A crise da fé no mundo ocidental foi, em grande parte, preparada pela pesquisa do Jesus histórico, a partir do final do século XVIII. O Papa Bento XVI parece reagir a essa crise, por meio do retorno à figura de Jesus estudada nos três livros que publicou sobre o tema, nos últimos anos. Mas, embora professe ter tentado “representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico” (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17) e ainda que essa intenção não esteja de modo algum em descompasso com os dados históricos, um outro Jesus assoma ao primeiro plano, nos livros do Papa, que denominarei o Jesus eclesiástico.
O capítulo sobre a tentação, no primeiro dos três livros, é um dos que mais tratam da crise da fé no Ocidente. “Onde Deus é considerado uma grandeza secundária”, diz Bento, “onde pode ser deixado de lado por algum tempo ou por todo o tempo por causa de coisas mais importantes, aí precisamente fracassam essas coisas pretensamente mais importantes. Não é só o desfecho negativo da experiência marxista que o demonstra” (ob. cit. p. 45).
A menção da experiência marxista não é casual. Sabemos o papel desempenhado pela Igreja Católica e João Paulo II, em particular, na derrocada daquele regime, na Europa. O retumbante sucesso da empreitada da época, à qual Ratzinger emprestou importante contribuição, como Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, parece ter encorajado a hierarquia católica a intensificar o ataque hoje em andamento a outros artefatos políticos da Modernidade.
Embora a democracia seja em geral poupada de tais ataques, o simples fato de a Igreja ser uma monarquia absoluta relativiza, quando não invalida o apoio que possa emprestar àquele regime. As únicas defesas da democracia que, partidas de instâncias hierárquicas e não laicas, permanecem coerentes na Igreja Católica são, a meu ver, as pautadas no Concílio Vaticano II.
Esse Concílio e as ações que a ele se seguiram foram os mais vigorosos sinais de real abertura à Modernidade, na recente História da Igreja. Porém, os movimentos que se observam, na Igreja Católica, hoje, não excluídas publicações doutrinárias, dão notícia de uma orientação muito diversa, que parece relacionada ao insucesso da experiência comunista. A reorientação se funda no seguinte raciocínio: não há dúvida de que a experiência comunista constituiu um capítulo da Modernidade; portanto, o malogro dela deve significar que a abertura à Modernidade é insuficiente como orientação para a Igreja, que deve buscar uma inspiração distinta para a sua missão no mundo.
Essa orientação diferente é, precisamente, a que se vê emergir nos livros de Ratzinger sobre Jesus. Escreve ele: “A ajuda do Ocidente para o desenvolvimento com base em princípios puramente técnicos e materiais – que não só deixa Deus de fora, mas também força o homem a d’Ele se afastar com o orgulho do seu saber fazer melhor – foi precisamente o tipo de ajuda que criou o Terceiro Mundo no sentido que hoje se entende. Esta ajuda empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a sua mentalidade tecnológica” (idem).
Preparada a cova do comunismo e cumpridas as suas exéquias, portanto, a Igreja volta-se contra o outro grande regime político-econômico da Modernidade, que Leão XIII já combatera na Rerum novarum. Embora Leão tenha criticado a variedade de capitalismo do seu próprio tempo (o liberal), Ratzinger anima-se a generalizar a crítica para o capitalismo em geral, definido como domínio do orgulho por saber fazer.
Ratzinger considera que o ideal católico medieval do “império cristão e o poder secular do Papa já não constituem tentações hoje” (idem. p. 53). Ótimo! Se Sua Santidade estiver certa, estaremos livres da sanha de dominação política da Igreja. Mas Bento vê “uma nova forma da mesma tentação” na tentativa de se “explicar o cristianismo como receita para o progresso e reconhecer como objetivo próprio da religião, e assim também do cristianismo, o bem-estar geral” (idem. p. 53). Isso pode ser entendido não só no sentido de que a fé cristã não pode ser aparelhada para fins políticos ou sociais, mas também como afirmação de que o capitalismo (pasmem-se!) é o império cristão medieval renascido.
