segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O Romance da Filosofia (6): O Platonismo na Idade Média

É comum se afirmar que, na primeira parte da Idade Média, a Filosofia foi dominada pelo pensamento de Platão. O que nem sempre se explicita são as ver-tentes em que o platonismo medieval se dividiu, o conteúdo específico delas e em que medida elas refletiram as concepções originais de Platão.
As principais vertentes filosóficas da Alta Idade Média foram o platonismo patrístico, inspirado em Orígenes e Santo Agostinho, e o neoplatonismo cristão, baseado no Pseudo-Dionísio Areopagita. Embora tenham vigorado até a Idade Média, essas correntes desenvolveram-se ainda na Antiguidade. A primeira, entre os séculos II e V; a outra, no quarto e no quinto séculos. O principal representante medieval da primeira corrente foi Anselmo de Aosta, que viveu no século XI. Os nomes mais destacados da última foram Escoto Erígena (século IX) e Mestre Eckhart (século XIV).
Embora fossem platônicas, essas escolas diferenciavam-se pelo modo de conceber as ideias e pela espécie de realidade que lhes reconheciam. O platonismo patrístico atribuía às ideias o caráter de pensamentos de Deus. Calcava-se, pois, na opinião de Orígenes, Santo Agostinho e outros filósofos dos primeiros séculos. A segunda corrente, por sua vez, sem se apartar daquela afirmação, acrescentava-lhe colorações provenientes da filosofia de Plotino e seus seguidores, que afirmaram as múltiplas emanações do Uno (Deus). Para esses últimos pensadores, as ideias como pensamentos divinos eram uma e somente uma das nume-rosas dimensões suprassensíveis em que o Universo se divide.
De fato, desde o início, o neoplatonismo primou pela descrição do processo, pelo qual Deus se difunde no Universo, dando origem à multidão de seres que o compõem. Essa processão a partir do Uno equivale a um relançamento do mundo das ideias de Platão em es-feras que se abrem e desenvolvem até o nível do Uni-verso físico.
Por metáforas como a da luz, que se apaga quanto mais se difunde, o Uno é apresentado por Plotino como uma hipóstase (substância), que gera um primeiro círculo (sua segunda hipóstase), o Nous ou Espírito. Ao se difundir um pouco mais, o primeiro círculo gera um segundo, constituído pela terceira hipóstase, a Psique ou Alma. Mas, assim como a luz se apaga ao atingir determinada distância da fonte emis-sora, após o segundo círculo, a processão começa a decair qualitativamente. Surge o terceiro círculo, constituído pela matéria. E, se de um círculo mais elevado é possível chegar a outro mais baixo, também é possível trilhar o caminho contrário. É possível retornar da condição inferior da matéria às esferas inteligíveis da Alma, do Espírito e, por fim, ao Uno.
No século V, sob o pseudônimo de Dionísio, o Areopagita, um autor neoplatônico cristianizou essa concepção de Plotino. E o fez de modo tão fascinante que a influência do livro que nos legou, no mundo de língua grega e, mais tarde, no ocidental, tornou-se de-terminante, por toda a Idade Média.
Para o Areopagita (assim como para Plotino), Deus é totalmente transcendente. Transcende tanto o mundo sensível quanto o inteligível. Por isso, “não temos de Deus um conhecimento fundado sobre sua natureza própria (porque esta é incognoscível e ultrapassa toda razão e toda inteligência)” (AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. Obra completa. São Paulo: Paulus, 2004. p. 94). O conhecimento possível de Deus se dá “a partir desta ordem [do mundo material e dos inteligíveis] que descobrimos em todos os seres, uma vez que esta ordem foi instituída por Deus e contém imagens e similitudes dos modelos divinos” (idem).
Pelo conhecimento das essências criadas, podemos remontar ao Criador, que as originou “por um transbordar de sua própria essência” (idem. p. 85), segundo modelos ou “razões produtoras de essências, que preexistem sinteticamente em Deus e que a teologia chama de predefinições ou, ainda, de decretos” (idem).
Deus é, assim, a Causa universal de todas as coisas, “o princípio dos seres; é dele que procedem o próprio ser e tudo o que existe sob qualquer modo que seja [...] Dessa Causa universal procedem também as essências inteligíveis e inteligentes dos anjos que vivem em conformidade com Deus, as das alma, todas as naturezas do universo inteiro, sem dela excluir tudo o que se chama de acidentes ou seres de razão” (idem. p. 82).
As razões produtoras não se confundem com as essências produzidas. A Pequenez é uma razão produtora. Dionísio diz dela: “Jamais encontrarás nada que não participe da ideia do pequeno. É por isso que convém atribuir a Deus a Pequenez porque ele está pre-sente de maneira imediata em toda parte [...] Esta mesma Pequenez é supraessencialmente eterna, impassível: ela permanece em si e se comporta sempre de maneira idêntica” (idem. pp. 105-106). Permanecer em si significa possuir existência própria.
Além da Pequenez, são razões produtoras “a Essencialidade em si, a Vitalidade em si, a Deificação em si”. E “é participando destas potências que cada ser, segundo sua natureza própria, recebe [...] existência, vida, deificação etc.” (idem. p. 120). Note-se que, em Dionísio, a Vitalidade em si corresponde ao dom da vida, a Deificação em si, ao dom da deificação, e a Essencialidade em si, à existência. Isso mostra que, pa-ra ele, a essência é o princípio da existência. Ser uma essência é já existir. Por isso, ao longo de todo o seu livro, Dionísio denomina essências os seres sensíveis e inteligíveis que existem. Para ele, a essência ou conteúdo da ideia é objetivamente existente.
Vê-se quão longe estamos da simples concepção das ideias como pensamentos de Deus, que caracteriza a outra escola. Sem deixarem de ser pensamentos do Uno, para o Areopagita, as ideias são também realidades autônomas. Sob essa condição, é que elas produzem as essências criadas. Só algo real pode produzir outra coisa real. E na medida em que são reais, as ideias não são simples planos ou modelos das coisas na mente de Deus. Este “possui por antecipação a noção, o conhecimento e a essência de todas as coisas” (idem. p. 93). Porém, quando diz “noção” e “conhecimento”, nosso autor se refere a pensamentos, ao passo que, ao acrescentar “a essência de todas as coisas”, ele indica algo real e autônomo em Deus, a saber: as ideias produtoras de essências.
Se já são reais e autônomas em Deus, ao se projetarem fora dele e formarem o primeiro círculo da processão [o Espírito ou Nous], as ideias passam a existir de maneira ainda mais autônoma. Por isso, o Espírito é a “totalidade das coisas”: o mesmo que Platão denomina mundo das ideias.
