Após ter estabelecido a culpabilidade tanto dos gregos que adoravam ídolos como dos que cultuavam Deus, Paulo passou a tratar dos judeus e, mais especificamente, da consciência que tinham de si, nos versículos 17 a 20 do capítulo 2: “Tu que tens por sobrenome judeu, repousas na lei e te glorias em Deus; que conheces a sua vontade, e aprovas as cousas excelentes, sendo instruído na lei; que estás persuadido de que és guia dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”.
Paulo emprega os verbos aprender e ensinar no particípio, que é o tempo que mais enfatiza o caráter consumado da ação e seus efeitos. No versículo 18, “ser instruído na lei” está nesse tempo verbal, o que indica uma instrução consumada, um aprender completo. “Ser guia de cegos”, luz nas trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças também é uma ação no particípio. Indica, portanto, não só que o judeu tinha consciência de haver conquistado um conhecimento completo, mas de ensiná-lo perfeitamente aos cegos, aos ignorantes e às crianças.
Essa consciência não era típica apenas de um fariseu como Paulo, mas também dos saduceus e dos integrantes das outras correntes do judaísmo. Sinal claro disso é o fato de o texto mencionar a lei (“tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”) e vários mandamentos específicos. Sabemos que os fariseu criam na Lei e nos Profetas, enquanto os saduceus só aceitavam a primeira. Por isso, ao se deter na lei, Paulo focou o que era comum a todo judeu, até mesmo a essência do homem judeu.
A noção de que a lei do Antigo Testamento, a Torá, consistia em mandamentos está entranhada em nós. Paulo, porém, afirma que ela consiste no conhecimento e na verdade (Rm 2:20). Afirma, até mesmo, que a lei tem a forma dessas duas coisas. A palavra forma (mórphos) tinha denso significado filosófico, que passou para a língua do Novo Testamento. Independentemente de possuir maior ou menor intimidade com a Filosofia, ao usar essa palavra, era impossível a um judeu de língua grega, como Paulo, deixar de transmitir o significado filosófico de que ela estava impregnada, que era o de um pensamento puro e destituído de toda matéria.
Por isso, no verso 2:20, a “forma da sabedoria [conhecimento, no original] e da verdade” indica um pensamento destituído de conteúdo material, uma ideia abstrata, sobre o conhecimento e a verdade. A lei era exatamente isso para o judeu. E o judeu era, para si, o possuidor perfeito dessa lei.
Isso implica que a Torá não contém mandamentos concretos, que regem efetivamente a vida. Para encontrar mandamentos assim, é preciso recorrer ao que Paulo denominou “coisas excelentes” (Rm 2:18). No original, essa expressão é ainda um outro particípio, que pode ser traduzido “coisas que excedem”. Ela indica “as sombras mais delicadas da vida moral, aludindo à casuística na qual as escolas judaicas eram excelentes” (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 259). Trata-se de regras e estatutos que iam além da Torá, estabelecendo o que efetivamente se podia e não se podia realizar na vida cotidiana.
A mente judaica estava impregnada dessas duas coisas: da lei e das “coisas que excedem”.Mas Paulo não reconhece nisso qualquer vantagem. Para ele, o que importa não é ter a forma do conhecimento e da verdade, mas a viver. Não é preencher essa forma abstrata com coisas excelentes, mas a colocar em prática e em movimento na vida. “Tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes que não se deve cometer adultério, e o cometes? Abominas os ídolos, e lhes roubas os templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (Rm 2:21-23).
Os versos 17 a 20 apresentam o judeu como pensa que é; os de 21 a 23 apresentam-no como é.Para Paulo,a consciência do judeu era alienada, pois não correspondia ao seu ser real. Não que os princípios em que ela se baseava estivessem errados. A lei tem de fato a forma do conhecimento e da verdade. E realmente é preciso exceder essa forma, para buscar o conteúdo que ela deve revestir. Mas os judeus iam longe demais nessa direção, perdendo-se tanto da lei como de si mesmos.
Assim, embora denuncie o extravio interior dos seus concidadãos, Paulo vai em busca do que denomina vantagem do judeu. “Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3:1-2). Se os princípios da consciência judia são corretos, sua vantagem é inegável. A suma dessa vantagem, o ponto em que ela mais se condensa e se deixa perceber, são as Sagradas Escrituras. Por isso, depois de reconhecer que os judeus têm “muita vantagem, sob todos os aspectos”, o apóstolo acrescenta “principalmente porque lhes foram confiados os oráculos de Deus”.
Paulo pensa como judeu. Muda algumas coisas na consciência israelita, mas não lhe altera a essência. Sem entendermos isso, não temos como ascender à compreensão de Romanos 2 e 3. Do modo como os judeus tomavam a lei como conhecimento e verdade, Paulo considerava os oráculos de Deus (a Lei e os Profetas) expressão acabada desse conhecimento e dessa verdade. E assim como os seus compatriotas, ele os tomava como forma cujo conteúdo devia ser preenchido mediante uma busca espiritual.
Por isso também, brada: “A incredulidade deles virá desfazer a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro e mentiroso todo homem” (Rm 3:3-4). Que é a fidelidade de Deus para Paulo? É a própria verdade divina, pois ele diz: “Virá desfazer a fidelidade de Deus?” E responde: “De maneira nenhuma! Seja Deus verdadeiro”. Pergunta sobre a fidelidade e responde sobre a verdade, porque, para o judeu e para Paulo, em particular, o foco da relação de Deus com Israel é essa verdade-fidelidade.
Só no interior de uma consciência assim, de uma consciência profundamente judaica, faz sentido perguntar: “Se por causa da minha mentira fica em relevo a verdade de Deus para a sua glória, por que sou eu ainda condenado como pecador?” (Rm 3:7). O Ocidente está impregnado de ceticismo. Mal crê numa verdade última. Mas crê com inabalável firmeza que uma mentira não pode ter sentido derradeiro. Por isso, para o homem ocidental, a pergunta sobre o sentido último da mentira não tem significado. É inteiramente absurda. Já para o judeu essencial, para o judeu do tempo de Paulo, que cria na verdade absoluta, embora não a compreendesse, a pergunta sobre o significado último da mentira podia fazer sentido, se ressaltasse a verdade de Deus.
Ao descrever a consciência do judeu, Paulo não se exclui dela. Adota-a intensamente. Pensa, crê e escreve como judeu, pois se curva ao Deus que é verdade, no sentido mais forte do termo. Porém, ele se aparta da alienação em que a consciência de seus compatriotas incorre ao perder-se. Aparta-se da falsa consciência que leva o judeu a buscar o conteúdo da verdade de Deus em minuciosos comportamentos formais. Descobre que esse conteúdo deve ser o ditado direto do Espírito Santo ao coração humano. E que esse ditado só se torna acessível, quando o homem crê na verdade definitiva, na verdade apostólica, na verdade da redenção de Cristo.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
sábado, 26 de janeiro de 2013
O Rico e Lázaro
Jesus contou aos seus discípulos a seguinte história sobre um rico e um mendigo: "Havia certo homem rico, que se vestia de púrpura e de linho finíssimo, e que todos os dias se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele [...] Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! e manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama" (Lc 16:19-20, 22-24).
É às vezes lembrado que o texto do rico e de Lázaro possui características estranhas a outras parábolas. Atribui nomes de pessoas reais a duas personagens (Lázaro e Abraão) e menciona um lugar específico para onde eles vão após a morte (inferno ou hades, em grego). Isso deve ser seriamente considerado. Porém, Jesus contou tantas histórias alegóricas e tão poucas sobre fatos da sua época que parece improvável que o texto não seja uma das suas parábolas.
Conforme o conhecimento da literatura antiga cresce, o número de textos interpretados como parábolas aumenta. E o faz em tal medida que, na exegese moderna, os provérbios do Antigo Testamento e o dito de Jesus sobre o espírito imundo que retorna à sua casa passaram a ser considerados parábolas. E não somente eles, mas muitos outros exemplos, comparações, máximas, histórias figurativas da Bíblia também. Nesse cenário modificado de interpretação dos textos sagrados, pouca dúvida resta de que a história do rico e de Lázaro deve ser considerada uma parábola, ainda que de tipo especial.
Nela, as alusões precisas ao hades e ao pós-morte parecem devidas a ensinamentos preexistentes sobre esses temas. Mostram que o objeto da parábola não são as ações de suas personagens, mas aqueles ensinamentos. Eles são os principais símbolos empregados para indicar realidades espirituais. Por exemplo, as declarações do homem rico sobre seus olhos, sua língua e seu dedo ecoam a crença típica do primeiro século de que a alma sobrevive à morte. O mesmo é verdade em relação à disposição das duas seções do hades implícita nas declarações de que o homem rico olhou para cima, a fim de ver Abraão e Lázaro, e de que um abismo permanecia entre eles. Esses dados eram parte do ensino sobre o estado intermediário, que Jesus adotou como símbolo dos sofrimentos e recompensas após a morte.
O ensino farisaico da época também ecoava as alusões bíblicas à morte como uma espécie de sono. Se somarmos essas alusões à representação do hades na parábola, a doutrina resultante será de que o estado intermediário é totalmente dominado por criações semelhantes aos sonhos. Desse ponto de vista, o tormento do rico, sua visualização de Abraão e Lázaro, o diálogo que manteve com o primeiro não devem ser considerados experiências reais, mas criações imaginativas da sua mente depois da morte.
Jesus se referiu a todas essas doutrinas e implicações de doutrinas que circulavam no seu tempo, para acrescentar-lhes o ensinamento de que o tipo de vida que o rico levou é capaz de saturar a mente de pensamentos que tendem a explodir em forma de sofrimento. A parábola afirma que o homem rico, durante a vida, viu Lázaro, mas não o ajudou. Esse foi um erro dele. Porém, em grego, o tempo verbal usado para descrever a colocação de Lázaro à porta do rico é o mais que perfeito. Esse tempo era considerado um luxo, na linguagem do Novo Testamento (koiné), pois as pessoas não sentiam a menor necessidade de expressar o que ele se propunha a expressar (TAYLOR, W. C. Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. 6 ª ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1980. p. 332). Huckabee ensina que o mais que perfeito era usado para indicar que tanto a ação como seus efeitos tinham passado (www.palavraprudente.com.br/Estudos/
dw_huckabee/hermeneutica/cap05.html). Isso significa que a ação do homem rico ao ver Lázaro e os efeitos dela já tinham cessado, no instante decisivo da morte do rico.
Esse tempo verbal está em nítido contraste com o ato do homem rico de se regalar, que aparece no imperfeito. O tempo imperfeito indica uma ação contínua, que na parábola é exagerada pela adição da expressão “todos os dias” (kat emeran). Rienecker e Rogers explicam o significado desse tempo da seguinte forma: "imperfeito de hábito, [significando] habitualmente vestido" (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988. p. 141).
Se tudo isso está correto, e temos boas razões para crer que pode estar, o ensinamento de Jesus é de que a ação que torna o homem rico culpado não é a de ter visto Lázaro à sua porta no passado, mas a de festejar e se regalar continuamente. Não é tanto o aspecto social da história ou a relação do rico com Lázaro que está em causa quanto o ato daquele de direcionar toda a sua vida ao prazer.
O Salmo 73 descreve as consequências desse tipo de vida: "Eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos. Para eles não há preocupações, o seu corpo é sadio e nédio. Não partilham das canseiras dos mortais, nem são afligidos como os outros homens. Daí a soberba que os cinge como um colar, e a violência que os envolve como manto. Os olhos saltam-lhes da gordura; do coração brotam-lhes fantasias [...] E dizem: Como o sabe Deus? Acaso há conhecimento no Altíssimo? Eis que são estes os ímpios; e sempre tranquilos, aumentam as suas riquezas" (Sl 73:3-7,11-12).
Quando proferiu a história de Lázaro, Jesus tinha acabado de ensinar duas outras parábolas sobre homens ricos, que eram sábios e representavam Deus (as do filho pródigo e do mordomo prudente). Nesse contexto, seria estranho tornar mau o homem da terceira parábola só porque era rico. Jesus o fez mau não porque tivesse muito dinheiro, mas porque vivia mergulhado em prazeres. O próprio Mamon (a riqueza) foi chamado injusto (Lc 16:11) não porque o fosse em si mesmo, mas porque as fortunas da época eram acumuladas por atos brutais e injustos.
A chama a que o rico se refere, em 16:24, aparece também em outras parábolas. Em todas, ela representa o julgamento. No texto do joio e do trigo, Jesus afirmou que os anjos “ajuntarão todos os escândalos e os que praticam a iniquidade, e os lançarão na fornalha acesa " (Mateus 13:41-42). E no texto sobre a grande pesca, de novo ele disse que os anjos lançarão os maus na fornalha de fogo, onde "haverá choro e ranger de dentes" (Mateus 13:50).
Choro pode indicar sofrimento, mas também tristeza ou pesar. E o ranger de dentes às vezes acompanha a dor, às vezes, a ira. Assim, a fornalha de Mateus 13:50 pode ser interpretada, alternativamente, como lugar de sofrimento e dor ou de tristeza e ira. Em crianças, o choro costuma relacionar-se ao sofrimento, mas em adultos geralmente indica tristeza. Se entendermos que a fornalha foi projetada para adultos, será mais consistente interpretarmos o choro como sinal de tristeza, e o ranger de dentes como ira por ter sido desqualificado.
Se no julgamento que se dará com ajuda dos anjos o sofrimento será consequência do estado mental dos pecadores, representado pelo choro e ranger de dentes, quanto mais no juízo do estado intermediário retratado em Lucas 16! Como num pesadelo produzido pela mente repleta de lutas e desafios, os ímpios sofrerão por causa dos seus próprios pensamentos orgulhosos e das vãs imaginações do seu coração.
Porém, quando tudo isso sucede, a alma começa a perceber as coisas sob uma nova luz. Quando viu que era impossível receber uma gota d'água da outra seção do hades, o rico pediu a Abraão que enviasse Lázaro para advertir seus cinco irmãos. O pleito indica mudança de perspectiva. Pode-se argumentar que a mudança veio tarde demais, mas a parábola não desenvolve esse ponto. Pelo contrário, deixa-o em aberto.
Abraão limitou-se a responder ao rico que os que viviam como ele não seriam persuadidos, ainda que alguém ressuscitasse dos mortos. Como já vimos, a vida que conduz ao tormento é consequência da fixação interior nos prazeres. Mudanças de comportamento podem ocorrer sem que alguém ressuscite. A maturidade as introduz naturalmente. Mas o peso das sensações, dos desejos, da descrença e do orgulho não pode ser facilmente removido do coração. Ele é como a raiz de uma árvore, que permanece debaixo da terra, quando as folhas e os frutos caem. E que faz com que a árvore desperte e produza de novo maus frutos.
É às vezes lembrado que o texto do rico e de Lázaro possui características estranhas a outras parábolas. Atribui nomes de pessoas reais a duas personagens (Lázaro e Abraão) e menciona um lugar específico para onde eles vão após a morte (inferno ou hades, em grego). Isso deve ser seriamente considerado. Porém, Jesus contou tantas histórias alegóricas e tão poucas sobre fatos da sua época que parece improvável que o texto não seja uma das suas parábolas.
Conforme o conhecimento da literatura antiga cresce, o número de textos interpretados como parábolas aumenta. E o faz em tal medida que, na exegese moderna, os provérbios do Antigo Testamento e o dito de Jesus sobre o espírito imundo que retorna à sua casa passaram a ser considerados parábolas. E não somente eles, mas muitos outros exemplos, comparações, máximas, histórias figurativas da Bíblia também. Nesse cenário modificado de interpretação dos textos sagrados, pouca dúvida resta de que a história do rico e de Lázaro deve ser considerada uma parábola, ainda que de tipo especial.
Nela, as alusões precisas ao hades e ao pós-morte parecem devidas a ensinamentos preexistentes sobre esses temas. Mostram que o objeto da parábola não são as ações de suas personagens, mas aqueles ensinamentos. Eles são os principais símbolos empregados para indicar realidades espirituais. Por exemplo, as declarações do homem rico sobre seus olhos, sua língua e seu dedo ecoam a crença típica do primeiro século de que a alma sobrevive à morte. O mesmo é verdade em relação à disposição das duas seções do hades implícita nas declarações de que o homem rico olhou para cima, a fim de ver Abraão e Lázaro, e de que um abismo permanecia entre eles. Esses dados eram parte do ensino sobre o estado intermediário, que Jesus adotou como símbolo dos sofrimentos e recompensas após a morte.
O ensino farisaico da época também ecoava as alusões bíblicas à morte como uma espécie de sono. Se somarmos essas alusões à representação do hades na parábola, a doutrina resultante será de que o estado intermediário é totalmente dominado por criações semelhantes aos sonhos. Desse ponto de vista, o tormento do rico, sua visualização de Abraão e Lázaro, o diálogo que manteve com o primeiro não devem ser considerados experiências reais, mas criações imaginativas da sua mente depois da morte.
Jesus se referiu a todas essas doutrinas e implicações de doutrinas que circulavam no seu tempo, para acrescentar-lhes o ensinamento de que o tipo de vida que o rico levou é capaz de saturar a mente de pensamentos que tendem a explodir em forma de sofrimento. A parábola afirma que o homem rico, durante a vida, viu Lázaro, mas não o ajudou. Esse foi um erro dele. Porém, em grego, o tempo verbal usado para descrever a colocação de Lázaro à porta do rico é o mais que perfeito. Esse tempo era considerado um luxo, na linguagem do Novo Testamento (koiné), pois as pessoas não sentiam a menor necessidade de expressar o que ele se propunha a expressar (TAYLOR, W. C. Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. 6 ª ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1980. p. 332). Huckabee ensina que o mais que perfeito era usado para indicar que tanto a ação como seus efeitos tinham passado (www.palavraprudente.com.br/Estudos/
dw_huckabee/hermeneutica/cap05.html). Isso significa que a ação do homem rico ao ver Lázaro e os efeitos dela já tinham cessado, no instante decisivo da morte do rico.
Esse tempo verbal está em nítido contraste com o ato do homem rico de se regalar, que aparece no imperfeito. O tempo imperfeito indica uma ação contínua, que na parábola é exagerada pela adição da expressão “todos os dias” (kat emeran). Rienecker e Rogers explicam o significado desse tempo da seguinte forma: "imperfeito de hábito, [significando] habitualmente vestido" (RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1988. p. 141).
Se tudo isso está correto, e temos boas razões para crer que pode estar, o ensinamento de Jesus é de que a ação que torna o homem rico culpado não é a de ter visto Lázaro à sua porta no passado, mas a de festejar e se regalar continuamente. Não é tanto o aspecto social da história ou a relação do rico com Lázaro que está em causa quanto o ato daquele de direcionar toda a sua vida ao prazer.
O Salmo 73 descreve as consequências desse tipo de vida: "Eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos. Para eles não há preocupações, o seu corpo é sadio e nédio. Não partilham das canseiras dos mortais, nem são afligidos como os outros homens. Daí a soberba que os cinge como um colar, e a violência que os envolve como manto. Os olhos saltam-lhes da gordura; do coração brotam-lhes fantasias [...] E dizem: Como o sabe Deus? Acaso há conhecimento no Altíssimo? Eis que são estes os ímpios; e sempre tranquilos, aumentam as suas riquezas" (Sl 73:3-7,11-12).
Quando proferiu a história de Lázaro, Jesus tinha acabado de ensinar duas outras parábolas sobre homens ricos, que eram sábios e representavam Deus (as do filho pródigo e do mordomo prudente). Nesse contexto, seria estranho tornar mau o homem da terceira parábola só porque era rico. Jesus o fez mau não porque tivesse muito dinheiro, mas porque vivia mergulhado em prazeres. O próprio Mamon (a riqueza) foi chamado injusto (Lc 16:11) não porque o fosse em si mesmo, mas porque as fortunas da época eram acumuladas por atos brutais e injustos.
A chama a que o rico se refere, em 16:24, aparece também em outras parábolas. Em todas, ela representa o julgamento. No texto do joio e do trigo, Jesus afirmou que os anjos “ajuntarão todos os escândalos e os que praticam a iniquidade, e os lançarão na fornalha acesa " (Mateus 13:41-42). E no texto sobre a grande pesca, de novo ele disse que os anjos lançarão os maus na fornalha de fogo, onde "haverá choro e ranger de dentes" (Mateus 13:50).
Choro pode indicar sofrimento, mas também tristeza ou pesar. E o ranger de dentes às vezes acompanha a dor, às vezes, a ira. Assim, a fornalha de Mateus 13:50 pode ser interpretada, alternativamente, como lugar de sofrimento e dor ou de tristeza e ira. Em crianças, o choro costuma relacionar-se ao sofrimento, mas em adultos geralmente indica tristeza. Se entendermos que a fornalha foi projetada para adultos, será mais consistente interpretarmos o choro como sinal de tristeza, e o ranger de dentes como ira por ter sido desqualificado.
Se no julgamento que se dará com ajuda dos anjos o sofrimento será consequência do estado mental dos pecadores, representado pelo choro e ranger de dentes, quanto mais no juízo do estado intermediário retratado em Lucas 16! Como num pesadelo produzido pela mente repleta de lutas e desafios, os ímpios sofrerão por causa dos seus próprios pensamentos orgulhosos e das vãs imaginações do seu coração.
Porém, quando tudo isso sucede, a alma começa a perceber as coisas sob uma nova luz. Quando viu que era impossível receber uma gota d'água da outra seção do hades, o rico pediu a Abraão que enviasse Lázaro para advertir seus cinco irmãos. O pleito indica mudança de perspectiva. Pode-se argumentar que a mudança veio tarde demais, mas a parábola não desenvolve esse ponto. Pelo contrário, deixa-o em aberto.
Abraão limitou-se a responder ao rico que os que viviam como ele não seriam persuadidos, ainda que alguém ressuscitasse dos mortos. Como já vimos, a vida que conduz ao tormento é consequência da fixação interior nos prazeres. Mudanças de comportamento podem ocorrer sem que alguém ressuscite. A maturidade as introduz naturalmente. Mas o peso das sensações, dos desejos, da descrença e do orgulho não pode ser facilmente removido do coração. Ele é como a raiz de uma árvore, que permanece debaixo da terra, quando as folhas e os frutos caem. E que faz com que a árvore desperte e produza de novo maus frutos.
