Ernst Troeltsch defendeu a ideia de que Lutero foi um homem da Idade Média. E, em vários assuntos, ele de fato o foi. Ninguém muda um tempo em todos os seus aspectos relevantes, nem se engaja de modo integral no que é novo. Pensar o contrário é alimentar ilusões e exigir das personagens revolucionárias um vanguardismo sobre-humano.
Mas, apesar de seu manifesto interesse pela Teologia, Troeltsch talvez a tenha visto pelo reduzido ângulo de observação em que o nosso tempo a contempla, pois não restam dúvidas de que, no aspecto central da sua obra (o teológico), Lutero pertence à Modernidade e pode ser arrolado como um dos seus fundadores.
Para isso não ser verdade, seria necessário que Lutero não houvesse sido decisivo para revolução teológica alguma, o que certamente não é o caso. Às vezes, embaça a vista o fato de o Protestantismo que o seguiu ter negado ensinos fundamentais de seu fundador, como o livre exame e o sacerdócio universal, mas a responsabilidade pela negação deve ser debitada aos seus pósteros e aos herdeiros de Lutero, muito mais do que a ele próprio.
Em suma, numa visão afoita, pode parecer que, desde o princípio, o Protestantismo foi autoritário e fundamentalista, porém, com maior sobriedade, é possível separar Lutero (Melanchton, Zuínglio, Calvino e outros) e seus continuadores. Claro que, em questões como a Revolta Camponesa, Lutero adotou posições autoritárias, o que se debita à sua herança medieval, embora não seja fácil discernir se o fez por um ranço arcaico ou por entrever, nas arruaças dos revoltosos, práticas incompatíveis com a estabilidade não apenas da ordem posta, mas de toda a sociedade da época, o que seria diferente e tornaria a sua posição mais compreensível.
O que está claro é que Lutero foi, antes de tudo, um libertário, um apaixonado pela liberdade, cuja vida não coube no status quo religioso. A esse amor ele aliou um traço de intrepidez incomum, no homem médio, de ontem e de hoje, o que por si só explica boa parte dos acontecimentos que o envolveram. Claro que sempre haverá quem discorde disso. Estamos no território movediço das interpretações. Mas, quando olhamos Lutero de dentro para fora e não apenas a partir de fora, seu amor à liberdade e intrepidez ganham grande relevo e explicam, sim, boa parte dos fatos em que se envolveu.
Como todos os racionais, libertários também sabem em quantas ocasiões precisam contemporizar e fazer ceder seu amor à liberdade. Sabem que não são onipotentes e precisam recuar, aqui e ali. Mas não peçam a um libertário que acomode o pescoço ao jugo. Ele preferirá morrer a fazê-lo.
Esse tipo foi Lutero. Ele entendeu que uma libra era diferente demais de uma liberdade. Por isso, ao perceber que o preço cobrado por Tetzel, o vendedor de indulgências à sua região, não se calculava em libras, mas em liberdades, revoltou-se. Na ocasião, ceder pareceu-lhe o mesmo que depositar docilmente o pescoço num jugo, o que se pede e obtém de muitos, não porém de um libertário. O resto já o sabemos. Sabemos o que sucedeu em seguida. Mas tendemos a perder de vista que tudo teve relação com o sentimento indômito de liberdade de Lutero.
A liberdade é, quase sempre, aguda nos poetas. Pergunto-me se o próprio verso não é uma forma criada e escolhida para permitir a vazão desse sentimento e dos outros, cujos grilhões ele rompe. E se o desacorrentamento do amor, da amizade, do protesto, da contestação, do repúdio, da ira, da generosidade etc. não é obra da liberdade. Desconfio que sim e que, se a forma perfeita para isso, não é o verso, é por certo a poesia. A liberdade que não se ajusta ao verso assimila-se à poesia. Nela e somente nela, esse sentimento desacorrenta os demais, seus irmãos. Liberta o amor, o descontentamento, o arrebatamento, a sublimação, entre tantos. Em verso ou em prosa, toda poesia é de fato libertária, e só uma inversão muito grande pode pô-la a serviço de uma dominação.
Claro que a liberdade encontra temperamentos tíbios e destemidos. É por ambos servida, mas muito melhor pelos últimos. A conjugação da liberdade com a intrepidez, mais que as ideias que elas servem juntas, é quase sempre o que deflagra as genuínas revoluções. Foi assim também na Reforma e, exemplarmente, no caso de Martinho Lutero, que foi um genuíno poeta da Teologia. Da conjugação de sentimentos reunidos em Lutero, não explodiu uma obra típica da Idade Média, mas algo nunca antes visto.
Afirmar que as ideias teológicas foram a causa da Reforma é errar grosseiramente. Os sentimentos o foram, liderados pela liberdade, que foi indômita o bastante para não ser esmagada e conduzir a uma autêntica emancipação. No entanto, embora costume reger outros sentimentos, a liberdade liga-se mais umbilicalmente a alguns que a fazem ser liberdade disso ou daquilo. Por exemplo, liberdade de tomar parte numa decisão, de se locomover, de plantar, de colher, de comprar, de vender, de acumular, de fazer e de se abster de fazer, de se associar e se desassociar, de falar e calar. Liberdade de crer, de pensar, de amar e de detestar. Todas essas liberdades emanam da especial associação a outros valores.
A liberdade que moveu Lutero, de modo primordial, não foi a de crer, mas a de amar. Amar a verdade cristã, e só por isso crer nela. Se tiver sido o poeta que penso que foi, o artista que escreveu em prosa, mas também compôs versos, Lutero terá sido um poeta lírico. Quando exaltado, o sentimento de liberdade que move um poeta de tal estirpe tende à iconoclastia. Com abalo, ele sente que nenhum ídolo é a verdade da coisa que retrata, mas a sua aparência. É um simulacro que, amado, escraviza e impede o espírito de alcançar aquele objeto. Ao impor a perda da verdade, portanto, o ídolo agride o sentimento de liberdade do poeta e desperta a iconoclastia. Que dizer do poeta teológico!
Elias não foi movido por outro sentimento, ao combater o culto a Baal. Nem João Batista, ao renunciar ao sacerdócio hereditário para vociferar no deserto contra os pecados do povo. Embora o primeiro tenha subvertido um culto pagão, o último alterou uma instituição considerada santa. No fundo, os dois removeram simulacros. Lutero também rachou um ídolo que, como o de João, tinha aparência santa, mas não real santidade: as obras do esforço humano. E o fez porque elas anulam a suficiência da fé para a salvação. Como a fé pode ser suficiente para garantir a graça de Deus, se as obras são consideradas necessárias para a salvação? Se por meio da indulgência o indivíduo pode ser salvo do purgatório ou mesmo do inferno?
O sola fide nunca significou que o indivíduo é salvo pela fé, mas só pela fé. Na época de Lutero, significou, especialmente, que ele era salvo sem indulgências, esmolas, sem a aparência de que o sacramento se reveste e sem a própria Igreja hierárquica.
O sola fide é, pois, um grito de liberdade, um ato iconoclasta. Só deixa de o ser quando o apelo à fé, que é comoção com a verdade, passa a ser um apelo à sua aparência (ao consentimento a um credo ou a uma disciplina). Isso ocorreu, muitas vezes, na esteira da Reforma Protestante.
Na encíclica Libertas, o Papa Leão XIII exprimiu o conceito católico de liberdade, em conexão com a lei natural entendida como expressão da razão. Nas suas palavras: “Todo ser é o que lhe convém segundo a natureza. Por isso quando se move segundo a razão, é por um movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é a essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isto que “aquele que comete pecado é escravo do pecado” (LEÃO XIII. Libertas. Disponível em www.vatican.org).
A Reforma, enquanto movimento desenvolvido até o meado do século XVI, aproximadamente, sempre foi incompatível com essa ideia católica de liberdade, derivada da Suma teológica de São Tomás de Aquino. No claustro de um mosteiro agostiniano que seguia a filosofia de Occkham e não a de Tomás, é que ela foi concebida. Por isso, foi, desde o início, uma mescla de ideias de Occkham e de Agostinho. Do primeiro, extraiu o conceito de um Deus que se move por uma vontade soberana, não pela razão. Por exemplo, para Guilherme de Occkham, Deus não criou o Universo em conformidade com uma razão necessária, mas de acordo com a sua vontade. Tampouco o criou com base na lei eterna ou na natural.
O sola fide não deixa de ser expressão dessa concepção geral de Deus. Por que Deus salva por fé e não por obras? Porque assim deliberou fazer. E por que a salvação é efeito de uma predestinação? Porque não se atém ao mérito da pessoa ou mesmo à sua fé, mas ao decreto soberano de Deus. Esse decreto é expressão da vontade divina, não da sua razão. Claro que tal doutrina não surge, em Lutero ou nos outros reformadores, diretamente de Occkham, sem mediação de Santo Agostinho. Realização peculiar da Reforma foi, exatamente, essa mediação, que nem Lutero, nem Calvino, nem outros receberam pronta.
O mais importante, na doutrina assim concebida, é a ideia de liberdade que lhe subjaz e que deu vazão ordenada ao sentimento indômito já mencionado. Essa ideia surgiu da forja do occkhamismo medieval. Por isso, em todos os passos decisivos, não se reportou a uma razão natural ou abstrata, mas à vontade soberana de Deus.
Como a Reforma a concebeu, tal vontade não é o que costumamos chamar arbítrio, antes resulta da natureza divina, que é amor e não tem na razão sua fonte, mas uma forma de expressão. O próprio decreto de predestinação de Deus, como Efésios 1:5 nos diz, não se originou da razão, mas do bom-prazer ou beneplácito de Deus. Ou acaso esse verso afirma que Deus “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo a sua reta razão?" Não diz, antes, “segundo o seu beneplácito”?
Se admitirmos que a compreensão da graça, por Santo Agostinho, nada mais é que a afirmação da doutrina bíblica da salvação ou a que mais se aproxima dela, não será difícil percebermos a alta inspiração por trás de sua associação ao occkhamismo, forjada por alguns reformadores. A fundação do cristianismo na liberdade ligada à razão é, ao contrário, um forte motivo para tornar a fé acessória. Que tem a fé de racional? Alguma coisa, por certo, mas não muito. Do contrário, não seria fé. E, se não tem muito de racional, a fé não se pode calcar na razão de Deus, mas na sua vontade, desígnio e predestinação.
A doutrina católica da liberdade, porém, tem na razão seu parâmetro. Mas que é a razão, para os católicos, a não ser o ensinamento da Igreja a respeito dela? Para serem conhecidas, a razão e a lei natural têm de ser decretadas, sob pena de os homens não serem capazes de as descobrir ou de concordar a respeito delas. O que está na natureza do homem, quando muito, é uma razão abstrata, que não tem conteúdo concreto, nem aplicação prática. O que passa disso tem de ser decretado para se tornar universal. No caso da lei natural e da razão em que se baseia, como não estão esclarecidas na Bíblia, quem as decreta é a Igreja.
Pode ser que, do alto de sua inspiração, Leão não tenha pretendido retirar da sua doutrina da liberdade essa consequência extrema. Talvez tenha sido sua intenção manter o conhecimento da lei natural difuso nos órgãos da Igreja, porém, na prática, as coisas jamais funcionaram assim. Para serem conhecidas, a razão e a lei natural têm de ser decretadas, sob pena de os homens não serem capazes de as descobrir ou de concordar a respeito delas. O que está na natureza do homem, quando muito, é uma razão abstrata, que não tem conteúdo concreto, nem aplicação prática. O que passa disso tem de ser decretado para se tornar universal. O problema é que, ao ser assim centralizada, a doutrina católica tende a se converter, simplesmente, em servidão à Igreja.
Não é diferente no meio protestante atual, em que, a despeito do discurso sobre o livre exame, a doutrina sempre converge para os Credos oficiais. Que seria do pobre crente, na sua denominação, se dissesse como Aristóteles: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (“Platão é amigo; mas amiga maior é a verdade”)? Se dissesse que “o Credo é amigo, mas maior amiga é a Bíblia”, com o objetivo de seguir uma interpretação contrária ao Credo? Não seria ele constrangido, pelos mais diferentes métodos, a conformar-se à profissão de fé da sua Igreja? Não seria, essa prática, uma nova forma do primado da razão conformadora? E não haveria, em tal caso, servidão ao Credo?
O problema é que essas duas concepções de liberdade, a católica e a protestante tardia, que se seguiu aos reformadores, não correspondem à liberdade bíblica. Ambas estão ancoradas na razão ditada por uma Igreja. No caso dos católicos, a situação é menos grave, pois eles creem na inspiração divina da Tradição e da Bíblia. Não há, pois, contradição entre a sua crença e a afirmação eclesiástica da recta ratio e da lei natural. Mas os protestantes não admitem tais coisas. Caem, pois, em contradição quando elevam as interpretações de suas Igrejas ao patamar da própria Bíblia.
Perguntamos, enfim, se a liberdade cristã, como vivida hoje, é de fato liberdade ou servidão. Achamos nesse um dilema formidável, que explica a contrarrevolução atual dos não crentes, que não enxergam liberdade no que é tão uniforme, tão padronizado, nas nossas Igrejas. E não conseguem, consequentemente, aceitar um evangelho que produza esse resultado. Por um lado, não chegam a ver a liberdade bíblica, por outro não aceitam a sua contrafação. E a nós, não nos cabe perguntar se trocamos a liberdade revelada por uma imitação?
domingo, 30 de junho de 2013
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Livre Exame de Romanos (11): A Visão de Mundo de Paulo
Há séculos, a Teologia sustenta que Deus é onipresente, que ele “enche tudo em todas as coisas” (Ef 1:23). Mas Deus não está em toda parte por acaso ou por não ter o que fazer. A lição bíblica é de que ele criou o espaço, com o fim deliberado de ocupá-lo.
Porém, embora claro, esse dado introduz um problema: por que Deus quer ocupar o vazio? Acaso ele ama o nada? As respostas a essas perguntas não são tão óbvias quanto podem parecer. Não faz sentido pensar que Deus ocupa o espaço infinito por amor ao nada. E não ajuda afirmar que ele o faz para criar seres vivos e se relacionar com eles. Se é Todo-Poderoso, Deus poderia criar seres vivos, sem produzir um espaço infinito e vazio. De sorte que, se o Universo é um enigma, o espaço parece constituir o ponto nevrálgico dele. No século XX, a ciência descobriu que o espaço não é vazio, mas preenchido por criaturas que, de tão pequeninas, não são percebidas e, na maior parte do tempo, não são sequer detectáveis. Mais do que isso: as criaturas que formam o espaço são os blocos fundamentais de tudo o mais, já que tudo contém espaço. Até a matéria mais sólida, vista ao microscópio, é quase inteiramente vazia, e esse vazio, esse nada, essa geometria interna, é o que lhe confere a estrutura que possui.
À luz de revelações como essas, podemos refletir de maneira nova sobre Efésios 1:23. Podemos pensar que Deus não ocupa o espaço para assistir às interações da energia que o constitui, mas para determiná-las. Não nos dizem as Escrituras que Deus criou e conserva todas as coisas? Que ele se importa com o Universo e intervém, no seu interior, para fazer cumprir seu propósito eterno? E, se assim é, não deve Deus intervir, também, nas interações fundamentais do espaço, com base nas quais o Universo é estruturado? A Bíblia parece indicar, com efeito, que Deus tudo enche para estruturar todas as coisas.
Essa visão de mundo é vertiginosa. No Areópago, Paulo declarou que, em Deus, nós “vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28). Isso significa que Deus preenche a inteira esfera, em que a nossa existência se desenrola. Significa que ele preenche o mundo todo, sem ser o mundo todo. De modo nenhum podemos pensar que ele o faz sem motivo. Devemos, antes, entender que Deus preenche todas as coisas para as sustentar e formar o mundo em constante formação.
Os autores bíblicos e Paulo, em particular, viam o Universo físico impregnado de sentido divino. Para o apóstolo, a redenção de Cristo não só eliminava o pecado do homem como reconciliava com Deus “todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus”, isto é, o Universo inteiro (Cl 1:20).
A imputação, como Paulo a apresenta em Romanos, aplica-se ao homem, justifica-o e remove seus pecados. Porém, em outras passagens, verificamos que os seus efeitos se irradiam pelo Universo todo. Por esse motivo, embora seja uma doutrina da salvação humana, a imputação é ao mesmo tempo uma visão de mundo, uma chave para a interpretação do Universo. Assim devemos tomá-la.
“E, para ser o cabeça sobre todas as coisas, [Deus] deu [Cristo] à igreja, a qual é o seu corpo” (Ef 1:22-23). O plano de Deus não consiste só em preencher todas as coisas e em estruturar o Universo, por meio disso, mas em encabeçar todas as coisas, nos céus e na terra, em Cristo. Esse encabeçamento não é do Universo todo, mas especialmente dos seres livres, que podem submeter-se ou ser submetidos a ele.
Assim, se o preenchimento de todas as coisas por Deus é a moldura geral do Universo e se ele é revitalizado pela reconciliação de tudo com o Criador, o encabeçamento dos seres racionais é o quadro propriamente dito, a razão de ser específica do Universo. Romanos nos mostra que o objetivo desse encabeçamento só é alcançado, por meio da imputação. Só é alcançado, porque Deus renova o significado de todas as relações cósmicas ao lastreá-as em Cristo.
A validade dessa visão, para a qual Paulo contribuiu com o elemento decisivo da imputação, até hoje não precluiu. Nem toda a ciência pôde mostrar que a visão é equivocada. Tampouco é ufanista afirmar que a ciência comprovou parte da visão. Resumidamente, portanto, a Bíblia nos informa que o Universo não é obra do acaso, que ele foi criado, conservado e estruturado por Deus para que o encabeçamento das criaturas racionais em Cristo tivesse lugar.
Nesse vasto contexto, é que a linguagem judicial de Romanos transmite a verdade real, não simbólica, sobre a salvação humana. A ela se liga outra linguagem, que nos comunica a verdade simbólica da salvação. A presença das duas linguagens se torna patente, quando Paulo afirma: “Se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (5:10).
A reconciliação por meio da morte de Cristo é uma verdade real (há quem prefira dizer literal). A salvação pela sua vida é uma verdade simbólica, já que não temos tal vida literalmente. Isso nos conduz à conclusão de que, no que tem de real e de nuclear, a salvação ocorre por imputação, mas esta é representada simbolicamente pela filiação natural.
Em outras palavras, para retratar com cores mais vivas o fato da imputação, tanto Paulo como o autor de 1ª de João recorreram ao símbolo da geração de filhos. É o que está implícito na expressão “salvos pela sua vida” e também nos versículos “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus e todo aquele que ama ao que o gerou, também ama ao que dele é nascido” (1 Jo 5:1) e “Aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes, aquele que nasceu de Deus o guarda, e o maligno não lhe toca” (1 Jo 5:18). Em todos esses casos, a metáfora é usada para reforçar e ilustrar a consequência da filiação imputada ao homem por Deus.
A vida mencionada em 5:10, pela qual somos salvos, é a de Cristo. Portanto, é a vida de Deus. Mas sermos salvos pela sua vida não é o mesmo que nascermos de Deus, do modo como Cristo nasceu. O nascimento divino de Cristo lhe é exclusivo. Por isso, quando 1ª de João afirma que somos nascidos de Deus, sua linguagem é simbólica. O símbolo que utiliza é extraído do ensinamento comum das múltiplas gerações e emanações do divino. Esse ensinamento era fundamental tanto no judaísmo helenista como no platonismo e no gnosticismo. Por meio dos judeus helenistas, penetrara, inclusive, na Palestina.
No contexto desse ensino comum e disseminado, portanto, não surpreende encontrarmos as múltiplas gerações divinas também entre os cristãos. Só não podemos concluir, daí, que a geração é real, isto é, natural. No Areópago, Paulo declarou que a humanidade é “geração [de Deus]” (At 17:28-29). E, em Lucas 3:38, o próprio Adão é chamado filho de Deus. Nem por isso, devemos concluir que Adão e seus filhos nasceram de Deus ou têm a vida divina. E, se eles não nasceram de Deus, nem possuem a sua vida, que mão haverá de inserir, na geração dos crentes,o traço diferencial do nascimento de Deus?
A doutrina da imputação real ajusta-se maravilhosamente à visão de mundo bíblica. Mostra que Deus, que criou, sustenta e estrutura todas as coisas, não busca só louvor para si, mas salvação para o homem. E isso não por meio da força, mas da fraqueza de Cristo, na cruz, e da imputação de eficácia salvadora a ela. Os primeiros cristãos perceberam que, assim aclarada, a representação bíblica do Universo é muito diferente da de todas as outras religiões. Nenhuma fé jamais apresentou um quadro tão coerente ou tão realista do Universo. Nenhuma constituiu um acréscimo ao conhecimento acumulado, durante séculos, sobre o Universo, por meio do estudo e da observação. Só a visão de mundo cristã tem essas características.
O realismo maior dessa arrebatadora visão fez com que, desde o princípio, ela concorresse menos com a religião grecorromana do que com as filosofias racionais da antiga Grécia e do período romano. Pouco vemos autores cristãos debaterem mitologia; vemo-los discutir a compatibilidade ou não da fé cristã com a Filosofia. O próprio Paulo discutiu com os filósofos, em Atenas. E não foi por outro motivo que, até a Reforma, o Novo Testamento foi progressivamente entendido e explicado com ajuda da Filosofia.
Estou a afirmar que a fé cristã é um racionalismo? Longe de mim tal propósito. A fé é um modo de vida com Deus baseado na oração, mas tanto a oração como a fé são interiorizações da palavra de Deus e não existem sem ela. Ora, a palavra é logos, não um transe profético em que se perde a razão. Como logos, ela nos apresenta Deus de modo compatível com o Universo.
O que há de real, na experiência dos místicos, é a relação com Deus, não a participação que creem possuir na vida divina. Pela imputação de justiça, entramos em relação real e próxima com o Criador e Conservador de todas as coisas nos céus e na Terra: na relação específica de filhos dele. Nesse sentido, oramos e devemos orar a Deus. Nesse sentido, temos comunhão com ele. Mas o que vai além disso é equívoco. A mística da coincidência do crente com Deus é um equívoco, pois reduz a nitidez da visão de mundo bíblica e atenta contra a sua verdade.
Ao longo de toda a História, vemos os povos em busca de uma visão geral do mundo. Porém, até o advento da Filosofia, tudo o que a humanidade alcançou, nesse caminho, foi o senso comum de cada época. O que devemos convir que é pouco, pouquíssimo, considerando o modo de ser do mundo.
A ciência contemporânea nos deu muito mais, é verdade. Mas não nos deu o essencial. O espaço se expande? A matéria se auto-organiza? Sim, a ciência o provou. Mas, se isso ocorre, por que não ocorreu antes? Por que não ocorreu, se os elementos do mundo são eternos, como ela supõe, e um tempo infinito esteve à disposição para que tivesse lugar? Em que pese o desenvolvimento científico, o materialismo não tem melhores respostas para essas perguntas, hoje, do que tinha no primeiro século. As explicações científicas cessam nesses pontos fundamentais, por absoluta falência, comprometendo a visão de Universo do homem contemporâneo.
Sobre esses pontos, resta o que sempre restou: as religiões e a Bíblia, que desde o princípio pareceu tão peculiar e diferenciada dos outros livros sagrados. Nela, vemos a criação do Universo, o pecado e a imputação da justiça ligarem-se numa ampla visão de conjunto. Em Gênesis, temos a criação; nos quatro Evangelhos, a redenção. Entre eles, situa-se a lei, o pecado e a ira, como Paulo tanto enfatiza. A ira de Deus é a rejeição da criação por ele, não quando o homem pecou, mas quando o pecado avultou por meio da lei.
