Jesus contou aos seus discípulos a seguinte história sobre um rico e um mendigo: "Havia certo homem rico, que se vestia de púrpura e de linho finíssimo, e que todos os dias se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele [...] Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! e manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama" (Lc 16:19-20, 22-24).
É às vezes lembrado que o texto do rico e de Lázaro possui características estranhas a outras parábolas. Atribui nomes de pessoas reais a duas personagens (Lázaro e Abraão) e menciona um lugar específico para onde eles vão após a morte (inferno ou hades, em grego). Isso deve ser seriamente considerado. Porém, Jesus contou tantas histórias alegóricas e tão poucas sobre fatos da sua época que parece improvável que o texto não seja uma das suas parábolas.
Conforme o conhecimento da literatura antiga cresce, o número de textos interpretados como parábolas aumenta. E o faz em tal medida que, na exegese moderna, os provérbios do Antigo Testamento e o dito de Jesus sobre o espírito imundo que retorna à sua casa passaram a ser considerados parábolas. E não somente eles, mas muitos outros exemplos, comparações, máximas, histórias figurativas da Bíblia também. Nesse cenário modificado de interpretação dos textos sagrados, pouca dúvida resta de que a história do rico e de Lázaro deve ser considerada uma parábola, ainda que de tipo especial.
Nela, as alusões precisas ao hades e ao pós-morte parecem devidas a ensinamentos preexistentes sobre esses temas. Mostram que o objeto da parábola não são as ações de suas personagens, mas aqueles ensinamentos. Eles são os principais símbolos empregados para indicar realidades espirituais. Por exemplo, as declarações do homem rico sobre seus olhos, sua língua e seu dedo ecoam a crença típica do primeiro século de que a alma sobrevive à morte. O mesmo é verdade em relação à disposição das duas seções do hades implícita nas declarações de que o homem rico olhou para cima, a fim de ver Abraão e Lázaro, e de que um abismo permanecia entre eles. Esses dados eram parte do ensino sobre o estado intermediário, que Jesus adotou como símbolo dos sofrimentos e recompensas após a morte.
O ensino farisaico da época também ecoava as alusões bíblicas à morte como uma espécie de sono. Se somarmos essas alusões à representação do hades na parábola, a doutrina resultante será de que o estado intermediário é totalmente dominado por criações semelhantes aos sonhos. Desse ponto de vista, o tormento do rico, sua visualização de Abraão e Lázaro, o diálogo que manteve com o primeiro não devem ser considerados experiências reais, mas criações imaginativas da sua mente depois da morte.
Jesus se referiu a todas essas doutrinas e implicações de doutrinas que circulavam no seu tempo, para acrescentar-lhes o ensinamento de que o tipo de vida que o rico levou é capaz de saturar a mente de pensamentos que tendem a explodir em forma de sofrimento. A parábola afirma que o homem rico, durante a vida, viu Lázaro, mas não o ajudou. Esse foi um erro dele. Porém, em grego, o tempo verbal usado para descrever a colocação de Lázaro à porta do rico é o mais que perfeito. Esse tempo era considerado um luxo, na linguagem do Novo Testamento (koiné), pois as pessoas não sentiam a menor necessidade de expressar o que ele se propunha a expressar (TAYLOR, W. C. Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. 6 ª ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1980. p. 332). Huckabee ensina que o mais que perfeito era usado para indicar que tanto a ação como seus efeitos tinham passado (www.palavraprudente.com.br/Estudos/
dw_huckabee/hermeneutica/cap05.html). Isso significa que a ação do homem rico ao ver Lázaro e os efeitos dela já tinham cessado, no instante decisivo da morte do rico.
Esse tempo verbal está em nítido contraste com o ato do homem rico de se regalar, que aparece no imperfeito. O tempo imperfeito indica uma ação contínua, que na parábola é exagerada pela adição da expressão “todos os dias” (kat emeran). Rienecker e Rogers explicam o significado desse tempo da seguinte forma: "imperfeito de hábito, [significando] habitualmente vestido" (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988. p. 141).