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
The Great Parables (3): The Rich Man and Lazarus
Jesus told his disciples the following story about a rich man and a beggar: "There was a certain rich man, and he clothed himself in purple and fine linen, making merry every day in splendor. And a certain beggar named Lazarus was laid at his gate, covered with sores [...] And the beggar died and he was carried by the angels into Abraham's bosom; and the rich man also died and was buried. And in Hades he lifted his eyes, being in torment, and saw Abraham from afar and Lazarus in his bosom. And he called out and said, Father Abraham, have mercy on me and send Lazarus to dip the tip of his finger in water and cool my tongue because I am in anguish in this flame" (Luke 16:19-20,22-24).
It is sometimes remembered that this story has traits which do not appear in other Gospel parables. It gives names of real people to two of its characters (Lazarus and Abraham) and mentions a specific place where they go after death (hades). This is something to be considered. But Jesus told so many parables and so few stories on real facts of the present that it seems unlikely that the text on Lazarus and the beggar was not one of his allegoric stories.
In fact, as our knowledge of ancient literature grows, the number of texts interpreted as parables increases. And it increases so wildly that, in modern exegesis, the Old Testament proverbs and Jesus’ saying about the unclean spirit who returns to his house are considered parables. Not only them, but many other examples, comparisons, maxims, figurative stories of the Bible also are. And in this transformed picture of the holy texts, there remains little doubt that the story of the rich man and Lazarus should be considered a parable, though of a special kind.
In it, the precise allusions to hades and the after death must be due to the preexistence of teachings about them. They also show that the object of the parable is not the actions of its characters, but precisely those teachings. They are the main symbols employed to indicate spiritual realities. For instance, the rich man’s statements about his eyes, tongue and finger echo the first century belief that the soul survived death. The same is true of the disposition of the two sections of hades, implicit in the statements that the rich man looked up to see Abraham and Lazarus, and that a chasm separated the two sections. These data were part of the teaching about the intermediate state, which was adopted as a symbol of after death's sufferings and rewards.
At the same time, the Pharisaic teaching of the postmortem state also echoed the Bible’s numerous allusions to death as a kind of sleep. If we add the teaching behind those allusions to the representation of hades we see in the parable, the resultant doctrine will be that the intermediate state is totally dominated by creations of the mind, which are similar to dreams. From this viewpoint, the torment of the rich, his visualization of Abraham and Lazarus, the dialogue he held with the first are not real experiences, but imaginative creations of his mind after death.
Jesus referred to all these doctrines and implications of doctrines that circulated at his time, in order to add the teaching that the sort of life the rich man lived filled his mind with thoughts that would later explode in the form of suffering. We are told that the rich man, when alive, saw Lazarus, but did not help him. This was surely his fault. But the verb tense used to describe Lazarus’ lying at the door of the rich man is the pluperfect (“more than perfect” in Greek). That tense was considered a luxury in the language of the New Testament (koiné), for people felt no need of expressing what it was supposed to express (TAYLOR, W. C. Introduction to the study of the Greek New Testament. 6ª ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1980. p. 332). Huckabee says the pluperfect used to indicate that both the action and its effect were past(www.palavraprudente.com.br/estudos/dw_ huckabee/hermeneutica/cap05.html). This implies that both the rich man’s action of seeing Lazarus and its effect had ceased at the decisive time of Lazarus' death.
This verb tense is in sharp contrast with the rich man’s habitual feasting, which is indicated by the verb in the imperfect. The imperfect tense conveys the idea of a continuous action, which in the parable is exaggerated by the addition of the expression every day (kat emeran). Rienecker and Rogers explain the meaning of this tense in the following way: “imperfect of habit, [meaning] habitually dressed” (RIENECKER, Fritz and ROGERS, Cleon. Linguistic key to the Greek New Testament. Sao Paulo: Vida Nova, 1988. p. 141).
If all this is right, and we have good reasons to think it may be, the teaching of Jesus is that the action that makes the rich man blamed is not having seen Lazarus at his door in the past, but feasting and merrying continuosly. It is not so much the social aspect of the story, or the man’s relation with Lazarus, but his action of continually directing his whole life to pleasure.
Psalms 73 describes the consequences of such a life: “I was envious of the arrogant, when I saw the prosperity of the wicked. For they have no pangs in their death, and their body is well nourished. They do not find themselves in the hardship of men, nor are they plagued like other men. Therefore pride is a necklace for them, violence covers them like a garment. Their eyes bulge out from fatness; the imaginations of their heart overflow […] And they say, How does God know? And is there knowledge with the Most High? Behold, these are the wicked; and always at ease, they heap up riches” (Psalms 73:3-7,11-12).
When uttered the story about Lazarus, Jesus had just told two other parables of rich men, who were wise and represented God (those of the prodigal son and of the prudent steward). It would be strange to make the man of the third parable evil, just because he was rich. So he was said evil, not because he had much money, but because he lived to pleasures. Jesus also called Mammon unrighteous, in Luke 16:11, not in itself, but because fortunes were usually accumulated by means of unrighteous deeds.
The flame that the rich man mentions in 16:24 appears in other parables. In all of them, it represents judgment. Particularly in the parable of the tares, Jesus says that “the angels will gather the stumbling blocks and those who practice lawlessness, and will cast them into the furnace of fire” (Matthew 13:41-42), and in the text on the great fishing, he again says the angels will cast the evil ones into the furnace of fire, where “there will be weeping and gnashing of teeth" (Matthew 13:50).
Weeping may indicate distress, but also grief or sadness. And the gnashing of teeth sometimes accompanies pain, sometimes anger. So the furnace of Matthew 13:50 can be variously interpreted as a place of suffering and pain or of sadness and anger. In children, crying most commonly relate to suffering, but in adults, it usually indicates sadness. If we understand that the furnace is designed for adults, it is more consistent to interpret crying as a sign of sorrow, and gnashing of teeth as the anger for being disqualified.
So, even in the judgment that will be carried out with the aid of angels, suffering will be a consequence of the state of mind of sinners, represented by the weeping and gnashing of teeth, not something infused into them. How much more in the judgment of the intermediate state portrayed in Luke 16! As in a nightmare produced by the mind packed up with strife and challenges, the wicked will suffer because of their own proud thoughts and of the vain imaginations of their heart.
However, when that happens, the soul starts to judge things under a new light. When saw it was impossible to receive even a water drop from the other part of hades, the rich man asked Abraham to send Lazarus to his five brothers. The plead indicates a change of perspective. It can be argued that the change came too late, but the parable does not develop this point. It rather leaves the question unanswered.
Abraham only said that those who lived like the rich man would not be persuaded, if someone rose from the dead. As we have seen, the life that leads to torment is a consequence of day by day attachment to pleasures. Change of behavior can happen without anyone ressurrecting. Age produces it much more simply. But the weight of sensations, lusts, unbelief and pride cannot be easily removed from the heart. They are like the root of a tree, that remains under the ground, when the leaves and fruits fall. And which causes the tree to awake and bring forth new rotten fruits.
It is sometimes remembered that this story has traits which do not appear in other Gospel parables. It gives names of real people to two of its characters (Lazarus and Abraham) and mentions a specific place where they go after death (hades). This is something to be considered. But Jesus told so many parables and so few stories on real facts of the present that it seems unlikely that the text on Lazarus and the beggar was not one of his allegoric stories.
In fact, as our knowledge of ancient literature grows, the number of texts interpreted as parables increases. And it increases so wildly that, in modern exegesis, the Old Testament proverbs and Jesus’ saying about the unclean spirit who returns to his house are considered parables. Not only them, but many other examples, comparisons, maxims, figurative stories of the Bible also are. And in this transformed picture of the holy texts, there remains little doubt that the story of the rich man and Lazarus should be considered a parable, though of a special kind.
In it, the precise allusions to hades and the after death must be due to the preexistence of teachings about them. They also show that the object of the parable is not the actions of its characters, but precisely those teachings. They are the main symbols employed to indicate spiritual realities. For instance, the rich man’s statements about his eyes, tongue and finger echo the first century belief that the soul survived death. The same is true of the disposition of the two sections of hades, implicit in the statements that the rich man looked up to see Abraham and Lazarus, and that a chasm separated the two sections. These data were part of the teaching about the intermediate state, which was adopted as a symbol of after death's sufferings and rewards.
At the same time, the Pharisaic teaching of the postmortem state also echoed the Bible’s numerous allusions to death as a kind of sleep. If we add the teaching behind those allusions to the representation of hades we see in the parable, the resultant doctrine will be that the intermediate state is totally dominated by creations of the mind, which are similar to dreams. From this viewpoint, the torment of the rich, his visualization of Abraham and Lazarus, the dialogue he held with the first are not real experiences, but imaginative creations of his mind after death.
Jesus referred to all these doctrines and implications of doctrines that circulated at his time, in order to add the teaching that the sort of life the rich man lived filled his mind with thoughts that would later explode in the form of suffering. We are told that the rich man, when alive, saw Lazarus, but did not help him. This was surely his fault. But the verb tense used to describe Lazarus’ lying at the door of the rich man is the pluperfect (“more than perfect” in Greek). That tense was considered a luxury in the language of the New Testament (koiné), for people felt no need of expressing what it was supposed to express (TAYLOR, W. C. Introduction to the study of the Greek New Testament. 6ª ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1980. p. 332). Huckabee says the pluperfect used to indicate that both the action and its effect were past(www.palavraprudente.com.br/estudos/dw_ huckabee/hermeneutica/cap05.html). This implies that both the rich man’s action of seeing Lazarus and its effect had ceased at the decisive time of Lazarus' death.
This verb tense is in sharp contrast with the rich man’s habitual feasting, which is indicated by the verb in the imperfect. The imperfect tense conveys the idea of a continuous action, which in the parable is exaggerated by the addition of the expression every day (kat emeran). Rienecker and Rogers explain the meaning of this tense in the following way: “imperfect of habit, [meaning] habitually dressed” (RIENECKER, Fritz and ROGERS, Cleon. Linguistic key to the Greek New Testament. Sao Paulo: Vida Nova, 1988. p. 141).
If all this is right, and we have good reasons to think it may be, the teaching of Jesus is that the action that makes the rich man blamed is not having seen Lazarus at his door in the past, but feasting and merrying continuosly. It is not so much the social aspect of the story, or the man’s relation with Lazarus, but his action of continually directing his whole life to pleasure.
Psalms 73 describes the consequences of such a life: “I was envious of the arrogant, when I saw the prosperity of the wicked. For they have no pangs in their death, and their body is well nourished. They do not find themselves in the hardship of men, nor are they plagued like other men. Therefore pride is a necklace for them, violence covers them like a garment. Their eyes bulge out from fatness; the imaginations of their heart overflow […] And they say, How does God know? And is there knowledge with the Most High? Behold, these are the wicked; and always at ease, they heap up riches” (Psalms 73:3-7,11-12).
When uttered the story about Lazarus, Jesus had just told two other parables of rich men, who were wise and represented God (those of the prodigal son and of the prudent steward). It would be strange to make the man of the third parable evil, just because he was rich. So he was said evil, not because he had much money, but because he lived to pleasures. Jesus also called Mammon unrighteous, in Luke 16:11, not in itself, but because fortunes were usually accumulated by means of unrighteous deeds.
The flame that the rich man mentions in 16:24 appears in other parables. In all of them, it represents judgment. Particularly in the parable of the tares, Jesus says that “the angels will gather the stumbling blocks and those who practice lawlessness, and will cast them into the furnace of fire” (Matthew 13:41-42), and in the text on the great fishing, he again says the angels will cast the evil ones into the furnace of fire, where “there will be weeping and gnashing of teeth" (Matthew 13:50).
Weeping may indicate distress, but also grief or sadness. And the gnashing of teeth sometimes accompanies pain, sometimes anger. So the furnace of Matthew 13:50 can be variously interpreted as a place of suffering and pain or of sadness and anger. In children, crying most commonly relate to suffering, but in adults, it usually indicates sadness. If we understand that the furnace is designed for adults, it is more consistent to interpret crying as a sign of sorrow, and gnashing of teeth as the anger for being disqualified.
So, even in the judgment that will be carried out with the aid of angels, suffering will be a consequence of the state of mind of sinners, represented by the weeping and gnashing of teeth, not something infused into them. How much more in the judgment of the intermediate state portrayed in Luke 16! As in a nightmare produced by the mind packed up with strife and challenges, the wicked will suffer because of their own proud thoughts and of the vain imaginations of their heart.
However, when that happens, the soul starts to judge things under a new light. When saw it was impossible to receive even a water drop from the other part of hades, the rich man asked Abraham to send Lazarus to his five brothers. The plead indicates a change of perspective. It can be argued that the change came too late, but the parable does not develop this point. It rather leaves the question unanswered.
Abraham only said that those who lived like the rich man would not be persuaded, if someone rose from the dead. As we have seen, the life that leads to torment is a consequence of day by day attachment to pleasures. Change of behavior can happen without anyone ressurrecting. Age produces it much more simply. But the weight of sensations, lusts, unbelief and pride cannot be easily removed from the heart. They are like the root of a tree, that remains under the ground, when the leaves and fruits fall. And which causes the tree to awake and bring forth new rotten fruits.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
Livre Exame de Romanos (5): Fé Hipócrita
Paulo não adotou uma perspectiva única ao escrever Romanos. Ele não se colocou o tempo todo na posição do judeu, do gentio culto ou do grego piedoso, que frequentava as sinagogas e as igrejas cristãs, ao redor do mundo. Pelo contrário, em cada trecho da epístola, ele adotou uma perspectiva diferente.
No início do capítulo 1, ao dirigir-se aos cristãos de Roma, Paulo usou um vocabulário e se referiu a valores compreensíveis para eles. A partir do versículo 18, ele começou a descrever os gentios de cultura grega. Mencionou-lhes a situação espiritual, à luz do que denominou “a verdade de Deus”. E, no início do capítulo 2, passou a tratar dos gentios piedosos.
Essa segunda mudança se torna evidente, quando consideramos que o gentio do capítulo 2 não é como o do primeiro capítulo, que substituiu a verdade de Deus pela injustiça, adora ídolos e não apenas pratica o mal como o aprova (Rm 1:32). Pelo contrário, a figura que surge repentinamente em 2:1 condena os que praticam os males mencionados no primeiro capítulo (Rm 2:3). Trata-se, pois, de um gentio piedoso, que crê nas Escrituras, adora somente a Deus e censura os que vivem em pecado.
Paulo chama atenção desses gentios para a hipocrisia implícita em condenarem exatamente o que praticam. Tal atitude estava impregnada nos ambientes judaicos e cristãos do primeiro século. Mas o apóstolo deixa claro que, sob o evangelho, não há lugar para ela. Não importa se a pessoa adora a Deus ou aos ídolos. Hipocrisia é hipocrisia, seja no adorador de Deus, seja no idólatra. Ela será julgada por Deus: “Tu que condenas os que praticam tais cousas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2:3).
Que julgamento é esse a que Paulo se refere? Não é o juízo final, pois ele o faz incidir sobre pessoas tementes a Deus, sobre cristãos da igreja em Roma. “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5:24). O novo nascimento não se dá em vão. Ele muda a condição da pessoa que o experimenta e a livra do juízo final. Mas, se os que creem em Cristo não sofrerão o juízo final, Romanos nos mostra que serão julgados, num outro momento.
Esse julgamento futuro é o que Paulo menciona em 2:1-16. Ele é chamado o dia da ira (Rm 2:5), quando uns receberão tribulação e angústia (Rm 2:9), e outros, a vida eterna (Rm 2:7). Não se trata, pois, do juízo presente, que se revela do céu sobre os idólatras (Rm 1:18), mas do tribunal de Cristo, mencionado em 2ª aos Coríntios 5:10: “Importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”.
Não é improvável que esse julgamento ocorra durante o estado intermediário, entre a morte e a ressurreição. Talvez por isso, Paulo tenha afirmado que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal” (Rm 2:9). Se pretendesse indicar um julgamento após a ressurreição, o apóstolo teria afirmado que a alma e o corpo serão atingidos por ele, como em Mateus 10:28 (“Temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”). Mas ele não o afirmou, antes disse que o juízo em questão virá sobre a alma. Talvez se trate, portanto, de um juízo anterior à ressurreição.
Vários autores do Antigo Testamento perceberam que o ímpio, não raro, prospera na presente vida. O salmista escreveu: “Não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios” (Sl 37:7). Esse homem tem maus desígnios e os consegue realizar. Por vezes, chega a oprimir o justo: “Trama o ímpio contra o justo, e contra ele ringe os dentes [...] Os ímpios arrancam da espada e distendem o arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham o reto caminho” (Sl 37:12,14).
A inversão da justiça, que presenciamos no mundo, deu ocasião ao aparecimento da doutrina do julgamento de Deus. “Os malfeitores serão exterminados, e os que esperam no Senhor possuirão a terra” (Sl 37:9). Os malfeitores a que o salmista se referiu criam em Deus, pois eram judeus, mas praticavam o mal. Nisso, não eram diferentes dos gentios de Romanos 2:1-16.
Porém, ao escrever sua epístola, Paulo retirou as máscaras tanto dos religiosos gentios como dos judeus. Mostrou que máscaras são inúteis diante de Deus. É como se dissesse: você é isso ou aquilo? Pertence a esse ou àquele grupo religioso? Como outras pessoas do seu grupo, você condena rigidamente o pecado? Saiba que nada disso lhe aproveita. Com a sua piedade ou sem ela, você é tão bom quanto o idólatra.
É comum os cristãos localizarem a iniquidade no mundo, e a santidade, na igreja. Paulo faz algo distinto. Tranca os que creem e os que não creem, no cárcere da iniquidade. Não poupa sequer os apóstolos como ele próprio, já que declara: “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7:19).
Estamos diante da mais devastadora crítica da religião que se pode conceber. Uma crítica tão mais ácida quanto mais os pagãos são isentos dela. Os incrédulos são artífices das ações pecaminosas de 1:29-31. Mas não são hipócritas, pois falam o mesmo que fazem. Praticam aquelas ações e as chamam seu bem. Como diz Paulo, “não somente as fazem, mas também aprovam” (Rm 1:31).
Já os adeptos da religião mais pura, os adoradores do único Deus, são hipócritas. Paulo quer dizer todos os adoradores, sem dúvida e sem exceção. Estende, portanto, os ais que Jesus dirigiu aos escribas e fariseus, hipócritas, a todos os adeptos do judaísmo e da fé cristã. Mas cria, ao mesmo tempo, uma discriminação entre aqueles que reconhecem esse pecado e aqueles que permanecem nas profundezas da hipocrisia religiosa.
Ao criar tal discriminação, o apóstolo mostra que a confissão da hipocrisia é a água purificadora. A água que faz do fariseu um publicano. Quando João Batista afundou Israel no Jordão, ele o batizou nessa água. Dirigiu ainda um convite à raça de víboras para que o deixasse no fundo do Jordão. E assim como João sepultou o judaísmo, Paulo fez o mesmo com o cristianismo hipócrita.
A ira que o pecador de Romanos 2 acumula para o dia do juízo é a revolta de Deus contra essa hipocrisia. É a ira justificada de quem tem tolerado o hábito judeu e cristão de dizer uma coisa e fazer o contrário, até o dia em que o fogo brando em que é preparada fará a indignação explodir. É, enfim, a ira contra o que Paulo denominou dureza e coração impenitente (Rm 2:5).
Pouco importa o brilho peculiar da doutrina que a hipocrisia religiosa anuncia. Em momento nenhum, Paulo disse que aquele brilho justifica o execrável hábito de praticar o que a consciência reprova. Assim, ele estabeleceu o primado da prática sobre a doutrina. Se uma pessoa crê na mais sublime de todas as doutrinas, se cruza até mesmo os mares para pregá-la, mas prega que não se deve ofender uma pessoa e ofende mil, sua fé sublime é hipócrita.
Quanta exaltação desse tipo de fé hipócrita há no mundo! Quantos creem que podem dizer os maiores disparates e serão louvados, que podem proibir o mal a uma pessoa e praticá-lo a uma multidão! Tais são os mártires das legiões de desavisados de um triste tempo. E continuarão a ser enquanto a exortação soar: “Continue, pois, o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se” (Ap 22:11).
O verbo continuar, empregado tantas vezes, indica a diferença entre um juízo presente como o dos idólatras e outro futuro, mas que virá tão certamente quanto a aurora de amanhã.
No início do capítulo 1, ao dirigir-se aos cristãos de Roma, Paulo usou um vocabulário e se referiu a valores compreensíveis para eles. A partir do versículo 18, ele começou a descrever os gentios de cultura grega. Mencionou-lhes a situação espiritual, à luz do que denominou “a verdade de Deus”. E, no início do capítulo 2, passou a tratar dos gentios piedosos.
Essa segunda mudança se torna evidente, quando consideramos que o gentio do capítulo 2 não é como o do primeiro capítulo, que substituiu a verdade de Deus pela injustiça, adora ídolos e não apenas pratica o mal como o aprova (Rm 1:32). Pelo contrário, a figura que surge repentinamente em 2:1 condena os que praticam os males mencionados no primeiro capítulo (Rm 2:3). Trata-se, pois, de um gentio piedoso, que crê nas Escrituras, adora somente a Deus e censura os que vivem em pecado.
Paulo chama atenção desses gentios para a hipocrisia implícita em condenarem exatamente o que praticam. Tal atitude estava impregnada nos ambientes judaicos e cristãos do primeiro século. Mas o apóstolo deixa claro que, sob o evangelho, não há lugar para ela. Não importa se a pessoa adora a Deus ou aos ídolos. Hipocrisia é hipocrisia, seja no adorador de Deus, seja no idólatra. Ela será julgada por Deus: “Tu que condenas os que praticam tais cousas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2:3).
Que julgamento é esse a que Paulo se refere? Não é o juízo final, pois ele o faz incidir sobre pessoas tementes a Deus, sobre cristãos da igreja em Roma. “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5:24). O novo nascimento não se dá em vão. Ele muda a condição da pessoa que o experimenta e a livra do juízo final. Mas, se os que creem em Cristo não sofrerão o juízo final, Romanos nos mostra que serão julgados, num outro momento.
Esse julgamento futuro é o que Paulo menciona em 2:1-16. Ele é chamado o dia da ira (Rm 2:5), quando uns receberão tribulação e angústia (Rm 2:9), e outros, a vida eterna (Rm 2:7). Não se trata, pois, do juízo presente, que se revela do céu sobre os idólatras (Rm 1:18), mas do tribunal de Cristo, mencionado em 2ª aos Coríntios 5:10: “Importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”.
Não é improvável que esse julgamento ocorra durante o estado intermediário, entre a morte e a ressurreição. Talvez por isso, Paulo tenha afirmado que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal” (Rm 2:9). Se pretendesse indicar um julgamento após a ressurreição, o apóstolo teria afirmado que a alma e o corpo serão atingidos por ele, como em Mateus 10:28 (“Temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”). Mas ele não o afirmou, antes disse que o juízo em questão virá sobre a alma. Talvez se trate, portanto, de um juízo anterior à ressurreição.