No entanto, o aborrecimento de Deus não é como o do homem. Não vai de mal a pior. Na plenitude do tempo, Deus tudo mudou, enviando seu Filho para salvar o mundo. E o Filho, cooperando com o Pai, ofereceu-se, na cruz, em remissão de todos os nossos crimes. Com base no seu sacrifício, Deus renovou relações com toda a sua criação e o homem em particular.
Alguém dirá que isso não se passou? Que Jesus não morreu pelos nossos pecados? Mudem a História, e acreditarei. Mas será difícil mudá-la. Uma verdade formada por imputação não é como um fato natural. O fato é efeito de uma causa. A imputação o é de um querer. O fato se prova ou refuta por meios empíricos; a imputação, só por testemunhos do querer que a produziu. Os quatro Evangelhos e Atos são esse testemunho e me parece que eles não desabonam a interpretação de que Cristo, de fato, morreu pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação.
Falta os opositores de hoje dizerem que os Evangelhos e Atos não são a palavra de Deus, após gerações de seres humanos lhes terem imputado exatamente essa condição. Claro: a má-fé não tem fim e a raça dos que estão sempre prontos a novas patifarias para refutar a visão de mundo da Bíblia tampouco o tem. Mas ela foi retratada nos versos em que Deus mostrou a Jó as coisas abstrusas da natureza, como a avestruz que "trata com dureza os seus filhos, como se não fossem seus; embora seja em vão o seu trabalho, ela está tranquila, porque Deus lhe negou sabedoria e não lhe deu entendimento [...] Ri-se do temor e não se espanta;e não torna atrás por causa da espada" (Jó 39:17-18, 22). Não percebem que Deus se mostra nas regularidades do céu porém, muito mais, em todas as durezas da Terra.
sábado, 22 de junho de 2013
A unidade da igreja (texto completo)
O texto abaixo foi escrito na mesma época de Um sonho de comunhão (1991), disponível neste blog (novembro/2011). Entreguei uma via manuscrita dele para Djalma Marques e uma via, também manuscrita, de Um sonho para Maria Izabel Birolli. O que se seguiu é do conhecimento de muitas pessoas e dispensa repetições.
Quero lembrar, somente, que a gênese e o conteúdo dos escritos os tornam irmãos gêmeos. Um par de vasos que os Nabucodonosors afoitos levaram para as Babilônias erguidas por suas interpretações, e os Torquemadas depois queimaram. Por anos considerei A unidade da igreja perdido, até que, outro dia, deparei-o na "pasta errada" do meu arquivo, talvez como Hilquias, em contexto tão mais elevado, é verdade, achou o livro perdido da lei no tempo de Josias (2 Rs 22:8).
Publico-o, agora, com o atraso de 22 anos que o decreto dessas circunstâncias impôs. Ortega y Gasset bem avisou que o homem não é ele só: é ele e suas circunstâncias.
1. Unidade
Voltemos os olhos à natureza criada por Deus. Nela contemplamos um verdadeiro show de diversidade. Nada no mundo é igual ou repetido; tudo é imbuído do dom da diferença. O sol não é como a lua, o mar não é semelhante à terra, as árvores não são os animais, as aves não são iguais aos peixes, as feras não são como o homem.
Ainda que tomemos os peixes, as aves e cada grande grupo de seres vivos, em si e por si, depararemos diversidade quase infinita. A tilápia é tão diferente do tubarão, o bagre da traíra, as molinésias do peixe-espada, o lebiste do bacalhau. Que multifário espetáculode cores, formas, hábitos, instintos a natureza nos proporciona! Em uma palavra, que espetáculo de graça! A natureza só é tão deslumbrante, por ser tão variada.
Toda essa imensa diversidade, entretanto, subsiste em harmoniosa unidade. As diferenças tão profundas entre os seres só são percebidas numa visão de partes; no todo, reina inconteste a unidade. Quando voltamos o olhar das partes para o todo, temos a impressão fortíssima de um milagre: como pode o que é diverso e contraditório como repertório de partes ser tão uno enquanto todo?
Não devemos desprezar essa profunda lição que nos ministra a natureza, pois é a lição de Deus. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Os céus proclamam a glória de Deus (Sl 19:2,1). E que glória diversa proclamam!
De fato, no transe que essa visão comunica, na vertigem em que nos envolve, aprendemos uma lição magnífica. Se Deus tudo criou, a ordem da criação revela o conceito divino. Por isso, o Salmo 19 coloca a criação e a lei lado a lado, como testemunhos paralelos e concordes das mesmas verdades eternas.
Tão profunda é a concordância entre a natureza e a Escritura que Paulo chega a misturá-las, a borrar seus limites, ao citar o salmo: “A fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo. Mas pergunto: Porventura não ouviram? Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo” (Rm 10:17-18). As duas últimas orações são a continuação de Salmo 19:1-2. Por meio delas, Paulo cola a natureza na Escritura, anexa-as, funde-as, ao perguntar: “Não ouviram [a palavra de Cristo]?” E ao responder com o salmo: “Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo”.
Quero, porém, me fixar no que a natureza ministra sobre a unidade. Ela nos mostra o verdadeiro sentido do um. Sentido conferido, ampliado e explicado pelas Escrituras, mas nunca alterado, já que o revelador por trás da natureza e da Bíblia é um. Diz-nos a natureza que a unidade é a harmonia da diversidade. Não por acaso, Universo, em latim, quer dizer unidade do diverso ou da diversidade. Eis o que é o mundo. Eis o que até os pagãos entenderam que ele é, pois o chamaram Universo. Eis o testemunho que temos incessantemente diante dos olhos e que, como todo testemunho, discorre conosco.
Como rejeitar tão eloquente depoimento? Como defender qualquer outra forma de unidade? É conhecida a passagem em que Cripriano explica a unidade da igreja por meio da luz solar: “A unidade da luz não comporta que se separe um raio do centro solar [...] Do mesmo modo a igreja do Senhor, como luz derramada, estende seus raios em todo o mundo, e é uma única luz que se difunde sem perder a própria unidade”. Exemplo maravilhoso: a igreja não é uma catedral escura ou uma instituição secreta; é luz vertida por Deus sobre o mundo!
A luz derrama-se com liberdade, enquanto se reporta ao mesmo centro solar. Essa é a unidade que a criação nos revela. Poderíamos descrevê-la em tantos outros fenômenos, sempre da mesma maneira. Assim é nos peixes, na água, nos animais e sobretudo no exemplo do organismo vivo, qualquer que ele seja. Em todos esses casos, vemos o mesmo padrão invariável de unidade, isto é, a vigorosa harmonia na diversidade imensa. Não há unidade sem harmonia ou sem a mais ampla dose de liberdade e diversidade.
Não pode ser outra a unidade da igreja de Cristo. É apenas mais aperfeiçoada. Se a unidade do cosmo é uma diversidade, a da igreja é a perfeita diversidade. É o que significa dizer que Cristo veio reunir (Jo 11:52), juntar (Mt 23:37), e o faz ao seu modo, não de qualquer modo. Não ao modo do homem, que é sempre o da força, o da indelicadeza. Por isso também, quem com ele não ajunta, espalha (Mt 12:30).
Há muitas maneiras de juntar e diversas formas de unidade. A de Cristo, porém, é uma só. Por isso, não basta juntar: é preciso juntar com ele, juntar como ele junta. Do contrário, ainda que juntemos, espalharemos.
É possível buscar a unidade e estar contra Cristo. Basta, para isso, que se busque outra unidade, além da de Cristo e da Bíblia. Mas como é preciso juntar com ele! O ecumenismo hodierno busca a unidade, mas nem sempre a unidade bíblica, nem sempre a unidade com o espírito correto. O ecumenismo que transige com os pontos básicos de fé, para melhor ajuntar, não ajunta: espalha. Por isso, a sua unidade não é a de Cristo.
No Novo Testamento, há uma igreja em cada cidade, mas não só isso: nele vemos uma igreja que recebe a todos na base impreterível do amor. Essa é a unidade bíblica, uma unidade tão mais irrenunciável quanto percebemos ser impossível manter verdadeira harmonia fora do amor. Deus criou tal unidade como estruturou o Universo. O homem não pode (nem deve tentar) criar outra melhor.
A História não prova, abundantemente, ser isso impossível? O espírito da unidade é o amor fraternal sem barreiras. Não é a unidade com ou entre as denominações, já que o amor fraternal sem barreiras é aí tão difícil. Quem crê na unidade interdenominacional crê com ingenuidade. Não com a ingenuidade do engenho, nem com aquela que exclui a malícia, o que seria antes bom, mas com ingenuidade de entendimento, o que é péssimo (1 Co 14:20).
Um arguto escritor cristão deste século sentenciou sobre as divisões denominacionais: “Essa realidade não pode ser eliminada de um sopro, muito menos com exortações morais ao amor, à tolerância, ao entendimento. Tente alguém alcançar alguma coisa com essa laia, seja em que área for!” (BARTH, Karl. “A igreja e as igrejas”. In Dádiva e louvor – artigos selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 208).
Não é possível unidade aprovada por Deus, a não ser a de Cristo. A obra por excelência de Deus, hoje, é restaurar a unidade da igreja, mas não restaurar qualquer unidade ou restaurar a unidade de qualquer maneira. A obra de Deus é restaurar a unidade bíblica da igreja, a unidade prática da harmonia na mesma cidade, a unidade que é milagre. Que milagre? O do amor com liberdade e diversidade.
Em 1982, li as obras do pastor Juan Carlos Ortiz sobre a necessidade de uma renovação profunda da igreja, inclusive da sua unidade. Elas me impressionaram de um modo que mal posso traduzir. Porém, aquelas propostas se perderam. Deram em nada ou em muito pouco. Em tantos casos, o movimento iniciado por Ortiz terminou pior que o ecumênico de caráter interdenominacional. O impulso original do trabalho dele era, sem dúvida, genuíno, correto. A unidade, porém, que buscava não era a de Cristo. Na melhor das hipóteses, era uma espécie de unidade interdenominacional; na pior, uma unidade totalitária. O próprio Ortiz terminou de batina numa Igreja denominacional.
Deus não permite o sucesso de uma unidade diversa da que ele estabeleceu. Se o amamos e estamos dispostos a obedecer-lhe, devemos fazê-lo primeiramente nisto: na obra da restauração da unidade bíblica da sua igreja. Não me refiro, é claro, à letra da Bíblia. Refiro-me tanto a uma base concreta e prática da unidade quanto ao espírito dela.
Desgraçadamente, essas duas coisas perderam-se na História da Igreja. Bem cedo, setores inteiros da igreja entraram num processo de apostasia das verdades essenciais da fé. Num segundo momento, enquanto a ortodoxia era restaurada, na esteira da Reforma, o inimigo se aproveitou do desleixo para com o corpo, a igreja, a fim de introduzir um mal tão nocivo quanto o anterior: as facções protestantes. Pode-se propor que, durante a primeira crise, a unidade foi ferida pelas más doutrinas e, na segunda, pelas boas. E que, ante esse grave quadro, a obra de Deus só pode consistir em restaurar a unidade danificada por ambos os desvios.
[Segue-se, no texto, uma página cujo conteúdo desejo retratar em parte, pois não mais acredito na condição especial de bênção do movimento das Igrejas Locais, a que pertenci, ou no estado irrecuperável de degradação espiritual das igrejas católica e protestantes. Transcrevo essa página abaixo não para reafirmar o que então escrevi, mas para deixar um registro daquilo em que, na época, acreditava. Cumpre esclarecer, porém, que, embora equivocado nesse particular, o texto foi escrito exatamente para ressaltar a insuficiência da posição peculiar das Igrejas Locais,quando não acompanhada do que ele repetidamente chama o espírito da unidade, isto é, o amor fraternal. Os motivos da presente retratação estão detalhadamente explicados no texto “Reforma e Restauração”, disponível neste blog (abril/2013)]
O desejo de Deus é a restauração da unidade bíblica da igreja, não de qualquer unidade. Por isso, a restauração do Senhor, no nosso meio [nas Igrejas Locais], tem tanta confirmação divina. Não estamos na condição histórica do Catolicismo, do Protestantismo estilhaçado em inúmeras Igrejas, do ecumenismo interdenominacional ou de movimentos como o de Ortiz. Deus tem abençoado tão ricamente a restauração, em nosso meio,porque aqui está a genuína e bíblica unidade. Confesso que procurei informar-me muito sobre os vários ramos do cristianismo, porém nunca encontrei prática tão genuína da unidade, após os primeiros séculos, quanto entre aqueles que, com justiça, são denominados a restauração do Senhor. Achei inclusive alguns grupos que se reúnem como a igreja nas cidades onde estão, mas mantêm laços fortes demais com Igrejas protestantes. Estes últimos grupos não creem, como nós, que a obra principal de Deus, hoje, ocorre radicalmente fora tanto do Catolicismo como do Protestantismo, ambos irrecuperáveis. Paulo disse, mais de uma vez, que um pouco de fermento levada toda a massa (1 Co 5:6;Gl 5:9). Este é um princípio seriíssimo e prático: basta intervir tempo suficiente, sem arrependimento e reforma, para que o fermento torne a massa imprestável. No caso do Catolicismo e do Protestantismo, é evidente que esse tempo já passou. A massa já se tornou imprestável. De modo que implantar a restauração bíblica da igreja em bases interdenominacionais, com o corpo no deserto e o coração no Egito, é no mínimo fiar-nos em duvidosa utopia. A restauração genuína de Deus é, pois, a da unidade bíblica da igreja radicalmente fora do Catolicismo e do Protestantismo. Só nessa posição, é possível reimplantar em bom solo o princípio da verdadeira unidade.
[Fim do trecho retratado.]
2. O espírito da unidade
Tudo isso é, porém, apenas o princípio correto da unidade. É, por assim dizer, tão-só, a tomada de posição. É autoevidente que a posição deve ser movida pelo coração para ter algum valor. O amor fraternal sem barreiras é, com efeito, o espírito de toda unidade. Se tivermos a posição da unidade, sem o amor, estaremos mortos, pois a unidade destituída de amor é uma carcassa. É letra que mata. Só o espírito vivifica.
A comunhão é o espírito da unidade. Assim como há uma só unidade de Cristo, embora haja muitos tipos de unidade, há também uma só comunhão dos apóstolos, não obstante subsistam tantas comunhões. A prática da comunhão dos apóstolos é o viver sem barreiras, é a comunhão total na luz (1 Jo 1:7).
Enquanto temos barreiras, não temos amor uns pelos outros. Perdemos a comunhão dos apóstolos. Criamos outra comunhão. Por isso, Deus nos concedeu a experiência de andar na luz. Seres humanos sempre têm problemas de relacionamento. Isso é inevitável. É impossível que eles não ergam barreiras. Mas é imperativo que falem abertamente uns com os outros sobre as barreiras que têm no coração, a fim de desintegrá-las. Isso é andar na luz, como Deus está na luz.
Não há substituto para essa comunhão na luz. Só ela é, na prática, a comunhão dos apóstolos. Se deixarmos os problemas entre nós crescerem ou se eles efetivamente já crescem, no nosso meio [notem a desconfiança para com a comunhão existente nas Igrejas Locais], é sinal de que a comunhão está debilitada. O remédio único para isso é tratar todas as diferenças na luz.
Algumas linhas atrás, afirmei que a disseminação do fermento tornou imprestável a massa do Catolicismo e do Protestantismo. Ora, o pão sem fermento de Deus são “os asmos da sinceridade e da verdade” (1 Co 5:8). Que de bom poderemos produzir, se perdermos a sinceridade? A pureza da nossa comunhão reside na sinceridade, na adesão aberta e franca à verdade. Esconder problemas é esconder o fermento. Não é interessante que o Senhor Jesus tenha afirmado, na parábola do fermento, que a mulher não apenas misturou, abertamente, mas “escondeu” o fermento em três medidas de farinha (Mt 13:33; Lc 13:21 – grego)? O inimigo sempre introduz o fermento às ocultas. A comunhão sempre se desenvolve na luz.
O Evangelho nos ensina que o fermento dos fariseus era a hipocrisia (Lc 12:1). Dele os discípulos deviam acautelar-se. A hiprocrisia é o estágio avançado do processo de fermentação; a ocultação de barreiras é o estágio incipiente dele. Alguém não o crê? Então explique por que Paulo faz da sinceridade o não-fermento.
Encobrir problemas pessoais pode, sim, levedar toda a massa, pois danifica a comunhão, que é a própria massa. Quando assumimos essa condição, ainda que mantenhamos a posição correta da unidade, já não temos o seu espírito. A mais verdadeira caracterização da unidade é a comunhão. Que unidade é essa, em que afirmamos que somos um e não suportamos viver juntos? Essa é a falsa unidade, é a unidade que Jesus denominou hipocrisia. É a fermentação da unidade.
As sete igrejas de Apocalipse 2 e 3 possuem significado simbólico, pois podem ser vistas como estados básicos da igreja cristã, ao longo de sua história. Éfeso é a igreja no final da era apostólica. Esmirna, a igreja sob a perseguição romana. Pérgamo, a igreja aliada ao Império, após a conversão de Constantino. Tiatira, a igreja medieval apóstata. Sardes, a igreja parcialmente reformada. Filadélfia a igreja no estado avançado de restauração. Não dizemos que cada uma dessas igrejas possui um estado ou condição distinta?
Porém, se assim é, Filadélfia, a igreja louvada por Deus, é o estado em que prevalece o amor fraternal. Que quer dizer Filadélfia, a não ser philéo adelphói, amor entre irmãos? A igreja no estado avançado de restauração não é a igreja numa cidade. Todas as sete são igrejas em cidades. Mas Filadélfia e só ela é a igreja do amor fraternal, a igreja da comunhão ardente, do afeto sem barreiras, não da mera posição correta.
A comunhão dos apóstolos é mencionada no texto grego de Atos 2:42. A melhor tradução desse verso parece ser: “E perseveravam no ensino e na comunhão dos apóstolos”. Nem Atos 2:42, nem o testemunho que o livro inteiro presta da igreja primitiva têm foco numa comunhão qualquer. Os primeiros cristãos não perseveravam numa comunhão genérica, mas na comunhão específica e ortodoxa dos apóstolos.
Cada grupo religioso, cada sociedade, cada agremiação tem a sua ordem interna, a sua comunhão particular. Ninguém transitará bem na Congregação Cristã no Brasil, com livros diferentes da Bíblia em baixo do braço. A comunhão própria da Congregação não o admite. Numa denominação histórica não se permitem práticas pentecostais. Por isso, alguém que busque os carismas não será bem recebido em seu círculo. A comunhão histórica vive o bastante para não o permitir.
Quem está em condição de negar que, nos vários grupos cristãos, vigoram outras comunhões, além da dos apóstolos? Cada cabeça uma sentença, cada sentença um mestre. Cada denominação tem a sua comunhão; cada comunhão, uma unidade. Não nego que existam unidade e comunhão nas denominações. Nego que prevaleçam nelas a unidade e a comunhão ortodoxas.
Isso deve servir de advertência a todos os que confessam o seu compromisso com a restauração da unidade. Particularmente a nós [nas Igrejas Locais]. Sem o amor que vence barreiras, a unidade está morta. Em Filadélfia, philéo não indica o amor mais elevado, o amor próprio de Deus, que em grego é agápe. Philéo é um amor mais tendente à amizade. Não que o amor sublime, agápe, não se encontre em Filadélfia. Mas agápe é tão elevado que não se manifesta a todo momento. Nenhum amor pode ser verdadeiro sem ser sincero. E nenhum amor humano pode ser sincero, sendo sempre sublime.
Essa é a marca de Filadélfia: o amor-amizade entre irmãos. O amor singelo, que nada esconde, tudo abre, tudo traz para a luz de Deus. Tal amor é também comunhão, é ausência total de condição para a convivência. Nesse amor se sumaria a unidade.
3. Grandes exemplos de diversidade
Os vários grupos cristãos apresentam condições mediante as quais uma pessoa pode ingressar e transitar neles. Já indicamos que o não pentecostalismo é uma condição adotada por muitas confissões históricas e que o uso exclusivo da Bíblia o é para a Congregação Cristã no Brasil.
A comunhão dos apóstolos, porém, se distingue dessas de cunho particular. É a comunhão na diversidade, sem condições que não sejam o novo nascimento e a fé ortodoxa em questões vitais. Em tudo o mais, a comunhão apostólica é inteiramente aberta. Ninguém pode exigir ou proibir coisa alguma a um cristão exceto isso. O que comer, os costumes a guardar etc. não devem ser matéria de discussão na igreja (Rm 14:1-3,5).
Tanto no Velho como no Novo Testamento, tal princípio de unidade é ratificado exaustivamente. Quando Miriã e Arão erraram, ao se rebelarem contra Moisés, Deus de modo nenhum negou que os dois descontentes fossem também seus porta-vozes. Ainda que houvesse um princípio de sublevação no comportamento deles, o Senhor não negou a pluralidade de ministérios no seu povo. Havia, é certo, um só ministério global no Velho Testamento, como Paulo indica em 2ª aos Coríntios 3:7,9. Nesse ministério, estavam Moisés, Arão, Miriã e todos os demais filhos de Israel, cada qual a exercer a sua função, num quadro geral de harmonia. Mas ali também existiam ministérios, no plural, assim como no Novo Testamento há diversidade de ministérios (1 Co 12:5) integrados num único ministério.
Se o ministério de Moisés tinha a preeminência, uma ampla liberdade permitia que outros também mantivessem trabalhos ministeriais. Miriã e Arão possuíam os seus ministérios. Ela era um profetisa, ele, o Sumo-Sacerdote responsável por ministrar a Deus e ensinar o povo. Todo um campo de particularidades era possível, nessas funções, em harmonia com o ministério mais eminente de Moisés.
Para falar em sonhos e visões aos irmãos de Moisés, Deus não se dirigia primeiro a ele. Tampouco exigia que aqueles, ao receberem uma revelação, a submetessem a Moisés para que autorizasse ou não a sua publicação. As coisas reveladas, pelo simples fato de o serem, pertenciam e ainda pertencem ao domínio público. Deuteronômio 29:29 afirma que elas “pertencem a nós e a nossos filhos para sempre”, não a um homem ou a um ministério particular.
Esse é o princípio pelo qual Deus regia o ministério do Velho Testamento. O próprio Moisés de modo nenhum possuía um espírito exclusivista ou favorável ao seu ministério, em detrimento do que era exercido por outros. Não é pensável que um povo que, havia pouco, se libertara da escravidão e fugira como uma horda tivesse organização tão estrita que as palavras de todos fossem subordinadas à de Moisés. Israel tinha, antes de tudo, de sobreviver no deserto. Não havia condições para ele implantar qualquer coisa parecida com um regime de uniformização de discursos.
Em Números 11, quando o Espírito do Senhor desceu sobre os setenta anciãos designados como cooperadores na tarefa de cuidar do povo, Josué, ajudador de Moisés, sugeriu que este proibisse Eldade e Medade, que pertenciam aos setenta, de profetizar no arraial, enquanto os outros sessenta e oito o faziam em volta da tenda da congregação, fora do arraial. Afinal, onde se vira tal dissonância, tal dissintonia?
Ao ainda inexperiente Josué pareceu que a solução para o caso era: “Proíbe-lhes” (Nm 11:28). Moisés, porém, disse-lhe: “Tens tu ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito” (Nm 11:29). Ainda que o trabalho de Deus seja executado de um modo, por uns, é perfeitamente possível praticá-lo de outro modo. Ainda que alguém profetize na tenda da congregação, é possível profetizar no arraial. Desde que isso se faça pelo Espírito do Senhor...