Escoto Erígena foi o principal expositor da dou-trina do Pseudo-Dionísio, na Idade Média. De tal forma aderiu a ela que pouco a modificou. Acrescentou, porém, novos aspectos à processão a partir do Uno. Por exemplo, afirmou que os modelos existentes em Deus são transformados em causas eficientes (agentes) da criação das coisas, pela ação do Espírito Santo. Desse modo, Erígena cristianizou ainda mais Plotino.
Numa época em que o grego era praticamente desconhecido no Ocidente, Erígena traduziu a obra de Dionísio para o latim e expôs amplamente o seu conteúdo, assim como o de outras obras patrísticas. Com isso, o peso e a amplitude do seu pensamento somaram-se aos de Dionísio para consolidar o neoplatonismo cristão como uma das principais correntes filosóficas da Idade Média. Corrente tão bem-sucedida que teve representantes notáveis por longo tempo, assim como Mestre Eckhart no século XIV.
O caráter bifronte da Filosofia, nesse período, ajuda a explicar a gênese e a importância assumida pelo debate dos universais, que se iniciou no século IX e se intensificou a partir do XI. Sabemos que o debate teve por foco a natureza mental ou extramental das ideias denominadas universais. Duas correntes de opinião se formaram a respeito do tema: a primeira foi o realismo inicialmente defendido por Guilherme de Champeaux; a outra foi o nominalismo, que teve em Roscelin de Compiègne seu primeiro representante célebre. Para a escola realista, os universais têm existência objetiva. Portanto, são res ou coisa. Para a outra escola, são simples nomes ou vocis (voz).
O debate dos universais foi preparado pela formação das escolas neoplatônica e patrística. A primeira foi precursora da concepção segundo a qual os universais possuem existência real. Dionísio, por exemplo, afirmou claramente a existência de “seres de razão”, ou seja, de ideias que não correspondem a qualquer objeto material conhecido. Não é possível afirmação mais clara da posição realista sobre os universais.
Por sua vez, ao confinarem as ideias na mente de Deus, os platônicos patrísticos tornaram-nas subjetivas. Essa posição preparou o caminho para o nominalismo, que levou a afirmação daqueles autores às últimas consequências. Nem a inerência das razões seminais nas coisas, afirmada pela escola patrística, modificou a situação, pois, embora correspondessem às formas dos objetos, aquelas sementes estavam localiza-das no interior da matéria, portanto desligadas do inteligível. A gênese estoica das razões seminais mostra que, desde o início, o significado delas foi o de virtualidades da matéria, não o de algo inteligível no interior do real. Portanto, o platonismo patrístico pavimentou o caminho para o nominalismo posterior.
Essa preparação fica ainda mais cristalina em Orígenes, que se referiu ao que haveria de tornar-se o objeto nuclear da querela dos universais como “questão profunda e misteriosa da natureza dos nomes” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 62). E, ao expor em seguida as posições das escolas sobre o tema, continuou a tratar os universais como nomes, embora os integrantes das escolas, em geral, os entendessem diferentemente.
Ouçamos o nosso filósofo: “Serão [os nomes] acaso convencionais, como acredita Aristóteles? Ou, conforme a opinião dos estoicos, são tirados da natureza, em que os primeiros vocábulos imitam os objetos que estão na origem dos nomes [...] Ou então, conforme a doutrina de Epicuro, divergindo da opinião do Pórtico, os nomes existem naturalmente, e os primeiros homens emitem vocábulos adequados às coisas?” (idem. pp. 62-63).
Que Orígenes afirma serem convencionais, na opinião de Aristóteles? Os nomes. Que declara serem tirados da natureza, para os estoicos? Também os nomes. E que existe na natureza, segundo Epicuro? Nova-mente os nomes. Portanto, a despeito da opinião de outros a respeito deles, Orígenes denomina os universais sempre nomes.
A posição patrística, que distingue o universal até dos aspectos que lhes são mais semelhantes no mundo físico, é afirmada também por Gregório de Nissa, segundo o qual “nada daquilo que se vê nos corpos é de per si um corpo: não é a forma, nem a cor, nem o peso, nem a extensão, nem a quantidade, nem tampou-co aquilo que se pode pensar pertencente às várias qualidades; ao contrário, cada uma dessas coisas é um conceito (logos)” (NISSA, Gregório de. A alma e a ressurreição. São Paulo: Paulus, 2011. p. 254). Fica claro, por essa afirmação, que para Gregório os conceitos eram inerentes aos corpos, o que se aproxima bas-tante da posição mais tarde identificada como realismo moderado.
Esse ponto de vista não se confunde com o de Aristóteles, para quem, embora fossem também nomes, os universais tinham existência própria como formas que, como tais, passavam das coisas à mente. Boécio parece prestigiar a posição de Aristóteles na seguinte passagem: “É pela aquisição da justiça [preexistente] que as pessoas ficam justas, e pela aquisição da sabedoria [também preexistente], sábias” (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 79).
A posição de Boécio e a sua diferença em re-lação à patrística torna-se ainda mais explícita, na seguinte passagem: “Tudo o que é tido por imperfeito o é por uma degradação da perfeição. Segue-se que se, em qualquer campo que seja, algo parece imperfeito, é porque existe também nesse campo algo que seja per-feito [a agilidade e a beleza supremas]” (idem.p. 76). Por ter assumido essa posição, Boécio se tornou o elo entre Aristóteles e os representantes medievais do realismo moderado, como Abelardo e Tomás de Aqui-no. Porém, a sua posição nunca coincidiu da dos autores patrísticos.
À luz das intensas discussões que se travaram sobre os universais, não é possível deixar de atribuir o devido destaque às posições de Orígenes, Gregório e Agostinho, na questão dos universais. Quanto já se exaltou a importância do nominalismo e de Ockham para a emancipação do pensamento humano de vícios inveterados! No entanto, os filósofos patrísticos não só prepararam o terreno para o nominalismo como desenvolveram uma posição superior à dele, na questão dos universais.
É verdade que Agostinho referiu-se a Deus como sumo bem, perfeito amor etc. Com isso, indicou que a semelhança das ideias a Deus é ainda maior que às coisas. É verdade que o Areopagita não se cansou de ensinar que Deus é infinitamente mais do que as ideias. Porém, Agostinho não chegou a esse ponto. Ele se limitou a descrever Deus como a realização mais per-feita das ideias. Vale dizer: como cada uma das ideias elevada ao mais alto grau.
Ao afirmarmos que Deus é amor, não declaramos algo semelhante à frase “Pedro é homem”. A primeira proposição diz algo sobre o modo como Deus se relaciona com outros seres, isto é, que Deus se relaciona com eles com amor. A segunda frase nos diz o que Pedro é, não o que faz, pois conhecemos a sua essência, não a de Deus. Por isso, quando afirmarmos o que Pedro é, referimo-nos à sua essência ou qualidades. Mas, quando dizemos o que Deus é, queremos mais comumente indicar o que faz, não o que é.