Vários autores do Antigo Testamento perceberam que o ímpio, não raro, prospera na presente vida. O salmista escreveu: “Não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios” (Sl 37:7). Esse homem tem maus desígnios e os consegue realizar. Por vezes, chega a oprimir o justo: “Trama o ímpio contra o justo, e contra ele ringe os dentes [...] Os ímpios arrancam da espada e distendem o arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham o reto caminho” (Sl 37:12,14).
A inversão da justiça, que presenciamos no mundo, deu ocasião ao aparecimento da doutrina do julgamento de Deus. “Os malfeitores serão exterminados, e os que esperam no Senhor possuirão a terra” (Sl 37:9). Os malfeitores a que o salmista se referiu criam em Deus, pois eram judeus, mas praticavam o mal. Nisso, não eram diferentes dos gentios de Romanos 2:1-16.
Porém, ao escrever sua epístola, Paulo retirou as máscaras tanto dos religiosos gentios como dos judeus. Mostrou que máscaras são inúteis diante de Deus. É como se dissesse: você é isso ou aquilo? Pertence a esse ou àquele grupo religioso? Como outras pessoas do seu grupo, você condena rigidamente o pecado? Saiba que nada disso lhe aproveita. Com a sua piedade ou sem ela, você é tão bom quanto o idólatra.
É comum os cristãos localizarem a iniquidade no mundo, e a santidade, na igreja. Paulo faz algo distinto. Tranca os que creem e os que não creem, no cárcere da iniquidade. Não poupa sequer os apóstolos como ele próprio, já que declara: “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7:19).
Estamos diante da mais devastadora crítica da religião que se pode conceber. Uma crítica tão mais ácida quanto mais os pagãos são isentos dela. Os incrédulos são artífices das ações pecaminosas de 1:29-31. Mas não são hipócritas, pois falam o mesmo que fazem. Praticam aquelas ações e as chamam seu bem. Como diz Paulo, “não somente as fazem, mas também aprovam” (Rm 1:31).
Já os adeptos da religião mais pura, os adoradores do único Deus, são hipócritas. Paulo quer dizer todos os adoradores, sem dúvida e sem exceção. Estende, portanto, os ais que Jesus dirigiu aos escribas e fariseus, hipócritas, a todos os adeptos do judaísmo e da fé cristã. Mas cria, ao mesmo tempo, uma discriminação entre aqueles que reconhecem esse pecado e aqueles que permanecem nas profundezas da hipocrisia religiosa.
Ao criar tal discriminação, o apóstolo mostra que a confissão da hipocrisia é a água purificadora. A água que faz do fariseu um publicano. Quando João Batista afundou Israel no Jordão, ele o batizou nessa água. Dirigiu ainda um convite à raça de víboras para que o deixasse no fundo do Jordão. E assim como João sepultou o judaísmo, Paulo fez o mesmo com o cristianismo hipócrita.
A ira que o pecador de Romanos 2 acumula para o dia do juízo é a revolta de Deus contra essa hipocrisia. É a ira justificada de quem tem tolerado o hábito judeu e cristão de dizer uma coisa e fazer o contrário, até o dia em que o fogo brando em que é preparada fará a indignação explodir. É, enfim, a ira contra o que Paulo denominou dureza e coração impenitente (Rm 2:5).
Pouco importa o brilho peculiar da doutrina que a hipocrisia religiosa anuncia. Em momento nenhum, Paulo disse que aquele brilho justifica o execrável hábito de praticar o que a consciência reprova. Assim, ele estabeleceu o primado da prática sobre a doutrina. Se uma pessoa crê na mais sublime de todas as doutrinas, se cruza até mesmo os mares para pregá-la, mas prega que não se deve ofender uma pessoa e ofende mil, sua fé sublime é hipócrita.
Quanta exaltação desse tipo de fé hipócrita há no mundo! Quantos creem que podem dizer os maiores disparates e serão louvados, que podem proibir o mal a uma pessoa e praticá-lo a uma multidão! Tais são os mártires das legiões de desavisados de um triste tempo. E continuarão a ser enquanto a exortação soar: “Continue, pois, o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santificar-se” (Ap 22:11).
O verbo continuar, empregado tantas vezes, indica a diferença entre um juízo presente como o dos idólatras e outro futuro, mas que virá tão certamente quanto a aurora de amanhã.
sábado, 12 de janeiro de 2013
The Great Parables (2): The Good Samaritan
For centuries, the road from Jerusalem to Jericho was the most important transport route in Judea. H. B. Tristram described it in the following terms:
"After leaving the poor village of Bethany [beside Jerusalem], we turned left, and the descent became increasingly faster along the rocky steps [...] Two miles before reaching the plain, a canyon widened sharply, and we were dominated by abrupt and jagged cliffs, on the brink of a precipice 500 feet deep, whose wall was perforated by numerous caves [...] And at the base of those cliffs, whence the road winded down to the bottom of the valley, we considered one of the most beautiful sights of Palestine South: a lush forest that had grown after a large brown plain, and finally the Jordan "(TRISTAM. H. B. Cited in The Bible - Land, history and culture of the sacred texts. Lisbon: Del Prado, 1984. Vol. II, p. 184).
Unfortunately, robberies were common in the dusty road to Jericho. The numerous caves mentioned by Tristam served as hideout for thieves, who appeared by surprise to rob and attack travelers. So, Jesus referred to a typical scene of the time, when he pronounced the parable of the good Samaritan:
"A certain man was going down from Jerusalem to Jericho, and he fell among robbers, who having stripped him and beaten him, went away, leaving him half dead. And by coincidence a certain priest was going down on that road: and when he saw him, he passed on the opposite side. And likewise also a Levite, when he came to the place and saw him, passed on the opposite side. But a certain Samaritan, who was journeying, came upon him; and when he saw him, he was moved with compassion; and he came to him and bound up his wounds and poured oil and wine on them. And placing him on his own beast, he brought him to an inn and took care of him. And on the next day he took out two denarii and gave them to the innkeeper and said, Take care of him, and whatever you spend in addition to this, when I return, I will repay you" (Luke 10:30-35).
The parable was uttered in answer to the interpreter of the law, who had questioned Jesus about whom should be considered man’s neighbor. The answer may seem obvious today, but at that time it was the subject of an intense debate. Rabbis and scribes questioned each other whether the care of neighbors should be extended only to Jews or also to foreigners. And, if it was due also to foreigners, as the Torah established, which variety of people should be included in the concept of non-Jewish? For example, after having departed from the worship in Jerusalem, should the Samaritans still be an object of Jewish solidarity?
In answering the question of his inquirer, Jesus did not refute the notion of proximity based on blood relations, physical neighborhood or religious position (Samaritan, Levite or priest), since a nation needs these criteria to make visible the boundaries of solidarity among its citizens. Showed, however, that human closeness should transcend these criteria to be based mainly on compassion for others in real situations of life.
The need for this teaching may sound strange to us, since we are not used to conceiving priesthood as a cause of solidarity. Why is it necessary to show that a priest is not someone close, if life already teaches so with many examples? If we all know from experience that a priest remains isolated in a temple and away from people’s problems? But, given the context of the time, Jesus had to fight the idea that outward dispositions such as the priestly condition could be enough to warrant proximity to other people.
However, he also showed that the inner criterion of proximity based on compassion was much more important and was not observed by religious Jews. Neither the priest nor the Levite who passed by the place where the traveler was stretched aided him. This indicates that the holders of those offices often neglected their vocation. Compassion had become as strange a feeling for them as it was for the thieves who had left the victim half dead.
However, besides the priest and the Levite, the parable shows a Samaritan who passed by the way, was moved by compassion and rescued the traveler. A Samaritan was the reverse of all that the priesthood represented at that time. Its origin was well known: when the Northern Kingdom was conquered by the Assyrians, the local cities were populated with Israelites and Gentiles from various places. These people gave rise to a mixed population, which adopted a mixed worship, of God and idols.
In the second century B. C., Samaria’s mixed population came into serious conflict with the Jews. And to further complicate the relationship of the two peoples, in year 6 d. C., the Samaritans desecrated the Temple in Jerusalem with human bones. These incidents were so serious that the Gospel of John reports us that, at the time of Jesus, "the Jews had no dealings with the Samaritans" (John 4:9).
The lack of communication is one of the biggest signs of enmity. Enemies do not talk with each other. On the contrary, they hate and, if possible, slay one another. Therefore, more than a heretic, the Samaritan was an incarnation of the Jew's ultimate enemy. This visceral enmity, this dealing determined by man’s most degraded instincts, form the backdrop of the scene. But the Jew robbed, beaten and left half dead was loved by his greatest enemy.
From a cultural standpoint, the Samaritan passerby had no reason to love the half dead Jew, but was moved by tender compassion. The word translated "moved by" originally indicated the viscera of a mother’s body. Indicated, therefore, that the love of the Samaritan was similar to that a mother devoted to her offspring. This is the true and highest response to the legal question "who is my neighbor?"
It is curious that the Samaritan did not love the miserable man, by bringing him home. Nor sought to know who were his relatives or acquaintances. In delivering the parable, Jesus simply left no room for formal relations, for relations that were aged by time. The new wine of love should not be poured into old wineskins, because this would be the same as to waste it. Helping one another is an obligation for relatives. But the good Samaritan rescued by compassion, even by the compassion of a mother for her child. And he did so to his greatest enemy. Drained to the last drop, the hatred of his heart gave way to love, like the wine of the festival, once exhausted, created a new space for the better wine.
The Samaritan’s deep love cannot be likened to the fulfillment of an obligation arising from kinship, professional camaraderie or any other external link. Jesus did not say the Samaritan took the man home and informed his sad state to his relatives. The victim of human lack of loving kindness should not be saved by relatives or friends, since these are not unlike the first wine of the wedding at Cana. He should be saved by the tightening of compassion in the chest of his very enemy.
"And on the next day he took out two denarii and gave them to the innkeeper and said, Take care of him, and whatever you spend in addition to this, when I return, I will repay you" (Luke 10:35). The parable tells us of one nothing and three alls. The victim was robbed of all he owned, except the last thread of life. He was reduced to nothing, but received a second all (all he needed to recover), at the price of all it might cost. These alls came from the same unequivocal source: the ingrained compassion of his former Samaritan enemy.
It is often said that the Samaritan represents Christ. And he undoubtedly does. But I think he also portrays the Gentile enemy of the Jew. From this enmity that rocked the whole Earth on a vertigo, Jesus withdrew his definition of what truly meant to love the neighbor. The definition has little to do with theology, and still less with religion. It has all to do with subversion of enmity by compassion. Like a vulture, love feeds on the corpse of enmity. It sucks its carcass until there are but bones. This is the true love that God and only God can give birth to.
There was no difference between a Samaritan and a Gentile, except the larger hatred that Jews vowed to the first. Thus, the Samaritan was also a Gentile. Ephesians 2:14-15 refers to the wall of separation between Jews and Gentiles. That wall was higher and longer than China’s. Started at Samaria and made the lap of the Earth, imprisoning all men. Until the heretical Samaritan was moved by compassion and began the destruction of the wall.
It has been taught that the inn is the church. For a time, I rebelled against this interpretation, since the inns beside the Jewish roads were places of dubious reputation, which were not rarely crowded with malefactors. But I concluded that, if the hero of the parable is an anti-hero, a picture of the ultimate enemy, the place where the victim convalesces can well be a den of robbers. St. Augustine and many others pointed out that the church on Earth is not only a community of saints. It is also that den. But it must still be recognized as the best place for man beaten by life to recover. In an inhospitable world, though imperfect, the inn is a center of salvation for many.
The scribe who questioned Jesus about love was not himself in a position to love. He believed that love was to greet his neighbor with the word prescribed by law: how could he truly love? He had also been stripped of everything and was half dead. And a half dead man could only love as zombies do. But that zombies’ love, which is based on greeting others with the exact word and telling the acceptable prayer, was nothing more than feeding the deepest enmity. To love truly is to tremble with compassion for others. It is to love with the strength of a will reborn of water and the Spirit.
"After leaving the poor village of Bethany [beside Jerusalem], we turned left, and the descent became increasingly faster along the rocky steps [...] Two miles before reaching the plain, a canyon widened sharply, and we were dominated by abrupt and jagged cliffs, on the brink of a precipice 500 feet deep, whose wall was perforated by numerous caves [...] And at the base of those cliffs, whence the road winded down to the bottom of the valley, we considered one of the most beautiful sights of Palestine South: a lush forest that had grown after a large brown plain, and finally the Jordan "(TRISTAM. H. B. Cited in The Bible - Land, history and culture of the sacred texts. Lisbon: Del Prado, 1984. Vol. II, p. 184).
Unfortunately, robberies were common in the dusty road to Jericho. The numerous caves mentioned by Tristam served as hideout for thieves, who appeared by surprise to rob and attack travelers. So, Jesus referred to a typical scene of the time, when he pronounced the parable of the good Samaritan:
"A certain man was going down from Jerusalem to Jericho, and he fell among robbers, who having stripped him and beaten him, went away, leaving him half dead. And by coincidence a certain priest was going down on that road: and when he saw him, he passed on the opposite side. And likewise also a Levite, when he came to the place and saw him, passed on the opposite side. But a certain Samaritan, who was journeying, came upon him; and when he saw him, he was moved with compassion; and he came to him and bound up his wounds and poured oil and wine on them. And placing him on his own beast, he brought him to an inn and took care of him. And on the next day he took out two denarii and gave them to the innkeeper and said, Take care of him, and whatever you spend in addition to this, when I return, I will repay you" (Luke 10:30-35).
The parable was uttered in answer to the interpreter of the law, who had questioned Jesus about whom should be considered man’s neighbor. The answer may seem obvious today, but at that time it was the subject of an intense debate. Rabbis and scribes questioned each other whether the care of neighbors should be extended only to Jews or also to foreigners. And, if it was due also to foreigners, as the Torah established, which variety of people should be included in the concept of non-Jewish? For example, after having departed from the worship in Jerusalem, should the Samaritans still be an object of Jewish solidarity?
In answering the question of his inquirer, Jesus did not refute the notion of proximity based on blood relations, physical neighborhood or religious position (Samaritan, Levite or priest), since a nation needs these criteria to make visible the boundaries of solidarity among its citizens. Showed, however, that human closeness should transcend these criteria to be based mainly on compassion for others in real situations of life.
The need for this teaching may sound strange to us, since we are not used to conceiving priesthood as a cause of solidarity. Why is it necessary to show that a priest is not someone close, if life already teaches so with many examples? If we all know from experience that a priest remains isolated in a temple and away from people’s problems? But, given the context of the time, Jesus had to fight the idea that outward dispositions such as the priestly condition could be enough to warrant proximity to other people.
However, he also showed that the inner criterion of proximity based on compassion was much more important and was not observed by religious Jews. Neither the priest nor the Levite who passed by the place where the traveler was stretched aided him. This indicates that the holders of those offices often neglected their vocation. Compassion had become as strange a feeling for them as it was for the thieves who had left the victim half dead.
However, besides the priest and the Levite, the parable shows a Samaritan who passed by the way, was moved by compassion and rescued the traveler. A Samaritan was the reverse of all that the priesthood represented at that time. Its origin was well known: when the Northern Kingdom was conquered by the Assyrians, the local cities were populated with Israelites and Gentiles from various places. These people gave rise to a mixed population, which adopted a mixed worship, of God and idols.
In the second century B. C., Samaria’s mixed population came into serious conflict with the Jews. And to further complicate the relationship of the two peoples, in year 6 d. C., the Samaritans desecrated the Temple in Jerusalem with human bones. These incidents were so serious that the Gospel of John reports us that, at the time of Jesus, "the Jews had no dealings with the Samaritans" (John 4:9).
The lack of communication is one of the biggest signs of enmity. Enemies do not talk with each other. On the contrary, they hate and, if possible, slay one another. Therefore, more than a heretic, the Samaritan was an incarnation of the Jew's ultimate enemy. This visceral enmity, this dealing determined by man’s most degraded instincts, form the backdrop of the scene. But the Jew robbed, beaten and left half dead was loved by his greatest enemy.
From a cultural standpoint, the Samaritan passerby had no reason to love the half dead Jew, but was moved by tender compassion. The word translated "moved by" originally indicated the viscera of a mother’s body. Indicated, therefore, that the love of the Samaritan was similar to that a mother devoted to her offspring. This is the true and highest response to the legal question "who is my neighbor?"
It is curious that the Samaritan did not love the miserable man, by bringing him home. Nor sought to know who were his relatives or acquaintances. In delivering the parable, Jesus simply left no room for formal relations, for relations that were aged by time. The new wine of love should not be poured into old wineskins, because this would be the same as to waste it. Helping one another is an obligation for relatives. But the good Samaritan rescued by compassion, even by the compassion of a mother for her child. And he did so to his greatest enemy. Drained to the last drop, the hatred of his heart gave way to love, like the wine of the festival, once exhausted, created a new space for the better wine.
The Samaritan’s deep love cannot be likened to the fulfillment of an obligation arising from kinship, professional camaraderie or any other external link. Jesus did not say the Samaritan took the man home and informed his sad state to his relatives. The victim of human lack of loving kindness should not be saved by relatives or friends, since these are not unlike the first wine of the wedding at Cana. He should be saved by the tightening of compassion in the chest of his very enemy.
"And on the next day he took out two denarii and gave them to the innkeeper and said, Take care of him, and whatever you spend in addition to this, when I return, I will repay you" (Luke 10:35). The parable tells us of one nothing and three alls. The victim was robbed of all he owned, except the last thread of life. He was reduced to nothing, but received a second all (all he needed to recover), at the price of all it might cost. These alls came from the same unequivocal source: the ingrained compassion of his former Samaritan enemy.
It is often said that the Samaritan represents Christ. And he undoubtedly does. But I think he also portrays the Gentile enemy of the Jew. From this enmity that rocked the whole Earth on a vertigo, Jesus withdrew his definition of what truly meant to love the neighbor. The definition has little to do with theology, and still less with religion. It has all to do with subversion of enmity by compassion. Like a vulture, love feeds on the corpse of enmity. It sucks its carcass until there are but bones. This is the true love that God and only God can give birth to.
There was no difference between a Samaritan and a Gentile, except the larger hatred that Jews vowed to the first. Thus, the Samaritan was also a Gentile. Ephesians 2:14-15 refers to the wall of separation between Jews and Gentiles. That wall was higher and longer than China’s. Started at Samaria and made the lap of the Earth, imprisoning all men. Until the heretical Samaritan was moved by compassion and began the destruction of the wall.
It has been taught that the inn is the church. For a time, I rebelled against this interpretation, since the inns beside the Jewish roads were places of dubious reputation, which were not rarely crowded with malefactors. But I concluded that, if the hero of the parable is an anti-hero, a picture of the ultimate enemy, the place where the victim convalesces can well be a den of robbers. St. Augustine and many others pointed out that the church on Earth is not only a community of saints. It is also that den. But it must still be recognized as the best place for man beaten by life to recover. In an inhospitable world, though imperfect, the inn is a center of salvation for many.
The scribe who questioned Jesus about love was not himself in a position to love. He believed that love was to greet his neighbor with the word prescribed by law: how could he truly love? He had also been stripped of everything and was half dead. And a half dead man could only love as zombies do. But that zombies’ love, which is based on greeting others with the exact word and telling the acceptable prayer, was nothing more than feeding the deepest enmity. To love truly is to tremble with compassion for others. It is to love with the strength of a will reborn of water and the Spirit.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
Livre Exame de Romanos (4): Quem São os Gregos?
No capítulo 2, versos 9 e 10, Paulo afirma: “Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego”. A referência a judeus e gregos ecoa os versículos 1:14 e 1:16: “Sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes [...] Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego”.
Uma nota ao pé desses versos, na Bíblia de Jerusalém, expressa não só o entendimento de seus elaboradores como da grande maioria dos comentaristas. Diz ela: “A expressão gregos, contraposta a bárbaros, designa as pessoas cultas, inclusive os romanos (que tinham adotado a cultura grega); contraposta aos judeus, designa os gentios” (Bíblia de Jerusalém, 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. p. 1966).
Colossenses 3:11, por sua vez, refere-se a gregos, judeus, circuncisão, incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre. Embora essa enumeração seja mais longa que as de Romanos, notamos de novo que os termos se agrupam de dois em dois. Gregos se opõem a judeus; circuncisão, a incircuncisão; bárbaro, a cita; escravo, a homem livre. Com exceção da terceira, essas oposições são bastante claras. A própria contradição entre bárbaros e citas não é tão evidente quanto as demais, mas se esclarece quando lembramos que bárbaro se referia ao habitante do Império, e cita, ao não habitante.
Essas observações não são importantes apenas do ponto de vista histórico, mas principalmente para compreendermos a mensagem de Romanos. Se retirarmos uma palavra de qualquer dos binômios acima e a utilizarmos de modo livre ou a inserirmos num outro binômio, poderemos incidir em equívocos. Por exemplo, poderemos pensar que os gregos e bárbaros, os sábios e ignorantes de 1:14 são os mesmos dois grupos de pessoas mencionados com palavras diferentes, isto é, que os gregos são os sábios, e os bárbaros, os ignorantes. Mas isso seria tornar gregos sinônimo de sábios, quando a primeira dessas palavras denotava o falante da língua grega, independentemente de quão refinada fosse a sua cultura. No primeiro século, havia gregos analfabetos, assim como bárbaros cultos. Os magos persas e os escribas egípcios eram bárbaros profundamente cultos. Mas não se pode dizer que algum sábio fosse ignorante ou vice-versa. Portanto, os binômios de 1:14 não se equivalem.
Tudo isso nos mostra que um vocabulário amplo e preciso estava à disposição dos escritores, no século I, para designar diferentes povos e grupos humanos. Dificilmente, podendo recorrer a termos tão bem definidos pelos binômios que integravam, Paulo usaria a palavra gregos para indicar ora os gentios em geral, ora os gentios de cultura grega. Penso que, contrapostos aos judeus ou aos bárbaros, gregos são sempre pessoas de fala grega. O próprio Paulo é um exemplo. Ele era grego, embora fosse judeu por religião e de sangue. Portanto, nele, não havia oposição entre o ser-grego e o ser-judeu. E é importante frisar: não só em Paulo, mas num número enorme de pessoas de várias partes do mundo essa situação se realizava.