Este não é o lugar para demonstrações técnicas, mas é possível comprovar, pela Bíblia, que Jó viveu por volta da época de Jacó e seus doze filhos. Temos, pois, em Jó, um autêntico ministro de Deus situado fora da linha dos descendentes de Isaque. Se alguns gostam de enfatizar que o livro de Atos foca Pedro e Paulo, em detrimento dos outros ministros, temos em Jó não alguns versículos, mas um livro bíblico inteiro dedicado a um ministério paralelo aos de Jacó e seus filhos. Tal era a predileção de Deus por Jó que, após Satanás ter dado voltas à terra, não lhe perguntou se observara Jacó ou José, mas: “Observaste o meu servo Jó?” (Jó 1:8;2:3). Ainda que Jó não fosse descendente de Isaque e Jacó, a bênção, a atenção e o mover de Deus estavam também com ele, no tempo dos patriarcas.
Mas isso não é tudo. Pode-se estabelecer também que Sansão e Samuel julgaram Israel no mesmo período. Nunca houve contradição em Deus levantar mais de um juiz sobre Israel, ao mesmo tempo, já que a unidade divina se dá dentro de uma ampla pluralidade.
Essa verdade se encontra por toda a parte, nas Escrituras, assim como um princípio correspondente pode ser encontrado por toda a parte, na natureza. Ao longo da História, Deus a ratifica repetidamente. Após o decreto de Ciro para que os judeus retornassem livremente à sua pátria, Daniel (notem bem: o abençoado Daniel) permaneceu longamente em Babilônia. É o que se depreende dos versos 1 e 4 do capítulo 10 do seu livro. Não será o caso de se perguntar por que ele lá permaneceu, se Deus desejava que o seu povo reconstruísse o Templo, Jerusalém e as outras cidades e aldeias? Por que ele ficou lá, se o culto especial só podia ser prestado no lugar que o Senhor escolheu? Enfim, se Deus havia dito: “Buscareis o lugar que o Senhor vosso Deus escolher de todas as vossas tribo, para ali pôr o seu nome, e a sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas” (Dt 16:5-6)?
Se descumprir esse mandamento era pecado, o próprio Deus foi cúmplice de Daniel, pois confirmou a permanência dele em Babilônia, concedendo-lhe visões. Mas não há pecado algum. Simplesmente, o mover de Deus é tão elevado que não se sujeita a obrigações formais e estritas. O povo voltava para a pátria, Daniel permanecia em Babilônia, e nessas duas coisas estava o mover de Deus.
Vejamos, porém, casos do Novo Testamento. João batizava em Enom, e o Senhor, do outro lado do Jordão (Jo 3:22-23), sem qualquer desarmonia ou emulação. Acaso aquele que repreendeu energicamente os seus discípulos, os fariseus, os herodianos, o próprio Herodes e os pecadores, quando erraram, não teria repreendido João Batista, se este houvesse estabelecido um ministério concorrente com o de Jesus? Mas Jesus não o repreendeu. Antes louvou-o, quando os discípulos daquele ministro o interpelaram.
Se a obra paralela fosse um desvio, quando os discípulos de João procuraram Jesus, por que ele não mostrou o erro de João? Por que, ao contrário, chamou-o maior de todos os nascidos de mulher até o fim da era dos profetas (Mt 11:11,13)? Como podia um desviado ser maior do que Abraão, Moisés, Davi, Isaías, Jeremias e Daniel? O Senhor situou todo o trabalho ministerial de João, inclusive o período em que transcorreu paralelamente ao de Jesus, na era da lei e dos profetas, antes do reino dos céus. A questão é como um ministro decaído e desviante pode ter sido posto acima de todos os profetas?
É fora de dúvida que João se equivocou, mas há modos e modos de se equivocar. O erro de João Batista não foi grave ou culposo. Atos é inequívoco ao indicar que o discipulado mencionado pelo Senhor, em Mateus 28:19, era o de Cristo e de mais ninguém. Na igreja primitiva, sob orientação do Espírito Santo, levantaram-se muitos discípulos, mas não vemos alguém ser chamado discípulo de um ministro que não seja Cristo. Só em relação a Paulo, e ainda assim como um reflexo de sua posição passada no judaísmo, mencionam-se discípulos (At 9:25).
No entanto, nem João, nem Paulo perderam-se por terem mantido discípulos, já que manter discípulos não é errado ou proibido. Em Israel, ter discípulos não significava mais que ser mestre. E a igreja sempre teve mestres (At 13:1-2; Ef 4:11). O Velho Testamento também fala em moços seguidores de Moisés, de Elias e outros. Não se trata de justificar quem quer que seja, mas de contextualizar os fatos que nos cabe julgar.
João viveu num período de transição. Isso significa que Israel passava da época em que os profetas haviam tido seguidores, e os mestres, discípulos, para uma era em que todos seriam ensinados por Deus. Nada mais cabível que, num tempo de transição, a passagem de um a outro desses quadros se dar gradativamente.
Quando João batizava em Enom, sua obra era paralela à de Cristo, mas dava testemunho dele. É o que João 3:26 nos informa: “Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando”. "Do qual tens dado testemunho"! João continuava a prestar o seu testemunho de Cristo. E não só isso. Ele também formava discípulos para fazerem o mesmo, pois declarou: “Vós sois testemunhas". Testemunhas de quê? Ele mesmo respondeu: "testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. O que tem a noiva é o noivo [Jesus]; o amigo do noivo [João] que está presente e o ouve, muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:28-30).
Meu objetivo não é minimizar os erros de João. Mas é preciso definir claramente esses erros. Digamos que João tenha errado gravemente: ainda assim, seu erro não invalida o princípio das obras paralelas, seguido corretamente por Jó, Daniel e tantos outros. A verdade bíblica não é assim tão miserável que possa ser abalada pelo erro de um homem.
Quando seus discípulos vieram relatar-lhe o “sucesso” de Jesus além do Jordão, João respondeu-lhes: “O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada” (Jo 3:27)! Ninguém angaria coisa alguma boa, se do céu não lhe for dada. Cada qual faz o que os céus lhe dão. Se alguém faz muito, sem iludir, é porque Deus lhe deu muito; se outro faz mais, é porque Deus lhe concedeu mais; e se o Cristo faz tudo, é porque lhe tem sido dado tudo! Os céus tudo decidem.
Não há por que brigar ou proibir, zangar-se ou boicotar. Deus deixa caminho aberto a todos os ministérios, a fim de que o que é bom floresça, o que é melhor floresça mais e o que é melhor do que tudo imponha-se sobre todos. Essa é a obra do Novo Testamento. Assim surgiu o evangelho e por nenhum outro método.
O próprio Senhor ordenou a seus discípulos que não proibissem a obra de quem não seguia com eles: “Falou João [Zebedeu] e disse: Mestre, vimos certo homem que em seu nome expelia demônios, e lho proibimos, porque não segue conosco. Mas Jesus lhe disse: Não proibais; pois quem não é contra vós outros, é por vós” (Lc 9:49-50). Nessa passagem, a razão dada para a não proibição de modo nenhum foi negativa. Jesus não negou que ele ou os apóstolos por ordem dele tivessem jurisdição para proibir. Algo mais forte foi dito: Jesus declarou que o obreiro que atuava paralelamente e fora repreendido pelos discípulos estava em harmonia com eles. Portanto, o trabalho do obreiro não só devia ser tolerado como ele tinha o mesmo direito dos apóstolos de ministrar.
Quem tem algo a dizer, diga-o. Quem não tem, cale-se e ouça. Não é o que Paulo recomenda aos coríntios praticarem em suas reuniões públicas (1 Co 14:27-30)? Ampliemos esse princípio absolutamente, e teremos o Novo Testamento. Mas, por falar em Paulo, ele não nos relata que, após a sua conversão, não consultou carne e sangue para iniciar o seu ministério? Ele próprio não trabalhou paralelamente aos apóstolos em Damasco e depois na Arábia? Não o fez sem consultar quem quer que se possa chamar carne e sangue (Gl 1:16-18)? E isso não foi citado por ele para justificar uma radical liberdade em Gálatas? Sim, Paulo justificou a sua obra paralela movida pelo Espírito Santo, ratificando e reafirmando, tantos anos depois, que, de modo deliberado, não consultou carne e sangue.
É claro que, cedo ou tarde, a coordenação com os apóstolos viria a ser necessária. O que Paulo quis mostrar, em Gálatas, é que tal coordenação se dava dentro de um acentuado paralelismo, sem brigas e em comunhão.
Acaso Cefas, de Jerusalém, Paulo, de Antioquia, e Apolo, de Alexandria, não estiveram todos em Corinto? Não foram todos apóstolos para os coríntios? Eis um lindo e harmonioso exemplo. Embora Corinto fosse a região de labores especiais de Paulo, como os outros apóstolos apressaram-se a reconhecer (Gl 2:9), Jerusalém não pediu autorização para mandar um apóstolo ali. Claro que, cedo ou tarde, uma coordenação ia ser necessária, mas a obra de Deus se dá num contexto de fundamental pluralismo.
Que dizer, então, de Barnabé, Apolo e outros, que não seguiram física ou doutrinariamente a Paulo? Barnabé desentendeu-se com Paulo e se separou dele (At 15:39), e Apolo de modo nenhum atendeu um pedido dele sobre o trabalho missionário de ambos (1 Co 16:12). Claro que isso não precisa ser tomado como exemplo ou paradigma, mas, se houve ali algum erro, tampouco precisamos aumentá-lo ou considerá-lo algo que não pudesse ser removido, um minuto depois, pela confissão.
Se Paulo obteve supremacia no ministério, como Moisés antes dele, foi devido à graça superior que recebeu e que, pouco a pouco, desabrochou. E se Barnabé e Apolo tiveram alguma desvantagem, proveio também daí, não jamais de terem trabalhado paralelamente.
Por toda parte, vemos a mesma coisa. Deus nunca proibiu, pelo contrário incentivou e fomentou fortemente os trabalhos ministeriais paralelos. Desses fatos, devemos extrair que o trabalho paralelo é um verdadeiro princípio bíblico e, como tal, é obrigatório. Deve existir. O que não se deve é confundir o trabalho paralelo (o princípio) com os erros eventuais dos ministros de Deus.
Estêvão foi muito além da incumbência para a qual foi designado, em Atos 6. Ele passou do serviço às mesas à discussão pública com os judeus. Ao fazê-lo, ele não repetiu o ensino de Pedro e dos onze, mas falou outras revelações com o mesmo objetivo deles: pregar a salvação de Cristo. Essa atitude de Estêvão desencadeou uma sangrenta perseguição. Claro: quem olhasse tal quadro com espírito autoritário diria que ali não estava somente um desvio ministerial, mas a devida punição a ele! Olhemos, porém, atentamente, para Atos, e veremos em Estêvão o que é um homem identificar-se plenamente com Cristo, o que é um homem ter rosto como de anjo (At 6:15) e subjugar as trevas com luz indizivelmente clara.
Não está aí um quadro de inegável pluralismo? E não podemos concluir, desses fatos, que a obra cristã primitiva desenvolvia-se em tal pluralismo? Nem mesmo o ministro confirmado por Deus com uma sabedoria superior à de todos os demais era encarregado da obra em toda a Terra. Paulo reconhecia claramente a sua “esfera de ação”. Foi essa a expressão que ele utilizou em 2ª aos Coríntios 10:13: “Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida, mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende até vós”. Não há ministro algum cuja seara seja ilimitada.
Lembremo-nos também de que a seara de Paulo sequer cabia exclusivamente a ele. Pelo contrário, Paulo disse que Apolo regou o que ele plantara. Disse mais que o mistério do crescimento não veio dele, nem de Apolo, mas diretamente de Deus (1 Co 3:6). Portanto, Paulo dividiu sua seara com Apolo, como a dividira antes com Barnabé. Ninguém é designado sozinho para a obra em toda a Terra ou para a obra numa região qualquer. Não é pouco importante lembrar que ser designado com outro, aqui, não é o mesmo que ser acompanhado de um escravo ministerial.
Vemos, em tudo, que a unidade cristã é plural. Assim é no Velho e no Novo Testamento. Não é de outro modo na História da Igreja, em particular na época dos pais que sucederam os apóstolos e transmitiram o seu ensinamento. Cipriano foi um desses pais. Sabemos que opôs-se à intenção de Estêvão de Roma de impor a sua convicção a todas as igrejas do orbe sobre o batismo dos hereges. Convocando um concílio, na sua região, para decidir o assunto, Cipriano recomendou aos bispos que compareceram que expressassem livremente o seu sentimento sobre o assunto. É comum ver-se, nesse seu gesto, decidida oposição às pretensões demasiadas do bispado romano.
Ireneu, por sua vez, afirmou, no século II, que a dissonância no jejum não dissolve a consonância na fé. E Gregório de Roma declarou que a divergência sobre determinados assuntos não fere a unidade da igreja.
Poderíamos dar outros exemplos, tanto da época dos pais como posteriores. Não o faremos para não nos tornarmos cansativos. O importante, o digno de realce, é a virtual unanimidade, o amplo acordo dos pais sobre o tema. Não creio que eles teriam chegado a esse consenso, se uma prática oposta houvesse criado raízes na época dos apóstolos. Pelo contrário, se esse tivesse sido o caso, os ramos nascidos das raízes teriam sido observados e testemunhados por eles.
Nem uma testemunha externa, um governante como Plínio, o Moço, na epístola que dirigiu ao Imperador Trajano sobre os cristãos, apontou qualquer prática desviante dessas. Plínio descreveu a vida cristã primitiva de modo tão simples que parece incompatível com a hierarquia e o controle.
Se em certas épocas um obreiro se torna digno de maior destaque, como José entre os doze patriarcas e Paulo a seu tempo, devemos lembrar-nos de que toda grande verdade de Deus tem o seu outro lado. Do contrário, não seria grande. Sem o seu outro lado, a verdade entra em desequilíbrio. No caso da obra de Deus, a unidade precisa do equilíbrio da pluralidade.
Se o enfoque centralizado num obreiro é importante para a unidade da igreja, o pluralismo também o é. De modo nenhum, esse pluralismo desagrega a unidade. Pelo contrário, ele a acrisola, purifica-a e a torna mais forte. É na colaboração de diversidades e até de contrariedades que a unidade final se enriquece. De modo que a unidade sem pluralidade é pobre, não passa pela prova. E, por não passar, Deus mesmo a descarta. Substitui a unidade da uniformidade pela unidade da diversidade, que a natureza e a Bíblia exemplificam.
Essa diversidade precisa ser tão respeitada quanto a unidade que dela resulta. Elas são aspectos da mesma verdade. Toda unidade é, portanto, o âmbito de uma diversidade não apenas real, mas forte e prevalecente. Alguns perguntarão: como a unidade poderá ser alcançada, dando-se espaço para a pluralidade? Mais que em unidade, isso haverá de resultar em divisão. Devemos, porém, lembrar-nos de que a construção da unidade não obedece a um passo-a-passo definido, nem é produzida pelo braço humano. É obra de Deus. Por isso, deve seguir os princípios divinos estabelecidos nas Escrituras.
Paulo conclui suas observações em prol do uso do véu, em 1ª aos Coríntios 11:16, afirmando que, se alguém pretendesse ser contencioso e não seguir a sua recomendação, devia saber que os apóstolos e as igrejas de Deus não tinham tal costume. Dessa frase alguns extraem que há costumes comuns às igrejas, o que é óbvio. Que povo não tem costumes? Porém, os costumes a que Paulo se refere não são obrigatórios. Se o fossem, feririam a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Essa espécie de costume fere a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Ou temos costumes obrigatórios, ou temos comunhão.
Os que invocam 1ª aos Coríntios 11:16 em altos brados querem usar os costumes ali mencionados para impor a uniformidade na igreja. Mas o verso não se refere ao cristão que utiliza sua liberdade para não apoiar o uso do véu, por motivo de consciência. Se fosse assim, a recomendação específica de Paulo, no tocante ao véu, entraria em conflito com Romanos 14:3,6, em que ele afirma: “Quem come não despreze ao que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu [...] Quem distingue entre dia e dia, para o Senhor o faz; e quem come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus”. Costumes diferentes são lícitos, quando baseados em convicção.
Não há qualquer evidência de que as igrejas neotestamentários tivessem práticas com força de condição espiritual para uma comunhão plena. Entre elas, havia considerável liberdade de formas não pecaminosas. Nem o acordo no tocante a práticas significava unidade, nem a diversidade de práticas era considerada divisão.
Sob esse conceito, unidade é o somatório de todos os diversos, sem exclusão de algum. Uniformidade, por sua vez, é a unidade forçada de alguns. Um autor conhecido afirmou que o Novo Testamento defende a maior pluralidade de dons, pessoas e tudo o mais, exceto a pluralidade de igrejas (BARTH, Karl. "A igreja e as igrejas" In Dádiva e louvor- artigos selecionados. São Paulo: Sinodal, 1986. p. 206). Assim é, se nenhum dom ou pessoa for excluído. Se houver exclusão, restará a uniformidade.
Os que são contrários a esse ponto de vista lembrarão que Paulo condenou a existência de partidos na igreja em Corinto (1 Co 1:10-13). Dirão, pois, que não só a pluralidade de igrejas é pecaminosa, mas também a pluralidade de grupos na mesma igreja. Ocorre que Paulo não condenou quaisquer grupos. Condenou partidos, ou seja, germes de futuras divisões maiores. Condenar partidos é o mesmo que condenar a pluralidade de igrejas, à qual eles tendem, já que os partidos são o estágio incipiente da pluralidade de igrejas.
Ao mencionar os partidos, portanto, o apóstolo não condenou a pluralidade, mas a doença dela, que ameaçava devorar a unidade. Ele condenou a tentativa da parte de dominar todo o corpo, como um tumor que cresce desordenadamente. Fundamental é tratar elementos plurais, a exemplo de opiniões, como elementos do todo, não como o próprio todo.
Não fazer da parte um todo, dos elementos da pluralidade uma nova unidade é a advertência dirigida a todo cristão. Claro que, se outra pessoa toma aqueles elementos e os usa para criar uma nova unidade, a responsabilidade não é de quem os criou. O inventor do avião não pode ser preso pela utilização de seu engenho para fins bélicos. Nem podem os autores bíblicos ser condenados por heresia, porque hereges usaram as Escrituras para sustentar suas doutrinas.
E, se essa é a unidade bíblica, a implantação prática dela há de ser o caminho para a restauração da igreja. Por muito tempo, temo-nos esforçado para implantar uma unidade férrea e inflexível. Talvez, no início da restauração da igreja, essa estratégia tenha sido necessária. Não se desatola o veículo sem acelerar o motor mais do que é benéfico para ele. Porém, é necessário um redirecionamento para o equilíbrio entre unidade e diversidade, o que não é absolutamente arriscar a unidade.
Se a restauração da nação de Judá, no Velho Testamento, é um tipo da que ocorre na era da igreja, a reconstrução das cidades e vilas, no interior do país, é uma das suas etapas finais. E, se Jerusalém, é o símbolo maior da unidade prática, as cidades e vilas representam a pluralidade. Necessário é, pois, reerguer os centros de pluralidade dentro da unidade. Do contrário, tudo o que nossa unidade expressará será desolação.
4. Até a unanimidade
Efésios 4 nos fala de duas unidades: a do Espírito (Ef 4:3) e a da fé (Ef 4:13). A primeira é a unidade possível hoje. Somos exortados a preservá-la, pois já a possuímos. Porém, o outro versículo ordena buscarmos também a unidade da fé, que ainda não possuímos. Portanto, a unidade da fé é futura.
Que significam essas duas espécies de unidade? A do Espírito é a que pertence a ele e só ele pode produzir, embora a sua preservação dependa do nosso esforço, pois o primeiro verso diz: “Esforçando-vos diligentemente para preservar a unidade do Espírito”. Mas a outra unidade, da fé, envolve tanto a fé vital como convicções secundárias (Rm 14:22), a exemplo de o que comer, que dias guardar e coisas semelhantes.
Efésios 4:13 fala-nos da unidade da fé nesse sentido amplo. Refere-se à unidade da fé primária e também secundária. A primeira é a fé que “de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). Se ela nos foi entregue, já a possuímos. Temos também a unidade que se dá em torno dela. Com a unidade da fé (primária e também secundária), porém, se passa o contrário. Ainda não a possuímos, pois essa fé integral não terminou de nos ser revelada.
Não nos enganemos, esperando que a fé de cada um possa, à força de autoritarismos, chegar a ser idêntica. Não é possível saltar a etapa atual da unidade do Espírito, que nos faz um enquanto ainda mantemos divergências em matérias de fé secundária. A unidade do Espírito envolve conformidade na fé e diversidade em matéria de opinião. Claro que, por isso, a negação do direito à opinião e à sua expressão constitui um furto de liberdade, uma escravização do cristão, que por sua natureza é livre.
Assim, o limite óbvio para a divergência entre os cristãos, hoje, é o plano de Deus, no qual está calcada a fé que opera para salvação. No original de 1ª a Timóteo 1:3-4, a conformidade do ensino à dispensação ou economia de Deus é exigida: “Roguei que permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que antes promovem discussões do que o serviço [economia] de Deus na fé”.
Ensinar outras doutrinas é afastar-se da economia, isto é, do plano de salvação de Deus. Fábulas e genealogias sem fim, como as introduzidas pelos gnósticos, negam esse plano de salvação, que se direciona a um só fim e não a vários. Por isso, são proibidas na igreja. Do que também se conclui que a diversidade ajustada ao plano divino não pode ser combatida, mas a que não se ajusta deve ser eliminada.
Outra distinção importante é a que se pode traçar entre unidade e unanimidade. Esta é a unidade de opiniões, sentimentos, pontos de vista. É a unidade total da alma. Por seu caráter perfeito, a unanimidade é uma flor delicada, que não cresce em qualquer clima, nem em qualquer solo.
Sob inspiração do Espírito, o escritor de Atos usou muitas vezes os termos unânimes, unanimidade e outros semelhantes. Porém, só o fez no início do seu livro, o que sugere que a unanimidade estava presente, naquele tempo, mas não em épocas posteriores. Isso é confirmado nas epístolas, em que Paulo exorta seus leitores a buscarem a unanimidade: “Completai a minha alegria de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento” (Fp 2:2) e “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique pensem concordemente no Senhor” (Fp 4:2). Vemos que a unidade estava presente em Filipos, mas a unanimidade não. Não era diferente na maioria das outras igrejas da época.
Porém, ainda quando não está presente, a unidade total de alma ou unanimidade deve continuar a ser nossa meta. Devemos trabalhar continuamente com vistas a ela. Só não adianta nos iludirmos. Não adianta forjarmos a unanimidade com a ferramenta do autoritarismo. Esse método é inteiramente humano. Não pertence ao Espírito. E, por não pertencer, por meio dele, só alcançaremos a unanimidade humana, jamais a do Espírito. Devemos, sim, exortar, conciliar e trabalhar de vários modos pela unanimidade dos que creem, mas não usar o esforço desassistido da graça para obtê-la.
A divisão é um erro grave, um descontrole no seio da diversidade. Nas relações familiares, encontramos bons exemplos de como ela opera. Por mais que haja desentendimentos entre os membros de uma família, o amor costuma ser mais forte que tudo. A família não se mantém unida pela ausência de diversidade ou de desavenças, mas pela presença do amor. Por isso também, a perda da unidade, na família, é uma verdadeira aberração.
Da mesma forma, as divisões existentes na igreja, são um sério problema. Por elas, a família de Deus é rompida, a realidade da vida familiar é perdida, e a unanimidade se torna uma meta inviável. Isso não é menos que uma aberração. Para usarmos a metáfora de Cipriano, é como se os raios do disco solar se desconectassem dele.
