quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Livre Exame de Romanos (4): Quem São os Gregos?

No capítulo 2, versos 9 e 10, Paulo afirma: “Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego”. A referência a judeus e gregos ecoa os versículos 1:14 e 1:16: “Sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes [...] Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego”.
Uma nota ao pé desses versos, na Bíblia de Jerusalém, expressa não só o entendimento de seus elaboradores como da grande maioria dos comentaristas. Diz ela: “A expressão gregos, contraposta a bárbaros, designa as pessoas cultas, inclusive os romanos (que tinham adotado a cultura grega); contraposta aos judeus, designa os gentios” (Bíblia de Jerusalém, 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. p. 1966).
Colossenses 3:11, por sua vez, refere-se a gregos, judeus, circuncisão, incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre. Embora essa enumeração seja mais longa que as de Romanos, notamos de novo que os termos se agrupam de dois em dois. Gregos se opõem a judeus; circuncisão, a incircuncisão; bárbaro, a cita; escravo, a homem livre. Com exceção da terceira, essas oposições são bastante claras. A própria contradição entre bárbaros e citas não é tão evidente quanto as demais, mas se esclarece quando lembramos que bárbaro se referia ao habitante do Império, e cita, ao não habitante.
Essas observações não são importantes apenas do ponto de vista histórico, mas principalmente para compreendermos a mensagem de Romanos. Se retirarmos uma palavra de qualquer dos binômios acima e a utilizarmos de modo livre ou a inserirmos num outro binômio, poderemos incidir em equívocos. Por exemplo, poderemos pensar que os gregos e bárbaros, os sábios e ignorantes de 1:14 são os mesmos dois grupos de pessoas mencionados com palavras diferentes, isto é, que os gregos são os sábios, e os bárbaros, os ignorantes. Mas isso seria tornar gregos sinônimo de sábios, quando a primeira dessas palavras denotava o falante da língua grega, independentemente de quão refinada fosse a sua cultura. No primeiro século, havia gregos analfabetos, assim como bárbaros cultos. Os magos persas e os escribas egípcios eram bárbaros profundamente cultos. Mas não se pode dizer que algum sábio fosse ignorante ou vice-versa. Portanto, os binômios de 1:14 não se equivalem.
Tudo isso nos mostra que um vocabulário amplo e preciso estava à disposição dos escritores, no século I, para designar diferentes povos e grupos humanos. Dificilmente, podendo recorrer a termos tão bem definidos pelos binômios que integravam, Paulo usaria a palavra gregos para indicar ora os gentios em geral, ora os gentios de cultura grega. Penso que, contrapostos aos judeus ou aos bárbaros, gregos são sempre pessoas de fala grega. O próprio Paulo é um exemplo. Ele era grego, embora fosse judeu por religião e de sangue. Portanto, nele, não havia oposição entre o ser-grego e o ser-judeu. E é importante frisar: não só em Paulo, mas num número enorme de pessoas de várias partes do mundo essa situação se realizava.
Já os termos empregados para indicar os gentios de modo geral eram outros. Não incluíam a palavra gregos. Ethne, ora traduzido nações, ora gentios, é um desses termos. Indica a totalidade dos gentios, embora seja, em geral, empregada por Paulo para descrever os que creem, como em 1:5 (“para obediência da fé entre todos os gentios”) e em 2:14 ("Quando, pois, os gentios que não têm lei, procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos"). Agostinho interpretou os gentios mencionados nesse último verso como os "que cumprem a lei segundo os ditames da consciência e têm a obra da fé escrita no coração", isto é, "aqueles que creem em Cristo" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007, p. 69).
Incircuncisão, por sua vez, é uma variação de gentios e, assim como essa palavra, indica o conjunto de todos os não judeus, mas é geralmente empregada para os gentios que creem: “Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão?”. Efésios 2:11 acrescenta: “Outrora vós, gentios na carne, chamados incircuncisão”.
Tudo isso mostra que a palavra grego não significa o mesmo que gentio ou incircuncisão. Notem que o termo nunca é usado, por Paulo, em oposição a circuncisão. Judeu e grego tampouco são empregados como variante de circuncisão-incircuncisão. Isso porque a oposição entre essas duas últimas palavras tinha por foco a religião, ao passo que a oposição judeu-gentio se dava em função da língua.