Já os termos empregados para indicar os gentios de modo geral eram outros. Não incluíam a palavra gregos. Ethne, ora traduzido nações, ora gentios, é um desses termos. Indica a totalidade dos gentios, embora seja, em geral, empregada por Paulo para descrever os que creem, como em 1:5 (“para obediência da fé entre todos os gentios”) e em 2:14 ("Quando, pois, os gentios que não têm lei, procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos"). Agostinho interpretou os gentios mencionados nesse último verso como os "que cumprem a lei segundo os ditames da consciência e têm a obra da fé escrita no coração", isto é, "aqueles que creem em Cristo" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007, p. 69).
Incircuncisão, por sua vez, é uma variação de gentios e, assim como essa palavra, indica o conjunto de todos os não judeus, mas é geralmente empregada para os gentios que creem: “Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão?”. Efésios 2:11 acrescenta: “Outrora vós, gentios na carne, chamados incircuncisão”.
Tudo isso mostra que a palavra grego não significa o mesmo que gentio ou incircuncisão. Notem que o termo nunca é usado, por Paulo, em oposição a circuncisão. Judeu e grego tampouco são empregados como variante de circuncisão-incircuncisão. Isso porque a oposição entre essas duas últimas palavras tinha por foco a religião, ao passo que a oposição judeu-gentio se dava em função da língua.
Na realidade, grego era o homem que se comunicava em grego ou em latim. Era o indivíduo que usava uma das línguas em que a literatura clássica havia sido vazada. A própria palavra bárbaro tinha o sentido definido em função da fala, como se vê em 1ª aos Coríntios 14:11: “Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro [bárbaros] para aquele que fala; e ele, estrangeiro [bárbaros] para mim”.
Bárbaro não era tanto o membro de uma etnia quanto o falante de línguas que não o grego ou o latim. Como os judeus da Palestina, em geral, não falavam grego, era natural que fossem considerados bárbaros pelos romanos. Vários escritores dos primeiros séculos se referiram ao cristianismo como uma filosofia bárbara, porque judaica. Por isso, quando se declarou devedor a gregos e a bárbaros, Paulo incluiu judeus no último grupo. Não havia qualquer conotação pejorativa em o fazer ou em usar a palavra bárbaro nesse sentido.
Aliás, os bárbaros de quem Paulo se considerava devedor devem ter sido judeus e povos da sua família linguística, já que ele não poderia ser devedor de pessoas com quem não pudesse se comunicar. Não temos notícia do uso de tradutores pelos apóstolos. Portanto, as barreiras de idioma eram mais importantes para definir os limites da atuação deles do que nos acostumamos a pensar. Frise-se que, na única ocasião em que encontrou barbárois, no Livro de Atos (At 28:2,4), não se acrescenta que o apóstolo lhes tenha pregado o evangelho, como era seu costume.
Não insisto nessas diferenciações por diletantismo ou apenas por sua importância histórica. Elas interessam à elucidação do sentido da Carta aos Romanos. E interessam porque a condenação dos versículos 1:18 a 3:20 não parece dirigida aos gentios, de modo geral, mas apenas aos judeus e aos gregos. A própria palavra gentios só aparece duas vezes, em 2:14,24. A primeira é uma referência positiva e não condenatória. A segunda tem sentido neutro. Portanto, também não condenatório. Já incircuncisão aparece em 2:25-29, após a condenação dos judeus, em conexão com a palavra circuncisão. Nesses versos, Paulo mostra que a oposição religiosa dos judeus aos gentios é impotente para salvá-los. Portanto, ele condena os judeus e não os gentios.
Que devemos extrair desse uso de termos? Uma conclusão importante é que todas as palavras de sentido condenatório de Paulo, em Romanos 1 a 3, são dirigidas aos judeus e aos gregos, não aos gentios de modo geral. Por exemplo, quando diz que o evangelho é o poder de Deus para salvação do judeu e também do grego, as pessoas indicadas por essa última palavra são as de língua grega ou latina, não todos os gentios do mundo. Claro que toda salvação pressupõe condenação ou perdição. Portanto, nesse versículo, a condenação afirmada é a dos judeus e dos gregos.
O mesmo se dá na afirmação de que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego” (Rm 2:9-10). Também aí, a condenação incide sobre judeus e gregos.
Esse uso de palavras é extremamente consistente. E extremamente revelador, pois significa que o apóstolo não estendeu a condenação de Romanos 1 a 3 aos bárbaros. Isso esvazia, em alguma medida, a doutrina da condenação universal baseada nesses capítulos. Romanos 1 e 2 não têm em vista o mundo todo, mas os gentios de língua grega ou latina e também os judeus.
Estou a propor que os bárbaros não são condenáveis? De maneira nenhuma. Na passagem a respeito de Adão (capítulo 5), Paulo afirmou que todos os descendentes dele pecaram, inclusive os bárbaros. E se eles estão incluídos no pecado, não podem estar isentos da condenação. Só enfatizo que Paulo não definiu a sua culpabilidade, da mesma forma que fez com a dos judeus e dos gregos.
Faço notar esse silêncio. A doutrina da condenação universal forjada com base em Romanos tem esse tanto de pressa, de azáfama. Tem esse tanto de má formação. As impressionantes assertivas dos capítulos 1 a 3 não foram restritas aos judeus e aos gregos por acaso ou de modo não intencional. Pelo contrário, expressam o cuidado especial de Paulo com a linguagem de sua carta, que foi elaborada para expor a salvação de Cristo de maneira precisa e completa. Ante esses fatos, só nos resta pesar o sentido dos termos grego e gentio com tanto cuidado quanto teve Paulo ao usá-los e ao escrever o seu texto perene.
Uma nota ao pé desses versos, na Bíblia de Jerusalém, expressa não só o entendimento de seus elaboradores como da grande maioria dos comentaristas. Diz ela: “A expressão gregos, contraposta a bárbaros, designa as pessoas cultas, inclusive os romanos (que tinham adotado a cultura grega); contraposta aos judeus, designa os gentios” (Bíblia de Jerusalém, 5ª impressão, São Paulo: Paulus, 2008. p. 1966).
Colossenses 3:11, por sua vez, refere-se a gregos, judeus, circuncisão, incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre. Embora essa enumeração seja mais longa que as de Romanos, notamos de novo que os termos se agrupam de dois em dois. Gregos se opõem a judeus; circuncisão, a incircuncisão; bárbaro, a cita; escravo, a homem livre. Com exceção da terceira, essas oposições são bastante claras. A própria contradição entre bárbaros e citas não é tão evidente quanto as demais, mas se esclarece quando lembramos que bárbaro se referia ao habitante do Império, e cita, ao não habitante.
Essas observações não são importantes apenas do ponto de vista histórico, mas principalmente para compreendermos a mensagem de Romanos. Se retirarmos uma palavra de qualquer dos binômios acima e a utilizarmos de modo livre ou a inserirmos num outro binômio, poderemos incidir em equívocos. Por exemplo, poderemos pensar que os gregos e bárbaros, os sábios e ignorantes de 1:14 são os mesmos dois grupos de pessoas mencionados com palavras diferentes, isto é, que os gregos são os sábios, e os bárbaros, os ignorantes. Mas isso seria tornar gregos sinônimo de sábios, quando a primeira dessas palavras denotava o falante da língua grega, independentemente de quão refinada fosse a sua cultura. No primeiro século, havia gregos analfabetos, assim como bárbaros cultos. Os magos persas e os escribas egípcios eram bárbaros profundamente cultos. Mas não se pode dizer que algum sábio fosse ignorante ou vice-versa. Portanto, os binômios de 1:14 não se equivalem.
Tudo isso nos mostra que um vocabulário amplo e preciso estava à disposição dos escritores, no século I, para designar diferentes povos e grupos humanos. Dificilmente, podendo recorrer a termos tão bem definidos pelos binômios que integravam, Paulo usaria a palavra gregos para indicar ora os gentios em geral, ora os gentios de cultura grega. Penso que, contrapostos aos judeus ou aos bárbaros, gregos são sempre pessoas de fala grega. O próprio Paulo é um exemplo. Ele era grego, embora fosse judeu por religião e de sangue. Portanto, nele, não havia oposição entre o ser-grego e o ser-judeu. E é importante frisar: não só em Paulo, mas num número enorme de pessoas de várias partes do mundo essa situação se realizava.
Já os termos empregados para indicar os gentios de modo geral eram outros. Não incluíam a palavra gregos. Ethne, ora traduzido nações, ora gentios, é um desses termos. Indica a totalidade dos gentios, embora seja, em geral, empregada por Paulo para descrever os que creem, como em 1:5 (“para obediência da fé entre todos os gentios”) e em 2:14 ("Quando, pois, os gentios que não têm lei, procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos"). Agostinho interpretou os gentios mencionados nesse último verso como os "que cumprem a lei segundo os ditames da consciência e têm a obra da fé escrita no coração", isto é, "aqueles que creem em Cristo" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007, p. 69).
Incircuncisão, por sua vez, é uma variação de gentios e, assim como essa palavra, indica o conjunto de todos os não judeus, mas é geralmente empregada para os gentios que creem: “Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão?”. Efésios 2:11 acrescenta: “Outrora vós, gentios na carne, chamados incircuncisão”.
Tudo isso mostra que a palavra grego não significa o mesmo que gentio ou incircuncisão. Notem que o termo nunca é usado, por Paulo, em oposição a circuncisão. Judeu e grego tampouco são empregados como variante de circuncisão-incircuncisão. Isso porque a oposição entre essas duas últimas palavras tinha por foco a religião, ao passo que a oposição judeu-gentio se dava em função da língua.
Na realidade, grego era o homem que se comunicava em grego ou em latim. Era o indivíduo que usava uma das línguas em que a literatura clássica havia sido vazada. A própria palavra bárbaro tinha o sentido definido em função da fala, como se vê em 1ª aos Coríntios 14:11: “Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro [bárbaros] para aquele que fala; e ele, estrangeiro [bárbaros] para mim”.
Bárbaro não era tanto o membro de uma etnia quanto o falante de línguas que não o grego ou o latim. Como os judeus da Palestina, em geral, não falavam grego, era natural que fossem considerados bárbaros pelos romanos. Vários escritores dos primeiros séculos se referiram ao cristianismo como uma filosofia bárbara, porque judaica. Por isso, quando se declarou devedor a gregos e a bárbaros, Paulo incluiu judeus no último grupo. Não havia qualquer conotação pejorativa em o fazer ou em usar a palavra bárbaro nesse sentido.
Aliás, os bárbaros de quem Paulo se considerava devedor devem ter sido judeus e povos da sua família linguística, já que ele não poderia ser devedor de pessoas com quem não pudesse se comunicar. Não temos notícia do uso de tradutores pelos apóstolos. Portanto, as barreiras de idioma eram mais importantes para definir os limites da atuação deles do que nos acostumamos a pensar. Frise-se que, na única ocasião em que encontrou barbárois, no Livro de Atos (At 28:2,4), não se acrescenta que o apóstolo lhes tenha pregado o evangelho, como era seu costume.
Não insisto nessas diferenciações por diletantismo ou apenas por sua importância histórica. Elas interessam à elucidação do sentido da Carta aos Romanos. E interessam porque a condenação dos versículos 1:18 a 3:20 não parece dirigida aos gentios, de modo geral, mas apenas aos judeus e aos gregos. A própria palavra gentios só aparece duas vezes, em 2:14,24. A primeira é uma referência positiva e não condenatória. A segunda tem sentido neutro. Portanto, também não condenatório. Já incircuncisão aparece em 2:25-29, após a condenação dos judeus, em conexão com a palavra circuncisão. Nesses versos, Paulo mostra que a oposição religiosa dos judeus aos gentios é impotente para salvá-los. Portanto, ele condena os judeus e não os gentios.
Que devemos extrair desse uso de termos? Uma conclusão importante é que todas as palavras de sentido condenatório de Paulo, em Romanos 1 a 3, são dirigidas aos judeus e aos gregos, não aos gentios de modo geral. Por exemplo, quando diz que o evangelho é o poder de Deus para salvação do judeu e também do grego, as pessoas indicadas por essa última palavra são as de língua grega ou latina, não todos os gentios do mundo. Claro que toda salvação pressupõe condenação ou perdição. Portanto, nesse versículo, a condenação afirmada é a dos judeus e dos gregos.
O mesmo se dá na afirmação de que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, do judeu primeiro, e também do grego; glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, e também ao grego” (Rm 2:9-10). Também aí, a condenação incide sobre judeus e gregos.
Esse uso de palavras é extremamente consistente. E extremamente revelador, pois significa que o apóstolo não estendeu a condenação de Romanos 1 a 3 aos bárbaros. Isso esvazia, em alguma medida, a doutrina da condenação universal baseada nesses capítulos. Romanos 1 e 2 não têm em vista o mundo todo, mas os gentios de língua grega ou latina e também os judeus.
Estou a propor que os bárbaros não são condenáveis? De maneira nenhuma. Na passagem a respeito de Adão (capítulo 5), Paulo afirmou que todos os descendentes dele pecaram, inclusive os bárbaros. E se eles estão incluídos no pecado, não podem estar isentos da condenação. Só enfatizo que Paulo não definiu a sua culpabilidade, da mesma forma que fez com a dos judeus e dos gregos.
Faço notar esse silêncio. A doutrina da condenação universal forjada com base em Romanos tem esse tanto de pressa, de azáfama. Tem esse tanto de má formação. As impressionantes assertivas dos capítulos 1 a 3 não foram restritas aos judeus e aos gregos por acaso ou de modo não intencional. Pelo contrário, expressam o cuidado especial de Paulo com a linguagem de sua carta, que foi elaborada para expor a salvação de Cristo de maneira precisa e completa. Ante esses fatos, só nos resta pesar o sentido dos termos grego e gentio com tanto cuidado quanto teve Paulo ao usá-los e ao escrever o seu texto perene.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
The Great Parables (1): The Prodigal Son
The parable of the prodigal son begins with a request that his father would anticipate his inheritance. The anticipation was a legitimate custom, at the time of Jesus. Through it, the hereditary successor received his legal lot before the father's death.
This means that, although conceiving a plan to use the father’s assets to enjoy the pleasures of life, the younger son is not wrong in asking the anticipation. He does not fall into sin just by using or intending to use what the world offers him. "All things are lawful" (1 Cor 6:12; 10:23). Sin arises, it shows its silhouette only when man takes the next step. When he demands what is rightfully his and strays from God. When he turns away, perhaps forever.
The departure from the father's house symbolizes the abandonment of God by the man who lives with him and knows him, though not in a vital way, which is only the way of love. To describe this voluntary abandonment, the parable adds a term which does not appear in the texts of the sheep and of the silver coin, that is, death. More than once, the father says that his son was dead and lived again, got lost and was found (Luke 15:24,32).
Here we have two evils, two consequences of desertion of God by the man who knows him. The first one is death, the other is getting lost. The parables of the sheep and of the coin focus on becoming lost. That of the prodigal son describes death. Presents it as a voluntary separation from God. The son dies while leaving his father, and revives when returns to him.
In Genesis 2, God's word to man who was created to maintain a relationship with him was: "In the day you eat thereof you shall surely die" (Gen. 2:17). In fact, when sinned, Adam and Eve were separated from God's presence. The word of God was dramatically fulfilled in their experience of death as abandonment.
The parable of the prodigal son does not tell us another experience. The drama of the child is much more serious than that of the sheep or of the coin’s owner. It is the greatest tragedy, because it leads not only to deviation, but to death itself. In the parable, death is going to a distant country and adopting a dissolute living, whereby man dissipates himself. No experience deserves more disgusting names, none deserves to be placed under the emblem of death, even of Adam’s death, as much as this one. When chooses to forsake God, no matter he sees him as a living person or as a bundle of obligations, man is over for him.
The Greek word for assets, in Luke 15:12, is generally translated essence. It was a term of deep philosophical significance in the first century. The prodigal son not only squandered his property, but lost his very essence. He dissipated himself. He died the most consummate death, the death that is most up to the name, the death which is separation from God.
And it does not matter which father or God man strays from. To the prodigal son the father of the parable was not quite different from what he was to his second child. He was no sublime figure to any of them. Was rather a bundle of legal obligations, a list of rules to be observed, a dark hell like that of the Brazilian song, thinking about which the son had chills. That father could not be and was not love. So, the son looked for love as far from him as he could. He went into hell in search of the brightest light, not realizing that darkness was not around him, but in his conscience, and would follow him everywhere.
The death of the prodigal son is not only a consequence of the abandonment of the parental home, but of his dissolution. The younger son does not realize he spends himself, when spends his fortune. So famine befalls him. This is the final stage of the soul that exchanges God for delights.
Two ideas occur to the man, in that context: add up to a citizen of the distant country, and return to his father. First, he sets in motion the purpose of joining a local citizen, thus becoming a member of a typical family of the foreign land. On departing from God, the sinner is not content to live as an outsider. He feels the urgency to multiply his aversion towards his father, adding up to a system exactly contrary to the paternal home. He has to demand the interest of his blasphemies at the bank of the world.
The problem is that, despite its brilliance, all that the system can offer is slavery and swine food. In the context of the time, the work to which the son was reduced, the care of pigs, was typical of a slave. It was not paid. Worse, the only wage he received was the husks given to pigs. Incidentally, that retribution was hardly offered him. All the son had was the desire to obtain it. It was a sigh for the beans the pigs received.
If something is hell, this is it. I do not know if some representation of Tartarus, the Greek image of hell, is worse than that. Hardly think so. But in that anticlimax, the son remembers the opposite. Remembers the father's house: "How many of my father's have bread in abundance and I perish here!" (Luke 15:17). He also compares his later state with the one he enjoyed in his father’s house.
Everyone has two and only two choices in life: to embrace the world with the brilliance it has in the beginning and the slavery and pig life of the end, or to live by the word that comes from the mouth of God. Today’s overdeveloped world intoxicates people and causes them to live as if had discovered a third option. To live as if science, technology and democratic institutions had afforded them to detach themselves from God, without falling into a brutal lifestyle. But, as always, the dream of this third position will end in a frenzied longing for pigs beans.
The end of all ages of the world is to embitter. It is to become the maddening desire for swine food. It will not be different when the curtain of time falls over the stage of science, technology and democratic institutions. Blessed is he who regains his sense and realizes it. The Greek New Testament equals this awakening of the man who has got lost to the action of "getting into himself". The son entered himself, so to speak, he regained his sense after having lost it, after having become alienated. In the Bible, to get alienated from God is to get alienated from self. So, for a man to get into himself is what we call conversion. It does not mean to improve behavior. Nor is it a kind of disoriented mystical experience. It is rather the experience of man finding himself and finding God.
Blessed are those that have Moses and the prophets, and not just keep, but hear them. Blessed are those who have the New Testament and listen to it as one who recalls a distant paradise. Blessed are those who hear both the Old and the New Testaments, though in deep doubt. Only when compares his second state with the first, the son is able to reach the third.
Before fulfilling the purpose of returning home, our man conceives the words that will express his bitter regret to his progenitor: "Father, I have sinned against heaven and before you. I am no longer worthy to be called your son; make me like one of your hired servants "(Luke 15:18-19). Rehearses this profession of faith as catechumens learn theirs. But he has learned something quite different. He has learned how to speak it in a grieved way.
And the synthesis minimum of the bitter experience of the son contained in the precarious confession sounded so maximum to his father that he did not allow it come to an end: he threw himself upon his neck, before he concluded the painful words.
The intervention of the father shows that the effectiveness of salvation lies not in formulas that the sinner pronounces, but in the hug with which he is narrowed by God. Theological reasoning tends to associate forgiveness to formulas, but love links it to the embrace. All sins and all sinful life end in the arms of the loving Father, who constantly watches over the horizon.
If there is theology in the Bible, its purpose is not to verbalize what does not fit into words. It is not to give the shape of words to what transcends them. It is only to say that God asks us to embrace him. And to deliver to all the prodigal of the world an invitation to the embrace that forgives the unforgivable debt.
This means that, although conceiving a plan to use the father’s assets to enjoy the pleasures of life, the younger son is not wrong in asking the anticipation. He does not fall into sin just by using or intending to use what the world offers him. "All things are lawful" (1 Cor 6:12; 10:23). Sin arises, it shows its silhouette only when man takes the next step. When he demands what is rightfully his and strays from God. When he turns away, perhaps forever.
The departure from the father's house symbolizes the abandonment of God by the man who lives with him and knows him, though not in a vital way, which is only the way of love. To describe this voluntary abandonment, the parable adds a term which does not appear in the texts of the sheep and of the silver coin, that is, death. More than once, the father says that his son was dead and lived again, got lost and was found (Luke 15:24,32).
Here we have two evils, two consequences of desertion of God by the man who knows him. The first one is death, the other is getting lost. The parables of the sheep and of the coin focus on becoming lost. That of the prodigal son describes death. Presents it as a voluntary separation from God. The son dies while leaving his father, and revives when returns to him.
In Genesis 2, God's word to man who was created to maintain a relationship with him was: "In the day you eat thereof you shall surely die" (Gen. 2:17). In fact, when sinned, Adam and Eve were separated from God's presence. The word of God was dramatically fulfilled in their experience of death as abandonment.
The parable of the prodigal son does not tell us another experience. The drama of the child is much more serious than that of the sheep or of the coin’s owner. It is the greatest tragedy, because it leads not only to deviation, but to death itself. In the parable, death is going to a distant country and adopting a dissolute living, whereby man dissipates himself. No experience deserves more disgusting names, none deserves to be placed under the emblem of death, even of Adam’s death, as much as this one. When chooses to forsake God, no matter he sees him as a living person or as a bundle of obligations, man is over for him.
The Greek word for assets, in Luke 15:12, is generally translated essence. It was a term of deep philosophical significance in the first century. The prodigal son not only squandered his property, but lost his very essence. He dissipated himself. He died the most consummate death, the death that is most up to the name, the death which is separation from God.
And it does not matter which father or God man strays from. To the prodigal son the father of the parable was not quite different from what he was to his second child. He was no sublime figure to any of them. Was rather a bundle of legal obligations, a list of rules to be observed, a dark hell like that of the Brazilian song, thinking about which the son had chills. That father could not be and was not love. So, the son looked for love as far from him as he could. He went into hell in search of the brightest light, not realizing that darkness was not around him, but in his conscience, and would follow him everywhere.
The death of the prodigal son is not only a consequence of the abandonment of the parental home, but of his dissolution. The younger son does not realize he spends himself, when spends his fortune. So famine befalls him. This is the final stage of the soul that exchanges God for delights.