Infelizmente, nem a unidade do Espírito parece muito presente, na igreja de Deus, hoje. Atraímos vergonha para o evangelho, dividindo-nos e nos mantendo divididos do modo mais cruel e radical.
[Cabe inserir, aqui, um comentário. De 1991, quando A unidade da igreja foi escrito, até hoje, uma ação especial do Espírito Santo fez aumentar bastante a compreensão entre cristãos das mais variadas confissões. Oposições tradicionais como a católico-protestante, a católico-ortodoxa, a wesleyana-calvinista e a histórico-pentecostal continuaram a sofrer desgastes impostos pela nova consciência. Não cabe comentar, aqui, os fatores desse desgaste, mas é importante afirmá-lo, para que o diagnóstico sobre as divisões, apresentado no texto, não seja interpretado como historicamente imutável. As divisões cristãs não são inalteráveis. Embora constituam um problema persistente, elas mudam em intensidade e até em natureza, ao longo do tempo. Foi o que se deu, ainda mais intensamente que antes, nas últimas décadas].
Por isso, somos chamados a restaurar a unidade bíblica, a unidade do Espírito, rumo à unanimidade, não à unidade do homem, da carne ou do sangue. Nessa senda, o que excede os princípios da unidade deve ser objeto de tolerância e de transação por parte dos cristãos. Não se trata de saber se uma prática originou-se aqui ou ali, se Fulano ou Beltrano a propôs. Se quem a traz é um irmão de fé, devemos permanecer abertos a ele e a ela.
Só um mínimo de princípios necessita ser salvaguardado. Em tudo o mais, resta-nos permanecer de braços abertos e anelantes por abraçar os irmãos de qualquer procedência. A igreja só é local, porque o homem é limitado. Se ele não o fosse, só a igreja universal existiria. Portanto, nem o caráter local, nem o aspecto universal da igreja são mais importantes do que o amor.
Ao escrever este texto, não penso em direitos, meus ou de outros. O amor não enxerga direitos, somente deveres. Tampouco considera receber, mas dar. Por isso, o amor é o espírito da unidade. A unidade se realiza na comunhão, e a comunhão, no amor. Vale sempre dizer, no amor fraternal, que é também uma amizade. No amor de Filadélfia. Verdade é que há muitas barreiras regionais, culturais, geográficas, políticas e até pessoais a esse amor. Mas ele tem o incrível poder de explodir todas as barreiras. É o que vemos realizado no livro de Atos.
Naquela época, as dificuldades de comunicação eram imensas, mas a unidade estava calcada no amor. Um grande número de evangelistas, de mestres e até de apóstolos, autointitulados ou não, possuía cada qual sua esfera de ação. Porém, um trânsito de amor e um esquecimento contínuo dos próprios direitos aproximavam pessoas assim distantes e faziam delas um corpo.
Isso mostra que o que separa não é a geografia, mas o interesse particular. Não são as dificuldades de comunicação. É o apego ao ego e aos próprios direitos. O amor, porém, faz esquecer o eu e pensar no tu. Ele estreita as distâncias e fecha as lacunas que o interesse e o direito abrem.
De que necessitamos mais, hoje, do que do amor, que é uma singela amizade entre irmãos? Não permitamos que um sistema rígido esfrie esse amor entre nós. Os princípios da unidade divina não formam um sistema. Não formemos nós um, nem coloquemos qualquer sistema de prescrições e proibições acima da comunhão.
Unanimidade é o fruto do perfeito amor. É Atos capítulos um a cinco. Talvez pensemos que é preciso não ter pecado para experimentar o que se encontra nesses capítulos. Mas Atos foi escrito para mostrar que isso não é verdadeiro. Para viver a unanimidade, não é preciso não ter pecados, mas cobrir os que se tem. Só o amor realiza isso: “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” (1 Pe 4:8).
Pedro cita Provérbios 10:12, que afirma que “o amor cobre todas as transgressões”. Essas duas testemunhas, uma do Velho, outra do Novo Testamento, estão a nos mostrar que o amor tem relação com os pecados. Ele não os expia ou remove, como a justiça faz. Mas os homens não buscam a justiça o tempo todo. Por isso, o pecado está sempre presente entre eles. Só o amor é capaz de cobri-los.
Essa é a única e verdadeira condição da unidade: cobrir os pecados uns dos outros, por meio do amor. Se não há justiça sem perdão, não há comunhão sem o amor que cobre pecados. Não há comunhão sem disposição para sofrer o dano injusto, em vez de impor a lesão justa. Isso é a lei e os profetas. E ainda mais claramente é o evangelho. O resto é teoria sobre a unidade e palavreado inútil. A unidade real, a unidade possível é a que se impõe, quando o amor cobre nossa multidão de pecados. Seja essa a nossa unidade.
São Paulo, 30 de maio de 1991.
Quero lembrar, somente, que a gênese e o conteúdo dos escritos os tornam irmãos gêmeos. Um par de vasos que os Nabucodonosors afoitos levaram para as Babilônias erguidas por suas interpretações, e os Torquemadas depois queimaram. Por anos considerei A unidade da igreja perdido, até que, outro dia, deparei-o na "pasta errada" do meu arquivo, talvez como Hilquias, em contexto tão mais elevado, é verdade, achou o livro perdido da lei no tempo de Josias (2 Rs 22:8).
Publico-o, agora, com o atraso de 22 anos que o decreto dessas circunstâncias impôs. Ortega y Gasset bem avisou que o homem não é ele só: é ele e suas circunstâncias.
1. Unidade
Voltemos os olhos à natureza criada por Deus. Nela contemplamos um verdadeiro show de diversidade. Nada no mundo é igual ou repetido; tudo é imbuído do dom da diferença. O sol não é como a lua, o mar não é semelhante à terra, as árvores não são os animais, as aves não são iguais aos peixes, as feras não são como o homem.
Ainda que tomemos os peixes, as aves e cada grande grupo de seres vivos, em si e por si, depararemos diversidade quase infinita. A tilápia é tão diferente do tubarão, o bagre da traíra, as molinésias do peixe-espada, o lebiste do bacalhau. Que multifário espetáculode cores, formas, hábitos, instintos a natureza nos proporciona! Em uma palavra, que espetáculo de graça! A natureza só é tão deslumbrante, por ser tão variada.
Toda essa imensa diversidade, entretanto, subsiste em harmoniosa unidade. As diferenças tão profundas entre os seres só são percebidas numa visão de partes; no todo, reina inconteste a unidade. Quando voltamos o olhar das partes para o todo, temos a impressão fortíssima de um milagre: como pode o que é diverso e contraditório como repertório de partes ser tão uno enquanto todo?
Não devemos desprezar essa profunda lição que nos ministra a natureza, pois é a lição de Deus. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Os céus proclamam a glória de Deus (Sl 19:2,1). E que glória diversa proclamam!
De fato, no transe que essa visão comunica, na vertigem em que nos envolve, aprendemos uma lição magnífica. Se Deus tudo criou, a ordem da criação revela o conceito divino. Por isso, o Salmo 19 coloca a criação e a lei lado a lado, como testemunhos paralelos e concordes das mesmas verdades eternas.
Tão profunda é a concordância entre a natureza e a Escritura que Paulo chega a misturá-las, a borrar seus limites, ao citar o salmo: “A fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo. Mas pergunto: Porventura não ouviram? Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo” (Rm 10:17-18). As duas últimas orações são a continuação de Salmo 19:1-2. Por meio delas, Paulo cola a natureza na Escritura, anexa-as, funde-as, ao perguntar: “Não ouviram [a palavra de Cristo]?” E ao responder com o salmo: “Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo”.
Quero, porém, me fixar no que a natureza ministra sobre a unidade. Ela nos mostra o verdadeiro sentido do um. Sentido conferido, ampliado e explicado pelas Escrituras, mas nunca alterado, já que o revelador por trás da natureza e da Bíblia é um. Diz-nos a natureza que a unidade é a harmonia da diversidade. Não por acaso, Universo, em latim, quer dizer unidade do diverso ou da diversidade. Eis o que é o mundo. Eis o que até os pagãos entenderam que ele é, pois o chamaram Universo. Eis o testemunho que temos incessantemente diante dos olhos e que, como todo testemunho, discorre conosco.
Como rejeitar tão eloquente depoimento? Como defender qualquer outra forma de unidade? É conhecida a passagem em que Cripriano explica a unidade da igreja por meio da luz solar: “A unidade da luz não comporta que se separe um raio do centro solar [...] Do mesmo modo a igreja do Senhor, como luz derramada, estende seus raios em todo o mundo, e é uma única luz que se difunde sem perder a própria unidade”. Exemplo maravilhoso: a igreja não é uma catedral escura ou uma instituição secreta; é luz vertida por Deus sobre o mundo!
A luz derrama-se com liberdade, enquanto se reporta ao mesmo centro solar. Essa é a unidade que a criação nos revela. Poderíamos descrevê-la em tantos outros fenômenos, sempre da mesma maneira. Assim é nos peixes, na água, nos animais e sobretudo no exemplo do organismo vivo, qualquer que ele seja. Em todos esses casos, vemos o mesmo padrão invariável de unidade, isto é, a vigorosa harmonia na diversidade imensa. Não há unidade sem harmonia ou sem a mais ampla dose de liberdade e diversidade.
Não pode ser outra a unidade da igreja de Cristo. É apenas mais aperfeiçoada. Se a unidade do cosmo é uma diversidade, a da igreja é a perfeita diversidade. É o que significa dizer que Cristo veio reunir (Jo 11:52), juntar (Mt 23:37), e o faz ao seu modo, não de qualquer modo. Não ao modo do homem, que é sempre o da força, o da indelicadeza. Por isso também, quem com ele não ajunta, espalha (Mt 12:30).
Há muitas maneiras de juntar e diversas formas de unidade. A de Cristo, porém, é uma só. Por isso, não basta juntar: é preciso juntar com ele, juntar como ele junta. Do contrário, ainda que juntemos, espalharemos.
É possível buscar a unidade e estar contra Cristo. Basta, para isso, que se busque outra unidade, além da de Cristo e da Bíblia. Mas como é preciso juntar com ele! O ecumenismo hodierno busca a unidade, mas nem sempre a unidade bíblica, nem sempre a unidade com o espírito correto. O ecumenismo que transige com os pontos básicos de fé, para melhor ajuntar, não ajunta: espalha. Por isso, a sua unidade não é a de Cristo.
No Novo Testamento, há uma igreja em cada cidade, mas não só isso: nele vemos uma igreja que recebe a todos na base impreterível do amor. Essa é a unidade bíblica, uma unidade tão mais irrenunciável quanto percebemos ser impossível manter verdadeira harmonia fora do amor. Deus criou tal unidade como estruturou o Universo. O homem não pode (nem deve tentar) criar outra melhor.
A História não prova, abundantemente, ser isso impossível? O espírito da unidade é o amor fraternal sem barreiras. Não é a unidade com ou entre as denominações, já que o amor fraternal sem barreiras é aí tão difícil. Quem crê na unidade interdenominacional crê com ingenuidade. Não com a ingenuidade do engenho, nem com aquela que exclui a malícia, o que seria antes bom, mas com ingenuidade de entendimento, o que é péssimo (1 Co 14:20).
Um arguto escritor cristão deste século sentenciou sobre as divisões denominacionais: “Essa realidade não pode ser eliminada de um sopro, muito menos com exortações morais ao amor, à tolerância, ao entendimento. Tente alguém alcançar alguma coisa com essa laia, seja em que área for!” (BARTH, Karl. “A igreja e as igrejas”. In Dádiva e louvor – artigos selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 208).
Não é possível unidade aprovada por Deus, a não ser a de Cristo. A obra por excelência de Deus, hoje, é restaurar a unidade da igreja, mas não restaurar qualquer unidade ou restaurar a unidade de qualquer maneira. A obra de Deus é restaurar a unidade bíblica da igreja, a unidade prática da harmonia na mesma cidade, a unidade que é milagre. Que milagre? O do amor com liberdade e diversidade.
Em 1982, li as obras do pastor Juan Carlos Ortiz sobre a necessidade de uma renovação profunda da igreja, inclusive da sua unidade. Elas me impressionaram de um modo que mal posso traduzir. Porém, aquelas propostas se perderam. Deram em nada ou em muito pouco. Em tantos casos, o movimento iniciado por Ortiz terminou pior que o ecumênico de caráter interdenominacional. O impulso original do trabalho dele era, sem dúvida, genuíno, correto. A unidade, porém, que buscava não era a de Cristo. Na melhor das hipóteses, era uma espécie de unidade interdenominacional; na pior, uma unidade totalitária. O próprio Ortiz terminou de batina numa Igreja denominacional.
Deus não permite o sucesso de uma unidade diversa da que ele estabeleceu. Se o amamos e estamos dispostos a obedecer-lhe, devemos fazê-lo primeiramente nisto: na obra da restauração da unidade bíblica da sua igreja. Não me refiro, é claro, à letra da Bíblia. Refiro-me tanto a uma base concreta e prática da unidade quanto ao espírito dela.
Desgraçadamente, essas duas coisas perderam-se na História da Igreja. Bem cedo, setores inteiros da igreja entraram num processo de apostasia das verdades essenciais da fé. Num segundo momento, enquanto a ortodoxia era restaurada, na esteira da Reforma, o inimigo se aproveitou do desleixo para com o corpo, a igreja, a fim de introduzir um mal tão nocivo quanto o anterior: as facções protestantes. Pode-se propor que, durante a primeira crise, a unidade foi ferida pelas más doutrinas e, na segunda, pelas boas. E que, ante esse grave quadro, a obra de Deus só pode consistir em restaurar a unidade danificada por ambos os desvios.
[Segue-se, no texto, uma página cujo conteúdo desejo retratar em parte, pois não mais acredito na condição especial de bênção do movimento das Igrejas Locais, a que pertenci, ou no estado irrecuperável de degradação espiritual das igrejas católica e protestantes. Transcrevo essa página abaixo não para reafirmar o que então escrevi, mas para deixar um registro daquilo em que, na época, acreditava. Cumpre esclarecer, porém, que, embora equivocado nesse particular, o texto foi escrito exatamente para ressaltar a insuficiência da posição peculiar das Igrejas Locais,quando não acompanhada do que ele repetidamente chama o espírito da unidade, isto é, o amor fraternal. Os motivos da presente retratação estão detalhadamente explicados no texto “Reforma e Restauração”, disponível neste blog (abril/2013)]
O desejo de Deus é a restauração da unidade bíblica da igreja, não de qualquer unidade. Por isso, a restauração do Senhor, no nosso meio [nas Igrejas Locais], tem tanta confirmação divina. Não estamos na condição histórica do Catolicismo, do Protestantismo estilhaçado em inúmeras Igrejas, do ecumenismo interdenominacional ou de movimentos como o de Ortiz. Deus tem abençoado tão ricamente a restauração, em nosso meio,porque aqui está a genuína e bíblica unidade. Confesso que procurei informar-me muito sobre os vários ramos do cristianismo, porém nunca encontrei prática tão genuína da unidade, após os primeiros séculos, quanto entre aqueles que, com justiça, são denominados a restauração do Senhor. Achei inclusive alguns grupos que se reúnem como a igreja nas cidades onde estão, mas mantêm laços fortes demais com Igrejas protestantes. Estes últimos grupos não creem, como nós, que a obra principal de Deus, hoje, ocorre radicalmente fora tanto do Catolicismo como do Protestantismo, ambos irrecuperáveis. Paulo disse, mais de uma vez, que um pouco de fermento levada toda a massa (1 Co 5:6;Gl 5:9). Este é um princípio seriíssimo e prático: basta intervir tempo suficiente, sem arrependimento e reforma, para que o fermento torne a massa imprestável. No caso do Catolicismo e do Protestantismo, é evidente que esse tempo já passou. A massa já se tornou imprestável. De modo que implantar a restauração bíblica da igreja em bases interdenominacionais, com o corpo no deserto e o coração no Egito, é no mínimo fiar-nos em duvidosa utopia. A restauração genuína de Deus é, pois, a da unidade bíblica da igreja radicalmente fora do Catolicismo e do Protestantismo. Só nessa posição, é possível reimplantar em bom solo o princípio da verdadeira unidade.
[Fim do trecho retratado.]
2. O espírito da unidade
Tudo isso é, porém, apenas o princípio correto da unidade. É, por assim dizer, tão-só, a tomada de posição. É autoevidente que a posição deve ser movida pelo coração para ter algum valor. O amor fraternal sem barreiras é, com efeito, o espírito de toda unidade. Se tivermos a posição da unidade, sem o amor, estaremos mortos, pois a unidade destituída de amor é uma carcassa. É letra que mata. Só o espírito vivifica.
A comunhão é o espírito da unidade. Assim como há uma só unidade de Cristo, embora haja muitos tipos de unidade, há também uma só comunhão dos apóstolos, não obstante subsistam tantas comunhões. A prática da comunhão dos apóstolos é o viver sem barreiras, é a comunhão total na luz (1 Jo 1:7).
Enquanto temos barreiras, não temos amor uns pelos outros. Perdemos a comunhão dos apóstolos. Criamos outra comunhão. Por isso, Deus nos concedeu a experiência de andar na luz. Seres humanos sempre têm problemas de relacionamento. Isso é inevitável. É impossível que eles não ergam barreiras. Mas é imperativo que falem abertamente uns com os outros sobre as barreiras que têm no coração, a fim de desintegrá-las. Isso é andar na luz, como Deus está na luz.
Não há substituto para essa comunhão na luz. Só ela é, na prática, a comunhão dos apóstolos. Se deixarmos os problemas entre nós crescerem ou se eles efetivamente já crescem, no nosso meio [notem a desconfiança para com a comunhão existente nas Igrejas Locais], é sinal de que a comunhão está debilitada. O remédio único para isso é tratar todas as diferenças na luz.
Algumas linhas atrás, afirmei que a disseminação do fermento tornou imprestável a massa do Catolicismo e do Protestantismo. Ora, o pão sem fermento de Deus são “os asmos da sinceridade e da verdade” (1 Co 5:8). Que de bom poderemos produzir, se perdermos a sinceridade? A pureza da nossa comunhão reside na sinceridade, na adesão aberta e franca à verdade. Esconder problemas é esconder o fermento. Não é interessante que o Senhor Jesus tenha afirmado, na parábola do fermento, que a mulher não apenas misturou, abertamente, mas “escondeu” o fermento em três medidas de farinha (Mt 13:33; Lc 13:21 – grego)? O inimigo sempre introduz o fermento às ocultas. A comunhão sempre se desenvolve na luz.
O Evangelho nos ensina que o fermento dos fariseus era a hipocrisia (Lc 12:1). Dele os discípulos deviam acautelar-se. A hiprocrisia é o estágio avançado do processo de fermentação; a ocultação de barreiras é o estágio incipiente dele. Alguém não o crê? Então explique por que Paulo faz da sinceridade o não-fermento.
Encobrir problemas pessoais pode, sim, levedar toda a massa, pois danifica a comunhão, que é a própria massa. Quando assumimos essa condição, ainda que mantenhamos a posição correta da unidade, já não temos o seu espírito. A mais verdadeira caracterização da unidade é a comunhão. Que unidade é essa, em que afirmamos que somos um e não suportamos viver juntos? Essa é a falsa unidade, é a unidade que Jesus denominou hipocrisia. É a fermentação da unidade.
As sete igrejas de Apocalipse 2 e 3 possuem significado simbólico, pois podem ser vistas como estados básicos da igreja cristã, ao longo de sua história. Éfeso é a igreja no final da era apostólica. Esmirna, a igreja sob a perseguição romana. Pérgamo, a igreja aliada ao Império, após a conversão de Constantino. Tiatira, a igreja medieval apóstata. Sardes, a igreja parcialmente reformada. Filadélfia a igreja no estado avançado de restauração. Não dizemos que cada uma dessas igrejas possui um estado ou condição distinta?
Porém, se assim é, Filadélfia, a igreja louvada por Deus, é o estado em que prevalece o amor fraternal. Que quer dizer Filadélfia, a não ser philéo adelphói, amor entre irmãos? A igreja no estado avançado de restauração não é a igreja numa cidade. Todas as sete são igrejas em cidades. Mas Filadélfia e só ela é a igreja do amor fraternal, a igreja da comunhão ardente, do afeto sem barreiras, não da mera posição correta.
A comunhão dos apóstolos é mencionada no texto grego de Atos 2:42. A melhor tradução desse verso parece ser: “E perseveravam no ensino e na comunhão dos apóstolos”. Nem Atos 2:42, nem o testemunho que o livro inteiro presta da igreja primitiva têm foco numa comunhão qualquer. Os primeiros cristãos não perseveravam numa comunhão genérica, mas na comunhão específica e ortodoxa dos apóstolos.
Cada grupo religioso, cada sociedade, cada agremiação tem a sua ordem interna, a sua comunhão particular. Ninguém transitará bem na Congregação Cristã no Brasil, com livros diferentes da Bíblia em baixo do braço. A comunhão própria da Congregação não o admite. Numa denominação histórica não se permitem práticas pentecostais. Por isso, alguém que busque os carismas não será bem recebido em seu círculo. A comunhão histórica vive o bastante para não o permitir.
Quem está em condição de negar que, nos vários grupos cristãos, vigoram outras comunhões, além da dos apóstolos? Cada cabeça uma sentença, cada sentença um mestre. Cada denominação tem a sua comunhão; cada comunhão, uma unidade. Não nego que existam unidade e comunhão nas denominações. Nego que prevaleçam nelas a unidade e a comunhão ortodoxas.
Isso deve servir de advertência a todos os que confessam o seu compromisso com a restauração da unidade. Particularmente a nós [nas Igrejas Locais]. Sem o amor que vence barreiras, a unidade está morta. Em Filadélfia, philéo não indica o amor mais elevado, o amor próprio de Deus, que em grego é agápe. Philéo é um amor mais tendente à amizade. Não que o amor sublime, agápe, não se encontre em Filadélfia. Mas agápe é tão elevado que não se manifesta a todo momento. Nenhum amor pode ser verdadeiro sem ser sincero. E nenhum amor humano pode ser sincero, sendo sempre sublime.
Essa é a marca de Filadélfia: o amor-amizade entre irmãos. O amor singelo, que nada esconde, tudo abre, tudo traz para a luz de Deus. Tal amor é também comunhão, é ausência total de condição para a convivência. Nesse amor se sumaria a unidade.
3. Grandes exemplos de diversidade
Os vários grupos cristãos apresentam condições mediante as quais uma pessoa pode ingressar e transitar neles. Já indicamos que o não pentecostalismo é uma condição adotada por muitas confissões históricas e que o uso exclusivo da Bíblia o é para a Congregação Cristã no Brasil.
A comunhão dos apóstolos, porém, se distingue dessas de cunho particular. É a comunhão na diversidade, sem condições que não sejam o novo nascimento e a fé ortodoxa em questões vitais. Em tudo o mais, a comunhão apostólica é inteiramente aberta. Ninguém pode exigir ou proibir coisa alguma a um cristão exceto isso. O que comer, os costumes a guardar etc. não devem ser matéria de discussão na igreja (Rm 14:1-3,5).
Tanto no Velho como no Novo Testamento, tal princípio de unidade é ratificado exaustivamente. Quando Miriã e Arão erraram, ao se rebelarem contra Moisés, Deus de modo nenhum negou que os dois descontentes fossem também seus porta-vozes. Ainda que houvesse um princípio de sublevação no comportamento deles, o Senhor não negou a pluralidade de ministérios no seu povo. Havia, é certo, um só ministério global no Velho Testamento, como Paulo indica em 2ª aos Coríntios 3:7,9. Nesse ministério, estavam Moisés, Arão, Miriã e todos os demais filhos de Israel, cada qual a exercer a sua função, num quadro geral de harmonia. Mas ali também existiam ministérios, no plural, assim como no Novo Testamento há diversidade de ministérios (1 Co 12:5) integrados num único ministério.