Na realidade, grego era o homem que se comunicava em grego ou em latim. Era o indivíduo que usava uma das línguas em que a literatura clássica havia sido vazada. A própria palavra bárbaro tinha o sentido definido em função da fala, como se vê em 1ª aos Coríntios 14:11: “Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro [bárbaros] para aquele que fala; e ele, estrangeiro [bárbaros] para mim”.
Bárbaro não era tanto o membro de uma etnia quanto o falante de línguas que não o grego ou o latim. Como os judeus da Palestina, em geral, não falavam grego, era natural que fossem considerados bárbaros pelos romanos. Vários escritores dos primeiros séculos se referiram ao cristianismo como uma filosofia bárbara, porque judaica. Por isso, quando se declarou devedor a gregos e a bárbaros, Paulo incluiu judeus no último grupo. Não havia qualquer conotação pejorativa em o fazer ou em usar a palavra bárbaro nesse sentido.
Aliás, os bárbaros de quem Paulo se considerava devedor devem ter sido judeus e povos da sua família linguística, já que ele não poderia ser devedor de pessoas com quem não pudesse se comunicar. Não temos notícia do uso de tradutores pelos apóstolos. Portanto, as barreiras de idioma eram mais importantes para definir os limites da atuação deles do que nos acostumamos a pensar. Frise-se que, na única ocasião em que encontrou barbárois, no Livro de Atos (At 28:2,4), não se acrescenta que o apóstolo lhes tenha pregado o evangelho, como era seu costume.
Não insisto nessas diferenciações por diletantismo ou apenas por sua importância histórica. Elas interessam à elucidação do sentido da Carta aos Romanos. E interessam porque a condenação dos versículos 1:18 a 3:20 não parece dirigida aos gentios, de modo geral, mas apenas aos judeus e aos gregos. A própria palavra gentios só aparece duas vezes, em 2:14,24. A primeira é uma referência positiva e não condenatória. A segunda tem sentido neutro. Portanto, também não condenatório. Já incircuncisão aparece em 2:25-29, após a condenação dos judeus, em conexão com a palavra circuncisão. Nesses versos, Paulo mostra que a oposição religiosa dos judeus aos gentios é impotente para salvá-los. Portanto, ele condena os judeus e não os gentios.
Que devemos extrair desse uso de termos? Uma conclusão importante é que todas as palavras de sentido condenatório de Paulo, em Romanos 1 a 3, são dirigidas aos judeus e aos gregos, não aos gentios de modo geral. Por exemplo, quando diz que o evangelho é o poder de Deus para salvação do judeu e também do grego, as pessoas indicadas por essa última palavra são as de língua grega ou latina, não todos os gentios do mundo. Claro que toda salvação pressupõe condenação ou perdição. Portanto, nesse versículo, a condenação afirmada é a dos judeus e dos gregos.
O mesmo se dá na afirmação de que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego” (Rm 2:9-10). Também aí, a condenação incide sobre judeus e gregos.
Esse uso de palavras é extremamente consistente. E extremamente revelador, pois significa que o apóstolo não estendeu a condenação de Romanos 1 a 3 aos bárbaros. Isso esvazia, em alguma medida, a doutrina da condenação universal baseada nesses capítulos. Romanos 1 e 2 não têm em vista o mundo todo, mas os gentios de língua grega ou latina e também os judeus.
Estou a propor que os bárbaros não são condenáveis? De maneira nenhuma. Na passagem a respeito de Adão (capítulo 5), Paulo afirmou que todos os descendentes dele pecaram, inclusive os bárbaros. E se eles estão incluídos no pecado, não podem estar isentos da condenação. Só enfatizo que Paulo não definiu a sua culpabilidade, da mesma forma que fez com a dos judeus e dos gregos.
Faço notar esse silêncio. A doutrina da condenação universal forjada com base em Romanos tem esse tanto de pressa, de azáfama. Tem esse tanto de má formação. As impressionantes assertivas dos capítulos 1 a 3 não foram restritas aos judeus e aos gregos por acaso ou de modo não intencional. Pelo contrário, expressam o cuidado especial de Paulo com a linguagem de sua carta, que foi elaborada para expor a salvação de Cristo de maneira precisa e completa. Ante esses fatos, só nos resta pesar o sentido dos termos grego e gentio com tanto cuidado quanto teve Paulo ao usá-los e ao escrever o seu texto perene.