Há nisso uma substantificação do amor? Tanto quanto há, ao afirmarmos que Pedro está na sua casa. Ele pode estar ou não estar em casa. A afirmativa abre-se à verificação. Nem por isso, há nela substantificação. O vício da substantificação corresponde à atribuição de substancialidade (a algo ou alguém), cujo equívoco é evidente a priori, isto é, antes de toda verificação. O que só pode ser considerado verdadeiro ou falso, após a verificação, não é vício lógico. É hipótese.
Pode-se indagar se o platonismo medieval não foi todo de uma só espécie. A pergunta não é difícil de responder. A afirmação da existência de seres de razão, para nos atermos a esse exemplo, é impensável em Agostinho, pois leva a uma transmutação no conceito de Deus. Se há seres de razão, a cada ideia corresponde algo real e abstrato. A soma desses objetos (o mundo das ideias, que Plotino chamou Espírito ou Nous) é maior do que o Deus cristão, que é uma pessoa, por-tanto um ser entre outros. É difícil acreditar que, concebendo Deus como pessoal, Orígenes e Agostinho pu-dessem concordar com essa consequência.
Com que perseverança os filósofos de múltiplos séculos desenvolveram a Metafísica como alternativa ao materialismo arraigado na paideia grega! Apesar de todos os retornos do modo de pensar materialista, a Metafísica ganhou sempre novas expressões, na Idade Média. Mas ela também enfrentou dificuldades demasiadas para realizar o que se pode denominar verdadeiras descobertas nessa direção. E teve facilidade demasiada para se desequilibrar em direção ao fantástico.
Mesmo assim, ao olharmos os desenvolvimentos da Filosofia mencionados neste livro, não parece sensato considerar que uma insistência tão grande quanto a dos filósofos em pensar metafisicamente seja infundada. Por que dois platonismos na Idade Média? Por que não um materialismo entre eles? Se o mate-rialismo antigo, segundo o qual tudo é matéria ou está ligado a ela, foi tão natural, por que o esforço filosófico de superá-lo? Não é tal esforço estarrecedor? Por que ele foi levado tão longe? A resposta a essas perguntas revela algo sobre o conteúdo heurístico da Metafísica. Ao desenvolverem esse ramo da Filosofia, os pensadores da Idade Média tinham o íntimo convencimento de realizar uma descoberta ou, pelo menos, de desbravar uma região desconhecida do real. Somente por isso levaram tão longe o seu empreendimento.
Porém, apesar de toda a sua busca metafísica, muitos pensadores medievais contribuíram para a disseminação desordenada do erro da substantificação. As doutrinas neoplatônicas, em particular, seduziram as mentes, com sua promessa de revelar mais de Deus do que de fato é possível conhecer por essa via. Nisso, elas se assemelham à tentação da serpente, que ao primeiro casal sugeriu conhecerem o bem e o mal por meio do fruto proibido. Que é conhecer o bem, senão conhecer Deus?
Que é conhecer a processão de todas as coisas a partir do Bem, senão conhecer o próprio Bem? Que é descobrir que Deus gera o Espírito, e este, a Alma, a não ser entender, pelo poder inerente à razão, um pro-cesso semelhante àquele pelo qual o Pai gerou o Filho na eternidade? Que é descobrir que a Alma engendrou a matéria, a não ser penetrar num inacessível mistério? E a doutrina de que tudo retornará ao Uno: não supõe que a mente é capaz de descobrir, por antecipação, o que ocorrerá após todos os séculos?
O neoplatonismo é a perda de toda medida sobre o que é dado à razão descobrir por si mesma. É a conversão da razão humana em razão divina, a fabricação da pior espécie de ídolo: o ídolo humano. E o neoplatonismo cristão não é mais que a afirmação de que Jesus veio à Terra ordenar que nos prostrássemos ante esse ídolo.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O Romance da Filosofia (5): Da Matéria a Cristo

Embora a Filosofia Antiga e a Medieval pareçam oscilar como um pêndulo entre Platão e Aristóteles, seus seguidores e continuadores, um elemento presente na origem da Filosofia retorna ao primeiro plano, em muitos momentos, até o século V. Trata-se do materialismo dos antigos filósofos pré-socráticos.
Esse elemento era tão constitutivo da cultura grega que a propensão metafísica de Platão e Aristóteles não deve ser considerada um fruto característico daquela cultura, mas resultado de um esforço contrário a ela. Foi quase como uma reflexão antinatural. Por isso também, com o desaparecimento daqueles pensadores, o pendor materialista grego voltou a dar as cartas e a exercer sua hegemonia de modo inconteste na Filosofia grega. Sinais claros disso foram o recuo dos discípulos de Aristóteles a posições materialistas e o surgimento de uma série de escolas com abordagens diversas das dele e Platão.
Dentre as posições filosóficas propostas e de-fendidas, após Aristóteles, as que alcançaram maior sucesso foram quase todas materialistas. Por volta do século I, essas posições tinham-se tornado majoritárias, de novo, entre os filósofos. O epicurismo e o estoicis-mo são destacados exemplos disso. A narrativa de Atos dos Apóstolos mostra o apóstolo Paulo envolvido em discussões com filósofos, em Atenas. No entanto, entre as escolas ali existentes, aponta somente as dos estoicos e epicureus.
A menção dessas correntes, em Atos, deve refletir a notoriedade maior dos pensadores da Estoá e dos seguidores de Epicuro, no contexto de Atenas. Ela coincide com a afirmação de Cícero, um século antes, de que os estoicos, epicureus e acadêmicos eram as filosofias “mais consideráveis" da época (CÍCERO, Marco Túlio. De natura deorum. I, vi, vii).
Tanto os estoicos como os epicureus eram materialistas. Os primeiros o eram no sentido tradicional. Não deixavam de ser religiosos e de acreditar nos deuses. Os epicureus iam além dessa posição, pois consideravam toda matéria constituída por átomos irredutíveis a qualquer outra coisa, que se entrechocavam de modo a formar os objetos que conhecemos.
Santo Agostinho viveu numa época em que esse ainda era o cenário da Filosofia. Recebeu educação romana típica. Foi um retórico, admirador de Cícero e estudou as correntes filosóficas da sua época, tanto antes quanto depois de aderir ao maniqueísmo, uma mistura de religião persa, filosofia grega e cristianismo.
O gênio filosófico de Agostinho faz questionar por que abraçou doutrina tão exótica quanto o maniqueísmo, quando filosofias mais sofisticadas e bem aça-badas estavam à disposição, assim como o neoplatonismo, o ceticismo acadêmico e o neoestoicismo.