Se o ministério de Moisés tinha a preeminência, uma ampla liberdade permitia que outros também mantivessem trabalhos ministeriais. Miriã e Arão possuíam os seus ministérios. Ela era um profetisa, ele, o Sumo-Sacerdote responsável por ministrar a Deus e ensinar o povo. Todo um campo de particularidades era possível, nessas funções, em harmonia com o ministério mais eminente de Moisés.
Para falar em sonhos e visões aos irmãos de Moisés, Deus não se dirigia primeiro a ele. Tampouco exigia que aqueles, ao receberem uma revelação, a submetessem a Moisés para que autorizasse ou não a sua publicação. As coisas reveladas, pelo simples fato de o serem, pertenciam e ainda pertencem ao domínio público. Deuteronômio 29:29 afirma que elas “pertencem a nós e a nossos filhos para sempre”, não a um homem ou a um ministério particular.
Esse é o princípio pelo qual Deus regia o ministério do Velho Testamento. O próprio Moisés de modo nenhum possuía um espírito exclusivista ou favorável ao seu ministério, em detrimento do que era exercido por outros. Não é pensável que um povo que, havia pouco, se libertara da escravidão e fugira como uma horda tivesse organização tão estrita que as palavras de todos fossem subordinadas à de Moisés. Israel tinha, antes de tudo, de sobreviver no deserto. Não havia condições para ele implantar qualquer coisa parecida com um regime de uniformização de discursos.
Em Números 11, quando o Espírito do Senhor desceu sobre os setenta anciãos designados como cooperadores na tarefa de cuidar do povo, Josué, ajudador de Moisés, sugeriu que este proibisse Eldade e Medade, que pertenciam aos setenta, de profetizar no arraial, enquanto os outros sessenta e oito o faziam em volta da tenda da congregação, fora do arraial. Afinal, onde se vira tal dissonância, tal dissintonia?
Ao ainda inexperiente Josué pareceu que a solução para o caso era: “Proíbe-lhes” (Nm 11:28). Moisés, porém, disse-lhe: “Tens tu ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito” (Nm 11:29). Ainda que o trabalho de Deus seja executado de um modo, por uns, é perfeitamente possível praticá-lo de outro modo. Ainda que alguém profetize na tenda da congregação, é possível profetizar no arraial. Desde que isso se faça pelo Espírito do Senhor...
Este não é o lugar para demonstrações técnicas, mas é possível comprovar, pela Bíblia, que Jó viveu por volta da época de Jacó e seus doze filhos. Temos, pois, em Jó, um autêntico ministro de Deus situado fora da linha dos descendentes de Isaque. Se alguns gostam de enfatizar que o livro de Atos foca Pedro e Paulo, em detrimento dos outros ministros, temos em Jó não alguns versículos, mas um livro bíblico inteiro dedicado a um ministério paralelo aos de Jacó e seus filhos. Tal era a predileção de Deus por Jó que, após Satanás ter dado voltas à terra, não lhe perguntou se observara Jacó ou José, mas: “Observaste o meu servo Jó?” (Jó 1:8;2:3). Ainda que Jó não fosse descendente de Isaque e Jacó, a bênção, a atenção e o mover de Deus estavam também com ele, no tempo dos patriarcas.
Mas isso não é tudo. Pode-se estabelecer também que Sansão e Samuel julgaram Israel no mesmo período. Nunca houve contradição em Deus levantar mais de um juiz sobre Israel, ao mesmo tempo, já que a unidade divina se dá dentro de uma ampla pluralidade.
Essa verdade se encontra por toda a parte, nas Escrituras, assim como um princípio correspondente pode ser encontrado por toda a parte, na natureza. Ao longo da História, Deus a ratifica repetidamente. Após o decreto de Ciro para que os judeus retornassem livremente à sua pátria, Daniel (notem bem: o abençoado Daniel) permaneceu longamente em Babilônia. É o que se depreende dos versos 1 e 4 do capítulo 10 do seu livro. Não será o caso de se perguntar por que ele lá permaneceu, se Deus desejava que o seu povo reconstruísse o Templo, Jerusalém e as outras cidades e aldeias? Por que ele ficou lá, se o culto especial só podia ser prestado no lugar que o Senhor escolheu? Enfim, se Deus havia dito: “Buscareis o lugar que o Senhor vosso Deus escolher de todas as vossas tribo, para ali pôr o seu nome, e a sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas” (Dt 16:5-6)?
Se descumprir esse mandamento era pecado, o próprio Deus foi cúmplice de Daniel, pois confirmou a permanência dele em Babilônia, concedendo-lhe visões. Mas não há pecado algum. Simplesmente, o mover de Deus é tão elevado que não se sujeita a obrigações formais e estritas. O povo voltava para a pátria, Daniel permanecia em Babilônia, e nessas duas coisas estava o mover de Deus.
Vejamos, porém, casos do Novo Testamento. João batizava em Enom, e o Senhor, do outro lado do Jordão (Jo 3:22-23), sem qualquer desarmonia ou emulação. Acaso aquele que repreendeu energicamente os seus discípulos, os fariseus, os herodianos, o próprio Herodes e os pecadores, quando erraram, não teria repreendido João Batista, se este houvesse estabelecido um ministério concorrente com o de Jesus? Mas Jesus não o repreendeu. Antes louvou-o, quando os discípulos daquele ministro o interpelaram.
Se a obra paralela fosse um desvio, quando os discípulos de João procuraram Jesus, por que ele não mostrou o erro de João? Por que, ao contrário, chamou-o maior de todos os nascidos de mulher até o fim da era dos profetas (Mt 11:11,13)? Como podia um desviado ser maior do que Abraão, Moisés, Davi, Isaías, Jeremias e Daniel? O Senhor situou todo o trabalho ministerial de João, inclusive o período em que transcorreu paralelamente ao de Jesus, na era da lei e dos profetas, antes do reino dos céus. A questão é como um ministro decaído e desviante pode ter sido posto acima de todos os profetas?
É fora de dúvida que João se equivocou, mas há modos e modos de se equivocar. O erro de João Batista não foi grave ou culposo. Atos é inequívoco ao indicar que o discipulado mencionado pelo Senhor, em Mateus 28:19, era o de Cristo e de mais ninguém. Na igreja primitiva, sob orientação do Espírito Santo, levantaram-se muitos discípulos, mas não vemos alguém ser chamado discípulo de um ministro que não seja Cristo. Só em relação a Paulo, e ainda assim como um reflexo de sua posição passada no judaísmo, mencionam-se discípulos (At 9:25).
No entanto, nem João, nem Paulo perderam-se por terem mantido discípulos, já que manter discípulos não é errado ou proibido. Em Israel, ter discípulos não significava mais que ser mestre. E a igreja sempre teve mestres (At 13:1-2; Ef 4:11). O Velho Testamento também fala em moços seguidores de Moisés, de Elias e outros. Não se trata de justificar quem quer que seja, mas de contextualizar os fatos que nos cabe julgar.
João viveu num período de transição. Isso significa que Israel passava da época em que os profetas haviam tido seguidores, e os mestres, discípulos, para uma era em que todos seriam ensinados por Deus. Nada mais cabível que, num tempo de transição, a passagem de um a outro desses quadros se dar gradativamente.
Quando João batizava em Enom, sua obra era paralela à de Cristo, mas dava testemunho dele. É o que João 3:26 nos informa: “Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando”. "Do qual tens dado testemunho"! João continuava a prestar o seu testemunho de Cristo. E não só isso. Ele também formava discípulos para fazerem o mesmo, pois declarou: “Vós sois testemunhas". Testemunhas de quê? Ele mesmo respondeu: "testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. O que tem a noiva é o noivo [Jesus]; o amigo do noivo [João] que está presente e o ouve, muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:28-30).
Meu objetivo não é minimizar os erros de João. Mas é preciso definir claramente esses erros. Digamos que João tenha errado gravemente: ainda assim, seu erro não invalida o princípio das obras paralelas, seguido corretamente por Jó, Daniel e tantos outros. A verdade bíblica não é assim tão miserável que possa ser abalada pelo erro de um homem.
Quando seus discípulos vieram relatar-lhe o “sucesso” de Jesus além do Jordão, João respondeu-lhes: “O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada” (Jo 3:27)! Ninguém angaria coisa alguma boa, se do céu não lhe for dada. Cada qual faz o que os céus lhe dão. Se alguém faz muito, sem iludir, é porque Deus lhe deu muito; se outro faz mais, é porque Deus lhe concedeu mais; e se o Cristo faz tudo, é porque lhe tem sido dado tudo! Os céus tudo decidem.
Não há por que brigar ou proibir, zangar-se ou boicotar. Deus deixa caminho aberto a todos os ministérios, a fim de que o que é bom floresça, o que é melhor floresça mais e o que é melhor do que tudo imponha-se sobre todos. Essa é a obra do Novo Testamento. Assim surgiu o evangelho e por nenhum outro método.
O próprio Senhor ordenou a seus discípulos que não proibissem a obra de quem não seguia com eles: “Falou João [Zebedeu] e disse: Mestre, vimos certo homem que em seu nome expelia demônios, e lho proibimos, porque não segue conosco. Mas Jesus lhe disse: Não proibais; pois quem não é contra vós outros, é por vós” (Lc 9:49-50). Nessa passagem, a razão dada para a não proibição de modo nenhum foi negativa. Jesus não negou que ele ou os apóstolos por ordem dele tivessem jurisdição para proibir. Algo mais forte foi dito: Jesus declarou que o obreiro que atuava paralelamente e fora repreendido pelos discípulos estava em harmonia com eles. Portanto, o trabalho do obreiro não só devia ser tolerado como ele tinha o mesmo direito dos apóstolos de ministrar.
Quem tem algo a dizer, diga-o. Quem não tem, cale-se e ouça. Não é o que Paulo recomenda aos coríntios praticarem em suas reuniões públicas (1 Co 14:27-30)? Ampliemos esse princípio absolutamente, e teremos o Novo Testamento. Mas, por falar em Paulo, ele não nos relata que, após a sua conversão, não consultou carne e sangue para iniciar o seu ministério? Ele próprio não trabalhou paralelamente aos apóstolos em Damasco e depois na Arábia? Não o fez sem consultar quem quer que se possa chamar carne e sangue (Gl 1:16-18)? E isso não foi citado por ele para justificar uma radical liberdade em Gálatas? Sim, Paulo justificou a sua obra paralela movida pelo Espírito Santo, ratificando e reafirmando, tantos anos depois, que, de modo deliberado, não consultou carne e sangue.
É claro que, cedo ou tarde, a coordenação com os apóstolos viria a ser necessária. O que Paulo quis mostrar, em Gálatas, é que tal coordenação se dava dentro de um acentuado paralelismo, sem brigas e em comunhão.
Acaso Cefas, de Jerusalém, Paulo, de Antioquia, e Apolo, de Alexandria, não estiveram todos em Corinto? Não foram todos apóstolos para os coríntios? Eis um lindo e harmonioso exemplo. Embora Corinto fosse a região de labores especiais de Paulo, como os outros apóstolos apressaram-se a reconhecer (Gl 2:9), Jerusalém não pediu autorização para mandar um apóstolo ali. Claro que, cedo ou tarde, uma coordenação ia ser necessária, mas a obra de Deus se dá num contexto de fundamental pluralismo.
Que dizer, então, de Barnabé, Apolo e outros, que não seguiram física ou doutrinariamente a Paulo? Barnabé desentendeu-se com Paulo e se separou dele (At 15:39), e Apolo de modo nenhum atendeu um pedido dele sobre o trabalho missionário de ambos (1 Co 16:12). Claro que isso não precisa ser tomado como exemplo ou paradigma, mas, se houve ali algum erro, tampouco precisamos aumentá-lo ou considerá-lo algo que não pudesse ser removido, um minuto depois, pela confissão.
Se Paulo obteve supremacia no ministério, como Moisés antes dele, foi devido à graça superior que recebeu e que, pouco a pouco, desabrochou. E se Barnabé e Apolo tiveram alguma desvantagem, proveio também daí, não jamais de terem trabalhado paralelamente.
Por toda parte, vemos a mesma coisa. Deus nunca proibiu, pelo contrário incentivou e fomentou fortemente os trabalhos ministeriais paralelos. Desses fatos, devemos extrair que o trabalho paralelo é um verdadeiro princípio bíblico e, como tal, é obrigatório. Deve existir. O que não se deve é confundir o trabalho paralelo (o princípio) com os erros eventuais dos ministros de Deus.
Estêvão foi muito além da incumbência para a qual foi designado, em Atos 6. Ele passou do serviço às mesas à discussão pública com os judeus. Ao fazê-lo, ele não repetiu o ensino de Pedro e dos onze, mas falou outras revelações com o mesmo objetivo deles: pregar a salvação de Cristo. Essa atitude de Estêvão desencadeou uma sangrenta perseguição. Claro: quem olhasse tal quadro com espírito autoritário diria que ali não estava somente um desvio ministerial, mas a devida punição a ele! Olhemos, porém, atentamente, para Atos, e veremos em Estêvão o que é um homem identificar-se plenamente com Cristo, o que é um homem ter rosto como de anjo (At 6:15) e subjugar as trevas com luz indizivelmente clara.
Não está aí um quadro de inegável pluralismo? E não podemos concluir, desses fatos, que a obra cristã primitiva desenvolvia-se em tal pluralismo? Nem mesmo o ministro confirmado por Deus com uma sabedoria superior à de todos os demais era encarregado da obra em toda a Terra. Paulo reconhecia claramente a sua “esfera de ação”. Foi essa a expressão que ele utilizou em 2ª aos Coríntios 10:13: “Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida, mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende até vós”. Não há ministro algum cuja seara seja ilimitada.
Lembremo-nos também de que a seara de Paulo sequer cabia exclusivamente a ele. Pelo contrário, Paulo disse que Apolo regou o que ele plantara. Disse mais que o mistério do crescimento não veio dele, nem de Apolo, mas diretamente de Deus (1 Co 3:6). Portanto, Paulo dividiu sua seara com Apolo, como a dividira antes com Barnabé. Ninguém é designado sozinho para a obra em toda a Terra ou para a obra numa região qualquer. Não é pouco importante lembrar que ser designado com outro, aqui, não é o mesmo que ser acompanhado de um escravo ministerial.
Vemos, em tudo, que a unidade cristã é plural. Assim é no Velho e no Novo Testamento. Não é de outro modo na História da Igreja, em particular na época dos pais que sucederam os apóstolos e transmitiram o seu ensinamento. Cipriano foi um desses pais. Sabemos que opôs-se à intenção de Estêvão de Roma de impor a sua convicção a todas as igrejas do orbe sobre o batismo dos hereges. Convocando um concílio, na sua região, para decidir o assunto, Cipriano recomendou aos bispos que compareceram que expressassem livremente o seu sentimento sobre o assunto. É comum ver-se, nesse seu gesto, decidida oposição às pretensões demasiadas do bispado romano.
Ireneu, por sua vez, afirmou, no século II, que a dissonância no jejum não dissolve a consonância na fé. E Gregório de Roma declarou que a divergência sobre determinados assuntos não fere a unidade da igreja.
Poderíamos dar outros exemplos, tanto da época dos pais como posteriores. Não o faremos para não nos tornarmos cansativos. O importante, o digno de realce, é a virtual unanimidade, o amplo acordo dos pais sobre o tema. Não creio que eles teriam chegado a esse consenso, se uma prática oposta houvesse criado raízes na época dos apóstolos. Pelo contrário, se esse tivesse sido o caso, os ramos nascidos das raízes teriam sido observados e testemunhados por eles.
Nem uma testemunha externa, um governante como Plínio, o Moço, na epístola que dirigiu ao Imperador Trajano sobre os cristãos, apontou qualquer prática desviante dessas. Plínio descreveu a vida cristã primitiva de modo tão simples que parece incompatível com a hierarquia e o controle.
Se em certas épocas um obreiro se torna digno de maior destaque, como José entre os doze patriarcas e Paulo a seu tempo, devemos lembrar-nos de que toda grande verdade de Deus tem o seu outro lado. Do contrário, não seria grande. Sem o seu outro lado, a verdade entra em desequilíbrio. No caso da obra de Deus, a unidade precisa do equilíbrio da pluralidade.
Se o enfoque centralizado num obreiro é importante para a unidade da igreja, o pluralismo também o é. De modo nenhum, esse pluralismo desagrega a unidade. Pelo contrário, ele a acrisola, purifica-a e a torna mais forte. É na colaboração de diversidades e até de contrariedades que a unidade final se enriquece. De modo que a unidade sem pluralidade é pobre, não passa pela prova. E, por não passar, Deus mesmo a descarta. Substitui a unidade da uniformidade pela unidade da diversidade, que a natureza e a Bíblia exemplificam.
Essa diversidade precisa ser tão respeitada quanto a unidade que dela resulta. Elas são aspectos da mesma verdade. Toda unidade é, portanto, o âmbito de uma diversidade não apenas real, mas forte e prevalecente. Alguns perguntarão: como a unidade poderá ser alcançada, dando-se espaço para a pluralidade? Mais que em unidade, isso haverá de resultar em divisão. Devemos, porém, lembrar-nos de que a construção da unidade não obedece a um passo-a-passo definido, nem é produzida pelo braço humano. É obra de Deus. Por isso, deve seguir os princípios divinos estabelecidos nas Escrituras.
Paulo conclui suas observações em prol do uso do véu, em 1ª aos Coríntios 11:16, afirmando que, se alguém pretendesse ser contencioso e não seguir a sua recomendação, devia saber que os apóstolos e as igrejas de Deus não tinham tal costume. Dessa frase alguns extraem que há costumes comuns às igrejas, o que é óbvio. Que povo não tem costumes? Porém, os costumes a que Paulo se refere não são obrigatórios. Se o fossem, feririam a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Essa espécie de costume fere a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Ou temos costumes obrigatórios, ou temos comunhão.
Os que invocam 1ª aos Coríntios 11:16 em altos brados querem usar os costumes ali mencionados para impor a uniformidade na igreja. Mas o verso não se refere ao cristão que utiliza sua liberdade para não apoiar o uso do véu, por motivo de consciência. Se fosse assim, a recomendação específica de Paulo, no tocante ao véu, entraria em conflito com Romanos 14:3,6, em que ele afirma: “Quem come não despreze ao que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu [...] Quem distingue entre dia e dia, para o Senhor o faz; e quem come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus”. Costumes diferentes são lícitos, quando baseados em convicção.
Não há qualquer evidência de que as igrejas neotestamentários tivessem práticas com força de condição espiritual para uma comunhão plena. Entre elas, havia considerável liberdade de formas não pecaminosas. Nem o acordo no tocante a práticas significava unidade, nem a diversidade de práticas era considerada divisão.
Sob esse conceito, unidade é o somatório de todos os diversos, sem exclusão de algum. Uniformidade, por sua vez, é a unidade forçada de alguns. Um autor conhecido afirmou que o Novo Testamento defende a maior pluralidade de dons, pessoas e tudo o mais, exceto a pluralidade de igrejas (BARTH, Karl. "A igreja e as igrejas" In Dádiva e louvor- artigos selecionados. São Paulo: Sinodal, 1986. p. 206). Assim é, se nenhum dom ou pessoa for excluído. Se houver exclusão, restará a uniformidade.
Os que são contrários a esse ponto de vista lembrarão que Paulo condenou a existência de partidos na igreja em Corinto (1 Co 1:10-13). Dirão, pois, que não só a pluralidade de igrejas é pecaminosa, mas também a pluralidade de grupos na mesma igreja. Ocorre que Paulo não condenou quaisquer grupos. Condenou partidos, ou seja, germes de futuras divisões maiores. Condenar partidos é o mesmo que condenar a pluralidade de igrejas, à qual eles tendem, já que os partidos são o estágio incipiente da pluralidade de igrejas.
Ao mencionar os partidos, portanto, o apóstolo não condenou a pluralidade, mas a doença dela, que ameaçava devorar a unidade. Ele condenou a tentativa da parte de dominar todo o corpo, como um tumor que cresce desordenadamente. Fundamental é tratar elementos plurais, a exemplo de opiniões, como elementos do todo, não como o próprio todo.
Não fazer da parte um todo, dos elementos da pluralidade uma nova unidade é a advertência dirigida a todo cristão. Claro que, se outra pessoa toma aqueles elementos e os usa para criar uma nova unidade, a responsabilidade não é de quem os criou. O inventor do avião não pode ser preso pela utilização de seu engenho para fins bélicos. Nem podem os autores bíblicos ser condenados por heresia, porque hereges usaram as Escrituras para sustentar suas doutrinas.
E, se essa é a unidade bíblica, a implantação prática dela há de ser o caminho para a restauração da igreja. Por muito tempo, temo-nos esforçado para implantar uma unidade férrea e inflexível. Talvez, no início da restauração da igreja, essa estratégia tenha sido necessária. Não se desatola o veículo sem acelerar o motor mais do que é benéfico para ele. Porém, é necessário um redirecionamento para o equilíbrio entre unidade e diversidade, o que não é absolutamente arriscar a unidade.
Se a restauração da nação de Judá, no Velho Testamento, é um tipo da que ocorre na era da igreja, a reconstrução das cidades e vilas, no interior do país, é uma das suas etapas finais. E, se Jerusalém, é o símbolo maior da unidade prática, as cidades e vilas representam a pluralidade. Necessário é, pois, reerguer os centros de pluralidade dentro da unidade. Do contrário, tudo o que nossa unidade expressará será desolação.
4. Até a unanimidade
Efésios 4 nos fala de duas unidades: a do Espírito (Ef 4:3) e a da fé (Ef 4:13). A primeira é a unidade possível hoje. Somos exortados a preservá-la, pois já a possuímos. Porém, o outro versículo ordena buscarmos também a unidade da fé, que ainda não possuímos. Portanto, a unidade da fé é futura.
Que significam essas duas espécies de unidade? A do Espírito é a que pertence a ele e só ele pode produzir, embora a sua preservação dependa do nosso esforço, pois o primeiro verso diz: “Esforçando-vos diligentemente para preservar a unidade do Espírito”. Mas a outra unidade, da fé, envolve tanto a fé vital como convicções secundárias (Rm 14:22), a exemplo de o que comer, que dias guardar e coisas semelhantes.
Efésios 4:13 fala-nos da unidade da fé nesse sentido amplo. Refere-se à unidade da fé primária e também secundária. A primeira é a fé que “de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). Se ela nos foi entregue, já a possuímos. Temos também a unidade que se dá em torno dela. Com a unidade da fé (primária e também secundária), porém, se passa o contrário. Ainda não a possuímos, pois essa fé integral não terminou de nos ser revelada.
Não nos enganemos, esperando que a fé de cada um possa, à força de autoritarismos, chegar a ser idêntica. Não é possível saltar a etapa atual da unidade do Espírito, que nos faz um enquanto ainda mantemos divergências em matérias de fé secundária. A unidade do Espírito envolve conformidade na fé e diversidade em matéria de opinião. Claro que, por isso, a negação do direito à opinião e à sua expressão constitui um furto de liberdade, uma escravização do cristão, que por sua natureza é livre.
Assim, o limite óbvio para a divergência entre os cristãos, hoje, é o plano de Deus, no qual está calcada a fé que opera para salvação. No original de 1ª a Timóteo 1:3-4, a conformidade do ensino à dispensação ou economia de Deus é exigida: “Roguei que permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que antes promovem discussões do que o serviço [economia] de Deus na fé”.