Two ideas occur to the man, in that context: add up to a citizen of the distant country, and return to his father. First, he sets in motion the purpose of joining a local citizen, thus becoming a member of a typical family of the foreign land. On departing from God, the sinner is not content to live as an outsider. He feels the urgency to multiply his aversion towards his father, adding up to a system exactly contrary to the paternal home. He has to demand the interest of his blasphemies at the bank of the world.
The problem is that, despite its brilliance, all that the system can offer is slavery and swine food. In the context of the time, the work to which the son was reduced, the care of pigs, was typical of a slave. It was not paid. Worse, the only wage he received was the husks given to pigs. Incidentally, that retribution was hardly offered him. All the son had was the desire to obtain it. It was a sigh for the beans the pigs received.
If something is hell, this is it. I do not know if some representation of Tartarus, the Greek image of hell, is worse than that. Hardly think so. But in that anticlimax, the son remembers the opposite. Remembers the father's house: "How many of my father's have bread in abundance and I perish here!" (Luke 15:17). He also compares his later state with the one he enjoyed in his father’s house.
Everyone has two and only two choices in life: to embrace the world with the brilliance it has in the beginning and the slavery and pig life of the end, or to live by the word that comes from the mouth of God. Today’s overdeveloped world intoxicates people and causes them to live as if had discovered a third option. To live as if science, technology and democratic institutions had afforded them to detach themselves from God, without falling into a brutal lifestyle. But, as always, the dream of this third position will end in a frenzied longing for pigs beans.
The end of all ages of the world is to embitter. It is to become the maddening desire for swine food. It will not be different when the curtain of time falls over the stage of science, technology and democratic institutions. Blessed is he who regains his sense and realizes it. The Greek New Testament equals this awakening of the man who has got lost to the action of "getting into himself". The son entered himself, so to speak, he regained his sense after having lost it, after having become alienated. In the Bible, to get alienated from God is to get alienated from self. So, for a man to get into himself is what we call conversion. It does not mean to improve behavior. Nor is it a kind of disoriented mystical experience. It is rather the experience of man finding himself and finding God.
Blessed are those that have Moses and the prophets, and not just keep, but hear them. Blessed are those who have the New Testament and listen to it as one who recalls a distant paradise. Blessed are those who hear both the Old and the New Testaments, though in deep doubt. Only when compares his second state with the first, the son is able to reach the third.
Before fulfilling the purpose of returning home, our man conceives the words that will express his bitter regret to his progenitor: "Father, I have sinned against heaven and before you. I am no longer worthy to be called your son; make me like one of your hired servants "(Luke 15:18-19). Rehearses this profession of faith as catechumens learn theirs. But he has learned something quite different. He has learned how to speak it in a grieved way.
And the synthesis minimum of the bitter experience of the son contained in the precarious confession sounded so maximum to his father that he did not allow it come to an end: he threw himself upon his neck, before he concluded the painful words.
The intervention of the father shows that the effectiveness of salvation lies not in formulas that the sinner pronounces, but in the hug with which he is narrowed by God. Theological reasoning tends to associate forgiveness to formulas, but love links it to the embrace. All sins and all sinful life end in the arms of the loving Father, who constantly watches over the horizon.
If there is theology in the Bible, its purpose is not to verbalize what does not fit into words. It is not to give the shape of words to what transcends them. It is only to say that God asks us to embrace him. And to deliver to all the prodigal of the world an invitation to the embrace that forgives the unforgivable debt.
sábado, 5 de janeiro de 2013
Jesus, por Bento XVI (1): Uma Nova Cruzada?
De 2010 até hoje, o Papa Bento XVI tem denunciado, insistentemente, o que se tornou o problema central do Cristianismo, na Europa atual: a perda da conexão entre a fé e o valor da verdade. Ao deixar de representar a verdade, em matéria de religião, o Cristianismo europeu não foi despojado de uma característica acessória; ele perdeu a sua natureza íntima, a sua própria essência fundamental.
Por essas graves razões, uma das marcas principais do pontificado de Bento tem sido conclamar os cristãos ao combate ao estado de coisas por ele apontado como existente na Europa. Uma verdadeira cruzada, de natureza espiritual e não militar, tem sido organizada, a respeito do tema.
Ratzinger apresenta o seguinte diagnóstico da situação espiritual na Europa:
“No início do terceiro milênio, e precisamente no âmbito de sua expansão original – Europa – o cristianismo se encontra imerso em uma profunda crise que é consequência da crise de sua pretensão da verdade [...] O cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo filosófico, não nas religiões. Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o cristianismo não se baseia nas imagens e ideias míticas [...] mas faz referência a esse aspecto divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as idéias filosóficas sobre o fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga. A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera [...] Partindo dessa premissa, o cristianismo foi entendido como um triunfo da desmitologização, como um triunfo do conhecimento e, com isso, da verdade; não como uma religião específica que ocupa o lugar de outras” (RATZINGER, Joseph and D'ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? Sao Paulo: Planeta, 2009. pp. 11-13).
Essa é, de fato, a alma do cristianismo. Sem a sua alma, sem a pretensão de verdade, que o anima e define, o cristianismo deixa de ser. Como Ratzinger afirmou, a pretensão especial de verdade liga a fé cristã mais fortemente à filosofia do que às religiões do primeiro século. Essa pretensão está tão presente em Paulo quanto em Agostinho. Em Orígenes como em São Tomás.
O racionalismo cristão não se confunde com o aristotélico ou o kantiano. Aproxima-se mais do racionalismo platônico, embora tampouco lhe seja idêntico. A maior diferença entre o cristianismo e os racionalismos filosóficos é a ligação visceral da ratio cristã com o amor. A soma da ratio e do amor divino, praticamente, equivale ao evangelho. Por isso, as vertentes cristãs que negam ou diminuem qualquer dos dois temas privam-se da própria essência da sua fé.
Desde o princípio, o cristianismo propôs-se como verdade sobre Deus (religio vera), assim como a filosofia pré-socrática propôs-se como indagação da verdade sobre a natureza. O cristianismo não disputou espaço, nem substituiu as religiões do primeiro século, porque a sua proposta era diferente. De acordo com o Papa, a questão e a tarefa fundamentais, que se colocam aos cristãos, nos nossos dias, não são como alterar essa proposta, mas como a preservar.
João Paulo II travou encarniçada batalha política e espiritual contra o Comunismo, sob o qual viveu na Polônia. Ele também condenou o Capitalismo Liberal. Essa cruzada política foi o empreendimento mais bem-sucedido daquele grande Papa. Já Ratzinger, tem apontado o problema do Cristianismo europeu com propriedade, dando a entender que ele será um dos maiores desafios do seu pontificado.
Embora distintas, as lutas dos dois últimos Papas têm em comum o propósito de combater os desvios da Modernidade, em relação ao cristianismo. No entanto, o problema da Modernidade é momentoso demais para se crer que a Igreja Católica ou as forças cristãs, em geral, se encontram próximas de solucioná-lo. Pelo contrário, apesar do triunfo de João Paulo contra o Comunismo e da denúncia dos males do Cristianismo europeu por Bento, até agora os problemas doutrinários à base da crise cristã moderna não foram atacados diretamente. Não creio que o combate ao Socialismo ou à modernização da Igreja devam ser considerados ataques dessa natureza.
O filósofo Flores d’Arcais afirmou, num diálogo com Ratzinger: “O catolicismo acredita que saldou definitivamente as contas com o ateísmo – desde Hume até Freud e Monod – só porque as encerrou vitoriosamente com o comunismo. Uma operação precipitada, baseada em uma série de arriscadas equivalências: dado que o comunismo se declara marxista e dado que Marx, por sua vez, se declara ateu, qualquer ateísmo desmorona junto com o muro dos comunismos” (idem. pp. 94-95).
D’Arcais tem razão. A derrota imposta ao Comunismo foi um triunfo lateral, na guerra contra os desvios introduzidos pela Modernidade. Nem o Socialismo, nem a própria Modernidade são inimigos do cristianismo. Inimigos são os desvios maiores, em relação às bases da fé cristã, que se introduziram em algumas vertentes da Modernidade, a exemplo do neoateísmo.
D’Arcais afirmou que “as objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé foram tão escassamente refutadas” (idem. p. 91) que ainda constituem o horizonte implícito de todo o debate entre crentes e não crentes. Mais uma vez lhe assiste razão, embora a falta de refutação aludida encha os ateus de uma perigosa sensação do triunfo da sua ideologia.
Por essas razões, é preciso que as igrejas e os cristãos deem combate direto ao que d’Arcais denomina “objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé”. Nem João Paulo II, nem Ratzinger, nem qualquer de seus representantes realizaram exatamente isso. Nenhum deles ofereceu contra-argumentos aos arrazoados ateus, sobre aqueles temas.
Pelo contrário, o discurso católico prima, cada vez mais, pela generalidade e vagueza. Trata-se de um discurso religioso, sobre o Deus pessoal, que paradoxalmente perdeu a força pessoal. O discurso da Igreja chega perto de nos apresentar Deus como uma força jurídica, que governa o mundo por preceitos gerais articulados num emaranhado complexo: os preceitos da própria Igreja. Há muito tempo, a mentalidade católica se distanciou do discurso profético e cristão primitivo, que era o de um Deus presente, que fala diretamente aos indivíduos de determinado tempo.
Quando se referia ao Deus de Israel, o Dêutero-Isaías pensava num ser, que se comunica diretamente com o seu povo. O mesmo se aplica a todos os outros profetas bíblicos. O mesmo é verdade, em relação aos apóstolos e aos pais dos primeiros séculos. Todos eles viam Deus como alguém que se relaciona com os seus seguidores, assim como um pai com o filho, uma pessoa com outra que lhe é próxima e um amigo com outro.
Quando a própria Reforma Protestante estourou, era esse o discurso de Lutero. Penso que a perda de tal discurso, pela Igreja Católica, explica parte do sucesso da Reforma. O discurso católico perdeu atrativo, por ter-se tornado vagamente pessoal, quando não impessoal. Um discurso basicamente jurídico.
Esse exato discurso é manejado, pela Igreja, agora, contra a Modernidade. Com inegável sabedoria, mas de modo impessoal, a Igreja aponta, mas não resolve o problema nuclear dos tempos atuais. Ela não refuta as premissas, em que a Modernidade se estriba, ponto por ponto. Portanto, se a Igreja fala por Deus, se o Papa é infalível, quando se pronuncia ex cathedra, temos de concluir que Deus passou a não se importar com a afirmação de erros, que negam frontalmente a fé cristã.
Para citar um exemplo da omissão que aponto, quando era Cardeal e Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger escreveu pessoalmente três capítulos do livro Compreender a Igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). A obra é altamente argumentativa, porém que matéria versa? Versa a “biblicidade” do primado e da sucessão de São Pedro, a unidade da Igreja sob a hierarquia católica, a ideia de que toda reforma deve abster-se de implantar o princípio democrático, a necessidade de um centro para o movimento ecumênico.
Não é difícil verificar que todas essas doutrinas são antimodernas, na medida em que se revelam altamente centralizadoras. Claro que algumas delas, como o primado de Pedro, são até bíblicas, embora não no sentido ampliado que Ratzinger lhes atribui. Porém, por que o Papa ou algum representante oficial da Igreja não refuta o que a Modernidade possui de mais abertamente anticristão: a descrença, o ateísmo e os desvalores que deles promanam?
João Paulo afirmou que a Evolução é um fato. Ratzinger, que nem a micro, nem a macroevolução podem ser negadas. Para ele, o grande erro contemporâneo consiste em erguer toda uma philosophia universalis, a partir desses dados. Pois bem: quais são os principais pontos dessa philosophia universalis? Quais os seus principais sofismas? Como se deve refutá-la? Que outra philosophia universalis devemos opor a ela? A de São Tomás? Essas questões são escassamente tratadas pela Igreja. Ainda que se argumente que o tempo, para a Igreja, se conta em séculos, por que o discurso argumentativo sobre outros pontos é tão imenso, e sobre esses, não?
O cristianismo sempre fez jus à sua autoconsciência de religio vera, combatendo as doutrinas contrárias. Que fizeram Ireneu, Orígenes, Eusébio, Agostinho? Que fez São Tomás? E Lutero? Para continuarem essa notável tradição racional, não basta as igrejas declararem falsa a consciência ateísta, que as esvazia na Europa. Tampouco lhes é suficiente um triunfo de Pirro, contra regimes como o Comunismo, já que não tem o condão de trazer os fieis de volta. É preciso dar combate direto aos erros, que afetam a essência da fé cristã.
Por outro lado, a cruzada de Bento XVI precisa ser entendida à luz do movimento total, que o corpo da Igreja Católica realiza hoje. Esse movimento é quase uma contrarrevolução. É uma reação à modernização eclesiástica iniciada, pelo Concílio Vaticano II. Embora profundamente distinta em espírito, a guinada tradicionalista dos últimos Papas e da Cúria romana não deixa de constituir a versão católica do fundamentalismo muçulmano, que reage à modernização, da cultura islâmica no caso, ocorrida no século XIX.
O combate de Bento XVI aos desvios principais da Modernidade é tímido, porque indireto. Ao mesmo tempo, o combate às contribuições políticas da Modernidade é acirrado. Há uma razão profunda para isso. A cruzada do Papa insere-se num movimento mais amplo de índole radicalmente antimoderna voltado à conservação da essência arcaica (o Papa diria divina) da Igreja Católica.
Tenho muitas concordâncias com a cruzada antiateísta que Bento XVI, do alto da sua iluminação, procura deflagrar. Porém, também nutro desacordos. Ao contrário das correntes reacionárias islâmicas, católicas, e por que não dizer pentecostais, entendo necessária uma modernização muito mais ampla da religião, com a preservação dos seus fundamentos atemporais. A necessidade de renovação não acabou, no século XIX ou com o Concílio Vaticano II. Ela está mais do que nunca presente. É preciso que a religião se renove. Para o fazer, sem perder sua essência, e assim corresponder aos anseios do homem e da mulher atuais, a religião precisa conversar com a Modernidade, com muito maior abertura, do que as suas instituições, até hoje, têm ensaiado fazer.
Por essas graves razões, uma das marcas principais do pontificado de Bento tem sido conclamar os cristãos ao combate ao estado de coisas por ele apontado como existente na Europa. Uma verdadeira cruzada, de natureza espiritual e não militar, tem sido organizada, a respeito do tema.
Ratzinger apresenta o seguinte diagnóstico da situação espiritual na Europa:
“No início do terceiro milênio, e precisamente no âmbito de sua expansão original – Europa – o cristianismo se encontra imerso em uma profunda crise que é consequência da crise de sua pretensão da verdade [...] O cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo filosófico, não nas religiões. Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o cristianismo não se baseia nas imagens e ideias míticas [...] mas faz referência a esse aspecto divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as idéias filosóficas sobre o fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga. A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera [...] Partindo dessa premissa, o cristianismo foi entendido como um triunfo da desmitologização, como um triunfo do conhecimento e, com isso, da verdade; não como uma religião específica que ocupa o lugar de outras” (RATZINGER, Joseph and D'ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? Sao Paulo: Planeta, 2009. pp. 11-13).
Essa é, de fato, a alma do cristianismo. Sem a sua alma, sem a pretensão de verdade, que o anima e define, o cristianismo deixa de ser. Como Ratzinger afirmou, a pretensão especial de verdade liga a fé cristã mais fortemente à filosofia do que às religiões do primeiro século. Essa pretensão está tão presente em Paulo quanto em Agostinho. Em Orígenes como em São Tomás.
O racionalismo cristão não se confunde com o aristotélico ou o kantiano. Aproxima-se mais do racionalismo platônico, embora tampouco lhe seja idêntico. A maior diferença entre o cristianismo e os racionalismos filosóficos é a ligação visceral da ratio cristã com o amor. A soma da ratio e do amor divino, praticamente, equivale ao evangelho. Por isso, as vertentes cristãs que negam ou diminuem qualquer dos dois temas privam-se da própria essência da sua fé.
Desde o princípio, o cristianismo propôs-se como verdade sobre Deus (religio vera), assim como a filosofia pré-socrática propôs-se como indagação da verdade sobre a natureza. O cristianismo não disputou espaço, nem substituiu as religiões do primeiro século, porque a sua proposta era diferente. De acordo com o Papa, a questão e a tarefa fundamentais, que se colocam aos cristãos, nos nossos dias, não são como alterar essa proposta, mas como a preservar.
João Paulo II travou encarniçada batalha política e espiritual contra o Comunismo, sob o qual viveu na Polônia. Ele também condenou o Capitalismo Liberal. Essa cruzada política foi o empreendimento mais bem-sucedido daquele grande Papa. Já Ratzinger, tem apontado o problema do Cristianismo europeu com propriedade, dando a entender que ele será um dos maiores desafios do seu pontificado.
Embora distintas, as lutas dos dois últimos Papas têm em comum o propósito de combater os desvios da Modernidade, em relação ao cristianismo. No entanto, o problema da Modernidade é momentoso demais para se crer que a Igreja Católica ou as forças cristãs, em geral, se encontram próximas de solucioná-lo. Pelo contrário, apesar do triunfo de João Paulo contra o Comunismo e da denúncia dos males do Cristianismo europeu por Bento, até agora os problemas doutrinários à base da crise cristã moderna não foram atacados diretamente. Não creio que o combate ao Socialismo ou à modernização da Igreja devam ser considerados ataques dessa natureza.
O filósofo Flores d’Arcais afirmou, num diálogo com Ratzinger: “O catolicismo acredita que saldou definitivamente as contas com o ateísmo – desde Hume até Freud e Monod – só porque as encerrou vitoriosamente com o comunismo. Uma operação precipitada, baseada em uma série de arriscadas equivalências: dado que o comunismo se declara marxista e dado que Marx, por sua vez, se declara ateu, qualquer ateísmo desmorona junto com o muro dos comunismos” (idem. pp. 94-95).
D’Arcais tem razão. A derrota imposta ao Comunismo foi um triunfo lateral, na guerra contra os desvios introduzidos pela Modernidade. Nem o Socialismo, nem a própria Modernidade são inimigos do cristianismo. Inimigos são os desvios maiores, em relação às bases da fé cristã, que se introduziram em algumas vertentes da Modernidade, a exemplo do neoateísmo.
D’Arcais afirmou que “as objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé foram tão escassamente refutadas” (idem. p. 91) que ainda constituem o horizonte implícito de todo o debate entre crentes e não crentes. Mais uma vez lhe assiste razão, embora a falta de refutação aludida encha os ateus de uma perigosa sensação do triunfo da sua ideologia.
Por essas razões, é preciso que as igrejas e os cristãos deem combate direto ao que d’Arcais denomina “objeções da tradição cética e ateia contra as provas racionais das verdades da fé”. Nem João Paulo II, nem Ratzinger, nem qualquer de seus representantes realizaram exatamente isso. Nenhum deles ofereceu contra-argumentos aos arrazoados ateus, sobre aqueles temas.
Pelo contrário, o discurso católico prima, cada vez mais, pela generalidade e vagueza. Trata-se de um discurso religioso, sobre o Deus pessoal, que paradoxalmente perdeu a força pessoal. O discurso da Igreja chega perto de nos apresentar Deus como uma força jurídica, que governa o mundo por preceitos gerais articulados num emaranhado complexo: os preceitos da própria Igreja. Há muito tempo, a mentalidade católica se distanciou do discurso profético e cristão primitivo, que era o de um Deus presente, que fala diretamente aos indivíduos de determinado tempo.
Quando se referia ao Deus de Israel, o Dêutero-Isaías pensava num ser, que se comunica diretamente com o seu povo. O mesmo se aplica a todos os outros profetas bíblicos. O mesmo é verdade, em relação aos apóstolos e aos pais dos primeiros séculos. Todos eles viam Deus como alguém que se relaciona com os seus seguidores, assim como um pai com o filho, uma pessoa com outra que lhe é próxima e um amigo com outro.
Quando a própria Reforma Protestante estourou, era esse o discurso de Lutero. Penso que a perda de tal discurso, pela Igreja Católica, explica parte do sucesso da Reforma. O discurso católico perdeu atrativo, por ter-se tornado vagamente pessoal, quando não impessoal. Um discurso basicamente jurídico.
Esse exato discurso é manejado, pela Igreja, agora, contra a Modernidade. Com inegável sabedoria, mas de modo impessoal, a Igreja aponta, mas não resolve o problema nuclear dos tempos atuais. Ela não refuta as premissas, em que a Modernidade se estriba, ponto por ponto. Portanto, se a Igreja fala por Deus, se o Papa é infalível, quando se pronuncia ex cathedra, temos de concluir que Deus passou a não se importar com a afirmação de erros, que negam frontalmente a fé cristã.
Para citar um exemplo da omissão que aponto, quando era Cardeal e Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger escreveu pessoalmente três capítulos do livro Compreender a Igreja hoje (RATZINGER, Joseph. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005). A obra é altamente argumentativa, porém que matéria versa? Versa a “biblicidade” do primado e da sucessão de São Pedro, a unidade da Igreja sob a hierarquia católica, a ideia de que toda reforma deve abster-se de implantar o princípio democrático, a necessidade de um centro para o movimento ecumênico.
Não é difícil verificar que todas essas doutrinas são antimodernas, na medida em que se revelam altamente centralizadoras. Claro que algumas delas, como o primado de Pedro, são até bíblicas, embora não no sentido ampliado que Ratzinger lhes atribui. Porém, por que o Papa ou algum representante oficial da Igreja não refuta o que a Modernidade possui de mais abertamente anticristão: a descrença, o ateísmo e os desvalores que deles promanam?
João Paulo afirmou que a Evolução é um fato. Ratzinger, que nem a micro, nem a macroevolução podem ser negadas. Para ele, o grande erro contemporâneo consiste em erguer toda uma philosophia universalis, a partir desses dados. Pois bem: quais são os principais pontos dessa philosophia universalis? Quais os seus principais sofismas? Como se deve refutá-la? Que outra philosophia universalis devemos opor a ela? A de São Tomás? Essas questões são escassamente tratadas pela Igreja. Ainda que se argumente que o tempo, para a Igreja, se conta em séculos, por que o discurso argumentativo sobre outros pontos é tão imenso, e sobre esses, não?
O cristianismo sempre fez jus à sua autoconsciência de religio vera, combatendo as doutrinas contrárias. Que fizeram Ireneu, Orígenes, Eusébio, Agostinho? Que fez São Tomás? E Lutero? Para continuarem essa notável tradição racional, não basta as igrejas declararem falsa a consciência ateísta, que as esvazia na Europa. Tampouco lhes é suficiente um triunfo de Pirro, contra regimes como o Comunismo, já que não tem o condão de trazer os fieis de volta. É preciso dar combate direto aos erros, que afetam a essência da fé cristã.
