sábado, 5 de janeiro de 2013

Jesus, por Bento XVI (4): A Última Semana

O segundo livro de Bento XVI sobre Jesus (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011) reforça o viés delineado na obra anterior, lançada em 2006, que consiste em procurar os principais traços teológicos de Jesus nos Evangelhos, sem aprofundar a análise das questões levantadas pela Crítica Histórico-Literária a respeito dele. A opção de Ratzinger, que coincide com a da Igreja, consiste em apresentar esse Cristo teológico, o Cristo da tradição bimilenar, de modo não alienado daquela Crítica, mas sem a abordar extensamente. Com isso, uma abordagem nova e problemática da figura de Jesus Cristo é claramente inserida na atual discussão histórica e teológica.
Para entender melhor o sentido da reflexão do Papa sobre Jesus, é útil recordar como o pensamento teológico formou-se, no seio do cristianismo. Os autores cristãos dos primeiros séculos enfrentaram o dilema consistente em recepcionar ou rejeitar as categorias filosóficas gregas, isto é, em tratar filosoficamente os temas teológicos ou considerar a herança filosófica inútil para os fins que buscavam.
Uma das formas de resolução do dilema consistiu em rejeitar totalmente a herança filosófica antiga. Porém, com o tempo, a tendência de recepcionar a Filosofia prevaleceu. Para os representantes dessa tendência, entre os quais se destaca Santo Agostinho, as conclusões teológicas não deviam ser determinadas pela Filosofia, mas podiam ser alcançadas com auxílio dela. Assim se formou a tendência medieval de tratar a Filosofia como ancilla theologiae (escrava da Teologia).
Bento XVI trata a Filosofia dessa segunda maneira. É nítida a sua vocação para problematizar com conceitos e categorias filosóficas. Na página 127 do seu livro, lemos: “A figura de Jesus [...] é qualificada com a expressão ‘pró-existência’, um existir não para si mesmo, mas para os outros; e isso não apenas como uma dimensão qualquer desta existência, mas como aquilo que constitui o seu aspecto mais íntimo e abrangente. O seu ser como tal é um ser para”. Não é preciso afirmar que esse modo de expressão manifesta o instrumental filosófico que Ratzinger coloca a serviço da sua reflexão teológica.
Porém, ao mesmo tempo em que desenvolve um trato específico com a Filosofia, o texto de Bento revela consciência profunda da função, pela qual a Teologia se distingue e até se separa daquela disciplina clássica. Enquanto a Filosofia é uma arte ou ciência crítica das concepções do senso comum, a Teologia é uma reflexão sobre o questionamento que se faz crise.
Ao apontar essa espécie de concepção em Ratzinger, sem dúvida o interpreto. Considero que a maneira de pensar do Papa depende, fundamentalmente, da sua concepção da Filosofia, da Teologia e da relação entre ambas. Nessa concepção, a Filosofia é tratada como um canteiro: seu papel é acolher e oferecer condições ideais para a germinação das sementes da crítica do senso comum. O trabalho do filósofo não é tanto oferecer respostas quanto aprimorar, incessantemente, as perguntas que cria, sobre essas concepções. Já a Teologia pressupõe a Filosofia, pois trabalha com questionamentos gerados por ela e ainda mais pela religião. Não certamente com todos aqueles questionamentos, mas com os que envolvem a divindade e têm o potencial de desencadear graves crises.
A Teologia que não utiliza as sementes do questionamento filosófico, que não as planta na sua própria seara e não colhe os frutos das crises que vem a produzir, permanece subdesenvolvida. Não que não seja possível se desenvolver uma Teologia apenas a partir da religião. Mas a Teologia que se serve, ao mesmo tempo, da Filosofia encerra um potencial de descoberta muito maior.
Quando se aninham na consciência sob forma de angústia, portanto, certas questões religiosas e filosóficas produzem crises. Para tratar dessas crises é que a Teologia existe. Em outras palavras, enquanto permanece um perguntar e responder sistemático, sobre as concepções do senso comum, a reflexão humana detém-se no campo da Filosofia mas, quando se transforma em crise, pela experiência da angústia, ela passa ao terreno teológico. A passagem ao teológico pode ocorrer, também, a partir da ciência, mas essa não é a regra, pois a própria ciência costuma nascer de um questionamento filosófico prévio. Não faz sentido pensar, por exemplo, que o imenso trabalho crítico exercido sobre os Evangelhos possa ter vindo à existência sem um prévio questionamento filosófico da história evangélica.
Não sei até que ponto os teólogos concordam com essas afirmações, mas não posso deixar de invocar os escritos deles como prova do que declaro. Principalmente os escritos de Ratzinger. Faço questão de afirmá-lo, pois é em relação a uma crise (a da compreensão de Jesus) que os livros ora comentados de Ratzinger revelam as suas deficiências. A compreensão tradicional de Jesus foi desintegrada em mil pedaços, pela Crítica Histórica e Literária. Com isso, um novo retrato do doce Mestre da Galileia passou a ser possível somente como mosaico, como colagem dos mil fragmentos. Essa é a crise da compreensão de Jesus, que há dois séculos atravessamos. Não cabe à Teologia ignorá-la ou evitá-la.