Ensinar outras doutrinas é afastar-se da economia, isto é, do plano de salvação de Deus. Fábulas e genealogias sem fim, como as introduzidas pelos gnósticos, negam esse plano de salvação, que se direciona a um só fim e não a vários. Por isso, são proibidas na igreja. Do que também se conclui que a diversidade ajustada ao plano divino não pode ser combatida, mas a que não se ajusta deve ser eliminada.
Outra distinção importante é a que se pode traçar entre unidade e unanimidade. Esta é a unidade de opiniões, sentimentos, pontos de vista. É a unidade total da alma. Por seu caráter perfeito, a unanimidade é uma flor delicada, que não cresce em qualquer clima, nem em qualquer solo.
Sob inspiração do Espírito, o escritor de Atos usou muitas vezes os termos unânimes, unanimidade e outros semelhantes. Porém, só o fez no início do seu livro, o que sugere que a unanimidade estava presente, naquele tempo, mas não em épocas posteriores. Isso é confirmado nas epístolas, em que Paulo exorta seus leitores a buscarem a unanimidade: “Completai a minha alegria de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento” (Fp 2:2) e “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique pensem concordemente no Senhor” (Fp 4:2). Vemos que a unidade estava presente em Filipos, mas a unanimidade não. Não era diferente na maioria das outras igrejas da época.
Porém, ainda quando não está presente, a unidade total de alma ou unanimidade deve continuar a ser nossa meta. Devemos trabalhar continuamente com vistas a ela. Só não adianta nos iludirmos. Não adianta forjarmos a unanimidade com a ferramenta do autoritarismo. Esse método é inteiramente humano. Não pertence ao Espírito. E, por não pertencer, por meio dele, só alcançaremos a unanimidade humana, jamais a do Espírito. Devemos, sim, exortar, conciliar e trabalhar de vários modos pela unanimidade dos que creem, mas não usar o esforço desassistido da graça para obtê-la.
A divisão é um erro grave, um descontrole no seio da diversidade. Nas relações familiares, encontramos bons exemplos de como ela opera. Por mais que haja desentendimentos entre os membros de uma família, o amor costuma ser mais forte que tudo. A família não se mantém unida pela ausência de diversidade ou de desavenças, mas pela presença do amor. Por isso também, a perda da unidade, na família, é uma verdadeira aberração.
Da mesma forma, as divisões existentes na igreja, são um sério problema. Por elas, a família de Deus é rompida, a realidade da vida familiar é perdida, e a unanimidade se torna uma meta inviável. Isso não é menos que uma aberração. Para usarmos a metáfora de Cipriano, é como se os raios do disco solar se desconectassem dele.
Infelizmente, nem a unidade do Espírito parece muito presente, na igreja de Deus, hoje. Atraímos vergonha para o evangelho, dividindo-nos e nos mantendo divididos do modo mais cruel e radical.
[Cabe inserir, aqui, um comentário. De 1991, quando A unidade da igreja foi escrito, até hoje, uma ação especial do Espírito Santo fez aumentar bastante a compreensão entre cristãos das mais variadas confissões. Oposições tradicionais como a católico-protestante, a católico-ortodoxa, a wesleyana-calvinista e a histórico-pentecostal continuaram a sofrer desgastes impostos pela nova consciência. Não cabe comentar, aqui, os fatores desse desgaste, mas é importante afirmá-lo, para que o diagnóstico sobre as divisões, apresentado no texto, não seja interpretado como historicamente imutável. As divisões cristãs não são inalteráveis. Embora constituam um problema persistente, elas mudam em intensidade e até em natureza, ao longo do tempo. Foi o que se deu, ainda mais intensamente que antes, nas últimas décadas].
Por isso, somos chamados a restaurar a unidade bíblica, a unidade do Espírito, rumo à unanimidade, não à unidade do homem, da carne ou do sangue. Nessa senda, o que excede os princípios da unidade deve ser objeto de tolerância e de transação por parte dos cristãos. Não se trata de saber se uma prática originou-se aqui ou ali, se Fulano ou Beltrano a propôs. Se quem a traz é um irmão de fé, devemos permanecer abertos a ele e a ela.
Só um mínimo de princípios necessita ser salvaguardado. Em tudo o mais, resta-nos permanecer de braços abertos e anelantes por abraçar os irmãos de qualquer procedência. A igreja só é local, porque o homem é limitado. Se ele não o fosse, só a igreja universal existiria. Portanto, nem o caráter local, nem o aspecto universal da igreja são mais importantes do que o amor.
Ao escrever este texto, não penso em direitos, meus ou de outros. O amor não enxerga direitos, somente deveres. Tampouco considera receber, mas dar. Por isso, o amor é o espírito da unidade. A unidade se realiza na comunhão, e a comunhão, no amor. Vale sempre dizer, no amor fraternal, que é também uma amizade. No amor de Filadélfia. Verdade é que há muitas barreiras regionais, culturais, geográficas, políticas e até pessoais a esse amor. Mas ele tem o incrível poder de explodir todas as barreiras. É o que vemos realizado no livro de Atos.
Naquela época, as dificuldades de comunicação eram imensas, mas a unidade estava calcada no amor. Um grande número de evangelistas, de mestres e até de apóstolos, autointitulados ou não, possuía cada qual sua esfera de ação. Porém, um trânsito de amor e um esquecimento contínuo dos próprios direitos aproximavam pessoas assim distantes e faziam delas um corpo.
Isso mostra que o que separa não é a geografia, mas o interesse particular. Não são as dificuldades de comunicação. É o apego ao ego e aos próprios direitos. O amor, porém, faz esquecer o eu e pensar no tu. Ele estreita as distâncias e fecha as lacunas que o interesse e o direito abrem.
De que necessitamos mais, hoje, do que do amor, que é uma singela amizade entre irmãos? Não permitamos que um sistema rígido esfrie esse amor entre nós. Os princípios da unidade divina não formam um sistema. Não formemos nós um, nem coloquemos qualquer sistema de prescrições e proibições acima da comunhão.
Unanimidade é o fruto do perfeito amor. É Atos capítulos um a cinco. Talvez pensemos que é preciso não ter pecado para experimentar o que se encontra nesses capítulos. Mas Atos foi escrito para mostrar que isso não é verdadeiro. Para viver a unanimidade, não é preciso não ter pecados, mas cobrir os que se tem. Só o amor realiza isso: “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” (1 Pe 4:8).
Pedro cita Provérbios 10:12, que afirma que “o amor cobre todas as transgressões”. Essas duas testemunhas, uma do Velho, outra do Novo Testamento, estão a nos mostrar que o amor tem relação com os pecados. Ele não os expia ou remove, como a justiça faz. Mas os homens não buscam a justiça o tempo todo. Por isso, o pecado está sempre presente entre eles. Só o amor é capaz de cobri-los.
Essa é a única e verdadeira condição da unidade: cobrir os pecados uns dos outros, por meio do amor. Se não há justiça sem perdão, não há comunhão sem o amor que cobre pecados. Não há comunhão sem disposição para sofrer o dano injusto, em vez de impor a lesão justa. Isso é a lei e os profetas. E ainda mais claramente é o evangelho. O resto é teoria sobre a unidade e palavreado inútil. A unidade real, a unidade possível é a que se impõe, quando o amor cobre nossa multidão de pecados. Seja essa a nossa unidade.
São Paulo, 30 de maio de 1991.
quinta-feira, 20 de junho de 2013
A Unidade da Igreja (3)
4. Até a unanimidade
Efésios 4 nos fala de duas unidades: a do Espírito (Ef 4:3) e a da fé (Ef 4:13). A primeira é a unidade possível hoje. Somos exortados a preservá-la, pois já a possuímos. Porém, o outro versículo ordena buscarmos também a unidade da fé, que ainda não possuímos. Portanto, a unidade da fé é futura.
Que significam essas duas unidades? A do Espírito é a que pertence a ele e só ele pode produzir, embora a sua preservação dependa do nosso esforço, como o primeiro versículo diz: “Esforçando-vos diligentemente para preservar a unidade do Espírito”. Mas a outra unidade, da fé, envolve tanto a fé vital como convicções secundárias (Rm 14:22), a exemplo de o que comer, que dias guardar e coisas semelhantes.
Efésios 4:13 fala-nos da unidade da fé nesse sentido amplo. Refere-se à unidade da fé primária e também secundária. A primeira é a fé que conduz à salvação, a fé que "de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). Se ela nos foi entregue, já a possuímos. Temos também a unidade que se dá em torno dela. Porém, com a unidade da fé (primária e também secundária) se passa o contrário. Ainda não a possuímos, pois essa fé integral não terminou de nos ser revelada.
Não nos enganemos, esperando que a fé de cada um possa, à força de autoritarismos, chegar a ser idêntica. Não é possível saltar a etapa atual da unidade do Espírito, que nos faz um enquanto ainda mantemos divergências em matérias de fé secundária. A unidade do Espírito envolve conformidade na fé e diversidade em matéria de opinião. Claro que, por isso, a negação do direito à opinião e à sua expressão constitui um furto de liberdade, uma escravização do cristão, que por sua natureza é livre.
Assim, o limite óbvio para a divergência entre os cristãos, hoje, é o plano de Deus, no qual está calcada a fé que opera para salvação. No original de 1ª a Timóteo 1:3-4, a conformidade do ensino à dispensação ou economia de Deus é exigida: “Roguei que permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que antes promovem discussões do que o serviço [economia] de Deus na fé”.
Ensinar outras doutrinas é afastar-se da economia, isto é, do plano de salvação de Deus. Fábulas e genealogias sem fim, como as introduzidas pelos gnósticos, negam esse plano de salvação, que se direciona a um só fim e não a vários. Por isso, são proibidas na igreja. Do que também se conclui que a diversidade ajustada ao plano divino não pode ser combatida, mas a que não se ajusta deve ser eliminada.
Outra distinção importante é a que se pode traçar entre unidade e unanimidade. Esta é a unidade de opiniões, sentimentos, pontos de vista. É a unidade total da alma. Por seu caráter perfeito, a unanimidade é uma flor delicada, que não cresce em qualquer clima, nem em qualquer solo.
Sob inspiração do Espírito, o escritor de Atos usou muitas vezes os termos unânimes, unanimidade e outros semelhantes. Porém, só o fez no início do seu livro, o que sugere que a unanimidade estava presente, naquele tempo, mas não em épocas posteriores. Isso é confirmado nas epístolas, em que Paulo exorta seus leitores a buscarem a unanimidade: “Completai a minha alegria de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento” (Fp 2:2) e “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique pensem concordemente no Senhor” (Fp 4:2). Vemos que a unidade estava presente em Filipos, mas a unanimidade não. Não era diferente na maioria das outras igrejas da época.
Porém, ainda quando não está presente, a unidade total de alma ou unanimidade deve continuar a ser nossa meta. Devemos trabalhar continuamente com vistas a ela. Só não adianta nos iludirmos. Não adianta forjarmos a unanimidade com a ferramenta do autoritarismo. Esse método é inteiramente humano. Não pertence ao Espírito. E, por não pertencer, por meio dele, só alcançaremos a unanimidade humana, jamais a do Espírito. Devemos, sim, exortar, conciliar e trabalhar de vários modos pela unanimidade dos que creem, mas não usar o esforço desassistido da graça para obtê-la.
A divisão é um erro grave, um descontrole no seio da diversidade. Nas relações familiares, encontramos bons exemplos de como ela opera. Por mais que haja desentendimentos entre os membros de uma família, o amor costuma ser mais forte que tudo. A família não se mantém unida pela ausência de diversidade ou de desavenças, mas pela presença do amor. Por isso também, a perda da unidade, na família, é uma verdadeira aberração.
Da mesma forma, as divisões existentes na igreja, são um sério problema. Por elas, a família de Deus é rompida, a realidade da vida familiar é perdida, e a unanimidade se torna uma meta inviável. Isso não é menos que uma aberração. Para usarmos a metáfora de Cipriano, é como se os raios do disco solar se desconectassem dele.
Infelizmente, nem a unidade do Espírito parece muito presente, na igreja de Deus, hoje. Atraímos vergonha para o evangelho, dividindo-nos e nos mantendo divididos do modo mais cruel e radical.
[Cabe inserir, aqui, um comentário. De 1991, quando A unidade da igreja foi escrito, até hoje, uma ação especial do Espírito Santo fez aumentar bastante a compreensão entre cristãos das mais variadas confissões. Oposições tradicionais como a católico-protestante, a católico-ortodoxa, a wesleyana-calvinista e a histórico-pentecostal continuaram a sofrer desgastes impostos pela nova consciência. Não cabe comentar, aqui, os fatores desse desgaste, mas é importante afirmá-lo, para que o diagnóstico sobre as divisões, apresentado no texto, não seja interpretado como historicamente imutável. As divisões cristãs não são inalteráveis. Embora constituam um problema persistente, elas mudam em intensidade e até em natureza, ao longo do tempo. Foi o que se deu, ainda mais intensamente que antes, nas últimas décadas].
Por isso, somos chamados a restaurar a unidade bíblica, a unidade do Espírito, rumo à unanimidade, não à unidade do homem, da carne ou do sangue. Nessa senda, o que excede os princípios da unidade deve ser objeto de tolerância e de transação por parte dos cristãos. Não se trata de saber se uma prática originou-se aqui ou ali, se Fulano ou Beltrano a propôs. Se quem a traz é um irmão de fé, devemos permanecer abertos a ele e a ela.
Só um mínimo de princípios necessita ser salvaguardado. Em tudo o mais, resta-nos permanecer de braços abertos e anelantes por abraçar os irmãos de qualquer procedência. A igreja só é local, porque o homem é limitado. Se ele não o fosse, só a igreja universal existiria. Portanto, nem o caráter local, nem o aspecto universal da igreja são mais importantes do que o amor.
Ao escrever este texto, não penso em direitos, meus ou de outros. O amor não enxerga direitos, somente deveres. Tampouco considera receber, mas dar. Por isso, o amor é o espírito da unidade. A unidade se realiza na comunhão, e a comunhão, no amor. Vale sempre dizer, no amor fraternal, que é também uma amizade. No amor de Filadélfia. Verdade é que há muitas barreiras regionais, culturais, geográficas, políticas e até pessoais a esse amor. Mas ele tem o incrível poder de explodir todas as barreiras. É o que vemos realizado no livro de Atos.
Naquela época, as dificuldades de comunicação eram imensas, mas a unidade estava calcada no amor. Um grande número de evangelistas, de mestres e até de apóstolos, autointitulados ou não, possuía cada qual sua esfera de ação. Porém, um trânsito de amor e um esquecimento contínuo dos próprios direitos aproximavam pessoas assim distantes e faziam delas um corpo.
Isso mostra que o que separa não é a geografia, mas o interesse particular. Não são as dificuldades de comunicação. É o apego ao ego e aos próprios direitos. O amor, porém, faz esquecer o eu e pensar no tu. Ele estreita as distâncias e fecha as lacunas que o interesse e o direito abrem.
De que necessitamos mais, hoje, do que do amor, que é uma singela amizade entre irmãos? Não permitamos que um sistema rígido esfrie esse amor entre nós. Os princípios da unidade divina não formam um sistema. Não formemos nós um, nem coloquemos qualquer sistema de prescrições e proibições acima da comunhão.
Unanimidade é o fruto do perfeito amor. É Atos capítulos um a cinco. Talvez pensemos que é preciso não ter pecado para experimentar o que se encontra nesses capítulos. Mas Atos foi escrito para mostrar que isso não é verdadeiro. Para viver a unanimidade, não é preciso não ter pecados, mas cobrir os que se tem. Só o amor realiza isso: “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” (1 Pe 4:8).
Pedro cita Provérbios 10:12, que afirma que “o amor cobre todas as transgressões”. Essas duas testemunhas, uma do Velho, outra do Novo Testamento, estão a nos mostrar que o amor tem relação com os pecados. Ele não os expia ou remove, como a justiça faz. Mas os homens não buscam a justiça o tempo todo. Por isso, o pecado está sempre presente entre eles. Só o amor é capaz de cobri-los.
Essa é a única e verdadeira condição da unidade: cobrir os pecados uns dos outros, por meio do amor. Se não há justiça sem perdão, não há comunhão sem o amor que cobre pecados. Não há comunhão sem disposição para sofrer o dano injusto, em vez de impor a lesão justa. Isso é a lei e os profetas. E ainda mais claramente é o evangelho. O resto é teoria sobre a unidade e palavreado inútil. A unidade real, a unidade possível é a que se impõe, quando o amor cobre nossa multidão de pecados. Seja essa a nossa unidade.
São Paulo, 30 de maio de 1991.
Efésios 4 nos fala de duas unidades: a do Espírito (Ef 4:3) e a da fé (Ef 4:13). A primeira é a unidade possível hoje. Somos exortados a preservá-la, pois já a possuímos. Porém, o outro versículo ordena buscarmos também a unidade da fé, que ainda não possuímos. Portanto, a unidade da fé é futura.
Que significam essas duas unidades? A do Espírito é a que pertence a ele e só ele pode produzir, embora a sua preservação dependa do nosso esforço, como o primeiro versículo diz: “Esforçando-vos diligentemente para preservar a unidade do Espírito”. Mas a outra unidade, da fé, envolve tanto a fé vital como convicções secundárias (Rm 14:22), a exemplo de o que comer, que dias guardar e coisas semelhantes.
Efésios 4:13 fala-nos da unidade da fé nesse sentido amplo. Refere-se à unidade da fé primária e também secundária. A primeira é a fé que conduz à salvação, a fé que "de uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3). Se ela nos foi entregue, já a possuímos. Temos também a unidade que se dá em torno dela. Porém, com a unidade da fé (primária e também secundária) se passa o contrário. Ainda não a possuímos, pois essa fé integral não terminou de nos ser revelada.
Não nos enganemos, esperando que a fé de cada um possa, à força de autoritarismos, chegar a ser idêntica. Não é possível saltar a etapa atual da unidade do Espírito, que nos faz um enquanto ainda mantemos divergências em matérias de fé secundária. A unidade do Espírito envolve conformidade na fé e diversidade em matéria de opinião. Claro que, por isso, a negação do direito à opinião e à sua expressão constitui um furto de liberdade, uma escravização do cristão, que por sua natureza é livre.
Assim, o limite óbvio para a divergência entre os cristãos, hoje, é o plano de Deus, no qual está calcada a fé que opera para salvação. No original de 1ª a Timóteo 1:3-4, a conformidade do ensino à dispensação ou economia de Deus é exigida: “Roguei que permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que antes promovem discussões do que o serviço [economia] de Deus na fé”.
Ensinar outras doutrinas é afastar-se da economia, isto é, do plano de salvação de Deus. Fábulas e genealogias sem fim, como as introduzidas pelos gnósticos, negam esse plano de salvação, que se direciona a um só fim e não a vários. Por isso, são proibidas na igreja. Do que também se conclui que a diversidade ajustada ao plano divino não pode ser combatida, mas a que não se ajusta deve ser eliminada.
Outra distinção importante é a que se pode traçar entre unidade e unanimidade. Esta é a unidade de opiniões, sentimentos, pontos de vista. É a unidade total da alma. Por seu caráter perfeito, a unanimidade é uma flor delicada, que não cresce em qualquer clima, nem em qualquer solo.
Sob inspiração do Espírito, o escritor de Atos usou muitas vezes os termos unânimes, unanimidade e outros semelhantes. Porém, só o fez no início do seu livro, o que sugere que a unanimidade estava presente, naquele tempo, mas não em épocas posteriores. Isso é confirmado nas epístolas, em que Paulo exorta seus leitores a buscarem a unanimidade: “Completai a minha alegria de modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento” (Fp 2:2) e “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique pensem concordemente no Senhor” (Fp 4:2). Vemos que a unidade estava presente em Filipos, mas a unanimidade não. Não era diferente na maioria das outras igrejas da época.
Porém, ainda quando não está presente, a unidade total de alma ou unanimidade deve continuar a ser nossa meta. Devemos trabalhar continuamente com vistas a ela. Só não adianta nos iludirmos. Não adianta forjarmos a unanimidade com a ferramenta do autoritarismo. Esse método é inteiramente humano. Não pertence ao Espírito. E, por não pertencer, por meio dele, só alcançaremos a unanimidade humana, jamais a do Espírito. Devemos, sim, exortar, conciliar e trabalhar de vários modos pela unanimidade dos que creem, mas não usar o esforço desassistido da graça para obtê-la.
A divisão é um erro grave, um descontrole no seio da diversidade. Nas relações familiares, encontramos bons exemplos de como ela opera. Por mais que haja desentendimentos entre os membros de uma família, o amor costuma ser mais forte que tudo. A família não se mantém unida pela ausência de diversidade ou de desavenças, mas pela presença do amor. Por isso também, a perda da unidade, na família, é uma verdadeira aberração.
Da mesma forma, as divisões existentes na igreja, são um sério problema. Por elas, a família de Deus é rompida, a realidade da vida familiar é perdida, e a unanimidade se torna uma meta inviável. Isso não é menos que uma aberração. Para usarmos a metáfora de Cipriano, é como se os raios do disco solar se desconectassem dele.
Infelizmente, nem a unidade do Espírito parece muito presente, na igreja de Deus, hoje. Atraímos vergonha para o evangelho, dividindo-nos e nos mantendo divididos do modo mais cruel e radical.
[Cabe inserir, aqui, um comentário. De 1991, quando A unidade da igreja foi escrito, até hoje, uma ação especial do Espírito Santo fez aumentar bastante a compreensão entre cristãos das mais variadas confissões. Oposições tradicionais como a católico-protestante, a católico-ortodoxa, a wesleyana-calvinista e a histórico-pentecostal continuaram a sofrer desgastes impostos pela nova consciência. Não cabe comentar, aqui, os fatores desse desgaste, mas é importante afirmá-lo, para que o diagnóstico sobre as divisões, apresentado no texto, não seja interpretado como historicamente imutável. As divisões cristãs não são inalteráveis. Embora constituam um problema persistente, elas mudam em intensidade e até em natureza, ao longo do tempo. Foi o que se deu, ainda mais intensamente que antes, nas últimas décadas].
Por isso, somos chamados a restaurar a unidade bíblica, a unidade do Espírito, rumo à unanimidade, não à unidade do homem, da carne ou do sangue. Nessa senda, o que excede os princípios da unidade deve ser objeto de tolerância e de transação por parte dos cristãos. Não se trata de saber se uma prática originou-se aqui ou ali, se Fulano ou Beltrano a propôs. Se quem a traz é um irmão de fé, devemos permanecer abertos a ele e a ela.
Só um mínimo de princípios necessita ser salvaguardado. Em tudo o mais, resta-nos permanecer de braços abertos e anelantes por abraçar os irmãos de qualquer procedência. A igreja só é local, porque o homem é limitado. Se ele não o fosse, só a igreja universal existiria. Portanto, nem o caráter local, nem o aspecto universal da igreja são mais importantes do que o amor.
Ao escrever este texto, não penso em direitos, meus ou de outros. O amor não enxerga direitos, somente deveres. Tampouco considera receber, mas dar. Por isso, o amor é o espírito da unidade. A unidade se realiza na comunhão, e a comunhão, no amor. Vale sempre dizer, no amor fraternal, que é também uma amizade. No amor de Filadélfia. Verdade é que há muitas barreiras regionais, culturais, geográficas, políticas e até pessoais a esse amor. Mas ele tem o incrível poder de explodir todas as barreiras. É o que vemos realizado no livro de Atos.
Naquela época, as dificuldades de comunicação eram imensas, mas a unidade estava calcada no amor. Um grande número de evangelistas, de mestres e até de apóstolos, autointitulados ou não, possuía cada qual sua esfera de ação. Porém, um trânsito de amor e um esquecimento contínuo dos próprios direitos aproximavam pessoas assim distantes e faziam delas um corpo.