A resposta envolve vários fatores. O primeiro foi a idade (19 anos) com que Agostinho se converteu ao maniqueísmo. Em segundo lugar, nenhuma das escolas citadas acima era cristã, o que não satisfazia Agostinho, que fora conduzido por sua mãe a admirar os ensinamentos de Cristo. Embora considerado herético, por seguir uma versão gnóstica de cristianismo, o maniqueísmo ao menos propiciava o contato com o Novo Testamento.
O neoplatonismo tinha uma doutrina, em geral, mais próxima do cristianismo. Porém, para a mente romana de Agostinho, ele tinha o inconveniente de não ser materialista, como o maniqueísmo, que sustentava que tudo é constituído de matéria. É, portanto, possível que o materialismo maniqueísta tenha pesado e até desempatado o concurso das filosofias, na mente juvenil de Agostinho.
Esse contexto ajuda a entender que a consagração de Agostinho a Cristo, que se tornou definitiva com o seu desligamento do maniqueísmo, importou a rejeição do materialismo que ele professara e ao qual convertera vários de seus amigos. Esse materialismo implicava que tudo o que existe é feito de matéria, a qual é eterna.
Ao se converter, Agostinho passou a considerar a matéria criada por Deus, portanto não mais eterna. Do mesmo modo, a dimensão principal da realidade passou a ser constituída por espíritos imateriais. Em síntese, a conversão de Agostinho constituiu uma substituição não só do maniqueísmo, mas também do materialismo pela filosofia platônica.
Santo Agostinho destaca-se, na História da Filosofia, não só por ter pertencido, sucessivamente, aos polos materialista e metafísico do pensamento antigo, mas por ter sido responsável pela mais significativa superação do materialismo não apenas até a sua época, mas talvez em todos os séculos.
Esse juízo se justifica por que os grandes filósofos patrísticos, de Orígenes a Santo Agostinho, passando por Gregório de Nissa, constituem uma era de ouro encravada na Filosofia Antiga. Ao menos do ponto de vista da filosofia do ser, nem antes, nem depois desse período foram construídas soluções tão plausíveis para o impasse a que o pensamento de Platão e Aristóteles conduz.
Se Platão e Aristóteles comandam a Filosofia, eles trazem também problemas que os filósofos patrísticos que souberam superar o platonismo resolveram de maneira suprema. Agostinho é o exemplo típico e até mesmo o modelo desses pensadores, pois superou a concepção materialista de um modo que outros grandes pensadores cristãos, como Tertuliano, não conseguiram alcançar. Por exemplo, “Tertuliano acreditou que a alma é um corpo, não por outra razão senão porque não conseguiu pensá-la como incorpórea, por isso teve receio de que fosse nada, se não fosse um corpo” (HIPONA, Agostinho de. Comentário literal ao Gênesis. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 380).
A influência do materialismo sobre um cristão como Tertuliano causaria espanto, se não compreendêssemos que a primazia da matéria não era só uma filosofia, mas uma ideia conformadora do modo de pensar das pessoas, no mundo romano. Tão conforma-dora, aliás, que nem uma das mentes mais brilhantes dos primeiros séculos, alimentada com o ensinamento dualista do Novo Testamento, conseguiu livrar-se dele.
Agostinho não só abandonou o materialismo ao se converter ao cristianismo como veio a se tornar o mais importante coveiro dele. O ponto de partida, para essa reviravolta, Agostinho encontrou-o na ideia judaica de criação a partir do nada, como se nota na seguinte passagem: “Deus criou todas as coisas do nada, pois, embora todas as coisas dotadas de forma tenham sido feitas desta matéria [mencionada em Gênesis 1:2], contudo, esta matéria foi feita do nada absoluto” (HIPONA, Agostinho de. Sobre o Gênesis cotra os maniqueus. In Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. p. 510).
Porém, essa mesma afirmativa permite perceber que Agostinho desmontou o materialismo antigo, sem deixar de atribuir à matéria um papel central na criação. Para ele, o que Deus criou do nada foi a matéria dos céus e da terra citados em Gênesis 1:1. Todas as outras coisas foram formadas dessa matéria primordial e informe.
Esse ponto de partida é importante não só para a teologia, mas também para as definições filosóficas do pensamento de Santo Agostinho. Para melhor exprimi-lo, Agostinho adotou a noção de razões seminais (spermátikos logoi) desenvolvida pelos estoicos, como Orígenes e Gregório de Nissa já haviam feito antes dele. Aristóteles tinha ensinado que a matéria é isenta de forma. Porém, depois dele, os estoicos tinham sugerido que, embora não possua forma, a matéria contém as sementes ou germes das formas que vemos no mundo. Essas sementes foram denominadas razões seminais pelos estoicos.
A ideia de razão seminal tinha a considerável vantagem de evitar a concepção aristotélica, segundo a qual a forma vem de não-sei-onde para se unir à matéria a fim de constituir todas as coisas. Se a forma está na matéria, ainda que em germe, como os estoicos afirmaram e os pensadores patrísticos aceitaram, seu surgi-mento pode resultar de um processo de desenvolvimento. Assim, a forma não tem existência metafísica própria, num lugar à parte, antes de se unir à matéria ou após o intelecto extraí-la dos dados sensoriais.
Ouçamos o próprio Agostinho: “Assim como, observando a semente da árvore, dizemos que ali estão as raízes, o tronco, os ramos, os frutos e as folhas, não porque já existam, mas porque dela existirão, do mesmo modo foi dito: No princípio, Deus criou o céu e a terra, como que uma semente do céu e da terra, estando ainda indeterminada a matéria do céu e da terra [...] To-dos estes nomes, seja céu e terra, seja terra invisível e vaga e abismo tenebroso, seja água sobre a qual pairava o Espírito, são designações da matéria informe” (Comentário literal ao Gênesis. pp. 511-512). Assim, para Agostinho, a matéria primordial de Gênesis 1:2 foi cria-da do nada com as sementes de todas as coisas.
A trabalhosa coleta de pontos de filosofias várias e a sua combinação num todo coerente, pelos filósofos patrísticos e Santo Agostinho em particular, criou a segunda era de ouro da Metafísica, após as obras de Platão e Aristóteles, que constituíram a primeira. A terceira era viria com o desenvolvimento da Filosofia Árabe e da Escolástica Medieval.
O pensamento metafísico de Agostinho apresenta diversas vantagens em relação ao de Platão e Aristóteles, sem mencionar as filosofias materialistas, cujo fundo não era mais que expressão filosófica do senso comum, o qual nos informa incessantemente que tudo o que existe é matéria, mais sólida ou rarefeita.