Se tudo isso está correto, e temos boas razões para crer que pode estar, o ensinamento de Jesus é de que a ação que torna o homem rico culpado não é a de ter visto Lázaro à sua porta no passado, mas a de festejar e se regalar continuamente. Não é tanto o aspecto social da história ou a relação do rico com Lázaro que está em causa quanto o ato daquele de direcionar toda a sua vida ao prazer.
O Salmo 73 descreve as consequências desse tipo de vida: "Eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos. Para eles não há preocupações, o seu corpo é sadio e nédio. Não partilham das canseiras dos mortais, nem são afligidos como os outros homens. Daí a soberba que os cinge como um colar, e a violência que os envolve como manto. Os olhos saltam-lhes da gordura; do coração brotam-lhes fantasias [...] E dizem: Como o sabe Deus? Acaso há conhecimento no Altíssimo? Eis que são estes os ímpios; e sempre tranquilos, aumentam as suas riquezas" (Sl 73:3-7,11-12).
Quando proferiu a história de Lázaro, Jesus tinha acabado de ensinar duas outras parábolas sobre homens ricos, que eram sábios e representavam Deus (as do filho pródigo e do mordomo prudente). Nesse contexto, seria estranho tornar mau o homem da terceira parábola só porque era rico. Jesus o fez mau não porque tivesse muito dinheiro, mas porque vivia mergulhado em prazeres. O próprio Mamon (a riqueza) foi chamado injusto (Lc 16:11) não porque o fosse em si mesmo, mas porque as fortunas da época eram acumuladas por atos brutais e injustos.
A chama a que o rico se refere, em 16:24, aparece também em outras parábolas. Em todas, ela representa o julgamento. No texto do joio e do trigo, Jesus afirmou que os anjos “ajuntarão todos os escândalos e os que praticam a iniquidade, e os lançarão na fornalha acesa " (Mateus 13:41-42). E no texto sobre a grande pesca, de novo ele disse que os anjos lançarão os maus na fornalha de fogo, onde "haverá choro e ranger de dentes" (Mateus 13:50).
Choro pode indicar sofrimento, mas também tristeza ou pesar. E o ranger de dentes às vezes acompanha a dor, às vezes, a ira. Assim, a fornalha de Mateus 13:50 pode ser interpretada, alternativamente, como lugar de sofrimento e dor ou de tristeza e ira. Em crianças, o choro costuma relacionar-se ao sofrimento, mas em adultos geralmente indica tristeza. Se entendermos que a fornalha foi projetada para adultos, será mais consistente interpretarmos o choro como sinal de tristeza, e o ranger de dentes como ira por ter sido desqualificado.
Se no julgamento que se dará com ajuda dos anjos o sofrimento será consequência do estado mental dos pecadores, representado pelo choro e ranger de dentes, quanto mais no juízo do estado intermediário retratado em Lucas 16! Como num pesadelo produzido pela mente repleta de lutas e desafios, os ímpios sofrerão por causa dos seus próprios pensamentos orgulhosos e das vãs imaginações do seu coração.
Porém, quando tudo isso sucede, a alma começa a perceber as coisas sob uma nova luz. Quando viu que era impossível receber uma gota d'água da outra seção do hades, o rico pediu a Abraão que enviasse Lázaro para advertir seus cinco irmãos. O pleito indica mudança de perspectiva. Pode-se argumentar que a mudança veio tarde demais, mas a parábola não desenvolve esse ponto. Pelo contrário, deixa-o em aberto.
Abraão limitou-se a responder ao rico que os que viviam como ele não seriam persuadidos, ainda que alguém ressuscitasse dos mortos. Como já vimos, a vida que conduz ao tormento é consequência da fixação interior nos prazeres. Mudanças de comportamento podem ocorrer sem que alguém ressuscite. A maturidade as introduz naturalmente. Mas o peso das sensações, dos desejos, da descrença e do orgulho não pode ser facilmente removido do coração. Ele é como a raiz de uma árvore, que permanece debaixo da terra, quando as folhas e os frutos caem. E que faz com que a árvore desperte e produza de novo maus frutos.