De 2010 até hoje, o Papa Bento XVI tem denunciado, insistentemente, o que se tornou o problema central do Cristianismo, na Europa atual: a perda da conexão entre a fé e o valor da verdade. Ao deixar de representar a verdade, em matéria de religião, o Cristianismo europeu não foi despojado de uma característica acessória; ele perdeu a sua natureza íntima, a sua própria essência fundamental.
Por essas graves razões, uma das marcas principais do pontificado de Bento tem sido conclamar os cristãos ao combate ao estado de coisas por ele apontado como existente na Europa. Uma verdadeira cruzada, de natureza espiritual e não militar, tem sido organizada, a respeito do tema.
Ratzinger apresenta o seguinte diagnóstico da situação espiritual na Europa:
“No início do terceiro milênio, e precisamente no âmbito de sua expansão original – Europa – o cristianismo se encontra imerso em uma profunda crise que é consequência da crise de sua pretensão da verdade [...] O cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo filosófico, não nas religiões. Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o cristianismo não se baseia nas imagens e ideias míticas [...] mas faz referência a esse aspecto divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as idéias filosóficas sobre o fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga. A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera [...] Partindo dessa premissa, o cristianismo foi entendido como um triunfo da desmitologização, como um triunfo do conhecimento e, com isso, da verdade; não como uma religião específica que ocupa o lugar de outras” (RATZINGER, Joseph and D'ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? Sao Paulo: Planeta, 2009. pp. 11-13).
Essa é, de fato, a alma do cristianismo. Sem a sua alma, sem a pretensão de verdade, que o anima e define, o cristianismo deixa de ser. Como Ratzinger afirmou, a pretensão especial de verdade liga a fé cristã mais fortemente à filosofia do que às religiões do primeiro século. Essa pretensão está tão presente em Paulo quanto em Agostinho. Em Orígenes como em São Tomás.
O racionalismo cristão não se confunde com o aristotélico ou o kantiano. Aproxima-se mais do racionalismo platônico, embora tampouco lhe seja idêntico. A maior diferença entre o cristianismo e os racionalismos filosóficos é a ligação visceral da ratio cristã com o amor. A soma da ratio e do amor divino, praticamente, equivale ao evangelho. Por isso, as vertentes cristãs que negam ou diminuem qualquer dos dois temas privam-se da própria essência da sua fé.
Desde o princípio, o cristianismo propôs-se como verdade sobre Deus (religio vera), assim como a filosofia pré-socrática propôs-se como indagação da verdade sobre a natureza. O cristianismo não disputou espaço, nem substituiu as religiões do primeiro século, porque a sua proposta era diferente. De acordo com o Papa, a questão e a tarefa fundamentais, que se colocam aos cristãos, nos nossos dias, não são como alterar essa proposta, mas como a preservar.
João Paulo II travou encarniçada batalha política e espiritual contra o Comunismo, sob o qual viveu na Polônia. Ele também condenou o Capitalismo Liberal. Essa cruzada política foi o empreendimento mais bem-sucedido daquele grande Papa. Já Ratzinger, tem apontado o problema do Cristianismo europeu com propriedade, dando a entender que ele será um dos maiores desafios do seu pontificado.
Embora distintas, as lutas dos dois últimos Papas têm em comum o propósito de combater os desvios da Modernidade, em relação ao cristianismo. No entanto, o problema da Modernidade é momentoso demais para se crer que a Igreja Católica ou as forças cristãs, em geral, se encontram próximas de solucioná-lo. Pelo contrário, apesar do triunfo de João Paulo contra o Comunismo e da denúncia dos males do Cristianismo europeu por Bento, até agora os problemas doutrinários à base da crise cristã moderna não foram atacados diretamente. Não creio que o combate ao Socialismo ou à modernização da Igreja devam ser considerados ataques dessa natureza.
O filósofo Flores d’Arcais afirmou, num diálogo com Ratzinger: “O catolicismo acredita que saldou definitivamente as contas com o ateísmo – desde Hume até Freud e Monod – só porque as encerrou vitoriosamente com o comunismo. Uma operação precipitada, baseada em uma série de arriscadas equivalências: dado que o comunismo se declara marxista e dado que Marx, por sua vez, se declara ateu, qualquer ateísmo desmorona junto com o muro dos comunismos” (idem. pp. 94-95).
D’Arcais tem razão. A derrota imposta ao Comunismo foi um triunfo lateral, na guerra contra os desvios introduzidos pela Modernidade. Nem o Socialismo, nem a própria Modernidade são inimigos do cristianismo. Inimigos são os desvios maiores, em relação às bases da fé cristã, que se introduziram em algumas vertentes da Modernidade, a exemplo do neoateísmo.
D’Arcais afirmou que “as objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé foram tão escassamente refutadas” (idem. p. 91) que ainda constituem o horizonte implícito de todo o debate entre crentes e não crentes. Mais uma vez lhe assiste razão, embora a falta de refutação aludida encha os ateus de uma perigosa sensação do triunfo da sua ideologia.
Por essas razões, é preciso que as igrejas e os cristãos deem combate direto ao que d’Arcais denomina “objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé”. Nem João Paulo II, nem Ratzinger, nem qualquer de seus representantes realizaram exatamente isso. Nenhum deles ofereceu contra-argumentos aos arrazoados ateus, sobre aqueles temas.