Por outro lado, a cruzada de Bento XVI precisa ser entendida à luz do movimento total, que o corpo da Igreja Católica realiza hoje. Esse movimento é quase uma contrarrevolução. É uma reação à modernização eclesiástica iniciada, pelo Concílio Vaticano II. Embora profundamente distinta em espírito, a guinada tradicionalista dos últimos Papas e da Cúria romana não deixa de constituir a versão católica do fundamentalismo muçulmano, que reage à modernização, da cultura islâmica no caso, ocorrida no século XIX.
O combate de Bento XVI aos desvios principais da Modernidade é tímido, porque indireto. Ao mesmo tempo, o combate às contribuições políticas da Modernidade é acirrado. Há uma razão profunda para isso. A cruzada do Papa insere-se num movimento mais amplo de índole radicalmente antimoderna voltado à conservação da essência arcaica (o Papa diria divina) da Igreja Católica.
Tenho muitas concordâncias com a cruzada antiateísta que Bento XVI, do alto da sua iluminação, procura deflagrar. Porém, também nutro desacordos. Ao contrário das correntes reacionárias islâmicas, católicas, e por que não dizer pentecostais, entendo necessária uma modernização muito mais ampla da religião, com a preservação dos seus fundamentos atemporais. A necessidade de renovação não acabou, no século XIX ou com o Concílio Vaticano II. Ela está mais do que nunca presente. É preciso que a religião se renove. Para o fazer, sem perder sua essência, e assim corresponder aos anseios do homem e da mulher atuais, a religião precisa conversar com a Modernidade, com muito maior abertura, do que as suas instituições, até hoje, têm ensaiado fazer.
Jesus, por Bento XVI (4): A Última Semana
O segundo livro de Bento XVI sobre Jesus (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011) reforça o viés delineado na obra anterior, lançada em 2006, que consiste em procurar os principais traços teológicos de Jesus nos Evangelhos, sem aprofundar a análise das questões levantadas pela Crítica Histórico-Literária a respeito dele. A opção de Ratzinger, que coincide com a da Igreja, consiste em apresentar esse Cristo teológico, o Cristo da tradição bimilenar, de modo não alienado daquela Crítica, mas sem a abordar extensamente. Com isso, uma abordagem nova e problemática da figura de Jesus Cristo é claramente inserida na atual discussão histórica e teológica.
Para entender melhor o sentido da reflexão do Papa sobre Jesus, é útil recordar como o pensamento teológico formou-se, no seio do cristianismo. Os autores cristãos dos primeiros séculos enfrentaram o dilema consistente em recepcionar ou rejeitar as categorias filosóficas gregas, isto é, em tratar filosoficamente os temas teológicos ou considerar a herança filosófica inútil para os fins que buscavam.
Uma das formas de resolução do dilema consistiu em rejeitar totalmente a herança filosófica antiga. Porém, com o tempo, a tendência de recepcionar a Filosofia prevaleceu. Para os representantes dessa tendência, entre os quais se destaca Santo Agostinho, as conclusões teológicas não deviam ser determinadas pela Filosofia, mas podiam ser alcançadas com auxílio dela. Assim se formou a tendência medieval de tratar a Filosofia como ancilla theologiae (escrava da Teologia).
Bento XVI trata a Filosofia dessa segunda maneira. É nítida a sua vocação para problematizar com conceitos e categorias filosóficas. Na página 127 do seu livro, lemos: “A figura de Jesus [...] é qualificada com a expressão ‘pró-existência’, um existir não para si mesmo, mas para os outros; e isso não apenas como uma dimensão qualquer desta existência, mas como aquilo que constitui o seu aspecto mais íntimo e abrangente. O seu ser como tal é um ser para”. Não é preciso afirmar que esse modo de expressão manifesta o instrumental filosófico que Ratzinger coloca a serviço da sua reflexão teológica.
Porém, ao mesmo tempo em que desenvolve um trato específico com a Filosofia, o texto de Bento revela consciência profunda da função, pela qual a Teologia se distingue e até se separa daquela disciplina clássica. Enquanto a Filosofia é uma arte ou ciência crítica das concepções do senso comum, a Teologia é uma reflexão sobre o questionamento que se faz crise.
Ao apontar essa espécie de concepção em Ratzinger, sem dúvida o interpreto. Considero que a maneira de pensar do Papa depende, fundamentalmente, da sua concepção da Filosofia, da Teologia e da relação entre ambas. Nessa concepção, a Filosofia é tratada como um canteiro: seu papel é acolher e oferecer condições ideais para a germinação das sementes da crítica do senso comum. O trabalho do filósofo não é tanto oferecer respostas quanto aprimorar, incessantemente, as perguntas que cria, sobre essas concepções. Já a Teologia pressupõe a Filosofia, pois trabalha com questionamentos gerados por ela e ainda mais pela religião. Não certamente com todos aqueles questionamentos, mas com os que envolvem a divindade e têm o potencial de desencadear graves crises.
A Teologia que não utiliza as sementes do questionamento filosófico, que não as planta na sua própria seara e não colhe os frutos das crises que vem a produzir, permanece subdesenvolvida. Não que não seja possível se desenvolver uma Teologia apenas a partir da religião. Mas a Teologia que se serve, ao mesmo tempo, da Filosofia encerra um potencial de descoberta muito maior.
Quando se aninham na consciência sob forma de angústia, portanto, certas questões religiosas e filosóficas produzem crises. Para tratar dessas crises é que a Teologia existe. Em outras palavras, enquanto permanece um perguntar e responder sistemático, sobre as concepções do senso comum, a reflexão humana detém-se no campo da Filosofia mas, quando se transforma em crise, pela experiência da angústia, ela passa ao terreno teológico. A passagem ao teológico pode ocorrer, também, a partir da ciência, mas essa não é a regra, pois a própria ciência costuma nascer de um questionamento filosófico prévio. Não faz sentido pensar, por exemplo, que o imenso trabalho crítico exercido sobre os Evangelhos possa ter vindo à existência sem um prévio questionamento filosófico da história evangélica.
Não sei até que ponto os teólogos concordam com essas afirmações, mas não posso deixar de invocar os escritos deles como prova do que declaro. Principalmente os escritos de Ratzinger. Faço questão de afirmá-lo, pois é em relação a uma crise (a da compreensão de Jesus) que os livros ora comentados de Ratzinger revelam as suas deficiências. A compreensão tradicional de Jesus foi desintegrada em mil pedaços, pela Crítica Histórica e Literária. Com isso, um novo retrato do doce Mestre da Galileia passou a ser possível somente como mosaico, como colagem dos mil fragmentos. Essa é a crise da compreensão de Jesus, que há dois séculos atravessamos. Não cabe à Teologia ignorá-la ou evitá-la.
No entanto, os livros de Ratzinger sobre Jesus evitam tratar da crise. Todo o tempo, eles fazem referência à Crítica sem a enfrentarem. Citam a crise de compreensão de Jesus, mas não a encaram. Isso causa a impressão de que Ratzinger se coloca de lado para a crise. Ele não está de costas para ela, pois a aborda o tempo todo e tem consciência dela. Tampouco se pode propor que está de frente para a crise, já que não a enfrenta. Essa é talvez a deficiência maior dos seus livros.
Pode-se escapar ao problema, afirmando que o Papa tem o direito de definir como desenvolver os seus textos, como todo escritor o tem. Esse argumento com base na liberdade poderia ser aceito, se a opção de Bento não fosse contrária à índole da Teologia como tratamento de crises religiosas e filosóficas e se ela não divergisse da melhor tradição cristã. Que fez Santo Agostinho, a não ser enfrentar as crises da sua época? Tanto o conflito pelagiano como o donatista, para não falar de outros, foram por ele tratados. Ao fazê-lo, Agostinho comportou-se como teólogo e contribuiu para a resolução das crises. Os historiadores atestam que, após a sua intervenção, as controvérsias pelagiana e donatista serenaram quase completamente.
Na Sagrada Escritura, a passagem do questionamento à crise também costuma ser enfrentada. Caso típico é o dos textos messiânicos de vários Salmos e livros proféticos interpretados, no Novo Testamento, como referências a Jesus de Nazaré. O Evangelho de Mateus foi escrito para assentar essa exata interpretação profética. A pregação dos apóstolos não teve outro fim. E Hebreus faz uma longa defesa da interpretação cristã das profecias. É como se a compreensão dos textos messiânicos do Antigo Testamento tivesse entrado em crise, quando os judeus perceberam que o tempo para que o Messias fosse morto (Dn 9:26) se cumprira. Os apóstolos e os escritores do Novo Testamento entenderam essa crise, enfrentaram-na e a resolveram, pela demonstração de que as profecias cumpriram-se na vida e na morte de Jesus de Nazaré.
Ratzinger não trata da mesma maneira o problema da figura real de Jesus. Ele não enfrenta a crise desencadeada pela Crítica Histórica e Literária, nem se move nessa direção. Pelo contrário, em diversas passagens, ele desqualifica a atitude crítica, como ao afirmar: “Não [devemos] contrapor ao Novo Testamento de modo crítico-racional a nossa presunção, mas aprender e deixar-nos guiar [...] não falsear os textos segundo os nossos conceitos” (ob. cit. p. 115).
Para enfrentar realmente a crise, teria sido necessário ao menos indicar como a historicidade do Jesus apresentado e adorado pela Igreja Católica pode ser demonstrada. Ratzinger não o faz, como os líderes cristãos em geral não o fazem. Pelo contrário, em quase todas as igrejas, há um líder que adota posição semelhante à do Papa sobre o Jesus histórico. Um líder que sobe ao púlpito todas as semanas para ignorar, solenemente, os graves problemas que pendem sobre a interpretação dos Evangelhos. Esse discurso alienado e sem fim se tornou comum hoje. No entanto, no caso do Papa, que tem à disposição quase tudo o que já se escreveu sobre o tema, era de se esperar algo diferente.
Jesus de Nazaré, de Ratzinger, frustra essa expectativa, por não pronunciar uma palavra efetiva sobre a crise de compreensão do Jesus histórico, apesar de ter escrito, no livro anterior, que "quis tentar representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico" (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré - do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17). Não digo que não o apresenta, mas que o faz de um modo que pressupõe demais o dogma.
Com isso, o livro emite um sinal muito claro sobre a natureza do tempo presente, em que a Teologia ignora a crise, portanto agoniza e morre. A falta de uma palavra teológica sobre a incompreensão que se desenvolveu e se transformou em crise não pode ser suprida pelas manifestações dos historiadores sobre Jesus, já que o discurso destes é diferente do teológico e não pode cumprir a função dele. A palavra dos filósofos tampouco o pode. Nesse particular, os escritores patrísticos tinham razão: à Filosofia compete o perguntar e o criticar; a resposta à pergunta há de ser oferecida pela Teologia. Tendo funções distintas, uma não pode substituir a outra.
Vivemos como se a figura de Jesus se houvesse desintegrado (ou não, pouco importa), mas tudo seguisse perfeitamente bem. Como se pudéssemos continuar a sustentar o que sustentamos, durante séculos, exatamente da mesma maneira. Enfim, como se fingir ou sonhar bastassem para crer. Que é isso, a não ser fuga, inépcia ou hipocrisia? Jesus se apresentou como a verdade: como a solução de todas as dúvidas, a correção de todos os erros e a solução de todas as crises de compreensão. É possível ao cristão agir como se as dúvidas, os erros e a crise não existissem? Como se estivesse no mundo, mas não tivesse o mundo por contexto?
Para entender melhor o sentido da reflexão do Papa sobre Jesus, é útil recordar como o pensamento teológico formou-se, no seio do cristianismo. Os autores cristãos dos primeiros séculos enfrentaram o dilema consistente em recepcionar ou rejeitar as categorias filosóficas gregas, isto é, em tratar filosoficamente os temas teológicos ou considerar a herança filosófica inútil para os fins que buscavam.
Uma das formas de resolução do dilema consistiu em rejeitar totalmente a herança filosófica antiga. Porém, com o tempo, a tendência de recepcionar a Filosofia prevaleceu. Para os representantes dessa tendência, entre os quais se destaca Santo Agostinho, as conclusões teológicas não deviam ser determinadas pela Filosofia, mas podiam ser alcançadas com auxílio dela. Assim se formou a tendência medieval de tratar a Filosofia como ancilla theologiae (escrava da Teologia).
Bento XVI trata a Filosofia dessa segunda maneira. É nítida a sua vocação para problematizar com conceitos e categorias filosóficas. Na página 127 do seu livro, lemos: “A figura de Jesus [...] é qualificada com a expressão ‘pró-existência’, um existir não para si mesmo, mas para os outros; e isso não apenas como uma dimensão qualquer desta existência, mas como aquilo que constitui o seu aspecto mais íntimo e abrangente. O seu ser como tal é um ser para”. Não é preciso afirmar que esse modo de expressão manifesta o instrumental filosófico que Ratzinger coloca a serviço da sua reflexão teológica.
Porém, ao mesmo tempo em que desenvolve um trato específico com a Filosofia, o texto de Bento revela consciência profunda da função, pela qual a Teologia se distingue e até se separa daquela disciplina clássica. Enquanto a Filosofia é uma arte ou ciência crítica das concepções do senso comum, a Teologia é uma reflexão sobre o questionamento que se faz crise.
Ao apontar essa espécie de concepção em Ratzinger, sem dúvida o interpreto. Considero que a maneira de pensar do Papa depende, fundamentalmente, da sua concepção da Filosofia, da Teologia e da relação entre ambas. Nessa concepção, a Filosofia é tratada como um canteiro: seu papel é acolher e oferecer condições ideais para a germinação das sementes da crítica do senso comum. O trabalho do filósofo não é tanto oferecer respostas quanto aprimorar, incessantemente, as perguntas que cria, sobre essas concepções. Já a Teologia pressupõe a Filosofia, pois trabalha com questionamentos gerados por ela e ainda mais pela religião. Não certamente com todos aqueles questionamentos, mas com os que envolvem a divindade e têm o potencial de desencadear graves crises.
A Teologia que não utiliza as sementes do questionamento filosófico, que não as planta na sua própria seara e não colhe os frutos das crises que vem a produzir, permanece subdesenvolvida. Não que não seja possível se desenvolver uma Teologia apenas a partir da religião. Mas a Teologia que se serve, ao mesmo tempo, da Filosofia encerra um potencial de descoberta muito maior.
Quando se aninham na consciência sob forma de angústia, portanto, certas questões religiosas e filosóficas produzem crises. Para tratar dessas crises é que a Teologia existe. Em outras palavras, enquanto permanece um perguntar e responder sistemático, sobre as concepções do senso comum, a reflexão humana detém-se no campo da Filosofia mas, quando se transforma em crise, pela experiência da angústia, ela passa ao terreno teológico. A passagem ao teológico pode ocorrer, também, a partir da ciência, mas essa não é a regra, pois a própria ciência costuma nascer de um questionamento filosófico prévio. Não faz sentido pensar, por exemplo, que o imenso trabalho crítico exercido sobre os Evangelhos possa ter vindo à existência sem um prévio questionamento filosófico da história evangélica.
Não sei até que ponto os teólogos concordam com essas afirmações, mas não posso deixar de invocar os escritos deles como prova do que declaro. Principalmente os escritos de Ratzinger. Faço questão de afirmá-lo, pois é em relação a uma crise (a da compreensão de Jesus) que os livros ora comentados de Ratzinger revelam as suas deficiências. A compreensão tradicional de Jesus foi desintegrada em mil pedaços, pela Crítica Histórica e Literária. Com isso, um novo retrato do doce Mestre da Galileia passou a ser possível somente como mosaico, como colagem dos mil fragmentos. Essa é a crise da compreensão de Jesus, que há dois séculos atravessamos. Não cabe à Teologia ignorá-la ou evitá-la.
No entanto, os livros de Ratzinger sobre Jesus evitam tratar da crise. Todo o tempo, eles fazem referência à Crítica sem a enfrentarem. Citam a crise de compreensão de Jesus, mas não a encaram. Isso causa a impressão de que Ratzinger se coloca de lado para a crise. Ele não está de costas para ela, pois a aborda o tempo todo e tem consciência dela. Tampouco se pode propor que está de frente para a crise, já que não a enfrenta. Essa é talvez a deficiência maior dos seus livros.
Pode-se escapar ao problema, afirmando que o Papa tem o direito de definir como desenvolver os seus textos, como todo escritor o tem. Esse argumento com base na liberdade poderia ser aceito, se a opção de Bento não fosse contrária à índole da Teologia como tratamento de crises religiosas e filosóficas e se ela não divergisse da melhor tradição cristã. Que fez Santo Agostinho, a não ser enfrentar as crises da sua época? Tanto o conflito pelagiano como o donatista, para não falar de outros, foram por ele tratados. Ao fazê-lo, Agostinho comportou-se como teólogo e contribuiu para a resolução das crises. Os historiadores atestam que, após a sua intervenção, as controvérsias pelagiana e donatista serenaram quase completamente.
Na Sagrada Escritura, a passagem do questionamento à crise também costuma ser enfrentada. Caso típico é o dos textos messiânicos de vários Salmos e livros proféticos interpretados, no Novo Testamento, como referências a Jesus de Nazaré. O Evangelho de Mateus foi escrito para assentar essa exata interpretação profética. A pregação dos apóstolos não teve outro fim. E Hebreus faz uma longa defesa da interpretação cristã das profecias. É como se a compreensão dos textos messiânicos do Antigo Testamento tivesse entrado em crise, quando os judeus perceberam que o tempo para que o Messias fosse morto (Dn 9:26) se cumprira. Os apóstolos e os escritores do Novo Testamento entenderam essa crise, enfrentaram-na e a resolveram, pela demonstração de que as profecias cumpriram-se na vida e na morte de Jesus de Nazaré.
Ratzinger não trata da mesma maneira o problema da figura real de Jesus. Ele não enfrenta a crise desencadeada pela Crítica Histórica e Literária, nem se move nessa direção. Pelo contrário, em diversas passagens, ele desqualifica a atitude crítica, como ao afirmar: “Não [devemos] contrapor ao Novo Testamento de modo crítico-racional a nossa presunção, mas aprender e deixar-nos guiar [...] não falsear os textos segundo os nossos conceitos” (ob. cit. p. 115).
Para enfrentar realmente a crise, teria sido necessário ao menos indicar como a historicidade do Jesus apresentado e adorado pela Igreja Católica pode ser demonstrada. Ratzinger não o faz, como os líderes cristãos em geral não o fazem. Pelo contrário, em quase todas as igrejas, há um líder que adota posição semelhante à do Papa sobre o Jesus histórico. Um líder que sobe ao púlpito todas as semanas para ignorar, solenemente, os graves problemas que pendem sobre a interpretação dos Evangelhos. Esse discurso alienado e sem fim se tornou comum hoje. No entanto, no caso do Papa, que tem à disposição quase tudo o que já se escreveu sobre o tema, era de se esperar algo diferente.
Jesus de Nazaré, de Ratzinger, frustra essa expectativa, por não pronunciar uma palavra efetiva sobre a crise de compreensão do Jesus histórico, apesar de ter escrito, no livro anterior, que "quis tentar representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico" (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré - do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17). Não digo que não o apresenta, mas que o faz de um modo que pressupõe demais o dogma.
Com isso, o livro emite um sinal muito claro sobre a natureza do tempo presente, em que a Teologia ignora a crise, portanto agoniza e morre. A falta de uma palavra teológica sobre a incompreensão que se desenvolveu e se transformou em crise não pode ser suprida pelas manifestações dos historiadores sobre Jesus, já que o discurso destes é diferente do teológico e não pode cumprir a função dele. A palavra dos filósofos tampouco o pode. Nesse particular, os escritores patrísticos tinham razão: à Filosofia compete o perguntar e o criticar; a resposta à pergunta há de ser oferecida pela Teologia. Tendo funções distintas, uma não pode substituir a outra.
Vivemos como se a figura de Jesus se houvesse desintegrado (ou não, pouco importa), mas tudo seguisse perfeitamente bem. Como se pudéssemos continuar a sustentar o que sustentamos, durante séculos, exatamente da mesma maneira. Enfim, como se fingir ou sonhar bastassem para crer. Que é isso, a não ser fuga, inépcia ou hipocrisia? Jesus se apresentou como a verdade: como a solução de todas as dúvidas, a correção de todos os erros e a solução de todas as crises de compreensão. É possível ao cristão agir como se as dúvidas, os erros e a crise não existissem? Como se estivesse no mundo, mas não tivesse o mundo por contexto?
sexta-feira, 4 de janeiro de 2013
Jesus, por Bento XVI (5): O Que Temos Visto e as Nossas Mãos Apalparam
Os livros do Papa sobre Jesus, lançados entre 2006 e 2012, se inserem num intenso debate que é urgente tratarmos como busca da verdade sobre Jesus. Porém, não de uma verdade teológica, mas da verdade no sentido original da palavra no idioma grego.
Sabemos que os quatro Evangelhos e o resto do Novo Testamento, com exceção de uma ou outra palavra, foram escritos em grego. Nesse idioma, o termo verdade (aletheia) significa desvelamento. Indica o ato de desencobrir algo que havia permanecido oculto. A melhor elucidação do sentido original da palavra a que pude ter acesso não foi fornecida por um teólogo, mas por Martin Heiddegger, no seu clássico Ser e tempo (15ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. Cap. 2). Embora não faça referência à variedade de grego (denominada koiné) em que o Novo Testamento foi escrito, boa parte do que Heiddegger ensinou sobre o termo aletheia permanece válido para os escritos dos apóstolos e seus seguidores, por duas razões: porque se baseia no sentido etimológico da palavra, que é o mesmo no grego clássico e no koiné, e porque o uso do Novo Testamento confirma amplamente os ensinamentos de Heiddegger.
Vou direto ao ponto que me parece principal, nesses ensinamentos. A crítica que Heiddegger delineia contra a maior parte das interpretações filosóficas da verdade baseia-se na vagueza atribuída à palavra. Não que os autores daquelas interpretações não saibam que aletheia significa desvelamento ou desencobrimento, mas eles pensam que a palavra se refere a qualquer ato de revelar. Na Filosofia, não são incomuns referências ao desvelamento de noções abstratas como se fossem aletheia. Heiddegger mostra que, no interior da cultura grega, que sempre supôs a realidade material, aletheia indica a revelação de algo físico e sensível. Nesse e só nesse sentido, é que a palavra pode e deve ser traduzida realidade.