No entanto, os livros de Ratzinger sobre Jesus evitam tratar da crise. Todo o tempo, eles fazem referência à Crítica sem a enfrentarem. Citam a crise de compreensão de Jesus, mas não a encaram. Isso causa a impressão de que Ratzinger se coloca de lado para a crise. Ele não está de costas para ela, pois a aborda o tempo todo e tem consciência dela. Tampouco se pode propor que está de frente para a crise, já que não a enfrenta. Essa é talvez a deficiência maior dos seus livros.
Pode-se escapar ao problema, afirmando que o Papa tem o direito de definir como desenvolver os seus textos, como todo escritor o tem. Esse argumento com base na liberdade poderia ser aceito, se a opção de Bento não fosse contrária à índole da Teologia como tratamento de crises religiosas e filosóficas e se ela não divergisse da melhor tradição cristã. Que fez Santo Agostinho, a não ser enfrentar as crises da sua época? Tanto o conflito pelagiano como o donatista, para não falar de outros, foram por ele tratados. Ao fazê-lo, Agostinho comportou-se como teólogo e contribuiu para a resolução das crises. Os historiadores atestam que, após a sua intervenção, as controvérsias pelagiana e donatista serenaram quase completamente.
Na Sagrada Escritura, a passagem do questionamento à crise também costuma ser enfrentada. Caso típico é o dos textos messiânicos de vários Salmos e livros proféticos interpretados, no Novo Testamento, como referências a Jesus de Nazaré. O Evangelho de Mateus foi escrito para assentar essa exata interpretação profética. A pregação dos apóstolos não teve outro fim. E Hebreus faz uma longa defesa da interpretação cristã das profecias. É como se a compreensão dos textos messiânicos do Antigo Testamento tivesse entrado em crise, quando os judeus perceberam que o tempo para que o Messias fosse morto (Dn 9:26) se cumprira. Os apóstolos e os escritores do Novo Testamento entenderam essa crise, enfrentaram-na e a resolveram, pela demonstração de que as profecias cumpriram-se na vida e na morte de Jesus de Nazaré.
Ratzinger não trata da mesma maneira o problema da figura real de Jesus. Ele não enfrenta a crise desencadeada pela Crítica Histórica e Literária, nem se move nessa direção. Pelo contrário, em diversas passagens, ele desqualifica a atitude crítica, como ao afirmar: “Não [devemos] contrapor ao Novo Testamento de modo crítico-racional a nossa presunção, mas aprender e deixar-nos guiar [...] não falsear os textos segundo os nossos conceitos” (ob. cit. p. 115).
Para enfrentar realmente a crise, teria sido necessário ao menos indicar como a historicidade do Jesus apresentado e adorado pela Igreja Católica pode ser demonstrada. Ratzinger não o faz, como os líderes cristãos em geral não o fazem. Pelo contrário, em quase todas as igrejas, há um líder que adota posição semelhante à do Papa sobre o Jesus histórico. Um líder que sobe ao púlpito todas as semanas para ignorar, solenemente, os graves problemas que pendem sobre a interpretação dos Evangelhos. Esse discurso alienado e sem fim se tornou comum hoje. No entanto, no caso do Papa, que tem à disposição quase tudo o que já se escreveu sobre o tema, era de se esperar algo diferente.
Jesus de Nazaré, de Ratzinger, frustra essa expectativa, por não pronunciar uma palavra efetiva sobre a crise de compreensão do Jesus histórico, apesar de ter escrito, no livro anterior, que "quis tentar representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico" (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré - do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17). Não digo que não o apresenta, mas que o faz de um modo que pressupõe demais o dogma.
Com isso, o livro emite um sinal muito claro sobre a natureza do tempo presente, em que a Teologia ignora a crise, portanto agoniza e morre. A falta de uma palavra teológica sobre a incompreensão que se desenvolveu e se transformou em crise não pode ser suprida pelas manifestações dos historiadores sobre Jesus, já que o discurso destes é diferente do teológico e não pode cumprir a função dele. A palavra dos filósofos tampouco o pode. Nesse particular, os escritores patrísticos tinham razão: à Filosofia compete o perguntar e o criticar; a resposta à pergunta há de ser oferecida pela Teologia. Tendo funções distintas, uma não pode substituir a outra.
Vivemos como se a figura de Jesus se houvesse desintegrado (ou não, pouco importa), mas tudo seguisse perfeitamente bem. Como se pudéssemos continuar a sustentar o que sustentamos, durante séculos, exatamente da mesma maneira. Enfim, como se fingir ou sonhar bastassem para crer. Que é isso, a não ser fuga, inépcia ou hipocrisia? Jesus se apresentou como a verdade: como a solução de todas as dúvidas, a correção de todos os erros e a solução de todas as crises de compreensão. É possível ao cristão agir como se as dúvidas, os erros e a crise não existissem? Como se estivesse no mundo, mas não tivesse o mundo por contexto?