Por outro lado (e isso é parte da sua esmerada construção filosófica), Agostinho não recorreu ao imaterial para explicar o que ocorre ordinariamente, assim como a combinação de matéria e forma nas coisas, já que, para ele, a forma é inerente à matéria e se desenvolve por processos tão naturais quanto o leva a semente a se transformar em árvore. Desse modo, a vigorosa afirmação do imaterial, por Agostinho, não se deu com prejuízo para a explicação mais simples possivel dos processos naturais observados.
Agostinho adotou ainda outra teoria corretiva de erros antigos afirmada também por Orígenes, segundo o qual as ideias têm existência estritamente mental em Deus. Essa transferência das ideias de um cosmos inteligível para a mente divina é importante por retirar-lhes a objetividade que tinham ostentado desde Platão e evitar o erro da substantificação.
Na prece com que abre o livro dos Solilóquios, nosso autor se refere a uma série de ideias abstratas como conteúdos da mente de Deus. Com isso, Agostinho reafirma claramente o caráter intelectual das ideias, não as converte em coisas, pessoas ou qualquer outro ser.
Nas palavras da famosa prece: “Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que é verdadeiro. Deus Sabedoria, em quem, por quem e mediante quem têm sabedoria todos os que sabem. Deus, verdadeira e suprema Vida, em quem, por quem e mediante quem tem vida tudo o que goza de vida verdadeira.Deus Felicidade, em quem, por quem e mediante quem são felizes todos os seres que gozam de felicidade. Deus Bondade e Beleza, em quem, por quem e mediante quem é bom e belo tudo o que tem bondade e beleza. Deus Luz inteligível, em quem, por quem e mediante quem tem brilho intenso tudo o que brilha com inteligência” (HIPONA, Agostinho de. Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998. pp. 16-17).
A importância dessa concepção das ideias só é totalmente aquilatada, ao considerarmos a influência da teoria das formas de Aristóteles, ao longo da História. De acordo com essa teoria, formas como a brancura existem, ao mesmo tempo, nas coisas e no intelecto de quem as pensa. Para Santo Agostinho não. Para ele, a ideia de branco que está no intelecto não é o mesmo que a forma que vemos nas coisas, após a eclosão e desenvolvimento das razões seminais. É algo que lhe corresponde. Assim Agostinho evita a substantificação das idéias.
Por não colocar as idéias num mundo à parte, Santo Agostinho pôde escrever sobre o versículo 20 do capítulo 11 do Livro da Sabedoria: “Pense se estas três coisas: medida, número e peso [que são três ideias], nas quais, conforme está escrito, Deus ordenou todas as coisas, existiam em alguma parte antes que fossem criadas todas as criaturas, ou se também elas foram criadas; se existiam antes, onde estavam. Pois antes da criatura, nada havia a não ser o Criador. Portanto, existiam nele [...] E o afirmado: Tudo dispuseste com medida, número e peso, nada mais significa, de acordo com o que foi possível à mente e à língua humanas, senão: Dispuseste tudo em ti” (Comentário literal ao Gênesis. p. 123).
Medida, número e peso existem na mente de Deus como ideias. A mente (de Deus e das criaturas) é o único e exclusivo lugar das idéias, no pensamento de gostinho. A afirmação de que a medida, o número e o peso foram também criados significa que o foram sob outra forma. Do contrário, Deus seria o mesmo que a natureza, e Agostinho seria panteísta. Como Deus não é a natureza, e Agostinho não é panteísta, segue-se que a sua doutrina das ideias supõe clara separação entre elas e as coisas.
Noutra célebre passagem, Agostinho reafirma a imanência da ideia na mente, ao compará-la com a Trindade: “Há na criatura humana uma imagem interiorizada da Trindade: a mente, o conhecimento de si mesma e o amor. Essas três realidades são iguais e da mesma essência [...] A mente que ama e que conhece é substância; seu conhecimento é substância; seu amor é substância” (HIPONA, Agostinho de. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. Livro IX, Introdução, Cap. 4, pp. 285, 292).
Alguém poderia enxergar, nesse trecho do autor patrístico, uma afirmação da substancialidade independente das ideias e dos sentimentos, na linha proposta por Platão e reafirmada em quase todo o platonismo. Mas isso demandaria converter Agostinho em triteísta. Como a intenção expressa dele, em A Trindade, era afirmar o monoteísmo e não o triteísmo, a interpretação correta da passagem é a que reconhece que o conheci-mento e o sentimento têm substância, porém não pró-pria, vale dizer, que eles participam da substância da mente e são o que a mente é. Portanto, não existem fora da mente.
A concepção das ideias como pensamentos de Deus é anterior a Orígenes e Agostinho. Estava presente em Fílon de Alexandria, em representantes do Platonismo Médio e em Plotino. Porém, Fílon considerava que as ideias também se projetaram fora da mente divina, ao constituírem o cosmo inteligível, que serviu de modelo para a criação do mundo físico. Pensava, portanto, que as ideias subsistiam, ao mesmo tempo, em Deus e fora dele. Em geral, os platônicos médios e o próprio Plotino pensavam da mesma maneira.
Coube a Orígenes e Agostinho desenvolver a noção das ideias como pensamentos de Deus não objetivados num cosmo como o de Fílon ou o de Plotino, que denominou Espírito as ideias subsistentes fora da mente divina. E, como as de Plotino e Agostinho são as mais importantes reformas da doutrina das ideias na Antiguidade, não é difícil perceber a superioridade da doutrina de Agostinho a todo o neoplatonismo.
Claro que o legado filosófico de Santo Agostinho não inclui só intuições luminosas como essas, mas também ideias duvidosas. Exemplos dessas limitações no seu pensamento são, a meu ver, a teoria da iluminação e a concepção de alma de Santo Agostinho. A primeira teria permanecido fora do alcance da crítica, se tivesse sido aplicada somente à revelação. Mas Agostinho estendeu seu alcance a todo o conhecimento, desde o mais simples ao mais complexo. Para ele, todo conhecimento se dá na medida em que Deus ilumina o intelecto. Embora de grande valor para a religião, essa hipótese é, no mínimo, desnecessária como explicação de conhecimentos simples.
A psicologia agostiniana também apresenta problemas. É por demais tributária do dualismo platônico. A favor do filósofo patristico, pode-se lembrar que o seu dualismo não chegava aos extremos do de Platão. Agostinho não considerava "possível dizer qual é a substância da alma", embora soubesse que não é constituída dos quatro elementos de que é feita a matéria, isto é, "nem de terra, nem de água, nem do ar, nem do fogo" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 260).
Vemos por que a época de Santo Agostinho foi aquela em que a Filosofia superou, ao mesmo tempo e com maior nitidez, o materialismo e a substantificação das ideias. O interesse, o volume e o refinamento da Metafísica aumentarão muito, até o século XIV. Porém, no que concerne aos dois problemas que mais de perto nos interessam, a História da Filosofia só tem uma Época de Ouro, e ela é o período entre os séculos III e V. Tão vigorosa e profunda foi a refutação do materialismo que então se produziu que esse polo da reflexão filosófica ficará despovoado, até o século XIX, quando os mate-rialismos ensaiarão seu retorno, com vigor e propostas renovadas.