Esse juízo é parte da estranha aversão da Igreja ao moderno e ao contemporâneo. Uma aversão que ela nutriu por toda a sua História, mas que parecia ter renegado após o Vaticano II. Não a renegou. A aversão está aí, talvez mais forte que nunca. Apenas não pretende mais exercer-se diretamente no plano secular, mas no religioso e moral.
Como exercê-la? Bento julga que a Igreja deve combater o movimento que “empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a mentalidade tecnológica”. Na prática, isso importa combater costumes que a Igreja considera atentatórios aos valores da vida e da pessoa humana, assim como o aborto, a eutanásia, os métodos anticoncepcionais, a pesquisa com células-tronco, sem mencionar o casamento não monogâmico e as formas de vida sexual divergentes dele. A própria democracia parece na mira da reação conservadora católica.
Bento recorda a primeira frase do Diabo a Jesus, na tentação ocorrida no deserto: “Se és Filho de Deus”. E exclama: “Que desafio! Não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus” (idem. p. 44). Mas não há, nesse paralelo entre o Filho de Deus e a Igreja, uma exaltação do homem semelhante ou pior que a que Bento critica no saber fazer capitalista? Essa exaltação não é tolerada ou santificada, quando vista na Igreja, e vilipendiada quando percebida em práticas seculares?
Ratzinger cita ainda Solowjew, em cuja obra intitulada “Breve narrativa do Anticristo”, esse ícone do mal “recebe o doutoramento honoris causa em Teologia pela Universidade de Tubinga; ele é um grande especialista em Ciências Bíblicas. [...] De fato, a explicação da Bíblia pode tornar-se um instrumento do Anticristo. Mas isso não é dito apenas por Solowjew: veja-se a afirmação presente na própria história da tentação. De aparentes resultados da exegese científica se entreteceram os piores livros que destruíram a figura de Jesus. A Bíblia é cada vez mais submetida ao critério da assim chamada visão moderna do mundo, cujo dogma fundamental é que Deus não pode agir na História” (idem. p. 47).
Tudo isso aponta para o mesmo resultado, a saber: o de que a crise da fé tem por causa o moderno em sentido bastante abrangente. Não custa lembrar que a Igreja não apresentou semelhante crítica ao elemento medieval, enquanto ele vigorou no mundo, pois sempre se beneficiou dele. Agora se insurge contra o moderno. Inclusive contra a pretensão moderna de elaborar uma Crítica Científica, Histórica e Literária das Escrituras.
Diz Bento: “Há no Deuteronômio uma alusão à história de como o povo de Israel esteve ameaçado de morrer de sede no deserto. Levanta-se uma rebelião contra Moisés, que é uma rebelião contra Deus [...] assim descrita na Bíblia: ‘Eles submeteram Deus à prova, ao dizerem: o Senhor está ou não está no meio de nós?” (Êx 17:7). Trata-se, portanto, daquilo que já foi antes recordado: Deus deve submeter-se à prova. Ele é provado, como se experimentam mercadorias. Ele deve submeter-se às condições que nós declaramos necessárias para a nossa certeza” (idem. p. 48).
Mas como? Paulo não escreveu: “Para que saias vencedor quando fores julgado”? Não há, na Bíblia, sinal de que o homem não possa pôr Deus à prova, de maneira sincera e pura. Deus mesmo ordenou que o rei Acaz lhe pedisse um sinal, isto é, que o provasse. O problema dos israelitas, no deserto, não consistiu em terem submetido Deus a uma prova, mas na intenção com que o fizeram.
Vejam que o Papa não só rejeita pautar sua exposição de Jesus nas categorias da Crítica Histórica e Literária. Ele se aproxima de imputar a essa Crítica uma relação estreita com Anticristo. Chama-a também tentação do Diabo. Assim, volta as costas para a modernidade teológica, em benefício de algum outro programa. E de qual programa? Entra aí, precisamente, a inspiração que o Papa busca, no passado da Igreja Católica. Entra aí a sua apresentação de Jesus em três livros. Com essa apresentação, o Papa esclarece em que parte busca inspiração para enfrentar a crise da fé católica.