Isso mostra que o que separa não é a geografia, mas o interesse particular. Não são as dificuldades de comunicação. É o apego ao ego e aos próprios direitos. O amor, porém, faz esquecer o eu e pensar no tu. Ele estreita as distâncias e fecha as lacunas que o interesse e o direito abrem.
De que necessitamos mais, hoje, do que do amor, que é uma singela amizade entre irmãos? Não permitamos que um sistema rígido esfrie esse amor entre nós. Os princípios da unidade divina não formam um sistema. Não formemos nós um, nem coloquemos qualquer sistema de prescrições e proibições acima da comunhão.
Unanimidade é o fruto do perfeito amor. É Atos capítulos um a cinco. Talvez pensemos que é preciso não ter pecado para experimentar o que se encontra nesses capítulos. Mas Atos foi escrito para mostrar que isso não é verdadeiro. Para viver a unanimidade, não é preciso não ter pecados, mas cobrir os que se tem. Só o amor realiza isso: “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” (1 Pe 4:8).
Pedro cita Provérbios 10:12, que afirma que “o amor cobre todas as transgressões”. Essas duas testemunhas, uma do Velho, outra do Novo Testamento, estão a nos mostrar que o amor tem relação com os pecados. Ele não os expia ou remove, como a justiça faz. Mas os homens não buscam a justiça o tempo todo. Por isso, o pecado está sempre presente entre eles. Só o amor é capaz de cobri-los.
Essa é a única e verdadeira condição da unidade: cobrir os pecados uns dos outros, por meio do amor. Se não há justiça sem perdão, não há comunhão sem o amor que cobre pecados. Não há comunhão sem disposição para sofrer o dano injusto, em vez de impor a lesão justa. Isso é a lei e os profetas. E ainda mais claramente é o evangelho. O resto é teoria sobre a unidade e palavreado inútil. A unidade real, a unidade possível é a que se impõe, quando o amor cobre nossa multidão de pecados. Seja essa a nossa unidade.
São Paulo, 30 de maio de 1991.
segunda-feira, 17 de junho de 2013
A Unidade da Igreja (2)
3. Grandes exemplos de diversidade
Os vários grupos cristãos apresentam condições mediante as quais uma pessoa pode ingressar e transitar neles. Já indicamos que o não pentecostalismo é uma condição adotada por muitas confissões históricas e que o uso exclusivo da Bíblia o é para a Congregação Cristã no Brasil.
A comunhão dos apóstolos, porém, se distingue dessas de cunho particular. É a comunhão na diversidade, sem condições que não sejam o novo nascimento e a fé ortodoxa em questões vitais. Em tudo o mais, a comunhão apostólica é inteiramente aberta. Ninguém pode exigir ou proibir coisa alguma a um cristão exceto isso. O que comer, os costumes a guardar etc. não devem ser matéria de discussão na igreja (Rm 14:1-3,5).
Tanto no Velho como no Novo Testamento, tal princípio de unidade é ratificado exaustivamente. Quando Miriã e Arão erraram, ao se rebelarem contra Moisés, Deus de modo nenhum negou que os dois descontentes fossem também seus porta-vozes. Ainda que houvesse um princípio de sublevação no comportamento deles, o Senhor não negou a pluralidade de ministérios no seu povo. Havia, é certo, um só ministério global no Velho Testamento, como Paulo indica em 2ª aos Coríntios 3:7,9. Nesse ministério, estavam Moisés, Arão, Miriã e todos os demais filhos de Israel, cada qual a exercer a sua função, num quadro geral de harmonia. Mas ali também existiam ministérios, no plural, assim como no Novo Testamento há diversidade de ministérios integrados (1 Co 12:5).
Se o ministério de Moisés tinha a preeminência, uma ampla liberdade permitia que outros também mantivessem trabalhos espirituais. Miriã e Arão possuíam os seus ministérios. Ela era uma profetisa, ele, o Sumo-Sacerdote responsável por ministrar a Deus e ensinar o povo. Todo um campo de particularidades era possível, nessas funções, em harmonia com o ministério mais eminente de Moisés.
Para falar em sonhos e visões aos irmãos de Moisés, Deus não se dirigia primeiro a ele. Tampouco exigia que aqueles, ao receberem uma revelação, a submetessem a Moisés para que autorizasse ou não a sua publicação. As coisas reveladas, pelo simples fato de o serem, pertenciam e ainda pertencem ao domínio público. Deuteronômio 29:29 afirma que elas “pertencem a nós e a nossos filhos para sempre”, não a um homem ou a um ministério particular.
Esse é o princípio pelo qual Deus regia o ministério do Velho Testamento. O próprio Moisés de modo nenhum possuía um espírito exclusivista ou favorável ao seu ministério, em detrimento do que era exercido por outros. Não é pensável que um povo que, havia pouco, se libertara da escravidão e fugira como uma horda tivesse organização tão estrita que as palavras de todos fossem subordinadas à de Moisés. Israel tinha, antes de tudo, de sobreviver no deserto. Não havia condições para ele implantar qualquer coisa parecida com um regime de uniformização de discursos.
Em Números 11, quando o Espírito do Senhor desceu sobre os setenta anciãos designados como cooperadores na tarefa de cuidar do povo, Josué, ajudador de Moisés, sugeriu que este proibisse Eldade e Medade, que pertenciam aos setenta, de profetizar no arraial, enquanto os outros sessenta e oito o faziam em volta da tenda da congregação. Afinal, onde se vira tal dissonância, tal dissintonia?
Ao ainda inexperiente Josué pareceu que a solução para o caso era: “Proíbe-lhes” (Nm 11:28). Moisés, porém, disse-lhe: “Tens tu ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito” (Nm 11:29). Ainda que o trabalho de Deus seja executado de um modo, por uns, é perfeitamente possível praticá-lo de outro modo. Ainda que alguém profetize na tenda da congregação, é possível profetizar no arraial. Desde que isso se faça pelo Espírito do Senhor...
Este não é o lugar para demonstrações técnicas, mas é possível comprovar, pela Bíblia, que Jó viveu por volta da época de Jacó e seus doze filhos. Temos, pois, em Jó, um autêntico ministro de Deus situado fora da linha dos descendentes de Isaque. Se alguns gostam de enfatizar que o livro de Atos foca Pedro e Paulo, em detrimento dos outros ministros, temos em Jó não alguns versículos, mas um livro bíblico inteiro dedicado a um ministério paralelo aos de Jacó e seus filhos. Tal era a predileção de Deus por Jó que, após Satanás ter dado voltas à terra, não lhe perguntou se observara Jacó ou José, mas: “Observaste o meu servo Jó?” (Jó 1:8;2:3). Ainda que Jó não fosse descendente de Isaque e Jacó, a bênção, a atenção e o mover de Deus estavam também com ele, no tempo dos patriarcas.
Mas isso não é tudo. Pode-se estabelecer também que Sansão e Samuel julgaram Israel no mesmo período. Nunca houve contradição em Deus levantar mais de um juiz sobre Israel, ao mesmo tempo, já que a unidade divina se dá dentro de uma ampla pluralidade.
Essa verdade se encontra por toda a parte, nas Escrituras, assim como um princípio correspondente pode ser encontrado por toda a parte, na natureza. Ao longo da História, Deus a ratifica repetidamente. Após o decreto de Ciro para que os judeus retornassem livremente à sua pátria, Daniel (notem bem: o abençoado Daniel) permaneceu longamente em Babilônia. É o que se depreende dos versos 1 e 4 do capítulo 10 do seu livro. Não será o caso de se perguntar por que ele lá permaneceu, se Deus desejava que o seu povo reconstruísse o Templo, Jerusalém e as outras cidades e aldeias? Por que ele ficou lá, se o culto especial só podia ser prestado no lugar que o Senhor escolheu? Enfim, se Deus havia dito: “Buscareis o lugar que o Senhor vosso Deus escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o seu nome, e a sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas” (Dt 16:5-6)?
Se descumprir esse mandamento era pecado, o próprio Deus foi cúmplice de Daniel, pois confirmou a permanência dele em Babilônia, concedendo-lhe visões. Mas não há pecado algum. Simplesmente, o mover de Deus é tão elevado que não se sujeita a obrigações formais e estritas. O povo voltava para a pátria, Daniel permanecia em Babilônia, e nessas duas coisas estava o mover de Deus.
Vejamos, porém, casos do Novo Testamento. João batizava em Enom, e o Senhor, do outro lado do Jordão (Jo 3:22-23), sem qualquer desarmonia ou emulação. Acaso aquele que repreendeu energicamente os seus discípulos, os fariseus, os herodianos, o próprio Herodes e os pecadores, quando erraram, não teria repreendido João Batista, se este houvesse estabelecido um ministério concorrente com o de Jesus? Mas Jesus não o repreendeu. Antes louvou-o, quando os discípulos daquele ministro o interpelaram.
Se a obra paralela fosse um desvio, quando os discípulos de João procuraram Jesus, por que ele não mostrou o erro de João? Por que, ao contrário, chamou-o maior de todos os nascidos de mulher até o fim da era dos profetas (Mt 11:11,13)? Como podia um desviado ser maior do que Abraão, Moisés, Davi, Isaías, Jeremias e Daniel? O Senhor situou todo o trabalho ministerial de João, inclusive o período em que ele transcorreu paralelamente ao de Jesus, na era da lei e dos profetas, antes do reino dos céus. A questão é como um ministro decaído e desviante pode ter sido posto acima dos de todos os profetas?
É fora de dúvida que João se equivocou, mas há modos e modos de se equivocar. O erro de João Batista não foi grave ou culposo. Atos é inequívoco ao indicar que o discipulado mencionado pelo Senhor, em Mateus 28:19, era o de Cristo e de mais ninguém. Na igreja primitiva, sob orientação do Espírito Santo, levantaram-se muitos discípulos, mas não vemos alguém ser chamado discípulo de um ministro que não seja Cristo. Só em relação a Paulo, e ainda assim como um reflexo de sua posição passada no judaísmo, mencionam-se discípulos (At 9:25).
No entanto, nem João, nem Paulo perderam-se por terem mantido discípulos, já que ter discípulos não é, em si, errado ou proibido. Em Israel, ter discípulos não significava mais que ser mestre. E a igreja sempre teve mestres (At 13:1-2; Ef 4:11). O Velho Testamento também fala em moços seguidores de Moisés, de Elias e outros. Não se trata de justificar quem quer que seja, mas de contextualizar os fatos que nos cabe julgar.
João viveu num período de transição. Isso significa que Israel passava da época em que os profetas haviam tido seguidores, e os mestres, discípulos, para uma era em que todos seriam ensinados por Deus. Nada mais cabível que, num tempo de transição, a passagem de um a outro desses quadros se dar gradativamente.
Quando João batizava em Enom, sua obra era paralela à de Cristo, mas dava testemunho dele. É o que João 3:26 nos informa: “Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando”. "Do qual tens dado testemunho"! João continuava a prestar o seu testemunho de Cristo. E não só isso. Ele também formava discípulos para fazerem o mesmo, pois declarou: “Vós sois testemunhas". Testemunhas de quê? Ele mesmo esclareceu: "testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. O que tem a noiva é o noivo [Jesus]; o amigo do noivo [João] que está presente e o ouve, muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:28-30).
Meu objetivo não é minimizar os erros de João. Mas é preciso definir claramente esses erros. Digamos que João tenha errado gravemente: ainda assim, seu erro não invalida o princípio das obras paralelas, seguido corretamente por Jó, Daniel e tantos outros. A verdade bíblica não é assim tão miserável que possa ser abalada pelo erro de um homem.
Quando seus discípulos vieram relatar-lhe o “sucesso” de Jesus além do Jordão, João respondeu-lhes: “O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada” (Jo 3:27)! Ninguém angaria coisa alguma boa, se os céus não lhe dispensarem. Cada qual faz o que os céus lhe dão. Se alguém faz muito, sem iludir, é porque Deus lhe deu muito; se outro faz mais, é porque Deus lhe concedeu mais; e se o Cristo faz tudo, é porque lhe tem sido dado tudo! Os céus tudo decidem.
Não há por que brigar ou proibir, zangar-se ou boicotar. Deus deixa caminho aberto a todos os ministérios, a fim de que o que é bom floresça, o que é melhor floresça mais e o que é melhor do que tudo imponha-se sobre todos. Essa é a obra do Novo Testamento. Assim surgiu o evangelho e por nenhum outro método.
O próprio Senhor ordenou a seus discípulos que não proibissem a obra de quem não seguia com eles: “Falou João [Zebedeu] e disse: Mestre, vimos certo homem que em seu nome expelia demônios, e lho proibimos, porque não segue conosco. Mas Jesus lhe disse: Não proibais; pois quem não é contra vós outros, é por vós” (Lc 9:49-50). Nessa passagem, a razão dada para a não proibição de modo nenhum foi negativa. Jesus não negou que ele ou os apóstolos por ordem dele tivessem jurisdição para proibir. Algo mais forte foi dito: Jesus declarou que o obreiro que atuava paralelamente e fora repreendido pelos discípulos estava em harmonia com eles. Portanto, o trabalho do obreiro não só devia ser tolerado como ele tinha o mesmo direito dos apóstolos de ministrar.
Quem tem algo a dizer, diga-o. Quem não tem, cale-se e ouça. Não é o que Paulo recomenda aos coríntios praticarem em suas reuniões públicas (1 Co 14:27-30)? Ampliemos esse princípio absolutamente, e teremos o Novo Testamento. Mas, por falar em Paulo, ele não nos relata que, após a sua conversão, não consultou carne e sangue para iniciar o seu ministério? Não trabalhou paralelamente aos apóstolos, em Damasco e depois na Arábia? E não o fez sem consultar quem quer que se possa chamar carne e sangue (Gl 1:16-18)? Como se não bastasse, não citou ele tal fato para justificar uma radical liberdade em Gálatas? Se Paulo o citou, devemos tê-lo não só como possível, mas como um modelo.
Acaso Cefas, de Jerusalém, Paulo, de Antioquia, e Apolo, de Alexandria, não estiveram todos em Corinto? Não foram todos apóstolos para os coríntios? Eis um lindo e harmonioso exemplo. Embora Corinto fosse a região de labores especiais de Paulo, como os outros apóstolos apressaram-se a reconhecer (Gl 2:9), Jerusalém não pediu autorização para mandar um apóstolo ali. Claro que, cedo ou tarde, uma coordenação ia ser necessária, mas a obra de Deus se dá num contexto de fundamental pluralismo.
Que dizer, então, de Barnabé, Apolo e outros, que não seguiram física ou doutrinariamente a Paulo? Barnabé desentendeu-se com Paulo e se separou dele (At 15:39), e Apolo de modo nenhum atendeu um pedido dele sobre o trabalho missionário de ambos (1 Co 16:12). Claro que isso não precisa ser tomado como exemplo ou paradigma, mas, se houve ali algum erro, tampouco precisamos aumentá-lo ou considerá-lo algo que não pudesse ser removido, um minuto depois, pela confissão.
Se Paulo obteve supremacia no ministério, como Moisés antes dele, foi devido à graça superior que recebeu e que, pouco a pouco, desabrochou. E se Barnabé e Apolo tiveram alguma desvantagem, proveio também daí, não de terem trabalhado paralelamente.
Por toda parte, vemos a mesma coisa. Deus nunca proibiu, pelo contrário incentivou e fomentou fortemente os trabalhos ministeriais paralelos. Desses fatos, devemos extrair que o trabalho paralelo é um verdadeiro princípio bíblico e, como tal, é obrigatório. Deve existir. O que não se deve é confundir o trabalho paralelo (o princípio) com os erros eventuais dos ministros de Deus.
Estêvão foi muito além da incumbência para a qual fora designado, em Atos 6. Ele passou do serviço às mesas à discussão pública com os judeus. E, ao fazê-lo, não repetiu o ensino de Pedro e dos onze, mas tratou de outras revelações com o mesmo objetivo deles: pregar a salvação de Cristo. Essa atitude de Estêvão desencadeou uma cruenta perseguição. Claro: quem olhasse tal quadro com espírito autoritário diria que ali não estava somente um desvio ministerial, mas a devida punição a ele! Olhemos, porém, atentamente, para Atos, e veremos em Estêvão o que é um homem identificar-se plenamente com Cristo, o que é um homem ter rosto como de anjo (At 6:15) e subjugar as trevas com luz indizivelmente clara.
Não está aí um quadro de inegável pluralismo? E não podemos concluir, desses fatos, que a obra cristã primitiva desenvolvia-se em tal pluralismo? Nem mesmo o ministro confirmado por Deus com uma sabedoria superior à de todos os demais era encarregado da obra em toda a Terra. Paulo reconhecia claramente a sua “esfera de ação”. Foi essa a expressão que ele utilizou em 2ª aos Coríntios 10:13: “Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida, mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende até vós”. Não há ministro algum cuja seara seja ilimitada.
Lembremo-nos também de que a seara de Paulo sequer cabia exclusivamente a ele. Pelo contrário, Paulo disse que Apolo regou o que ele plantara. Disse mais que o mistério do crescimento não veio dele, nem de Apolo, mas diretamente de Deus (1 Co 3:6). Portanto, Paulo dividiu sua seara com Apolo, como a dividira antes com Barnabé. Ninguém é designado sozinho para a obra em toda a Terra para a obra numa região qualquer. Não é pouco importante lembrar que ser designado com outro, aqui, não é o mesmo que ser acompanhado de um escravo ministerial.
Vemos, em tudo, que a unidade cristã é plural. Assim é no Velho e no Novo Testamento. Não é de outro modo na História da Igreja, em particular na época dos pais que sucederam os apóstolos e transmitiram o seu ensinamento. Cipriano foi um deles. Sabemos que opôs-se à intenção de Estêvão de Roma de impor a sua convicção a todas as igrejas do orbe sobre o batismo dos hereges. Convocando um concílio, na sua região, para decidir o assunto, Cipriano recomendou aos bispos que expressassem livremente o seu sentimento sobre o assunto. É comum ver-se, nesse seu gesto, decidida oposição às pretensões demasiadas do bispado romano.
Ireneu, por sua vez, afirmou, no século II, que a dissonância no jejum não dissolve a consonância na fé. E Gregório de Roma declarou que a divergência sobre determinados assuntos não fere a unidade da igreja.
Poderíamos dar outros exemplos, tanto da época dos pais como posteriores. Não o faremos para não nos tornarmos cansativos. O importante, o digno de realce, é a virtual unanimidade, o amplo acordo dos pais sobre o tema. Não creio que eles teriam chegado a esse consenso, se uma prática oposta houvesse criado raízes na época dos apóstolos. Pelo contrário, se esse tivesse sido o caso, os ramos nascidos das raízes teriam sido observados e testemunhados por eles.
Nem uma testemunha externa, um governante como Plínio, o Moço, na epístola que dirigiu ao Imperador Trajano sobre os cristãos, apontou qualquer prática desviante dessas. Plínio descreveu a vida cristã primitiva de modo tão simples que parece incompatível com a hierarquia e o controle.
Se em certas épocas um obreiro se torna digno de maior destaque, como José entre os doze patriarcas e Paulo a seu tempo, devemos lembrar-nos de que toda grande verdade de Deus tem o seu outro lado. Do contrário, não seria grande. Sem o seu outro lado, verdade entra em desequilíbrio. No caso da obra de Deus, a unidade precisa do equilíbrio da pluralidade.
Se o enfoque centralizado num obreiro é importante para a unidade da igreja, o pluralismo também o é. De modo nenhum, esse pluralismo desagrega a unidade. Pelo contrário, ele a acrisola, purifica-a e a torna mais forte. É na colaboração de diversidades e até de contrariedades que a unidade final se enriquece. De modo que a unidade sem pluralidade é pobre, não passa pela prova. E, por não passar, Deus mesmo a descarta. Substitui a unidade da uniformidade pela unidade da diversidade, que a natureza e a Bíblia exemplificam.
Essa diversidade precisa ser tão respeitada quanto a unidade que dela resulta. Elas são aspectos da mesma verdade. Toda unidade é, portanto, o âmbito de uma diversidade não apenas real, mas forte e prevalecente. Alguns perguntarão: como a unidade poderá ser alcançada, dando-se espaço para a pluralidade? Devemos, porém, lembrar-nos de que a construção da unidade não obedece a um passo-a-passo definido, nem é produzida pelo braço humano. É, antes, obra de Deus sujeita aos princípios das Escrituras. Se esses princípios estiverem assegurados, não importam os métodos como eles são implementados.
Paulo conclui suas observações em prol do uso do véu, em 1ª aos Coríntios 11:16, afirmando que, se alguém pretendesse ser contencioso e não seguir a sua recomendação, devia saber que os apóstolos e as igrejas de Deus não tinham tal costume. Dessa frase alguns extraem que há costumes comuns às igrejas, o que é óbvio. Que povo não tem costumes? Porém, os costumes a que Paulo se refere não são obrigatórios. Se o fossem, feririam a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Ou temos costumes obrigatórios, ou temos comunhão.
Os que invocam 1ª aos Coríntios 11:16 em altos brados querem usar os costumes ali mencionados para impor a uniformidade na igreja. Mas o verso não se refere ao cristão que utiliza sua liberdade para não apoiar o uso do véu, por motivo de consciência. Se fosse assim, a recomendação específica de Paulo, no tocante ao véu, entraria em conflito com Romanos 14:3,6, em que ele afirma: “Quem come não despreze ao que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu [...] Quem distingue entre dia e dia, para o Senhor o faz; e quem come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus”. Costumes diferentes são lícitos, quando baseados em convicção.
Não há qualquer evidência de que as igrejas neotestamentárias tivessem práticas com força de condição espiritual para uma comunhão plena. Entre elas, havia considerável liberdade de formas, desde que não pecaminosas, é claro. Nem o acordo no tocante a práticas significava unidade, nem a diversidade de formas era considerada divisão.
Sob esse conceito, unidade é o somatório de todos os diversos, sem exclusão de algum. Uniformidade, por sua vez, é a unidade forçada e apenas de alguns. Um autor conhecido afirmou que o Novo Testamento defende a maior pluralidade de dons, pessoas e tudo o mais, exceto a pluralidade de igrejas (BARTH, Karl. "A igreja e as igrejas". In Dádiva e louvor- artigos selecionados. São Paulo: Sinodal, 1986.p. 207). Assim é, se nenhum dom ou pessoa for excluído. Mas, se houver exclusão, restará a uniformidade.
Os que são contrários a esse ponto de vista lembrarão que Paulo condenou a existência de partidos na igreja em Corinto (1 Co 1:10-13). Dirão, pois, que não só a pluralidade de igrejas é pecaminosa, mas também a pluralidade de grupos na mesma igreja. Ocorre que Paulo não condenou quaisquer grupos. Condenou partidos, ou seja, germes de futuras divisões maiores. Condenar partidos é o mesmo que condenar a pluralidade de igrejas, à qual eles tendem, já que os partidos são o estágio incipiente da pluralidade de igrejas.
Ao mencionar os partidos, portanto, o apóstolo não condenou a pluralidade, mas a doença dela, que ameaçava devorar a unidade. Ele condenou a tentativa da parte de dominar todo o corpo, como um tumor que cresce desordenadamente. Fundamental é tratar elementos plurais, a exemplo de opiniões, como elementos do todo, não como o próprio todo.
Não fazer da parte um todo, dos elementos da pluralidade uma nova unidade é a advertência dirigida a todo cristão. Claro que, se outra pessoa toma aqueles elementos e os usa para criar uma nova unidade, a responsabilidade não é de quem os criou. O inventor do avião não pode ser preso pela utilização de seu engenho para fins bélicos. Nem podem os autores bíblicos ser condenados por heresia, porque hereges usaram as Escrituras para sustentar suas doutrinas.
