Paulo não adotou uma perspectiva única ao escrever Romanos. Ele não se colocou o tempo todo na posição do judeu, do gentio culto ou do grego piedoso, que frequentava as sinagogas e as igrejas cristãs, ao redor do mundo. Pelo contrário, em cada trecho da epístola, ele adotou uma perspectiva diferente.
No início do capítulo 1, ao dirigir-se aos cristãos de Roma, Paulo usou um vocabulário e se referiu a valores compreensíveis para eles. A partir do versículo 18, ele começou a descrever os gentios de cultura grega. Mencionou-lhes a situação espiritual, à luz do que denominou “a verdade de Deus”. E, no início do capítulo 2, passou a tratar dos gentios piedosos.
Essa segunda mudança se torna evidente, quando consideramos que o gentio do capítulo 2 não é como o do primeiro capítulo, que substituiu a verdade de Deus pela injustiça, adora ídolos e não apenas pratica o mal como o aprova (Rm 1:32). Pelo contrário, a figura que surge repentinamente em 2:1 condena os que praticam os males mencionados no primeiro capítulo (Rm 2:3). Trata-se, pois, de um gentio piedoso, que crê nas Escrituras, adora somente a Deus e censura os que vivem em pecado.
Paulo chama atenção desses gentios para a hipocrisia implícita em condenarem exatamente o que praticam. Tal atitude estava impregnada nos ambientes judaicos e cristãos do primeiro século. Mas o apóstolo deixa claro que, sob o evangelho, não há lugar para ela. Não importa se a pessoa adora a Deus ou aos ídolos. Hipocrisia é hipocrisia, seja no adorador de Deus, seja no idólatra. Ela será julgada por Deus: “Tu que condenas os que praticam tais cousas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2:3).
Que julgamento é esse a que Paulo se refere? Não é o juízo final, pois ele o faz incidir sobre pessoas tementes a Deus, sobre cristãos da igreja em Roma. “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5:24). O novo nascimento não se dá em vão. Ele muda a condição da pessoa que o experimenta e a livra do juízo final. Mas, se os que creem em Cristo não sofrerão o juízo final, Romanos nos mostra que serão julgados, num outro momento.
Esse julgamento futuro é o que Paulo menciona em 2:1-16. Ele é chamado o dia da ira (Rm 2:5), quando uns receberão tribulação e angústia (Rm 2:9), e outros, a vida eterna (Rm 2:7). Não se trata, pois, do juízo presente, que se revela do céu sobre os idólatras (Rm 1:18), mas do tribunal de Cristo, mencionado em 2ª aos Coríntios 5:10: “Importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”.
Não é improvável que esse julgamento ocorra durante o estado intermediário, entre a morte e a ressurreição. Talvez por isso, Paulo tenha afirmado que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal” (Rm 2:9). Se pretendesse indicar um julgamento após a ressurreição, o apóstolo teria afirmado que a alma e o corpo serão atingidos por ele, como em Mateus 10:28 (“Temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”). Mas ele não o afirmou, antes disse que o juízo em questão virá sobre a alma. Talvez se trate, portanto, de um juízo anterior à ressurreição.
Vários autores do Antigo Testamento perceberam que o ímpio, não raro, prospera na presente vida. O salmista escreveu: “Não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios” (Sl 37:7). Esse homem tem maus desígnios e os consegue realizar. Por vezes, chega a oprimir o justo: “Trama o ímpio contra o justo, e contra ele ringe os dentes [...] Os ímpios arrancam da espada e distendem o arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham o reto caminho” (Sl 37:12,14).
A inversão da justiça, que presenciamos no mundo, deu ocasião ao aparecimento da doutrina do julgamento de Deus. “Os malfeitores serão exterminados, e os que esperam no Senhor possuirão a terra” (Sl 37:9). Os malfeitores a que o salmista se referiu criam em Deus, pois eram judeus, mas praticavam o mal. Nisso, não eram diferentes dos gentios de Romanos 2:1-16.
Porém, ao escrever sua epístola, Paulo retirou as máscaras tanto dos religiosos gentios como dos judeus. Mostrou que máscaras são inúteis diante de Deus. É como se dissesse: você é isso ou aquilo? Pertence a esse ou àquele grupo religioso? Como outras pessoas do seu grupo, você condena rigidamente o pecado? Saiba que nada disso lhe aproveita. Com a sua piedade ou sem ela, você é tão bom quanto o idólatra.
É comum os cristãos localizarem a iniquidade no mundo, e a santidade, na igreja. Paulo faz algo distinto. Tranca os que creem e os que não creem, no cárcere da iniquidade. Não poupa sequer os apóstolos como ele próprio, já que declara: “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7:19).
Estamos diante da mais devastadora crítica da religião que se pode conceber. Uma crítica tão mais ácida quanto mais os pagãos são isentos dela. Os incrédulos são artífices das ações pecaminosas de 1:29-31. Mas não são hipócritas, pois falam o mesmo que fazem. Praticam aquelas ações e as chamam seu bem. Como diz Paulo, “não somente as fazem, mas também aprovam” (Rm 1:31).
Já os adeptos da religião mais pura, os adoradores do único Deus, são hipócritas. Paulo quer dizer todos os adoradores, sem dúvida e sem exceção. Estende, portanto, os ais que Jesus dirigiu aos escribas e fariseus, hipócritas, a todos os adeptos do judaísmo e da fé cristã. Mas cria, ao mesmo tempo, uma discriminação entre aqueles que reconhecem esse pecado e aqueles que permanecem nas profundezas da hipocrisia religiosa.
Ao criar tal discriminação, o apóstolo mostra que a confissão da hipocrisia é a água purificadora. A água que faz do fariseu um publicano. Quando João Batista afundou Israel no Jordão, ele o batizou nessa água. Dirigiu ainda um convite à raça de víboras para que o deixasse no fundo do Jordão. E assim como João sepultou o judaísmo, Paulo fez o mesmo com o cristianismo hipócrita.
A ira que o pecador de Romanos 2 acumula para o dia do juízo é a revolta de Deus contra essa hipocrisia. É a ira justificada de quem tem tolerado o hábito judeu e cristão de dizer uma coisa e fazer o contrário, até o dia em que o fogo brando em que é preparada fará a indignação explodir. É, enfim, a ira contra o que Paulo denominou dureza e coração impenitente (Rm 2:5).
Pouco importa o brilho peculiar da doutrina que a hipocrisia religiosa anuncia. Em momento nenhum, Paulo disse que aquele brilho justifica o execrável hábito de praticar o que a consciência reprova. Assim, ele estabeleceu o primado da prática sobre a doutrina. Se uma pessoa crê na mais sublime de todas as doutrinas, se cruza até mesmo os mares para pregá-la, mas prega que não se deve ofender uma pessoa e ofende mil, sua fé sublime é hipócrita.
Quanta exaltação desse tipo de fé hipócrita há no mundo! Quantos creem que podem dizer os maiores disparates e serão louvados, que podem proibir o mal a uma pessoa e praticá-lo a uma multidão! Tais são os mártires das legiões de desavisados de um triste tempo. E continuarão a ser enquanto a exortação soar: “Continue, pois, o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se” (Ap 22:11).
O verbo continuar, empregado tantas vezes, indica a diferença entre um juízo presente como o dos idólatras e outro futuro, mas que virá tão certamente quanto a aurora de amanhã.