Os livros do Papa sobre Jesus, lançados entre 2006 e 2012, se inserem num intenso debate que é urgente tratarmos como busca da verdade sobre Jesus. Porém, não de uma verdade teológica, mas da verdade no sentido original da palavra no idioma grego.
Sabemos que os quatro Evangelhos e o resto do Novo Testamento, com exceção de uma ou outra palavra, foram escritos em grego. Nesse idioma, o termo verdade (aletheia) significa desvelamento. Indica o ato de desencobrir algo que havia permanecido oculto. A melhor elucidação do sentido original da palavra a que pude ter acesso não foi fornecida por um teólogo, mas por Martin Heiddegger, no seu clássico Ser e tempo (15ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. Cap. 2). Embora não faça referência à variedade de grego (denominada koiné) em que o Novo Testamento foi escrito, boa parte do que Heiddegger ensinou sobre o termo aletheia permanece válido para os escritos dos apóstolos e seus seguidores, por duas razões: porque se baseia no sentido etimológico da palavra, que é o mesmo no grego clássico e no koiné, e porque o uso do Novo Testamento confirma amplamente os ensinamentos de Heiddegger.
Vou direto ao ponto que me parece principal, nesses ensinamentos. A crítica que Heiddegger delineia contra a maior parte das interpretações filosóficas da verdade baseia-se na vagueza atribuída à palavra. Não que os autores daquelas interpretações não saibam que aletheia significa desvelamento ou desencobrimento, mas eles pensam que a palavra se refere a qualquer ato de revelar. Na Filosofia, não são incomuns referências ao desvelamento de noções abstratas como se fossem aletheia. Heiddegger mostra que, no interior da cultura grega, que sempre supôs a realidade material, aletheia indica a revelação de algo físico e sensível. Nesse e só nesse sentido, é que a palavra pode e deve ser traduzida realidade.
Portanto, aletheia é, sim, realidade, como vários teólogos ensinam, mas não uma realidade mística, etérea, impalpável, como também costumam sugerir. É antes a realidade física, até mesmo material, se me for permitido lembrá-lo.
Isso é de extrema importância para a compreensão da verdade cristã. A começar pelo fato de que, no Novo Testamento, a verdade é considerada algo recém-revelado. Isso porque, se não houvesse estado encoberta e sido recém-revelada, não se poderia chamar aletheia. Nesse sentido, o Evangelho de João afirma que a graça e a verdade [aletheia] vieram por meio de Jesus Cristo (Jo 1:17). E nesse mesmo sentido, a 1ª Epístola de João interpreta a vinda da verdade como “o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida” (1 Jo 1:1).
A verdade só veio, foi vista, ouvida e apalpada, porque antes havia estado encoberta e porque a sua revelação foi de caráter material e sensível. Se não tivesse sido assim, nenhuma verdade teria sido revelada. Ainda estaríamos sem conhecer a verdade sobre Deus.
Por isso, em Romanos 1, a verdade de Deus, que os gentios rejeitaram, é descrita como a que se manifesta e até mesmo se pode ver na natureza. De novo é preciso lembrar: se assim não fora, não se trataria da verdade. Ou Deus se mostra na matéria, ou não se mostra de maneira alguma. Revelação abstrata, revelação do que Platão chamou mundo das ideias ou acontece por uma projeção na matéria, até mesmo por uma encarnação, ou não é revelação de verdade alguma.
Por isso, já a concepção grega de verdade exigia a encarnação de Deus. Ao menos o exigia, se algum passo havia de ser dado para além da revelação de Deus na natureza. Ou Deus ingressava na matéria, por assim dizer, ou a sua verdade não poderia ser revelada aos homens além do ponto em que já estava refletida na natureza. Não é preciso afirmar que, nas páginas do Novo Testamento, essa e somente essa é a verdade que veio por intermédio de Jesus Cristo.
As duas Epístolas de Pedro são hoje consideradas não autênticas. E de fato não foram escritas pelo próprio Pedro. No entanto, esse está longe de ser o ponto mais importante a respeito delas. O mais importante, o decisivo, é o testemunho que as epístolas transmitem sobre Jesus, que deu a conhecer Deus aos homens no sentido mais pleno. Por isso, o autor sagrado afirma: “Não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo segundo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade [...] quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo” (2 Pe 1:16-18).
