terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Livre Exame de Romanos (6): A Consciência do Judeu

Após ter estabelecido a culpabilidade tanto dos gregos que adoravam ídolos como dos que cultuavam Deus, Paulo passou a tratar dos judeus e, mais especificamente, da consciência que tinham de si, nos versículos 17 a 20 do capítulo 2: “Tu que tens por sobrenome judeu, repousas na lei e te glorias em Deus; que conheces a sua vontade, e aprovas as cousas excelentes, sendo instruído na lei; que estás persuadido de que és guia dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”.
Paulo emprega os verbos aprender e ensinar no particípio, que é o tempo que mais enfatiza o caráter consumado da ação e seus efeitos. No versículo 18, “ser instruído na lei” está nesse tempo verbal, o que indica uma instrução consumada, um aprender completo. “Ser guia de cegos”, luz nas trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças também é uma ação no particípio. Indica, portanto, não só que o judeu tinha consciência de haver conquistado um conhecimento completo, mas de ensiná-lo perfeitamente aos cegos, aos ignorantes e às crianças.
Essa consciência não era típica apenas de um fariseu como Paulo, mas também dos saduceus e dos integrantes das outras correntes do judaísmo. Sinal claro disso é o fato de o texto mencionar a lei (“tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”) e vários mandamentos específicos. Sabemos que os fariseu criam na Lei e nos Profetas, enquanto os saduceus só aceitavam a primeira. Por isso, ao se deter na lei, Paulo focou o que era comum a todo judeu, até mesmo a essência do homem judeu.
A noção de que a lei do Antigo Testamento, a Torá, consistia em mandamentos está entranhada em nós. Paulo, porém, afirma que ela consiste no conhecimento e na verdade (Rm 2:20). Afirma, até mesmo, que a lei tem a forma dessas duas coisas. A palavra forma (mórphos) tinha denso significado filosófico, que passou para a língua do Novo Testamento. Independentemente de possuir maior ou menor intimidade com a Filosofia, ao usar essa palavra, era impossível a um judeu de língua grega, como Paulo, deixar de transmitir o significado filosófico de que ela estava impregnada, que era o de um pensamento puro e destituído de toda matéria.
Por isso, no verso 2:20, a “forma da sabedoria [conhecimento, no original] e da verdade” indica um pensamento destituído de conteúdo material, uma ideia abstrata, sobre o conhecimento e a verdade. A lei era exatamente isso para o judeu. E o judeu era, para si, o possuidor perfeito dessa lei.
Isso implica que a Torá não contém mandamentos concretos, que regem efetivamente a vida. Para encontrar mandamentos assim, é preciso recorrer ao que Paulo denominou “coisas excelentes” (Rm 2:18). No original, essa expressão é ainda um outro particípio, que pode ser traduzido “coisas que excedem”. Ela indica “as sombras mais delicadas da vida moral, aludindo à casuística na qual as escolas judaicas eram excelentes” (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 259). Trata-se de regras e estatutos que iam além da Torá, estabelecendo o que efetivamente se podia e não se podia realizar na vida cotidiana.
A mente judaica estava impregnada dessas duas coisas: da lei e das “coisas que excedem”.Mas Paulo não reconhece nisso qualquer vantagem. Para ele, o que importa não é ter a forma do conhecimento e da verdade, mas a viver. Não é preencher essa forma abstrata com coisas excelentes, mas a colocar em prática e em movimento na vida. “Tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes que não se deve cometer adultério, e o cometes? Abominas os ídolos, e lhes roubas os templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (Rm 2:21-23).
Os versos 17 a 20 apresentam o judeu como pensa que é; os de 21 a 23 apresentam-no como é.Para Paulo,a consciência do judeu era alienada, pois não correspondia ao seu ser real. Não que os princípios em que ela se baseava estivessem errados. A lei tem de fato a forma do conhecimento e da verdade. E realmente é preciso exceder essa forma, para buscar o conteúdo que ela deve revestir. Mas os judeus iam longe demais nessa direção, perdendo-se tanto da lei como de si mesmos.
Assim, embora denuncie o extravio interior dos seus concidadãos, Paulo vai em busca do que denomina vantagem do judeu. “Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3:1-2). Se os princípios da consciência judia são corretos, sua vantagem é inegável. A suma dessa vantagem, o ponto em que ela mais se condensa e se deixa perceber, são as Sagradas Escrituras. Por isso, depois de reconhecer que os judeus têm “muita vantagem, sob todos os aspectos”, o apóstolo acrescenta “principalmente porque lhes foram confiados os oráculos de Deus”.
Paulo pensa como judeu. Muda algumas coisas na consciência israelita, mas não lhe altera a essência. Sem entendermos isso, não temos como ascender à compreensão de Romanos 2 e 3. Do modo como os judeus tomavam a lei como conhecimento e verdade, Paulo considerava os oráculos de Deus (a Lei e os Profetas) expressão acabada desse conhecimento e dessa verdade. E assim como os seus compatriotas, ele os tomava como forma cujo conteúdo devia ser preenchido mediante uma busca espiritual.
Por isso também, brada: “A incredulidade deles virá desfazer a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro e mentiroso todo homem” (Rm 3:3-4). Que é a fidelidade de Deus para Paulo? É a própria verdade divina, pois ele diz: “Virá desfazer a fidelidade de Deus?” E responde: “De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro”. Pergunta sobre a fidelidade e responde sobre a verdade, porque, para o judeu e para Paulo, em particular, o foco da relação de Deus com Israel é essa verdade-fidelidade.
Só no interior de uma consciência assim, de uma consciência profundamente judaica, faz sentido perguntar: “Se por causa da minha mentira fica em relevo a verdade de Deus para a sua glória, por que sou eu ainda condenado como pecador?” (Rm 3:7). O Ocidente está impregnado de ceticismo. Mal crê numa verdade última. Mas crê com inabalável firmeza que uma mentira não pode ter sentido derradeiro. Por isso, para o homem ocidental, a pergunta sobre o sentido último da mentira não tem significado. É inteiramente absurda. Já para o judeu essencial, para o judeu do tempo de Paulo, que cria na verdade absoluta, embora não a compreendesse, a pergunta sobre o significado último da mentira podia fazer sentido, se ressaltasse a verdade de Deus.
Ao descrever a consciência do judeu, Paulo não se exclui dela. Adota-a intensamente. Pensa, crê e escreve como judeu, pois se curva ao Deus que é verdade, no sentido mais forte do termo. Porém, ele se aparta da alienação em que a consciência de seus compatriotas incorre ao perder-se. Aparta-se da falsa consciência que leva o judeu a buscar o conteúdo da verdade de Deus em minuciosos comportamentos formais. Descobre que esse conteúdo deve ser o ditado direto do Espírito Santo ao coração humano. E que esse ditado só se torna acessível, quando o homem crê na verdade definitiva, na verdade apostólica, na verdade da redenção de Cristo.