Portanto, aletheia é, sim, realidade, como vários teólogos ensinam, mas não uma realidade mística, etérea, impalpável, como também costumam sugerir. É antes a realidade física, até mesmo material, se me for permitido lembrá-lo.
Isso é de extrema importância para a compreensão da verdade cristã. A começar pelo fato de que, no Novo Testamento, a verdade é considerada algo recém-revelado. Isso porque, se não houvesse estado encoberta e sido recém-revelada, não se poderia chamar aletheia. Nesse sentido, o Evangelho de João afirma que a graça e a verdade [aletheia] vieram por meio de Jesus Cristo (Jo 1:17). E nesse mesmo sentido, a 1ª Epístola de João interpreta a vinda da verdade como “o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida” (1 Jo 1:1).
A verdade só veio, foi vista, ouvida e apalpada, porque antes havia estado encoberta e porque a sua revelação foi de caráter material e sensível. Se não tivesse sido assim, nenhuma verdade teria sido revelada. Ainda estaríamos sem conhecer a verdade sobre Deus.
Por isso, em Romanos 1, a verdade de Deus, que os gentios rejeitaram, é descrita como a que se manifesta e até mesmo se pode ver na natureza. De novo é preciso lembrar: se assim não fora, não se trataria da verdade. Ou Deus se mostra na matéria, ou não se mostra de maneira alguma. Revelação abstrata, revelação do que Platão chamou mundo das ideias ou acontece por uma projeção na matéria, até mesmo por uma encarnação, ou não é revelação de verdade alguma.
Por isso, já a concepção grega de verdade exigia a encarnação de Deus. Ao menos o exigia, se algum passo havia de ser dado para além da revelação de Deus na natureza. Ou Deus ingressava na matéria, por assim dizer, ou a sua verdade não poderia ser revelada aos homens além do ponto em que já estava refletida na natureza. Não é preciso afirmar que, nas páginas do Novo Testamento, essa e somente essa é a verdade que veio por intermédio de Jesus Cristo.
As duas Epístolas de Pedro são hoje consideradas não autênticas. E de fato não foram escritas pelo próprio Pedro. No entanto, esse está longe de ser o ponto mais importante a respeito delas. O mais importante, o decisivo, é o testemunho que as epístolas transmitem sobre Jesus, que deu a conhecer Deus aos homens no sentido mais pleno. Por isso, o autor sagrado afirma: “Não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo segundo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade [...] quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo” (2 Pe 1:16-18).
A desgraça do tempo atual é haver abalroado essa verdade fundante e fundamental. De que adianta saber se Pedro escreveu ou não as cartas que lhe são atribuídas, se nos tornamos incapazes de compreender que a revelação física de Deus, se assim for possível dizer, é o ponto mais fundamental de todos sobre Jesus? Se abalroamos essa exata revelação, ao cancelarmos os testemunhos que possuímos dela, sem colocar outros de mesmo caráter em seu lugar? E se ainda nos tornamos capazes de extrair do vácuo de testemunhos físicos uma conclusão negativa?
Um testemunho físico só pode ser substituído por outro, jamais por um testemunho intelectual, abstrato, indireto ou não físico, sob pena de a verdade contida no primeiro se perder por inteiro. E o testemunho físico que temos sobre Jesus, com perdão da franqueza total, não está escondido em entrelinhas do Novo Testamento, onde o Papa laboriosamente o busca. A entrelinha bíblica só dá testemunho da verdade, quando nos fala com tanta clareza quanto as próprias linhas. Não é o que acontece com as entrelinhas em que o Jesus eclesiástico se oculta, de onde Ratzinger o retira para a luz. Essas entrelinhas são densas, cerradas, obscuras, como vimos na postagem anterior. E se o são, não podem conter revelação ou desvelamento.
O Jesus eclesiástico, que Bento nos apresenta, não é o Jesus real, embora o contenha, na medida em que aceita o testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus, como o Novo Testamento o revela. Bento submete esse Jesus real a uma intervenção em que insere no seu interior e entretece com ele o que extrai das entrelinhas do Novo Testamento. E o Jesus da Crítica tampouco é o histórico, pois, embora se erga de entrelinhas mais claras que as de Bento, ele o faz de modo contrário ao testemunho físico sobre Jesus.
Esse testemunho é unicamente o dos apóstolos. Se compararmos 2ª de Pedro 1:16-18 com os discursos de Pedro registrados no Livro de Atos, perceberemos que não se contradizem. Pelo contrário, moldam-se um ao outro. E se cotejarmos os dois com o Jesus de Marcos, que a tradição mais próxima da verdade física sobre o livro afirma conter a memória de Pedro, a coincidência será ainda mais ressaltada. Então, por que cancelar o testemunho dos três versículos de 2ª de Pedro? Apenas porque Pedro não é o seu autor? Porque a verdade física que testemunhamos, dois milênios depois, nos informa que doentes não são curados por orações e mortos não ressuscitam? Acaso a verdade física de um tempo, transmitida por suas testemunhas, pode cancelar a de outro tempo e que foi transmitida por outras testemunhas?
Certamente não, embora uma verdade possa vir a ser enfraquecida, pela descoberta de contradição nos testemunhos a respeito dela. Mas não é esse o caso da verdade física sobre Jesus. A massa dos testemunhos sobre ela não se contradiz. O que a Crítica apurou de contradições e que merece mesmo esse nome insere-se nos detalhes, pode-se dizer até nas entrelinhas do texto bíblico. Nos pontos centrais, como é o caso de 2ª de Pedro 1:16-18, os testemunhos são sempre concordantes.
Mas há mais um ponto que se soma ao testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus e que eles próprios tomaram em consideração. Trata-se das profecias messiânicas do Antigo Testamento. Os apóstolos e seus seguidores compararam o seu próprio testemunho sobre Jesus com aquelas profecias e concluíram que havia uma forte convergência entre eles. Por exemplo, o autor de Mateus comparou os dados de Marcos, que adotou como fonte ao compor o seu próprio Evangelho, com as profecias. E concluiu que os atos narrados em Marcos cumpriram uma série delas.
Porém, um dos textos mais claros sobre o Messias, em todo o Antigo Testamento, o oráculo de Daniel 9, não foi citado em Mateus ou em qualquer outra parte do Novo Testamento. Penso que a omissão não se explica pelo não reconhecimento do caráter messiânico da profecia por parte dos autores neotestamentários. Ao contrário, o oráculo parece ter sido omitido por ser messiânico demais. Além de se referir ao Messias literalmente, ele chega a datar a sua vinda. Portanto, aproxima-se perigosamente de escancarar quem vem a ser tal Messias, o que, no contexto do primeiro século, implicava conflitos e até a possibilidade de derramamento de sangue.
Basta saber fazer contas para entender que a profecia em questão aponta a vinda do Messias no século I d. C. Daniel 9:25 prediz: “Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém até ao Ungido [em hebraico, Messias], o Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas”.
Três ordens de autoridades são conhecidas, para se empreender a restauração do Templo judeu e da cidade de Jerusalém: a de Ciro, a de Dario e a de Artaxerxes. As duas primeiras estão transcritas em Esdras 1:2-4 e 6:6-12. Aludem apenas à edificação da “Casa do Senhor”, não à cidade de Jerusalém. Apenas a terceira ordem, registrada em Neemias 2:1,3,5-6,8 e proferida em 445 a. C., foi para restaurar Jerusalém, como requer a profecia. Portanto, ela é o ponto de partida dos 483 anos da profecia.
Não são muitos os candidatos a Messias disponíveis 483 anos depois de 445 a. C. Robert Anderson provou que, descontadas as diferenças provenientes de o ano judeu ser de 360 dias (vide Dn 7:25; 9:27; Ap 11:3; 12:6,14; 13:5), as 69 semanas nos levam a 32 d. C., ano em que mais provavelmente Jesus entrou em Jerusalém, foi crucificado etc. (ANDERSON, Robert. El príncipe que ha de venir – la maravillosa profecía de Daniel com respecto al Anticristo. Barcelona: Espanha, 1980. p. 143).
A única dificuldade que a profecia de Daniel apresenta, no tocante à referência a Jesus, é a interpretação da palavra semana. Mas, se olharmos Levítico 25:8, a dificuldade será dissipada em parte. Diz esse verso: “Contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos: de maneira que os dias das sete semanas de anos te serão quarenta e nove anos”. Está claro que os judeus tinham o costume de empregar a figura de uma semana para representar sete anos. Ezequiel 4:5,7 e Números 14:34 sedimentam ainda mais esse costume.
Portanto, as 69 semanas contadas da ordem para reedificar Jerusalém podem ser 69 vezes sete anos, como em Levítico. Se não o forem, terão de ser 69 semanas literais, 69 vezes sete dias, isto é, um ano mais 118 dias. Ou o Messias veio um ano e 118 dias após 445 a. C., ou veio 483 anos depois, ou seja, na época de Jesus. Não há registros históricos da vinda de um Messias um ano e 118 dias depois daquela ordem. A conclusão a se extrair disso é bastante óbvia.
Não entendo por que Bento XVI não mencionou a profecia das 70 semanas, em qualquer dos três livros que publicou. As razões da lacuna devem ser muito distintas das que explicam a ausência do mesmo oráculo nos Evangelhos. Apresentar o Jesus profético, de modo tão claro, está fora do interesse imediato da Igreja. Para mim, essa é a impressão que permanece. Digo-o com grande respeito pelas obras notáveis que Sua Santidade nos presenteou e com reverência ainda maior pela própria figura do Pontífice. Mas tenho de dizê-lo de todo modo.
O Jesus real, muito diferente do eclesiástico, revelou-se fisicamente no primeiro século. Insisto em que ele só pode ser conhecido, no nosso próprio tempo, se preservarmos íntegro o testemunho direto dos apóstolos sobre ele. E esse testemunho é o que está encravado nas palavras claras e nas frases abertas, não em sutis entrelinhas, dos quatro Evangelhos.
Se não é o do Papa, o Jesus assim vestido da verdade tampouco é o da Crítica. Embora opostos, esses dois Cristos, o do Papa e o da Crítica, tangem-se nas entrelinhas de que procedem. Porém, se o primeiro não coincide com o testemunho físico sobre Jesus, o último arrebenta-se de encontro a ele. E esse ainda é o fato mais notável e mais de se lastimar no nosso tempo.
Sabemos que os quatro Evangelhos e o resto do Novo Testamento, com exceção de uma ou outra palavra, foram escritos em grego. Nesse idioma, o termo verdade (aletheia) significa desvelamento. Indica o ato de desencobrir algo que havia permanecido oculto. A melhor elucidação do sentido original da palavra a que pude ter acesso não foi fornecida por um teólogo, mas por Martin Heiddegger, no seu clássico Ser e tempo (15ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. Cap. 2). Embora não faça referência à variedade de grego (denominada koiné) em que o Novo Testamento foi escrito, boa parte do que Heiddegger ensinou sobre o termo aletheia permanece válido para os escritos dos apóstolos e seus seguidores, por duas razões: porque se baseia no sentido etimológico da palavra, que é o mesmo no grego clássico e no koiné, e porque o uso do Novo Testamento confirma amplamente os ensinamentos de Heiddegger.
Vou direto ao ponto que me parece principal, nesses ensinamentos. A crítica que Heiddegger delineia contra a maior parte das interpretações filosóficas da verdade baseia-se na vagueza atribuída à palavra. Não que os autores daquelas interpretações não saibam que aletheia significa desvelamento ou desencobrimento, mas eles pensam que a palavra se refere a qualquer ato de revelar. Na Filosofia, não são incomuns referências ao desvelamento de noções abstratas como se fossem aletheia. Heiddegger mostra que, no interior da cultura grega, que sempre supôs a realidade material, aletheia indica a revelação de algo físico e sensível. Nesse e só nesse sentido, é que a palavra pode e deve ser traduzida realidade.
Portanto, aletheia é, sim, realidade, como vários teólogos ensinam, mas não uma realidade mística, etérea, impalpável, como também costumam sugerir. É antes a realidade física, até mesmo material, se me for permitido lembrá-lo.
Isso é de extrema importância para a compreensão da verdade cristã. A começar pelo fato de que, no Novo Testamento, a verdade é considerada algo recém-revelado. Isso porque, se não houvesse estado encoberta e sido recém-revelada, não se poderia chamar aletheia. Nesse sentido, o Evangelho de João afirma que a graça e a verdade [aletheia] vieram por meio de Jesus Cristo (Jo 1:17). E nesse mesmo sentido, a 1ª Epístola de João interpreta a vinda da verdade como “o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida” (1 Jo 1:1).
A verdade só veio, foi vista, ouvida e apalpada, porque antes havia estado encoberta e porque a sua revelação foi de caráter material e sensível. Se não tivesse sido assim, nenhuma verdade teria sido revelada. Ainda estaríamos sem conhecer a verdade sobre Deus.
Por isso, em Romanos 1, a verdade de Deus, que os gentios rejeitaram, é descrita como a que se manifesta e até mesmo se pode ver na natureza. De novo é preciso lembrar: se assim não fora, não se trataria da verdade. Ou Deus se mostra na matéria, ou não se mostra de maneira alguma. Revelação abstrata, revelação do que Platão chamou mundo das ideias ou acontece por uma projeção na matéria, até mesmo por uma encarnação, ou não é revelação de verdade alguma.
Por isso, já a concepção grega de verdade exigia a encarnação de Deus. Ao menos o exigia, se algum passo havia de ser dado para além da revelação de Deus na natureza. Ou Deus ingressava na matéria, por assim dizer, ou a sua verdade não poderia ser revelada aos homens além do ponto em que já estava refletida na natureza. Não é preciso afirmar que, nas páginas do Novo Testamento, essa e somente essa é a verdade que veio por intermédio de Jesus Cristo.
As duas Epístolas de Pedro são hoje consideradas não autênticas. E de fato não foram escritas pelo próprio Pedro. No entanto, esse está longe de ser o ponto mais importante a respeito delas. O mais importante, o decisivo, é o testemunho que as epístolas transmitem sobre Jesus, que deu a conhecer Deus aos homens no sentido mais pleno. Por isso, o autor sagrado afirma: “Não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo segundo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade [...] quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo” (2 Pe 1:16-18).
A desgraça do tempo atual é haver abalroado essa verdade fundante e fundamental. De que adianta saber se Pedro escreveu ou não as cartas que lhe são atribuídas, se nos tornamos incapazes de compreender que a revelação física de Deus, se assim for possível dizer, é o ponto mais fundamental de todos sobre Jesus? Se abalroamos essa exata revelação, ao cancelarmos os testemunhos que possuímos dela, sem colocar outros de mesmo caráter em seu lugar? E se ainda nos tornamos capazes de extrair do vácuo de testemunhos físicos uma conclusão negativa?
Um testemunho físico só pode ser substituído por outro, jamais por um testemunho intelectual, abstrato, indireto ou não físico, sob pena de a verdade contida no primeiro se perder por inteiro. E o testemunho físico que temos sobre Jesus, com perdão da franqueza total, não está escondido em entrelinhas do Novo Testamento, onde o Papa laboriosamente o busca. A entrelinha bíblica só dá testemunho da verdade, quando nos fala com tanta clareza quanto as próprias linhas. Não é o que acontece com as entrelinhas em que o Jesus eclesiástico se oculta, de onde Ratzinger o retira para a luz. Essas entrelinhas são densas, cerradas, obscuras, como vimos na postagem anterior. E se o são, não podem conter revelação ou desvelamento.
O Jesus eclesiástico, que Bento nos apresenta, não é o Jesus real, embora o contenha, na medida em que aceita o testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus, como o Novo Testamento o revela. Bento submete esse Jesus real a uma intervenção em que insere no seu interior e entretece com ele o que extrai das entrelinhas do Novo Testamento. E o Jesus da Crítica tampouco é o histórico, pois, embora se erga de entrelinhas mais claras que as de Bento, ele o faz de modo contrário ao testemunho físico sobre Jesus.
Esse testemunho é unicamente o dos apóstolos. Se compararmos 2ª de Pedro 1:16-18 com os discursos de Pedro registrados no Livro de Atos, perceberemos que não se contradizem. Pelo contrário, moldam-se um ao outro. E se cotejarmos os dois com o Jesus de Marcos, que a tradição mais próxima da verdade física sobre o livro afirma conter a memória de Pedro, a coincidência será ainda mais ressaltada. Então, por que cancelar o testemunho dos três versículos de 2ª de Pedro? Apenas porque Pedro não é o seu autor? Porque a verdade física que testemunhamos, dois milênios depois, nos informa que doentes não são curados por orações e mortos não ressuscitam? Acaso a verdade física de um tempo, transmitida por suas testemunhas, pode cancelar a de outro tempo e que foi transmitida por outras testemunhas?
Certamente não, embora uma verdade possa vir a ser enfraquecida, pela descoberta de contradição nos testemunhos a respeito dela. Mas não é esse o caso da verdade física sobre Jesus. A massa dos testemunhos sobre ela não se contradiz. O que a Crítica apurou de contradições e que merece mesmo esse nome insere-se nos detalhes, pode-se dizer até nas entrelinhas do texto bíblico. Nos pontos centrais, como é o caso de 2ª de Pedro 1:16-18, os testemunhos são sempre concordantes.
Mas há mais um ponto que se soma ao testemunho físico dos apóstolos sobre Jesus e que eles próprios tomaram em consideração. Trata-se das profecias messiânicas do Antigo Testamento. Os apóstolos e seus seguidores compararam o seu próprio testemunho sobre Jesus com aquelas profecias e concluíram que havia uma forte convergência entre eles. Por exemplo, o autor de Mateus comparou os dados de Marcos, que adotou como fonte ao compor o seu próprio Evangelho, com as profecias. E concluiu que os atos narrados em Marcos cumpriram uma série delas.
Porém, um dos textos mais claros sobre o Messias, em todo o Antigo Testamento, o oráculo de Daniel 9, não foi citado em Mateus ou em qualquer outra parte do Novo Testamento. Penso que a omissão não se explica pelo não reconhecimento do caráter messiânico da profecia por parte dos autores neotestamentários. Ao contrário, o oráculo parece ter sido omitido por ser messiânico demais. Além de se referir ao Messias literalmente, ele chega a datar a sua vinda. Portanto, aproxima-se perigosamente de escancarar quem vem a ser tal Messias, o que, no contexto do primeiro século, implicava conflitos e até a possibilidade de derramamento de sangue.
Basta saber fazer contas para entender que a profecia em questão aponta a vinda do Messias no século I d. C. Daniel 9:25 prediz: “Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém até ao Ungido [em hebraico, Messias], o Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas”.
Três ordens de autoridades são conhecidas, para se empreender a restauração do Templo judeu e da cidade de Jerusalém: a de Ciro, a de Dario e a de Artaxerxes. As duas primeiras estão transcritas em Esdras 1:2-4 e 6:6-12. Aludem apenas à edificação da “Casa do Senhor”, não à cidade de Jerusalém. Apenas a terceira ordem, registrada em Neemias 2:1,3,5-6,8 e proferida em 445 a. C., foi para restaurar Jerusalém, como requer a profecia. Portanto, ela é o ponto de partida dos 483 anos da profecia.
Não são muitos os candidatos a Messias disponíveis 483 anos depois de 445 a. C. Robert Anderson provou que, descontadas as diferenças provenientes de o ano judeu ser de 360 dias (vide Dn 7:25; 9:27; Ap 11:3; 12:6,14; 13:5), as 69 semanas nos levam a 32 d. C., ano em que mais provavelmente Jesus entrou em Jerusalém, foi crucificado etc. (ANDERSON, Robert. El príncipe que ha de venir – la maravillosa profecía de Daniel com respecto al Anticristo. Barcelona: Espanha, 1980. p. 143).
A única dificuldade que a profecia de Daniel apresenta, no tocante à referência a Jesus, é a interpretação da palavra semana. Mas, se olharmos Levítico 25:8, a dificuldade será dissipada em parte. Diz esse verso: “Contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos: de maneira que os dias das sete semanas de anos te serão quarenta e nove anos”. Está claro que os judeus tinham o costume de empregar a figura de uma semana para representar sete anos. Ezequiel 4:5,7 e Números 14:34 sedimentam ainda mais esse costume.
Portanto, as 69 semanas contadas da ordem para reedificar Jerusalém podem ser 69 vezes sete anos, como em Levítico. Se não o forem, terão de ser 69 semanas literais, 69 vezes sete dias, isto é, um ano mais 118 dias. Ou o Messias veio um ano e 118 dias após 445 a. C., ou veio 483 anos depois, ou seja, na época de Jesus. Não há registros históricos da vinda de um Messias um ano e 118 dias depois daquela ordem. A conclusão a se extrair disso é bastante óbvia.
Não entendo por que Bento XVI não mencionou a profecia das 70 semanas, em qualquer dos três livros que publicou. As razões da lacuna devem ser muito distintas das que explicam a ausência do mesmo oráculo nos Evangelhos. Apresentar o Jesus profético, de modo tão claro, está fora do interesse imediato da Igreja. Para mim, essa é a impressão que permanece. Digo-o com grande respeito pelas obras notáveis que Sua Santidade nos presenteou e com reverência ainda maior pela própria figura do Pontífice. Mas tenho de dizê-lo de todo modo.
O Jesus real, muito diferente do eclesiástico, revelou-se fisicamente no primeiro século. Insisto em que ele só pode ser conhecido, no nosso próprio tempo, se preservarmos íntegro o testemunho direto dos apóstolos sobre ele. E esse testemunho é o que está encravado nas palavras claras e nas frases abertas, não em sutis entrelinhas, dos quatro Evangelhos.
Se não é o do Papa, o Jesus assim vestido da verdade tampouco é o da Crítica. Embora opostos, esses dois Cristos, o do Papa e o da Crítica, tangem-se nas entrelinhas de que procedem. Porém, se o primeiro não coincide com o testemunho físico sobre Jesus, o último arrebenta-se de encontro a ele. E esse ainda é o fato mais notável e mais de se lastimar no nosso tempo.
terça-feira, 1 de janeiro de 2013
Jesus, por Bento XVI (3): O Jesus Eclesiástico
A crise da fé no mundo ocidental foi, em grande parte, preparada pela pesquisa do Jesus histórico, a partir do final do século XVIII. O Papa Bento XVI parece reagir a essa crise, por meio do retorno à figura de Jesus estudada nos três livros que publicou sobre o tema, nos últimos anos. Mas, embora professe ter tentado “representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico” (RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré – do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007. p. 17) e ainda que essa intenção não esteja de modo algum em descompasso com os dados históricos, um outro Jesus assoma ao primeiro plano, nos livros do Papa, que denominarei o Jesus eclesiástico.