E, se essa é a unidade bíblica, a implantação prática dela há de ser o caminho para a restauração da igreja. Por muito tempo, temo-nos esforçado para implantar uma unidade férrea e inflexível. Talvez, no início da restauração da igreja, essa estratégia tenha sido necessária. Não se desatola o veículo sem acelerar o motor mais do que é benéfico para ele. Porém, é necessário um redirecionamento para o equilíbrio entre unidade e diversidade, o que não é absolutamente arriscar a unidade.
Se a restauração da nação de Judá, no Velho Testamento, é um tipo da que ocorre na era da igreja, a reconstrução das cidades e vilas, no interior do país, é uma das suas etapas finais. E, se Jerusalém, é o símbolo maior da unidade prática, as cidades e vilas representam a pluralidade. Necessário é, pois, reerguer os centros de pluralidade dentro da unidade. Do contrário, tudo o que nossa unidade expressará será desolação.
Os vários grupos cristãos apresentam condições mediante as quais uma pessoa pode ingressar e transitar neles. Já indicamos que o não pentecostalismo é uma condição adotada por muitas confissões históricas e que o uso exclusivo da Bíblia o é para a Congregação Cristã no Brasil.
A comunhão dos apóstolos, porém, se distingue dessas de cunho particular. É a comunhão na diversidade, sem condições que não sejam o novo nascimento e a fé ortodoxa em questões vitais. Em tudo o mais, a comunhão apostólica é inteiramente aberta. Ninguém pode exigir ou proibir coisa alguma a um cristão exceto isso. O que comer, os costumes a guardar etc. não devem ser matéria de discussão na igreja (Rm 14:1-3,5).
Tanto no Velho como no Novo Testamento, tal princípio de unidade é ratificado exaustivamente. Quando Miriã e Arão erraram, ao se rebelarem contra Moisés, Deus de modo nenhum negou que os dois descontentes fossem também seus porta-vozes. Ainda que houvesse um princípio de sublevação no comportamento deles, o Senhor não negou a pluralidade de ministérios no seu povo. Havia, é certo, um só ministério global no Velho Testamento, como Paulo indica em 2ª aos Coríntios 3:7,9. Nesse ministério, estavam Moisés, Arão, Miriã e todos os demais filhos de Israel, cada qual a exercer a sua função, num quadro geral de harmonia. Mas ali também existiam ministérios, no plural, assim como no Novo Testamento há diversidade de ministérios integrados (1 Co 12:5).
Se o ministério de Moisés tinha a preeminência, uma ampla liberdade permitia que outros também mantivessem trabalhos espirituais. Miriã e Arão possuíam os seus ministérios. Ela era uma profetisa, ele, o Sumo-Sacerdote responsável por ministrar a Deus e ensinar o povo. Todo um campo de particularidades era possível, nessas funções, em harmonia com o ministério mais eminente de Moisés.
Para falar em sonhos e visões aos irmãos de Moisés, Deus não se dirigia primeiro a ele. Tampouco exigia que aqueles, ao receberem uma revelação, a submetessem a Moisés para que autorizasse ou não a sua publicação. As coisas reveladas, pelo simples fato de o serem, pertenciam e ainda pertencem ao domínio público. Deuteronômio 29:29 afirma que elas “pertencem a nós e a nossos filhos para sempre”, não a um homem ou a um ministério particular.
Esse é o princípio pelo qual Deus regia o ministério do Velho Testamento. O próprio Moisés de modo nenhum possuía um espírito exclusivista ou favorável ao seu ministério, em detrimento do que era exercido por outros. Não é pensável que um povo que, havia pouco, se libertara da escravidão e fugira como uma horda tivesse organização tão estrita que as palavras de todos fossem subordinadas à de Moisés. Israel tinha, antes de tudo, de sobreviver no deserto. Não havia condições para ele implantar qualquer coisa parecida com um regime de uniformização de discursos.
Em Números 11, quando o Espírito do Senhor desceu sobre os setenta anciãos designados como cooperadores na tarefa de cuidar do povo, Josué, ajudador de Moisés, sugeriu que este proibisse Eldade e Medade, que pertenciam aos setenta, de profetizar no arraial, enquanto os outros sessenta e oito o faziam em volta da tenda da congregação. Afinal, onde se vira tal dissonância, tal dissintonia?
Ao ainda inexperiente Josué pareceu que a solução para o caso era: “Proíbe-lhes” (Nm 11:28). Moisés, porém, disse-lhe: “Tens tu ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito” (Nm 11:29). Ainda que o trabalho de Deus seja executado de um modo, por uns, é perfeitamente possível praticá-lo de outro modo. Ainda que alguém profetize na tenda da congregação, é possível profetizar no arraial. Desde que isso se faça pelo Espírito do Senhor...
Este não é o lugar para demonstrações técnicas, mas é possível comprovar, pela Bíblia, que Jó viveu por volta da época de Jacó e seus doze filhos. Temos, pois, em Jó, um autêntico ministro de Deus situado fora da linha dos descendentes de Isaque. Se alguns gostam de enfatizar que o livro de Atos foca Pedro e Paulo, em detrimento dos outros ministros, temos em Jó não alguns versículos, mas um livro bíblico inteiro dedicado a um ministério paralelo aos de Jacó e seus filhos. Tal era a predileção de Deus por Jó que, após Satanás ter dado voltas à terra, não lhe perguntou se observara Jacó ou José, mas: “Observaste o meu servo Jó?” (Jó 1:8;2:3). Ainda que Jó não fosse descendente de Isaque e Jacó, a bênção, a atenção e o mover de Deus estavam também com ele, no tempo dos patriarcas.
Mas isso não é tudo. Pode-se estabelecer também que Sansão e Samuel julgaram Israel no mesmo período. Nunca houve contradição em Deus levantar mais de um juiz sobre Israel, ao mesmo tempo, já que a unidade divina se dá dentro de uma ampla pluralidade.
Essa verdade se encontra por toda a parte, nas Escrituras, assim como um princípio correspondente pode ser encontrado por toda a parte, na natureza. Ao longo da História, Deus a ratifica repetidamente. Após o decreto de Ciro para que os judeus retornassem livremente à sua pátria, Daniel (notem bem: o abençoado Daniel) permaneceu longamente em Babilônia. É o que se depreende dos versos 1 e 4 do capítulo 10 do seu livro. Não será o caso de se perguntar por que ele lá permaneceu, se Deus desejava que o seu povo reconstruísse o Templo, Jerusalém e as outras cidades e aldeias? Por que ele ficou lá, se o culto especial só podia ser prestado no lugar que o Senhor escolheu? Enfim, se Deus havia dito: “Buscareis o lugar que o Senhor vosso Deus escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o seu nome, e a sua habitação; e para lá ireis. A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas, e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas” (Dt 16:5-6)?
Se descumprir esse mandamento era pecado, o próprio Deus foi cúmplice de Daniel, pois confirmou a permanência dele em Babilônia, concedendo-lhe visões. Mas não há pecado algum. Simplesmente, o mover de Deus é tão elevado que não se sujeita a obrigações formais e estritas. O povo voltava para a pátria, Daniel permanecia em Babilônia, e nessas duas coisas estava o mover de Deus.
Vejamos, porém, casos do Novo Testamento. João batizava em Enom, e o Senhor, do outro lado do Jordão (Jo 3:22-23), sem qualquer desarmonia ou emulação. Acaso aquele que repreendeu energicamente os seus discípulos, os fariseus, os herodianos, o próprio Herodes e os pecadores, quando erraram, não teria repreendido João Batista, se este houvesse estabelecido um ministério concorrente com o de Jesus? Mas Jesus não o repreendeu. Antes louvou-o, quando os discípulos daquele ministro o interpelaram.
Se a obra paralela fosse um desvio, quando os discípulos de João procuraram Jesus, por que ele não mostrou o erro de João? Por que, ao contrário, chamou-o maior de todos os nascidos de mulher até o fim da era dos profetas (Mt 11:11,13)? Como podia um desviado ser maior do que Abraão, Moisés, Davi, Isaías, Jeremias e Daniel? O Senhor situou todo o trabalho ministerial de João, inclusive o período em que ele transcorreu paralelamente ao de Jesus, na era da lei e dos profetas, antes do reino dos céus. A questão é como um ministro decaído e desviante pode ter sido posto acima dos de todos os profetas?
É fora de dúvida que João se equivocou, mas há modos e modos de se equivocar. O erro de João Batista não foi grave ou culposo. Atos é inequívoco ao indicar que o discipulado mencionado pelo Senhor, em Mateus 28:19, era o de Cristo e de mais ninguém. Na igreja primitiva, sob orientação do Espírito Santo, levantaram-se muitos discípulos, mas não vemos alguém ser chamado discípulo de um ministro que não seja Cristo. Só em relação a Paulo, e ainda assim como um reflexo de sua posição passada no judaísmo, mencionam-se discípulos (At 9:25).
No entanto, nem João, nem Paulo perderam-se por terem mantido discípulos, já que ter discípulos não é, em si, errado ou proibido. Em Israel, ter discípulos não significava mais que ser mestre. E a igreja sempre teve mestres (At 13:1-2; Ef 4:11). O Velho Testamento também fala em moços seguidores de Moisés, de Elias e outros. Não se trata de justificar quem quer que seja, mas de contextualizar os fatos que nos cabe julgar.
João viveu num período de transição. Isso significa que Israel passava da época em que os profetas haviam tido seguidores, e os mestres, discípulos, para uma era em que todos seriam ensinados por Deus. Nada mais cabível que, num tempo de transição, a passagem de um a outro desses quadros se dar gradativamente.
Quando João batizava em Enom, sua obra era paralela à de Cristo, mas dava testemunho dele. É o que João 3:26 nos informa: “Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando”. "Do qual tens dado testemunho"! João continuava a prestar o seu testemunho de Cristo. E não só isso. Ele também formava discípulos para fazerem o mesmo, pois declarou: “Vós sois testemunhas". Testemunhas de quê? Ele mesmo esclareceu: "testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. O que tem a noiva é o noivo [Jesus]; o amigo do noivo [João] que está presente e o ouve, muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:28-30).
Meu objetivo não é minimizar os erros de João. Mas é preciso definir claramente esses erros. Digamos que João tenha errado gravemente: ainda assim, seu erro não invalida o princípio das obras paralelas, seguido corretamente por Jó, Daniel e tantos outros. A verdade bíblica não é assim tão miserável que possa ser abalada pelo erro de um homem.
Quando seus discípulos vieram relatar-lhe o “sucesso” de Jesus além do Jordão, João respondeu-lhes: “O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada” (Jo 3:27)! Ninguém angaria coisa alguma boa, se os céus não lhe dispensarem. Cada qual faz o que os céus lhe dão. Se alguém faz muito, sem iludir, é porque Deus lhe deu muito; se outro faz mais, é porque Deus lhe concedeu mais; e se o Cristo faz tudo, é porque lhe tem sido dado tudo! Os céus tudo decidem.
Não há por que brigar ou proibir, zangar-se ou boicotar. Deus deixa caminho aberto a todos os ministérios, a fim de que o que é bom floresça, o que é melhor floresça mais e o que é melhor do que tudo imponha-se sobre todos. Essa é a obra do Novo Testamento. Assim surgiu o evangelho e por nenhum outro método.
O próprio Senhor ordenou a seus discípulos que não proibissem a obra de quem não seguia com eles: “Falou João [Zebedeu] e disse: Mestre, vimos certo homem que em seu nome expelia demônios, e lho proibimos, porque não segue conosco. Mas Jesus lhe disse: Não proibais; pois quem não é contra vós outros, é por vós” (Lc 9:49-50). Nessa passagem, a razão dada para a não proibição de modo nenhum foi negativa. Jesus não negou que ele ou os apóstolos por ordem dele tivessem jurisdição para proibir. Algo mais forte foi dito: Jesus declarou que o obreiro que atuava paralelamente e fora repreendido pelos discípulos estava em harmonia com eles. Portanto, o trabalho do obreiro não só devia ser tolerado como ele tinha o mesmo direito dos apóstolos de ministrar.
Quem tem algo a dizer, diga-o. Quem não tem, cale-se e ouça. Não é o que Paulo recomenda aos coríntios praticarem em suas reuniões públicas (1 Co 14:27-30)? Ampliemos esse princípio absolutamente, e teremos o Novo Testamento. Mas, por falar em Paulo, ele não nos relata que, após a sua conversão, não consultou carne e sangue para iniciar o seu ministério? Não trabalhou paralelamente aos apóstolos, em Damasco e depois na Arábia? E não o fez sem consultar quem quer que se possa chamar carne e sangue (Gl 1:16-18)? Como se não bastasse, não citou ele tal fato para justificar uma radical liberdade em Gálatas? Se Paulo o citou, devemos tê-lo não só como possível, mas como um modelo.
Acaso Cefas, de Jerusalém, Paulo, de Antioquia, e Apolo, de Alexandria, não estiveram todos em Corinto? Não foram todos apóstolos para os coríntios? Eis um lindo e harmonioso exemplo. Embora Corinto fosse a região de labores especiais de Paulo, como os outros apóstolos apressaram-se a reconhecer (Gl 2:9), Jerusalém não pediu autorização para mandar um apóstolo ali. Claro que, cedo ou tarde, uma coordenação ia ser necessária, mas a obra de Deus se dá num contexto de fundamental pluralismo.
Que dizer, então, de Barnabé, Apolo e outros, que não seguiram física ou doutrinariamente a Paulo? Barnabé desentendeu-se com Paulo e se separou dele (At 15:39), e Apolo de modo nenhum atendeu um pedido dele sobre o trabalho missionário de ambos (1 Co 16:12). Claro que isso não precisa ser tomado como exemplo ou paradigma, mas, se houve ali algum erro, tampouco precisamos aumentá-lo ou considerá-lo algo que não pudesse ser removido, um minuto depois, pela confissão.
Se Paulo obteve supremacia no ministério, como Moisés antes dele, foi devido à graça superior que recebeu e que, pouco a pouco, desabrochou. E se Barnabé e Apolo tiveram alguma desvantagem, proveio também daí, não de terem trabalhado paralelamente.
Por toda parte, vemos a mesma coisa. Deus nunca proibiu, pelo contrário incentivou e fomentou fortemente os trabalhos ministeriais paralelos. Desses fatos, devemos extrair que o trabalho paralelo é um verdadeiro princípio bíblico e, como tal, é obrigatório. Deve existir. O que não se deve é confundir o trabalho paralelo (o princípio) com os erros eventuais dos ministros de Deus.
Estêvão foi muito além da incumbência para a qual fora designado, em Atos 6. Ele passou do serviço às mesas à discussão pública com os judeus. E, ao fazê-lo, não repetiu o ensino de Pedro e dos onze, mas tratou de outras revelações com o mesmo objetivo deles: pregar a salvação de Cristo. Essa atitude de Estêvão desencadeou uma cruenta perseguição. Claro: quem olhasse tal quadro com espírito autoritário diria que ali não estava somente um desvio ministerial, mas a devida punição a ele! Olhemos, porém, atentamente, para Atos, e veremos em Estêvão o que é um homem identificar-se plenamente com Cristo, o que é um homem ter rosto como de anjo (At 6:15) e subjugar as trevas com luz indizivelmente clara.
Não está aí um quadro de inegável pluralismo? E não podemos concluir, desses fatos, que a obra cristã primitiva desenvolvia-se em tal pluralismo? Nem mesmo o ministro confirmado por Deus com uma sabedoria superior à de todos os demais era encarregado da obra em toda a Terra. Paulo reconhecia claramente a sua “esfera de ação”. Foi essa a expressão que ele utilizou em 2ª aos Coríntios 10:13: “Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida, mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende até vós”. Não há ministro algum cuja seara seja ilimitada.
Lembremo-nos também de que a seara de Paulo sequer cabia exclusivamente a ele. Pelo contrário, Paulo disse que Apolo regou o que ele plantara. Disse mais que o mistério do crescimento não veio dele, nem de Apolo, mas diretamente de Deus (1 Co 3:6). Portanto, Paulo dividiu sua seara com Apolo, como a dividira antes com Barnabé. Ninguém é designado sozinho para a obra em toda a Terra para a obra numa região qualquer. Não é pouco importante lembrar que ser designado com outro, aqui, não é o mesmo que ser acompanhado de um escravo ministerial.
Vemos, em tudo, que a unidade cristã é plural. Assim é no Velho e no Novo Testamento. Não é de outro modo na História da Igreja, em particular na época dos pais que sucederam os apóstolos e transmitiram o seu ensinamento. Cipriano foi um deles. Sabemos que opôs-se à intenção de Estêvão de Roma de impor a sua convicção a todas as igrejas do orbe sobre o batismo dos hereges. Convocando um concílio, na sua região, para decidir o assunto, Cipriano recomendou aos bispos que expressassem livremente o seu sentimento sobre o assunto. É comum ver-se, nesse seu gesto, decidida oposição às pretensões demasiadas do bispado romano.
Ireneu, por sua vez, afirmou, no século II, que a dissonância no jejum não dissolve a consonância na fé. E Gregório de Roma declarou que a divergência sobre determinados assuntos não fere a unidade da igreja.
Poderíamos dar outros exemplos, tanto da época dos pais como posteriores. Não o faremos para não nos tornarmos cansativos. O importante, o digno de realce, é a virtual unanimidade, o amplo acordo dos pais sobre o tema. Não creio que eles teriam chegado a esse consenso, se uma prática oposta houvesse criado raízes na época dos apóstolos. Pelo contrário, se esse tivesse sido o caso, os ramos nascidos das raízes teriam sido observados e testemunhados por eles.
Nem uma testemunha externa, um governante como Plínio, o Moço, na epístola que dirigiu ao Imperador Trajano sobre os cristãos, apontou qualquer prática desviante dessas. Plínio descreveu a vida cristã primitiva de modo tão simples que parece incompatível com a hierarquia e o controle.
Se em certas épocas um obreiro se torna digno de maior destaque, como José entre os doze patriarcas e Paulo a seu tempo, devemos lembrar-nos de que toda grande verdade de Deus tem o seu outro lado. Do contrário, não seria grande. Sem o seu outro lado, verdade entra em desequilíbrio. No caso da obra de Deus, a unidade precisa do equilíbrio da pluralidade.
Se o enfoque centralizado num obreiro é importante para a unidade da igreja, o pluralismo também o é. De modo nenhum, esse pluralismo desagrega a unidade. Pelo contrário, ele a acrisola, purifica-a e a torna mais forte. É na colaboração de diversidades e até de contrariedades que a unidade final se enriquece. De modo que a unidade sem pluralidade é pobre, não passa pela prova. E, por não passar, Deus mesmo a descarta. Substitui a unidade da uniformidade pela unidade da diversidade, que a natureza e a Bíblia exemplificam.
Essa diversidade precisa ser tão respeitada quanto a unidade que dela resulta. Elas são aspectos da mesma verdade. Toda unidade é, portanto, o âmbito de uma diversidade não apenas real, mas forte e prevalecente. Alguns perguntarão: como a unidade poderá ser alcançada, dando-se espaço para a pluralidade? Devemos, porém, lembrar-nos de que a construção da unidade não obedece a um passo-a-passo definido, nem é produzida pelo braço humano. É, antes, obra de Deus sujeita aos princípios das Escrituras. Se esses princípios estiverem assegurados, não importam os métodos como eles são implementados.
Paulo conclui suas observações em prol do uso do véu, em 1ª aos Coríntios 11:16, afirmando que, se alguém pretendesse ser contencioso e não seguir a sua recomendação, devia saber que os apóstolos e as igrejas de Deus não tinham tal costume. Dessa frase alguns extraem que há costumes comuns às igrejas, o que é óbvio. Que povo não tem costumes? Porém, os costumes a que Paulo se refere não são obrigatórios. Se o fossem, feririam a comunhão não condicionada que deve vigorar nas igrejas. Ou temos costumes obrigatórios, ou temos comunhão.
Os que invocam 1ª aos Coríntios 11:16 em altos brados querem usar os costumes ali mencionados para impor a uniformidade na igreja. Mas o verso não se refere ao cristão que utiliza sua liberdade para não apoiar o uso do véu, por motivo de consciência. Se fosse assim, a recomendação específica de Paulo, no tocante ao véu, entraria em conflito com Romanos 14:3,6, em que ele afirma: “Quem come não despreze ao que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu [...] Quem distingue entre dia e dia, para o Senhor o faz; e quem come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus”. Costumes diferentes são lícitos, quando baseados em convicção.
Não há qualquer evidência de que as igrejas neotestamentárias tivessem práticas com força de condição espiritual para uma comunhão plena. Entre elas, havia considerável liberdade de formas, desde que não pecaminosas, é claro. Nem o acordo no tocante a práticas significava unidade, nem a diversidade de formas era considerada divisão.
Sob esse conceito, unidade é o somatório de todos os diversos, sem exclusão de algum. Uniformidade, por sua vez, é a unidade forçada e apenas de alguns. Um autor conhecido afirmou que o Novo Testamento defende a maior pluralidade de dons, pessoas e tudo o mais, exceto a pluralidade de igrejas (BARTH, Karl. "A igreja e as igrejas". In Dádiva e louvor- artigos selecionados. São Paulo: Sinodal, 1986.p. 207). Assim é, se nenhum dom ou pessoa for excluído. Mas, se houver exclusão, restará a uniformidade.
Os que são contrários a esse ponto de vista lembrarão que Paulo condenou a existência de partidos na igreja em Corinto (1 Co 1:10-13). Dirão, pois, que não só a pluralidade de igrejas é pecaminosa, mas também a pluralidade de grupos na mesma igreja. Ocorre que Paulo não condenou quaisquer grupos. Condenou partidos, ou seja, germes de futuras divisões maiores. Condenar partidos é o mesmo que condenar a pluralidade de igrejas, à qual eles tendem, já que os partidos são o estágio incipiente da pluralidade de igrejas.
Ao mencionar os partidos, portanto, o apóstolo não condenou a pluralidade, mas a doença dela, que ameaçava devorar a unidade. Ele condenou a tentativa da parte de dominar todo o corpo, como um tumor que cresce desordenadamente. Fundamental é tratar elementos plurais, a exemplo de opiniões, como elementos do todo, não como o próprio todo.
Não fazer da parte um todo, dos elementos da pluralidade uma nova unidade é a advertência dirigida a todo cristão. Claro que, se outra pessoa toma aqueles elementos e os usa para criar uma nova unidade, a responsabilidade não é de quem os criou. O inventor do avião não pode ser preso pela utilização de seu engenho para fins bélicos. Nem podem os autores bíblicos ser condenados por heresia, porque hereges usaram as Escrituras para sustentar suas doutrinas.
E, se essa é a unidade bíblica, a implantação prática dela há de ser o caminho para a restauração da igreja. Por muito tempo, temo-nos esforçado para implantar uma unidade férrea e inflexível. Talvez, no início da restauração da igreja, essa estratégia tenha sido necessária. Não se desatola o veículo sem acelerar o motor mais do que é benéfico para ele. Porém, é necessário um redirecionamento para o equilíbrio entre unidade e diversidade, o que não é absolutamente arriscar a unidade.
Se a restauração da nação de Judá, no Velho Testamento, é um tipo da que ocorre na era da igreja, a reconstrução das cidades e vilas, no interior do país, é uma das suas etapas finais. E, se Jerusalém, é o símbolo maior da unidade prática, as cidades e vilas representam a pluralidade. Necessário é, pois, reerguer os centros de pluralidade dentro da unidade. Do contrário, tudo o que nossa unidade expressará será desolação.
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