Pelo contrário, o discurso católico prima, cada vez mais, pela generalidade e vagueza. Trata-se de um discurso religioso, sobre o Deus pessoal, que paradoxalmente perdeu a força pessoal. O discurso da Igreja chega perto de nos apresentar Deus como uma força jurídica, que governa o mundo por preceitos gerais articulados num emaranhado complexo: os preceitos da própria Igreja. Há muito tempo, a mentalidade católica se distanciou do discurso profético e cristão primitivo, que era o de um Deus presente, que fala diretamente aos indivíduos de determinado tempo.
Quando se referia ao Deus de Israel, o Dêutero-Isaías pensava num ser, que se comunica diretamente com o seu povo. O mesmo se aplica a todos os outros profetas bíblicos. O mesmo é verdade, em relação aos apóstolos e aos pais dos primeiros séculos. Todos eles viam Deus como alguém que se relaciona com os seus seguidores, assim como um pai com o filho, uma pessoa com outra que lhe é próxima e um amigo com outro.
Quando a própria Reforma Protestante estourou, era esse o discurso de Lutero. Penso que a perda de tal discurso, pela Igreja Católica, explica parte do sucesso da Reforma. O discurso católico perdeu atrativo, por ter-se tornado vagamente pessoal, quando não impessoal. Um discurso basicamente jurídico.
Esse exato discurso é manejado, pela Igreja, agora, contra a Modernidade. Com inegável sabedoria, mas de modo impessoal, a Igreja aponta, mas não resolve o problema nuclear dos tempos atuais. Ela não refuta as premissas, em que a Modernidade se estriba, ponto por ponto. Portanto, se a Igreja fala por Deus, se o Papa é infalível, quando se pronuncia ex cathedra, temos de concluir que Deus passou a não se importar com a afirmação de erros, que negam frontalmente a fé cristã.
Para citar um exemplo da omissão que aponto, quando era Cardeal e Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger escreveu pessoalmente três capítulos do livro Compreender a Igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). A obra é altamente argumentativa, porém que matéria versa? Versa a “biblicidade” do primado e da sucessão de São Pedro, a unidade da Igreja sob a hierarquia católica, a ideia de que toda reforma deve abster-se de implantar o princípio democrático, a necessidade de um centro para o movimento ecumênico.
Não é difícil verificar que todas essas doutrinas são antimodernas, na medida em que se revelam altamente centralizadoras. Claro que algumas delas, como o primado de Pedro, são até bíblicas, embora não no sentido ampliado que Ratzinger lhes atribui. Porém, por que o Papa ou algum representante oficial da Igreja não refuta o que a Modernidade possui de mais abertamente anticristão: a descrença, o ateísmo e os desvalores que deles promanam?
João Paulo afirmou que a Evolução é um fato. Ratzinger, que nem a micro, nem a macroevolução podem ser negadas. Para ele, o grande erro contemporâneo consiste em erguer toda uma philosophia universalis, a partir desses dados. Pois bem: quais são os principais pontos dessa philosophia universalis? Quais os seus principais sofismas? Como se deve refutá-la? Que outra philosophia universalis devemos opor a ela? A de São Tomás? Essas questões são escassamente tratadas pela Igreja. Ainda que se argumente que o tempo, para a Igreja, se conta em séculos, por que o discurso argumentativo sobre outros pontos é tão imenso, e sobre esses, não?
O cristianismo sempre fez jus à sua autoconsciência de religio vera, combatendo as doutrinas contrárias. Que fizeram Ireneu, Orígenes, Eusébio, Agostinho? Que fez São Tomás? E Lutero? Para continuarem essa notável tradição racional, não basta as igrejas declararem falsa a consciência ateísta, que as esvazia na Europa. Tampouco lhes é suficiente um triunfo de Pirro, contra regimes como o Comunismo, já que não tem o condão de trazer os fieis de volta. É preciso dar combate direto aos erros, que afetam a essência da fé cristã.
Por outro lado, a cruzada de Bento XVI precisa ser entendida à luz do movimento total, que o corpo da Igreja Católica realiza hoje. Esse movimento é quase uma contrarrevolução. É uma reação à modernização eclesiástica iniciada, pelo Concílio Vaticano II. Embora profundamente distinta em espírito, a guinada tradicionalista dos últimos Papas e da Cúria romana não deixa de constituir a versão católica do fundamentalismo muçulmano, que reage à modernização, da cultura islâmica no caso, ocorrida no século XIX.
O combate de Bento XVI aos desvios principais da Modernidade é tímido, porque indireto. Ao mesmo tempo, o combate às contribuições políticas da Modernidade é acirrado. Há uma razão profunda para isso. A cruzada do Papa insere-se num movimento mais amplo de índole radicalmente antimoderna voltado à conservação da essência arcaica (o Papa diria divina) da Igreja Católica.
Tenho muitas concordâncias com a cruzada antiateísta que Bento XVI, do alto da sua iluminação, procura deflagrar. Porém, também nutro desacordos. Ao contrário das correntes reacionárias islâmicas, católicas, e por que não dizer pentecostais, entendo necessária uma modernização muito mais ampla da religião, com a preservação dos seus fundamentos atemporais. A necessidade de renovação não acabou, no século XIX ou com o Concílio Vaticano II. Ela está mais do que nunca presente. É preciso que a religião se renove. Para o fazer, sem perder sua essência, e assim corresponder aos anseios do homem e da mulher atuais, a religião precisa conversar com a Modernidade, com muito maior abertura, do que as suas instituições, até hoje, têm ensaiado fazer.