paulo vê o amor e o aborrecimento de Deus como sinais de eleição. Deus amou porque escolheu, não escolheu porque era amável. Aborreceu, porém, Esaú, porque era digno de aborrecimento.
A indignidade de Esaú aparece com todas as letras em Hebreus 12:16-17: “Não haja algum impuro, ou profano, como foi Esaú, o qual, por um repasto, vendeu o seu direito de primogenitura. Pois sabeis também que, posteriormente, querendo herdar a bênção, foi rejeitado, pois não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o tivesse buscado”.
Esses versos alijam Esaú completamente da bênção a Israel. Excluem-no não por ter dado origem a outra descendência, mas por não ser parte de Israel em espírito, isto é, por não ter o coração circuncidado. Um homem assim, ainda que busque a bênção com lágrimas, não um só dia, mas mil, não a alcançará, pois não possui o princípio necessário para alcançá-la. Esse princípio é a eleição de Deus.
Notem que Esaú cria em Deus. Mas essa fé era uma construção sua. Não vinha de Deus. Não era um dom divino. Portanto, nem mesmo a fé, como gênero, basta para garantir a bênção de Deus. O que basta é a fé que é dom. Em Apocalipse 3:14, Cristo é chamado o Amém. Nenhum vocábulo simboliza tanto a fé nas promessas de Deus quanto esse que se pronuncia ao final de toda palavra inspirada. No entanto, o amém não está em nós, não vem de nós: é o próprio Cristo. Dele é a fé que Esaú não possuía.
Assim Paulo responde a inquietação sobre a eleição dos santos, que implica a dos incrédulos. Assim ele demarca com força, no chão da própria casa de Isaque, o campo dos que se salvam e o dos que não se salvam. É levado a isso pela contemplação do terrível espetáculo da incredulidade dos judeus. Paulo olha para tantos compatriotas, amáveis sob outros aspectos, e chora a sua incredulidade. Olha, por outro lado, para si, para os outros apóstolos e para os judeus cristãos e diz: há também vasos de misericórdia. Na mesma casa, ele vê “vasos de ira, preparados para a perdição” e “vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (9:22-23).
Não vacila em escrever desses últimos: “os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (9:24). Ao observar a piedade sincera em alguns, Paulo não se reprime: admite-a como sinal de eleição. Chama vasos de misericórdia os que têm o coração repleto dessa piedade. Isso pode parecer preconceituoso, na medida em que tantos outros são excluídos por ele de idêntica condição. Mas é consistente com o princípio em que toda a exposição de Romanos se baseia. Esse princípio é o da evidência empírica. Paulo escreveu Romanos 1 a 3 constrangido pela impiedade que grassava no mundo à sua época. Mas, se admitia o fato evidente da impiedade, por que Paulo não admitiria a piedade de outros? Por que deveria olhar para os ímpios e reconhecer que eram ímpios e olhar para os justos e calar que eram justos?
A evidência da piedade existente no mundo levou Paulo a identificar os vasos de misericórdia como determinadas pessoas. E não há erro algum nisso. Só não devemos pensar que a identificação tenha validade absoluta. Podemos considerar alguém um vaso de misericórdia hoje e amanhã concluir que não é. O conhecimento dos vasos de misericórdia é essencialmente provisório. Só se sedimenta após longo tempo. Para usar a linguagem de Santo Agostinho, só podemos ter certeza de quem perseverará até o fim, após ter perseverado.
Quando se refere à bênção introduzida pelo evangelho, Paulo tem em vista a vida eterna em glória. Afirma que Deus dará a vida eterna aos que procuram glória, honra e incorruptibilidade. Lembra que a criação aguarda a glória e a liberdade da glória dos filhos de Deus (8:19,21). E que aqueles a quem Deus, de antemão, conheceu e predestinou também os chamou, justificou e glorificou (8:29-30). Por fim, reitera que os vasos de misericórdia foram preparados para a glória (9:23).
A salvação tem em vista um fim, que é a glória, a não salvação, outro fim: a perdição (9:22). Embora especulemos, não sabemos como será a glória a que o apóstolo se refere. E, se há algum equilíbrio na revelação de Deus, tampouco sabemos em que consistirá a perdição dos ímpios. Sobre esse ponto, é preciso fazer reinar um prudente silêncio.
Mesmo assim, aquilo que não sabemos o que é estamos certos de que virá. O Livro de Apocalipse, ao revelar-nos “as coisas que hão de acontecer” (Ap 1:19), não nos confunde com uma série de julgamentos finais e uma série de paraísos vindouros, mas apresenta um só juízo e uma só Nova Jerusalém. Isso torna absolutamente claro que não haverá mais do que dois destinos finais para os que viverem até aquele momento.
Esses destinos constituem um limite importante para os purgatórios localizados no futuro. Não há lugar, no pensamento de Paulo ou no Apocalipse, para tais lugares intermediários. Talvez por isso, por volta do ano 150 d. C., tenha vindo a lume um livro chamado O pastor de Hermas, que trata do arrependimento dos cristãos que retornaram ao pecado. A lição do livro é de que essas pessoas podem alcançar estados os mais diversos e receber tratamentos também diversos de Deus. Porém, isso acontece no período em que a igreja é edificada, não no tempo de vida de cada pessoa na Terra.
Talvez o mais significativo sobre O pastor de Hermas tenha sido a acolhida que teve no meio cristão, durante os primeiros séculos. Muitas igrejas incluíram o Pastor no rol das Sagradas Escrituras para mais tarde excluí-lo, não sem razões. Porém, a ideia fundamental da obra continuou a ser aceita por muitos e discutida por um número ainda maior. E não pode haver dúvida de que ela constituía um novo desdobramento do problema enfrentado por Paulo em Romanos 9: se a salvação é pela graça, que envolve a predestinação, torna-se difícil admitir que todos os eleitos que recaem em pecado sejam restaurados antes da morte. No entanto, o próprio Paulo não se manifestou sobre esse ponto. Nunca houve silêncio mais eloquente...