Parte dos novos materialismos foi superada pelo avanço do conhecimento. Outra parte arruinou-se com o Muro de Berlim, do qual já se disse tudo menos da relação que tem com a Metafísica. Deve ter alguma, já que o homem atual continua entregue às obras opostas que o Santo de Hipona tão bem descreveu: "Dois amo-res fundaram duas cidades: o amor a si, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si, a celestial" (HIPONA, Agostinho de. A cidade de Deus – contra os pagãos. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1989. Livro XIV, Cap. 28). Se o amor a Deus requer o complemento da razão, ninguém melhor que Agoatinho indicou o seu fundamento filosófico.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O Romance da Filosofia (19): Causalidade ou Probabilidade?

Tantas são as realizações da ciência, na explicação do real e na aplicação do conhecimento à técnica, que se torna enfadonho enumerá-las. Mas o inventário encolhe, repentinamente, quando ingressamos no terreno metafísico. Não que a ciência não tenha realizado contribuições, nesse campo, mas, a julgar pelos problemas descritos nos capítulos anteriores, elas se fizeram acompanhar por dificuldades lógicas tão formidáveis que tornam necessário um juízo ponderado, ao tentarmos medir os prós e os contras do emprego do método científico em questões metafísicas.
Os fatos recomendam desinflarmos o entusiasmo pela ciência, no campo da Filosofia. Nenhum imperativo racional se vislumbra, que nos obrigue a aderir ao neopositivismo ou a outra filosofia recente ou clássica. Porém, tudo parece aconselhar o direcionamento de atenção abundante às descobertas científicas, no fatigante trabalho de girar em torno das questões metafísicas.
Se a Teoria da Evolução é o ramo da ciência que mais afetou a Teologia, a Física Quântica é o que mais pesa sobre a Metafísica. Esse ramo do saber dedica-se à realidade do nível do átomo para baixo. Porém, por ser tão revolucionária e contrária ao senso comum, a Física Quântica tem sido interpretada de dezenas de modos diferentes. Felizmente para nós, com o tempo, a maioria dos físicos convergiu para a interpretação de Niels Bohr, chamada positivista, por definir a realidade do objeto quântico com base na observação empírica.
Tanto a Física Clássica como a Quântica descrevem sistemas físicos considerados como “fragmentos concretos da realidade que foram separados para estudo” (www.wikipedia.org/mecanicaquantica). Uma das características principais dos “sistemas físicos é não serem estáticos, mas evoluírem". Um sistema evoluir significa “dar origem a resultados experimentais diferentes” (idem).
Uma partícula quântica (um elétron, um próton, um nêutron, um bóson, um lépton etc.) é considerado sistema, por apresentar resultados experimentais diferentes, chamados estados, em momentos distintos. E por estado, entendemos a “quantidade matemática que determina completamente os valores das propriedades físicas do sistema [...] ou as probabilidades de cada um de seus valores possíveis serem medidos, quando se trata de uma teoria probabilística” (idem).
O que torna a Física Quântica peculiar são duas características das observações a que os seus sistemas se sujeitam. A primeira são as configurações de partícula e onda. A Física Clássica (newtoniana) trata os corpúsculos ou partículas como entidades distintas das ondas. O que apresenta características corpusculares não se pode comportar como onda e vice-versa. No nível quântico da realidade, porém, os átomos, as partículas e as ondas que eles emitem têm tanto propriedades corpusculares quanto ondulatórias. Desde Max Born, estas últimas têm sido interpretadas como o arco de probabilidades que a partícula tem de ocupar diferentes posições em momentos diversos.
A segunda peculiaridade dos objetos quânticos é o fato de as propriedades corpusculares e ondulatórias não serem observáveis ao mesmo tempo. Quando uma onda é percebida, sua partícula desaparece; quando a partícula é detectada, a onda se esvai.
Duas explicações principais foram propostas para esse fenômeno bizarro. A primeira afirma que as ondas associadas à partícula entram em colapso, quando ela é observada. Os adeptos da segunda interpretação, por sua vez, consideram arbitrária a ideia de colapso e explicam a impossibilidade de observação simultânea com base na limitação da mente humana.
A primeira explicação é muito mais subjetiva que a outra, pois coloca o real na dependência do observador. A segunda interpretação é objetiva, pois se sustenta na premissa de que o real é o que é, independentemente da observação humana.
A interpretação majoritária tende a admitir que só é possível afirmar a existência do que é efetivamente observado. Isso é positivismo extremado. Podemos podar os excessos da interpretação, sem a abandonarmos, livrando-nos do excesso positivista, isto é, cortando o prepúcio filosófico da teoria, pela admissão de que o arco de probabilidades quântico não descreve somente “futuros possíveis” da partícula, entendidos como o estar aqui ou ali, mas as suas interações presentes e efetivas com os pontos do espaço que designamos como aqui e ali. As ondas só indicam algo realmente futuro, por descreverem o presente, pois são as interações atuais que determinam as futuras.
Assim entendidas, as diferenças da Física Quântica em relação à Clássica inscrevem-se numa base comum a ambas. Tanto numa como na outra, as interações presentes de um sistema determinam as futuras. A diferença surge, quando percebemos que a determinação do futuro, pela medição, é certa na Física Clássica e incerta na Física Quântica.
O estabelecimento do que há de certo e determinado, bem como do incerto e probabilístico, em cada tipo de sistema (clássico e quântico) é fundamental para entendermos onde se encontra o novo, o inusitado, no último. Guilherme de Ockham enunciou o princípio lógico, segundo o qual, entre duas teorias igualmente possíveis e demonstradas, deve-se aderir à que envolve o menor número de premissas.
Esse princípio, conhecido como “navalha de Ockham”, foi adotado como um cânone das ciências naturais, principalmente da Física. Ele mostra que, se a realidade total pode ser explicada sob a premissa de que o presente determina o futuro, não se deve apelar para teorias que adotem essa premissa para o mundo clássico e outra muito diversa para o mundo quântico.
Entre o clássico e o quântico há similaridades, que não podem ser apagadas. Eles não são estanques, estranhos, impermeáveis um ao outro. As diferenças entre os dois níveis da realidade surgem, quando consideramos o modo como a determinação do futuro acontece. Num sistema de tipo clássico, a determinação do futuro a partir do presente é causal; num sistema quântico, ela é probabilística. Mas, em ambos os casos, a um prius (estado anterior) segue-se um post (estado posterior), com maior ou menor grau de necessidade.