A desgraça do tempo atual é haver abalroado essa verdade fundante e fundamental. De que adianta saber se Pedro escreveu ou não as cartas que lhe são atribuídas, se nos tornamos incapazes de compreender que a revelação física de Deus, se assim for possível dizer, é o ponto mais fundamental de todos sobre Jesus? Se abalroamos essa exata revelação, ao cancelarmos os testemunhos que possuímos dela, sem colocar outros de mesmo caráter em seu lugar? E se ainda nos tornamos capazes de extrair do vácuo de testemunhos físicos uma conclusão negativa?
Um testemunho físico só pode ser substituído por outro, jamais por um testemunho intelectual, abstrato, indireto ou não físico, sob pena de a verdade contida no primeiro se perder por inteiro. E o testemunho físico que temos sobre Jesus, com perdão da franqueza total, não está escondido em entrelinhas do Novo Testamento, onde o Papa laboriosamente o busca. A entrelinha bíblica só dá testemunho da verdade, quando nos fala com tanta clareza quanto as próprias linhas. Não é o que acontece com as entrelinhas em que o Jesus eclesiástico se oculta, de onde Ratzinger o retira para a luz. Essas entrelinhas são densas, cerradas, obscuras, como vimos na postagem anterior. E se o são, não podem conter revelação ou desvelamento.
O Jesus eclesiástico, que Bento nos apresenta, não é o Jesus real, embora o contenha, na medida em que aceita o testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus, como o Novo Testamento o revela. Bento submete esse Jesus real a uma intervenção em que insere no seu interior e entretece com ele o que extrai das entrelinhas do Novo Testamento. E o Jesus da Crítica tampouco é o histórico, pois, embora se erga de entrelinhas mais claras que as de Bento, ele o faz de modo contrário ao testemunho físico sobre Jesus.
Esse testemunho é unicamente o dos apóstolos. Se compararmos 2ª de Pedro 1:16-18 com os discursos de Pedro registrados no Livro de Atos, perceberemos que não se contradizem. Pelo contrário, moldam-se um ao outro. E se cotejarmos os dois com o Jesus de Marcos, que a tradição mais próxima da verdade física sobre o livro afirma conter a memória de Pedro, a coincidência será ainda mais ressaltada. Então, por que cancelar o testemunho dos três versículos de 2ª de Pedro? Apenas porque Pedro não é o seu autor? Porque a verdade física que testemunhamos, dois milênios depois, nos informa que doentes não são curados por orações e mortos não ressuscitam? Acaso a verdade física de um tempo, transmitida por suas testemunhas, pode cancelar a de outro tempo e que foi transmitida por outras testemunhas?
Certamente não, embora uma verdade possa vir a ser enfraquecida, pela descoberta de contradição nos testemunhos a respeito dela. Mas não é esse o caso da verdade física sobre Jesus. A massa dos testemunhos sobre ela não se contradiz. O que a Crítica apurou de contradições e que merece mesmo esse nome insere-se nos detalhes, pode-se dizer até nas entrelinhas do texto bíblico. Nos pontos centrais, como é o caso de 2ª de Pedro 1:16-18, os testemunhos são sempre concordantes.
Mas há mais um ponto que se soma ao testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus e que eles próprios tomaram em consideração. Trata-se das profecias messiânicas do Antigo Testamento. Os apóstolos e seus seguidores compararam o seu próprio testemunho sobre Jesus com aquelas profecias e concluíram que havia uma forte convergência entre eles. Por exemplo, o autor de Mateus comparou os dados de Marcos, que adotou como fonte ao compor o seu próprio Evangelho, com as profecias. E concluiu que os atos narrados em Marcos cumpriram uma série delas.