Bento se refere ao Jesus dos seus livros como histórico, mas esse me parece muito mais um dado da sua consciência, da sua íntima convicção, do que uma conclusão que se possa extrair logicamente das obras. Rigorosamente interpretados, os livros do Papa mostram-nos outro Jesus, que emerge do fundo para o primeiro plano dos Evangelhos. E por que emerge? Porque os Evangelhos, fonte privilegiada do Jesus de Bento, não o retratam diretamente do modo como a Igreja o faz, mas sempre nas entrelinhas e de modo obscuro. Onde está o Jesus que fez Pedro Papa? Os católicos dirão que está em Mateus 16:16-18. Mas esse Jesus desaparece, nas passagens sobre o mesmo fato em Marcos e Lucas. Se a Igreja baseada no Papa é um item tão importante de fé, por que dois evangelistas o descartaram? Aliás, foram três. João tampouco o mencionou.
Esse é um exemplo da passagem do Jesus eclesiástico do segundo para o primeiro plano dos Evangelhos, onde Bento trata de o entronizar. Ele fornece outros e outros exemplos. Diz que o evangelho que Cristo anunciou não significava só boas-novas, como o termo grego indica. “A palavra pertencia [também] à linguagem do imperador romano, que se entende como senhor do mundo e como seu redentor, como seu salvador. As mensagens que vinham do imperador chamavam-se Evangelho” (idem. p. 57). Para o Papa, evangelho é uma palavra de dominação do orbe. Não se pode deixar de acrescentar: dominação tal qual a que a Igreja sempre quis exercer.
Mas o reino de Cristo não é deste mundo. Por isso, não pode constituir uma dominação do orbe. Nem mesmo uma dominação religiosa, como a que hierarquia romana até hoje exerce. Ou não exerce? Ou será o caso de que vemos homens como árvores, bispos como cedros?
Bento prossegue: “A questão acerca da Igreja não é a questão primária; a questão fundamental é, na realidade, a que diz respeito à relação do reino de Deus com Cristo” (idem. p. 59). Ótimo! Mas, na página seguinte, ele adota a interpretação segundo a qual o reino de Deus é expressão com sentido muito próximo do da Igreja. Explica que “o Reino de Deus e a Igreja são colocados de um modo distinto um em relação ao outro e mais ou menos aproximados um do outro. Esta última orientação [sobre o reino de Deus] se impôs sempre mais – tanto quanto me é possível ver – sobretudo na Teologia católica moderna” (idem. p. 60). Se eliminarmos os rodeios, Bento quer dizer que a Igreja Católica é o reino de Deus. Para lhe fazermos plena justiça, é certo que não pensa que as outras Igrejas não o sejam, mas que a Católica tem nas mãos a primazia e o governo desse reino na Terra.
O Papa reconhece que “o ideal [...] é a mensagem de Jesus se tornar verdadeiramente universal, sem que seja necessário missionar as outras religiões [...] No entanto, quando observamos [a cena da evangelização mundial] mais distanciadamente, ficamos perplexos: Quem é que nos diz propriamente o que é a justiça? O que é que nas situações concretas serve à justiça? Como é construída a paz? Mas, a uma observação mais atenta, tudo isto se mostra como um palavreado utópico sem conteúdo real” (idem. p. 63). Há alguma dúvida de que o “palavreado utópico” é o que Bento classifica como “o ideal”, isto é, a evangelização sem se pressupor a superioridade de uma religião a outra? Ou sobre como ele responderia as perguntas que faz sobre a justiça e a paz?
Enfim, sob todos os ângulos, observamos o mesmo, no conjunto constituído pelos livros do Papa: para ele, o Jesus real e histórico é o eclesiástico. Por isso, o tempo todo, eles se superpõem, aparecem como uma só figura: a figura com a qual a Igreja pretende substituir construções coletivas da Modernidade. Por isso também, o desafio principal do leitor de Bento passa a ser isolá-los, separá-los, a fim de mostrar que o Jesus eclesiástico não é a solução para a crise. É, antes, a própria crise.