De acordo com esse princípio, deve-se julgar que, quando a partícula quântica é detectada, o feixe de ondas desaparece, não por obra e graça do observador, mas porque a partícula e suas ondas formam um sistema. Para uma interação aumentar a ponto de ser percebida, é preciso que as outras decresçam proporcionalmente. Esse decréscimo está associado ao desaparecimento do feixe ou pacote de ondas. Pode-se supor que a interação predominante torna-se perceptível, ao atingir probabilidade próxima de um, mas para isso as probabilidades das outra interações do sistema têm de cair a níveis próximos de zero.
A energia total do sistema formado pela partícula e seu feixe de ondas concentra-se ou se dispersa, no tempo. Quando a concentração aproxima-se do ponto máximo, a partícula se torna detectável. Quando ela diminui, a energia do sistema se dispersa, a partícula desaparece, e os estados quânticos assumem diferentes probabilidades. Sob essa última configuração, o sistema não se torna irreal, mas indetectável, o que sugere que a existência não se define pelo ato de observação.
Werner Heisenberg mostrou que, quanto maior a amplitude de uma onda do feixe ou pacote associado à partícula, maior a probabilidade de esta vir a ocupar aquele lugar, e quanto menor uma onda, menor essa probabilidade. Mostrou ainda que, se confinarmos a partícula numa região menor, sua posição variará menos, mas seu momentum (amplitude das forças que nela se manifestam) ficará mais variável. A diminuição do número de posições fará aumentar os valores possíveis do momentum. No limite, a detecção da posição tornará impossível a do momento, e vice-versa.
Por que é assim? Porque a dualidade posição-momento segue o feitio probabilístico da dualidade partícula-onda. Assim como a cada partícula corresponde um feixe de ondas ou nuvem de probabilidades, a cada posição correspondem múltiplos momentos.
Quero sugerir que, sem abandonarmos a interpretação majoritária da Física Quântica, é possível abrandarmos o positivismo implícito em só reconhecer realidade ao que é medido. Esse positivismo parece um exagero da posição majoritária. Um exagero que encobre a relação entre as ondas de probabilidades e o real, ao tornar aquelas virtuais e relacioná-las ao futuro, quando as ondas são sempre reais e representam o presente da partícula.
Os estados que a partícula pode assumir também têm realidade própria, independentemente de serem ocupados ou não por ela. Eles são objetos reais, embora indetectáveis. De sorte que a concepção predominante, segundo a qual a observação define a existência quântica tem as características de uma antiguidade positivista no interior da Física. Um vício que ainda a inquina.
Essas observações não distorcem o que se conhece de Física Quântica. Valem-se do desnível entre a existência dos fenômenos quânticos, reconhecida por todos os cientistas, e as incertezas sobre as interpretações deles. Estas aumentam ao se concentrarem nas relações entre o real e as nossas representações dele. O feixe de ondas de uma partícula é a representação mais importante dela. Por isso, a sua relação com o real é o que há de mais controverso na Física. Questionar os significados do feixe não é negar a teoria quântica. É mover-se na gama de interpretações possíveis dela.
Mas as interpretações quânticas também têm pontos de convergência. O mais importante deles é o caráter probabilístico dos eventos. Sobre esse ponto, as possibilidades interpretativas são mais restritas. Pouca dúvida há de que a probabilidade quântica importa uma radical transformação do princípio clássico da causalidade e da fomulação filosófica dele por Kant.
Sabemos que toda relação envolve ações e reações, muito mais do que ações e paixões. Mas, normalmente, não é possível predizer qual dos entes relacionados praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem é predeterminada, já que a causa deve vir antes do efeito. Ao menos foi o que se entendeu por causalidade até as críticas de David Hume à concepção convencional desse conceito. Porém, o que Hume desafiou não foi a existência da relação causal como conjunção entre a causa e o efeito. Foi, antes, a nossa interpretação mental desse fato, que inclui a precedência da causa. Hume considerava real a conjunção regular que chamamos causal, mas concluiu que a determinação do efeito pela causa era uma construção da mente.
Verdade é que essa é apenas uma interpretação da crítica da causalidade desenvolvida por Hume, contudo ela tem emergido da releitura atenta de sua obra por vários especialistas. Galen Strawson, por exemplo, mostrou que Hume nunca negou a existência da relação causal, mas apenas a nossa possibilidade de conhecer a sua natureza. O que sabemos daquela relação é a conjunção entre a causa e o efeito. O mais, assim como a determinação de um pelo outro, é pura construção mental (STRAWSON, Galen. The hidden connexion. Londres: Oxford Press, 2012).
Para os que, como eu, consideram exagerado o subjetivismo de Kant, a posição de Hume tem grande atrativo, pois fornece a inspiração necessária para o retorno a um realismo básico provido de categorias, sem abrir mão das conquistas críticas. De Descartes a Hume e Kant, a Filosofia desenvolveu-se com engenho e persistência, numa direção eminentemente crítica. Uma consequência inevitável, porém nefasta disso foi a desintegração das categorias, já que, sem elas, é difícil conceber qualquer pensamento humano. Hume e a Física Quântica ajudam-nos a superar tal dilema.
Com efeito, um exercício sedutor de Filosofia, que salva o que é possível da doutrina das categorias sem abrir mão da postura crítica, consiste em reconhecer que Kant excedeu-se ao tornar o tempo, o espaço e as 12 categorias irremediavelmente subjetivos e que Hume pode ser relido de modo a minimizar a herança subjetivista daquele filósofo e ampliar o espaço para um realismo tão básico quanto baseado na ciência.
Que consequência têm essas descobertas para a filosofia do ser? Para tentar responder essa angustiante pergunta, é útil lembrar que, embora tenha levado seu subjetivismo tão longe, Kant manteve um espaço para a Metafísica, no interior do seu sistema. Fundamentou-a, porém, de maneira nova: não mais na essência ou na existência do ser, como as escolas anteriores haviam feito, mas no conhecimento. Para Kant, os conceitos metafísicos permanecem invulneráveis como formas ou pressupostos do conhecimento humano, não como essências existentes ou não. Sem aqueles conceitos, o conhecimento simplesmente não se desenvolve. Permanece mirrado, raquítico. Isso vale não só para Deus, a alma e a liberdade, mas também para as categorias, o tempo e o espaço. Por isso, Kant nos oferece a primeira posição possível em matéria metafísica, na era contemporânea.
A outra posição é a da maioria dos pensadores que tentam superar Kant. Esses filósofos sustentam que, se os conceitos metafísicos não correspondem a objetos reais, não se pode discorrer sobre eles. E aquilo de que não se pode falar deve ser calado. Essa é a outra solução mais comum do mistério do ser.