Porém, um dos textos mais claros sobre o Messias, em todo o Antigo Testamento, o oráculo de Daniel 9, não foi citado em Mateus ou em qualquer outra parte do Novo Testamento. Penso que a omissão não se explica pelo não reconhecimento do caráter messiânico da profecia por parte dos autores neotestamentários. Ao contrário, o oráculo parece ter sido omitido por ser messiânico demais. Além de se referir ao Messias literalmente, ele chega a datar a sua vinda. Portanto, aproxima-se perigosamente de escancarar quem vem a ser tal Messias, o que, no contexto do primeiro século, implicava conflitos e até a possibilidade de derramamento de sangue.
Basta saber fazer contas para entender que a profecia em questão aponta a vinda do Messias no século I d. C. Daniel 9:25 prediz: “Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém até ao Ungido [em hebraico, Messias], o Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas”.
Três ordens de autoridades são conhecidas, para se empreender a restauração do Templo judeu e da cidade de Jerusalém: a de Ciro, a de Dario e a de Artaxerxes. As duas primeiras estão transcritas em Esdras 1:2-4 e 6:6-12. Aludem apenas à edificação da “Casa do Senhor”, não à cidade de Jerusalém. Apenas a terceira ordem, registrada em Neemias 2:1,3,5-6,8 e proferida em 445 a. C., foi para restaurar Jerusalém, como requer a profecia. Portanto, ela é o ponto de partida dos 483 anos da profecia.
Não são muitos os candidatos a Messias disponíveis 483 anos depois de 445 a. C. Robert Anderson provou que, descontadas as diferenças provenientes de o ano judeu ser de 360 dias (vide Dn 7:25; 9:27; Ap 11:3; 12:6,14; 13:5), as 69 semanas nos levam a 32 d. C., ano em que mais provavelmente Jesus entrou em Jerusalém, foi crucificado etc. (ANDERSON, Robert. El príncipe que ha de venir – la maravillosa profecía de Daniel com respecto al Anticristo. Barcelona: Espanha, 1980. p. 143).
A única dificuldade que a profecia de Daniel apresenta, no tocante à referência a Jesus, é a interpretação da palavra semana. Mas, se olharmos Levítico 25:8, a dificuldade será dissipada em parte. Diz esse verso: “Contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos: de maneira que os dias das sete semanas de anos te serão quarenta e nove anos”. Está claro que os judeus tinham o costume de empregar a figura de uma semana para representar sete anos. Ezequiel 4:5,7 e Números 14:34 sedimentam ainda mais esse costume.
Portanto, as 69 semanas contadas da ordem para reedificar Jerusalém podem ser 69 vezes sete anos, como em Levítico. Se não o forem, terão de ser 69 semanas literais, 69 vezes sete dias, isto é, um ano mais 118 dias. Ou o Messias veio um ano e 118 dias após 445 a. C., ou veio 483 anos depois, ou seja, na época de Jesus. Não há registros históricos da vinda de um Messias um ano e 118 dias depois daquela ordem. A conclusão a se extrair disso é bastante óbvia.
Não entendo por que Bento XVI não mencionou a profecia das 70 semanas, em qualquer dos três livros que publicou. As razões da lacuna devem ser muito distintas das que explicam a ausência do mesmo oráculo nos Evangelhos. Apresentar o Jesus profético, de modo tão claro, está fora do interesse imediato da Igreja. Para mim, essa é a impressão que permanece. Digo-o com grande respeito pelas obras notáveis que Sua Santidade nos presenteou e com reverência ainda maior pela própria figura do Pontífice. Mas tenho de dizê-lo de todo modo.
O Jesus real, muito diferente do eclesiástico, revelou-se fisicamente no primeiro século. Insisto em que ele só pode ser conhecido, no nosso próprio tempo, se preservarmos íntegro o testemunho direto dos apóstolos sobre ele. E esse testemunho é o que está encravado nas palavras claras e nas frases abertas, não em sutis entrelinhas, dos quatro Evangelhos.
Se não é o do Papa, o Jesus assim vestido da verdade tampouco é o da Crítica. Embora opostos, esses dois Cristos, o do Papa e o da Crítica, tangem-se nas entrelinhas de que procedem. Porém, se o primeiro não coincide com o testemunho físico sobre Jesus, o último arrebenta-se de encontro a ele. E esse ainda é o fato mais notável e mais de se lastimar no nosso tempo.