O capítulo sobre a tentação, no primeiro dos três livros, é um dos que mais tratam da crise da fé no Ocidente. “Onde Deus é considerado uma grandeza secundária”, diz Bento, “onde pode ser deixado de lado por algum tempo ou por todo o tempo por causa de coisas mais importantes, aí precisamente fracassam essas coisas pretensamente mais importantes. Não é só o desfecho negativo da experiência marxista que o demonstra” (ob. cit. p. 45).
A menção da experiência marxista não é casual. Sabemos o papel desempenhado pela Igreja Católica e João Paulo II, em particular, na derrocada daquele regime, na Europa. O retumbante sucesso da empreitada da época, à qual Ratzinger emprestou importante contribuição, como Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, parece ter encorajado a hierarquia católica a intensificar o ataque hoje em andamento a outros artefatos políticos da Modernidade.
Embora a democracia seja em geral poupada de tais ataques, o simples fato de a Igreja ser uma monarquia absoluta relativiza, quando não invalida o apoio que possa emprestar àquele regime. As únicas defesas da democracia que, partidas de instâncias hierárquicas e não laicas, permanecem coerentes na Igreja Católica são, a meu ver, as pautadas no Concílio Vaticano II.
Esse Concílio e as ações que a ele se seguiram foram os mais vigorosos sinais de real abertura à Modernidade, na recente História da Igreja. Porém, os movimentos que se observam, na Igreja Católica, hoje, não excluídas publicações doutrinárias, dão notícia de uma orientação muito diversa, que parece relacionada ao insucesso da experiência comunista. A reorientação se funda no seguinte raciocínio: não há dúvida de que a experiência comunista constituiu um capítulo da Modernidade; portanto, o malogro dela deve significar que a abertura à Modernidade é insuficiente como orientação para a Igreja, que deve buscar uma inspiração distinta para a sua missão no mundo.
Essa orientação diferente é, precisamente, a que se vê emergir nos livros de Ratzinger sobre Jesus. Escreve ele: “A ajuda do Ocidente para o desenvolvimento com base em princípios puramente técnicos e materiais – que não só deixa Deus de fora, mas também força o homem a d’Ele se afastar com o orgulho do seu saber fazer melhor – foi precisamente o tipo de ajuda que criou o Terceiro Mundo no sentido que hoje se entende. Esta ajuda empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a sua mentalidade tecnológica” (idem).
Preparada a cova do comunismo e cumpridas as suas exéquias, portanto, a Igreja volta-se contra o outro grande regime político-econômico da Modernidade, que Leão XIII já combatera na Rerum novarum. Embora Leão tenha criticado a variedade de capitalismo do seu próprio tempo (o liberal), Ratzinger anima-se a generalizar a crítica para o capitalismo em geral, definido como domínio do orgulho por saber fazer.
Ratzinger considera que o ideal católico medieval do “império cristão e o poder secular do Papa já não constituem tentações hoje” (idem. p. 53). Ótimo! Se Sua Santidade estiver certa, estaremos livres da sanha de dominação política da Igreja. Mas Bento vê “uma nova forma da mesma tentação” na tentativa de se “explicar o cristianismo como receita para o progresso e reconhecer como objetivo próprio da religião, e assim também do cristianismo, o bem-estar geral” (idem. p. 53). Isso pode ser entendido não só no sentido de que a fé cristã não pode ser aparelhada para fins políticos ou sociais, mas também como afirmação de que o capitalismo (pasmem-se!) é o império cristão medieval renascido.
Esse juízo é parte da estranha aversão da Igreja ao moderno e ao contemporâneo. Uma aversão que ela nutriu por toda a sua História, mas que parecia ter renegado após o Vaticano II. Não a renegou. A aversão está aí, talvez mais forte que nunca. Apenas não pretende mais exercer-se diretamente no plano secular, mas no religioso e moral.
Como exercê-la? Bento julga que a Igreja deve combater o movimento que “empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a mentalidade tecnológica”. Na prática, isso importa combater costumes que a Igreja considera atentatórios aos valores da vida e da pessoa humana, assim como o aborto, a eutanásia, os métodos anticoncepcionais, a pesquisa com células-tronco, sem mencionar o casamento não monogâmico e as formas de vida sexual divergentes dele. A própria democracia parece na mira da reação conservadora católica.
Bento recorda a primeira frase do Diabo a Jesus, na tentação ocorrida no deserto: “Se és Filho de Deus”. E exclama: “Que desafio! Não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus” (idem. p. 44). Mas não há, nesse paralelo entre o Filho de Deus e a Igreja, uma exaltação do homem semelhante ou pior que a que Bento critica no saber fazer capitalista? Essa exaltação não é tolerada ou santificada, quando vista na Igreja, e vilipendiada quando percebida em práticas seculares?
Ratzinger cita ainda Solowjew, em cuja obra intitulada “Breve narrativa do Anticristo”, esse ícone do mal “recebe o doutoramento honoris causa em Teologia pela Universidade de Tubinga; ele é um grande especialista em Ciências Bíblicas. [...] De fato, a explicação da Bíblia pode tornar-se um instrumento do Anticristo. Mas isso não é dito apenas por Solowjew: veja-se a afirmação presente na própria história da tentação. De aparentes resultados da exegese científica se entreteceram os piores livros que destruíram a figura de Jesus. A Bíblia é cada vez mais submetida ao critério da assim chamada visão moderna do mundo, cujo dogma fundamental é que Deus não pode agir na História” (idem. p. 47).
Tudo isso aponta para o mesmo resultado, a saber: o de que a crise da fé tem por causa o moderno em sentido bastante abrangente. Não custa lembrar que a Igreja não apresentou semelhante crítica ao elemento medieval, enquanto ele vigorou no mundo, pois sempre se beneficiou dele. Agora se insurge contra o moderno. Inclusive contra a pretensão moderna de elaborar uma Crítica Científica, Histórica e Literária das Escrituras.
Diz Bento: “Há no Deuteronômio uma alusão à história de como o povo de Israel esteve ameaçado de morrer de sede no deserto. Levanta-se uma rebelião contra Moisés, que é uma rebelião contra Deus [...] assim descrita na Bíblia: ‘Eles submeteram Deus à prova, ao dizerem: o Senhor está ou não está no meio de nós?” (Êx 17:7). Trata-se, portanto, daquilo que já foi antes recordado: Deus deve submeter-se à prova. Ele é provado, como se experimentam mercadorias. Ele deve submeter-se às condições que nós declaramos necessárias para a nossa certeza” (idem. p. 48).
Mas como? Paulo não escreveu: “Para que saias vencedor quando fores julgado”? Não há, na Bíblia, sinal de que o homem não possa pôr Deus à prova, de maneira sincera e pura. Deus mesmo ordenou que o rei Acaz lhe pedisse um sinal, isto é, que o provasse. O problema dos israelitas, no deserto, não consistiu em terem submetido Deus a uma prova, mas na intenção com que o fizeram.
Vejam que o Papa não só rejeita pautar sua exposição de Jesus nas categorias da Crítica Histórica e Literária. Ele se aproxima de imputar a essa Crítica uma relação estreita com Anticristo. Chama-a também tentação do Diabo. Assim, volta as costas para a modernidade teológica, em benefício de algum outro programa. E de qual programa? Entra aí, precisamente, a inspiração que o Papa busca, no passado da Igreja Católica. Entra aí a sua apresentação de Jesus em três livros. Com essa apresentação, o Papa esclarece em que parte busca inspiração para enfrentar a crise da fé católica.
Bento se refere ao Jesus dos seus livros como histórico, mas esse me parece muito mais um dado da sua consciência, da sua íntima convicção, do que uma conclusão que se possa extrair logicamente das obras. Rigorosamente interpretados, os livros do Papa mostram-nos outro Jesus, que emerge do fundo para o primeiro plano dos Evangelhos. E por que emerge? Porque os Evangelhos, fonte privilegiada do Jesus de Bento, não o retratam diretamente do modo como a Igreja o faz, mas sempre nas entrelinhas e de modo obscuro. Onde está o Jesus que fez Pedro Papa? Os católicos dirão que está em Mateus 16:16-18. Mas esse Jesus desaparece, nas passagens sobre o mesmo fato em Marcos e Lucas. Se a Igreja baseada no Papa é um item tão importante de fé, por que dois evangelistas o descartaram? Aliás, foram três. João tampouco o mencionou.
Esse é um exemplo da passagem do Jesus eclesiástico do segundo para o primeiro plano dos Evangelhos, onde Bento trata de o entronizar. Ele fornece outros e outros exemplos. Diz que o evangelho que Cristo anunciou não significava só boas-novas, como o termo grego indica. “A palavra pertencia [também] à linguagem do imperador romano, que se entende como senhor do mundo e como seu redentor, como seu salvador. As mensagens que vinham do imperador chamavam-se Evangelho” (idem. p. 57). Para o Papa, evangelho é uma palavra de dominação do orbe. Não se pode deixar de acrescentar: dominação tal qual a que a Igreja sempre quis exercer.
Mas o reino de Cristo não é deste mundo. Por isso, não pode constituir uma dominação do orbe. Nem mesmo uma dominação religiosa, como a que hierarquia romana até hoje exerce. Ou não exerce? Ou será o caso de que vemos homens como árvores, bispos como cedros?
Bento prossegue: “A questão acerca da Igreja não é a questão primária; a questão fundamental é, na realidade, a que diz respeito à relação do reino de Deus com Cristo” (idem. p. 59). Ótimo! Mas, na página seguinte, ele adota a interpretação segundo a qual o reino de Deus é expressão com sentido muito próximo do da Igreja. Explica que “o Reino de Deus e a Igreja são colocados de um modo distinto um em relação ao outro e mais ou menos aproximados um do outro. Esta última orientação [sobre o reino de Deus] se impôs sempre mais – tanto quanto me é possível ver – sobretudo na Teologia católica moderna” (idem. p. 60). Se eliminarmos os rodeios, Bento quer dizer que a Igreja Católica é o reino de Deus. Para lhe fazermos plena justiça, é certo que não pensa que as outras Igrejas não o sejam, mas que a Católica tem nas mãos a primazia e o governo desse reino na Terra.
O Papa reconhece que “o ideal [...] é a mensagem de Jesus se tornar verdadeiramente universal, sem que seja necessário missionar as outras religiões [...] No entanto, quando observamos [a cena da evangelização mundial] mais distanciadamente, ficamos perplexos: Quem é que nos diz propriamente o que é a justiça? O que é que nas situações concretas serve à justiça? Como é construída a paz? Mas, a uma observação mais atenta, tudo isto se mostra como um palavreado utópico sem conteúdo real” (idem. p. 63). Há alguma dúvida de que o “palavreado utópico” é o que Bento classifica como “o ideal”, isto é, a evangelização sem se pressupor a superioridade de uma religião a outra? Ou sobre como ele responderia as perguntas que faz sobre a justiça e a paz?
Enfim, sob todos os ângulos, observamos o mesmo, no conjunto constituído pelos livros do Papa: para ele, o Jesus real e histórico é o eclesiástico. Por isso, o tempo todo, eles se superpõem, aparecem como uma só figura: a figura com a qual a Igreja pretende substituir construções coletivas da Modernidade. Por isso também, o desafio principal do leitor de Bento passa a ser isolá-los, separá-los, a fim de mostrar que o Jesus eclesiástico não é a solução para a crise. É, antes, a própria crise.
O capítulo sobre a tentação, no primeiro dos três livros, é um dos que mais tratam da crise da fé no Ocidente. “Onde Deus é considerado uma grandeza secundária”, diz Bento, “onde pode ser deixado de lado por algum tempo ou por todo o tempo por causa de coisas mais importantes, aí precisamente fracassam essas coisas pretensamente mais importantes. Não é só o desfecho negativo da experiência marxista que o demonstra” (ob. cit. p. 45).
A menção da experiência marxista não é casual. Sabemos o papel desempenhado pela Igreja Católica e João Paulo II, em particular, na derrocada daquele regime, na Europa. O retumbante sucesso da empreitada da época, à qual Ratzinger emprestou importante contribuição, como Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, parece ter encorajado a hierarquia católica a intensificar o ataque hoje em andamento a outros artefatos políticos da Modernidade.
Embora a democracia seja em geral poupada de tais ataques, o simples fato de a Igreja ser uma monarquia absoluta relativiza, quando não invalida o apoio que possa emprestar àquele regime. As únicas defesas da democracia que, partidas de instâncias hierárquicas e não laicas, permanecem coerentes na Igreja Católica são, a meu ver, as pautadas no Concílio Vaticano II.
Esse Concílio e as ações que a ele se seguiram foram os mais vigorosos sinais de real abertura à Modernidade, na recente História da Igreja. Porém, os movimentos que se observam, na Igreja Católica, hoje, não excluídas publicações doutrinárias, dão notícia de uma orientação muito diversa, que parece relacionada ao insucesso da experiência comunista. A reorientação se funda no seguinte raciocínio: não há dúvida de que a experiência comunista constituiu um capítulo da Modernidade; portanto, o malogro dela deve significar que a abertura à Modernidade é insuficiente como orientação para a Igreja, que deve buscar uma inspiração distinta para a sua missão no mundo.
Essa orientação diferente é, precisamente, a que se vê emergir nos livros de Ratzinger sobre Jesus. Escreve ele: “A ajuda do Ocidente para o desenvolvimento com base em princípios puramente técnicos e materiais – que não só deixa Deus de fora, mas também força o homem a d’Ele se afastar com o orgulho do seu saber fazer melhor – foi precisamente o tipo de ajuda que criou o Terceiro Mundo no sentido que hoje se entende. Esta ajuda empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a sua mentalidade tecnológica” (idem).
Preparada a cova do comunismo e cumpridas as suas exéquias, portanto, a Igreja volta-se contra o outro grande regime político-econômico da Modernidade, que Leão XIII já combatera na Rerum novarum. Embora Leão tenha criticado a variedade de capitalismo do seu próprio tempo (o liberal), Ratzinger anima-se a generalizar a crítica para o capitalismo em geral, definido como domínio do orgulho por saber fazer.
Ratzinger considera que o ideal católico medieval do “império cristão e o poder secular do Papa já não constituem tentações hoje” (idem. p. 53). Ótimo! Se Sua Santidade estiver certa, estaremos livres da sanha de dominação política da Igreja. Mas Bento vê “uma nova forma da mesma tentação” na tentativa de se “explicar o cristianismo como receita para o progresso e reconhecer como objetivo próprio da religião, e assim também do cristianismo, o bem-estar geral” (idem. p. 53). Isso pode ser entendido não só no sentido de que a fé cristã não pode ser aparelhada para fins políticos ou sociais, mas também como afirmação de que o capitalismo (pasmem-se!) é o império cristão medieval renascido.
Esse juízo é parte da estranha aversão da Igreja ao moderno e ao contemporâneo. Uma aversão que ela nutriu por toda a sua História, mas que parecia ter renegado após o Vaticano II. Não a renegou. A aversão está aí, talvez mais forte que nunca. Apenas não pretende mais exercer-se diretamente no plano secular, mas no religioso e moral.
Como exercê-la? Bento julga que a Igreja deve combater o movimento que “empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a mentalidade tecnológica”. Na prática, isso importa combater costumes que a Igreja considera atentatórios aos valores da vida e da pessoa humana, assim como o aborto, a eutanásia, os métodos anticoncepcionais, a pesquisa com células-tronco, sem mencionar o casamento não monogâmico e as formas de vida sexual divergentes dele. A própria democracia parece na mira da reação conservadora católica.
Bento recorda a primeira frase do Diabo a Jesus, na tentação ocorrida no deserto: “Se és Filho de Deus”. E exclama: “Que desafio! Não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus” (idem. p. 44). Mas não há, nesse paralelo entre o Filho de Deus e a Igreja, uma exaltação do homem semelhante ou pior que a que Bento critica no saber fazer capitalista? Essa exaltação não é tolerada ou santificada, quando vista na Igreja, e vilipendiada quando percebida em práticas seculares?
Ratzinger cita ainda Solowjew, em cuja obra intitulada “Breve narrativa do Anticristo”, esse ícone do mal “recebe o doutoramento honoris causa em Teologia pela Universidade de Tubinga; ele é um grande especialista em Ciências Bíblicas. [...] De fato, a explicação da Bíblia pode tornar-se um instrumento do Anticristo. Mas isso não é dito apenas por Solowjew: veja-se a afirmação presente na própria história da tentação. De aparentes resultados da exegese científica se entreteceram os piores livros que destruíram a figura de Jesus. A Bíblia é cada vez mais submetida ao critério da assim chamada visão moderna do mundo, cujo dogma fundamental é que Deus não pode agir na História” (idem. p. 47).
Tudo isso aponta para o mesmo resultado, a saber: o de que a crise da fé tem por causa o moderno em sentido bastante abrangente. Não custa lembrar que a Igreja não apresentou semelhante crítica ao elemento medieval, enquanto ele vigorou no mundo, pois sempre se beneficiou dele. Agora se insurge contra o moderno. Inclusive contra a pretensão moderna de elaborar uma Crítica Científica, Histórica e Literária das Escrituras.
Diz Bento: “Há no Deuteronômio uma alusão à história de como o povo de Israel esteve ameaçado de morrer de sede no deserto. Levanta-se uma rebelião contra Moisés, que é uma rebelião contra Deus [...] assim descrita na Bíblia: ‘Eles submeteram Deus à prova, ao dizerem: o Senhor está ou não está no meio de nós?” (Êx 17:7). Trata-se, portanto, daquilo que já foi antes recordado: Deus deve submeter-se à prova. Ele é provado, como se experimentam mercadorias. Ele deve submeter-se às condições que nós declaramos necessárias para a nossa certeza” (idem. p. 48).
Mas como? Paulo não escreveu: “Para que saias vencedor quando fores julgado”? Não há, na Bíblia, sinal de que o homem não possa pôr Deus à prova, de maneira sincera e pura. Deus mesmo ordenou que o rei Acaz lhe pedisse um sinal, isto é, que o provasse. O problema dos israelitas, no deserto, não consistiu em terem submetido Deus a uma prova, mas na intenção com que o fizeram.
Vejam que o Papa não só rejeita pautar sua exposição de Jesus nas categorias da Crítica Histórica e Literária. Ele se aproxima de imputar a essa Crítica uma relação estreita com Anticristo. Chama-a também tentação do Diabo. Assim, volta as costas para a modernidade teológica, em benefício de algum outro programa. E de qual programa? Entra aí, precisamente, a inspiração que o Papa busca, no passado da Igreja Católica. Entra aí a sua apresentação de Jesus em três livros. Com essa apresentação, o Papa esclarece em que parte busca inspiração para enfrentar a crise da fé católica.
Bento se refere ao Jesus dos seus livros como histórico, mas esse me parece muito mais um dado da sua consciência, da sua íntima convicção, do que uma conclusão que se possa extrair logicamente das obras. Rigorosamente interpretados, os livros do Papa mostram-nos outro Jesus, que emerge do fundo para o primeiro plano dos Evangelhos. E por que emerge? Porque os Evangelhos, fonte privilegiada do Jesus de Bento, não o retratam diretamente do modo como a Igreja o faz, mas sempre nas entrelinhas e de modo obscuro. Onde está o Jesus que fez Pedro Papa? Os católicos dirão que está em Mateus 16:16-18. Mas esse Jesus desaparece, nas passagens sobre o mesmo fato em Marcos e Lucas. Se a Igreja baseada no Papa é um item tão importante de fé, por que dois evangelistas o descartaram? Aliás, foram três. João tampouco o mencionou.
Esse é um exemplo da passagem do Jesus eclesiástico do segundo para o primeiro plano dos Evangelhos, onde Bento trata de o entronizar. Ele fornece outros e outros exemplos. Diz que o evangelho que Cristo anunciou não significava só boas-novas, como o termo grego indica. “A palavra pertencia [também] à linguagem do imperador romano, que se entende como senhor do mundo e como seu redentor, como seu salvador. As mensagens que vinham do imperador chamavam-se Evangelho” (idem. p. 57). Para o Papa, evangelho é uma palavra de dominação do orbe. Não se pode deixar de acrescentar: dominação tal qual a que a Igreja sempre quis exercer.
Mas o reino de Cristo não é deste mundo. Por isso, não pode constituir uma dominação do orbe. Nem mesmo uma dominação religiosa, como a que hierarquia romana até hoje exerce. Ou não exerce? Ou será o caso de que vemos homens como árvores, bispos como cedros?
Bento prossegue: “A questão acerca da Igreja não é a questão primária; a questão fundamental é, na realidade, a que diz respeito à relação do reino de Deus com Cristo” (idem. p. 59). Ótimo! Mas, na página seguinte, ele adota a interpretação segundo a qual o reino de Deus é expressão com sentido muito próximo do da Igreja. Explica que “o Reino de Deus e a Igreja são colocados de um modo distinto um em relação ao outro e mais ou menos aproximados um do outro. Esta última orientação [sobre o reino de Deus] se impôs sempre mais – tanto quanto me é possível ver – sobretudo na Teologia católica moderna” (idem. p. 60). Se eliminarmos os rodeios, Bento quer dizer que a Igreja Católica é o reino de Deus. Para lhe fazermos plena justiça, é certo que não pensa que as outras Igrejas não o sejam, mas que a Católica tem nas mãos a primazia e o governo desse reino na Terra.
O Papa reconhece que “o ideal [...] é a mensagem de Jesus se tornar verdadeiramente universal, sem que seja necessário missionar as outras religiões [...] No entanto, quando observamos [a cena da evangelização mundial] mais distanciadamente, ficamos perplexos: Quem é que nos diz propriamente o que é a justiça? O que é que nas situações concretas serve à justiça? Como é construída a paz? Mas, a uma observação mais atenta, tudo isto se mostra como um palavreado utópico sem conteúdo real” (idem. p. 63). Há alguma dúvida de que o “palavreado utópico” é o que Bento classifica como “o ideal”, isto é, a evangelização sem se pressupor a superioridade de uma religião a outra? Ou sobre como ele responderia as perguntas que faz sobre a justiça e a paz?
Enfim, sob todos os ângulos, observamos o mesmo, no conjunto constituído pelos livros do Papa: para ele, o Jesus real e histórico é o eclesiástico. Por isso, o tempo todo, eles se superpõem, aparecem como uma só figura: a figura com a qual a Igreja pretende substituir construções coletivas da Modernidade. Por isso também, o desafio principal do leitor de Bento passa a ser isolá-los, separá-los, a fim de mostrar que o Jesus eclesiástico não é a solução para a crise. É, antes, a própria crise.
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