Hume fornece a inspiração para uma terceira posição, ao obviar o salto no precipício da questão metafísica, na medida em que não chega ao subjetivismo de Kant, porém abandona as posturas dogmáticas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade. Permite, assim, considerar relevantes esses conceitos por uma conexão com o real que pode ser denominada realismo básico.
Trata-se de uma posição filosófica bastante fecunda. De uma verdadeira janela que se abre, na casa fechada da Filosofia atual, para o realismo básico e para a Metafísica. As consequências dessa posição para a Teodiceia são espetaculares. Por ela, ao Deus morto de Nietzsche sucede algo inteiramente imprevisto.

sábado, 13 de outubro de 2012

O Romance da Filosofia (18): A Porta da Verdade


Um exame realmente isento do impasse criado pelo erro platônico revela que a sucessão de gênios invulgares, surgidos ao longo da História, de modo nenhum bastou para livrar a Filosofia e a própria ciência do lodaçal dos vícios de pensamento em que permanecem atoladas. Apesar da estonteante variedade de doutrinas até hoje propostas, a impressão que se tem, ao considerar a validade sempre condicionada delas, é a de completa ausência de progressos na História da Filosofia.
A repetição disfarçada do mesmo faz lembrar o que o Pregador afirmou, no seu próprio tempo, e que o levou a proclamar o esgotamento da dispensação da lei, em termos tão poéticos quanto universais: “Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se, na sua carreira e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr [...] Os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir. Nada há de novo debaixo do sol” (Ec 1:5-9).
A linguagem poética é universal. Não há, pois, confusão alguma em transpô-la da Religião à Filosofia ou desta de volta àquela. Seu poder evocativo não se dissipa por isso. É o que melhor expressa o “lado de dentro” das coisas. E a Filosofia também tem o seu lado de dentro, no qual a ausência de progressos se manifesta como enfado. Por isso, as perguntas parecem mesmo justificadas: há verdades objetivas na Filosofia ou as suas doutrinas são meras interpretações possíveis do real? Há progresso no saber filosófico? Qual é a utilidade dos questionamentos que a Filosofia tece tão longamente quanto Penélope seus panos?É preciso enfrentar tais perguntas, sem fugas ou movimentos circulares. Tenho escrito esta obra na tentativa de enfrentá-las e para propor uma resposta, limitada e modesta, é verdade, mas claramente afirmativa para elas. Creio que, embora o avanço filosófico seja muito mais difícil que o da ciência, a dificuldade não se confunde com impossibilidade. Como a natureza, a Filosofia não dá saltos, antes realiza avanços ao passo da tartaruga do paradoxo.
Os progressos da Filosofia manifestam-se, pouco a pouco, nas suas várias etapas de desenvolvimento. Porém, em dois momentos, eles se intensificam. O primeiro foi o da descoberta da inteligibilidade e do inteligível por Platão. O desenvolvimento dessas noções constituiu uma descoberta, pois até então o espírito, não só entre os gregos, mas em todos os povos, tinha sido concebido como atrelado à matéria. A exceção tinha sido Israel, mas até mesmo ele pensara a transcendência habitada somente por Deus. Os anjos vieram mais tarde.
Coube a Platão propor a existência de uma dimensão metafísica povoada por infinitos seres. Notemos que, embora inverificável em sentido pleno, certas implicações da hipótese platônica podem ser testadas e refutadas ao menos em parte. Não foi por outro motivo que a substantificação das ideias, em que ela incorre, pôde ser apontada como um dos erros mais básicos do pensamento.
O segundo momento de progresso acentuado, na História da Filosofia, foi o início do século XX, quando um acúmulo de descobertas revolucionárias, na Matemática, na Geometria e na Física, levou vários filósofos a repensar não apenas as concepções metafísicas clássicas, mas também as de Kant, Hegel e outros.
Nenhuma escola particular foi responsável pelas descobertas desse período, embora se tenha tornado comum associá-las ao Neopositivismo. Discordo da associação, pois as descobertas da etapa a que me refiro foram realizadas por filósofos de várias escolas, como Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russell, Alfred North Whitehead, Karl Popper e outros, o que impede a sua ligação a correntes de pensamento muito determinadas.
Russell utilizou seus conhecimentos matemáticos para refutar as concepções de espaço e de tempo vigentes na sua época, as quais tinham forte influência de Kant e Bergson. Suas ideias sobre esses temas se dão a conhecer na seguinte passagem: “A opinião de que toda separação [entre seres] implica espaço é tida, atualmente, como estabelecida e é empregada dedutivamente para provar que o espaço está implicado onde quer que haja claramente separação, por menor que seja a razão para se suspeitar tal coisa. Assim, as ideias abstratas, por exemplo, se excluem evidentemente: a brancura é diferente da negrura, a saúde é diferente da doença, a estupidez é diferente da sabedoria. Daí todas as ideias abstratas implicarem espaço” (RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969. Livro Quarto, Cap. XXVIII, p. 368).
Nada mais claro: onde há separação de coisas, há espaço. Não se pode negar assertiva tão elementar. Se o corpo A está separado de B, o que há entre eles é espaço. Até aqui, movemo-nos não apenas no âmbito da filosofia de Bergson, mas do senso comum. Porém, as ideias desse pensador correu o mundo, na primeira metade do século XX, e versões mais radicais do seu pensamento foram propostas. O que Russell combate é uma dessas versões: a que generaliza a espacialização do pensamento empírico, que impera na Física, para o pensamento ideal, portanto para conceitos como a brancura. Russell denuncia o vício consistente em considerar que a razão representa não só "as coisas umas ao lado das outras no espaço”, mas também os conceitos como se fossem justapostos.
Essa afirmativa pode ser encontrada, aqui ou ali, na obra de Bergson. Em O que Aristóteles pensou sobre o lugar, ele escreveu: “Se Aristóteles tivesse chegado ao âmago da doutrina um pouco obscura dos pitagóricos, não sei se não se afastaria um pouco de sua própria maneira de ver. Ele teria entendido que o espaço inane – ainda que não possa ser definido ao modo dos físicos – nos é necessário em nossas cogitações, para distinguirmos umas coisas de outras e também umas noções de outras noções” (BERGSON, Henri. O que Aristóteles pensou sobre o lugar. Campinas: Unicamp, 2013. p. 59).
Nesse texto, Bergson afirma que o espaço é necessário não só para distinguirmos um objeto físico de outro, mas também as noções. Porém, ele relaciona essa concepção à “doutrina um pouco obscura dos pitagóricos”. É, pois, uma expansão das ideias de Bergson, que ele tomou emprestado dos pitagóricos. Porém, não é, de maneira alguma, uma ideia central do pensamento do filósofo francês como a duração, a intuição, a evolução criadora ou o élan vital.
Não devemos, portanto, colocar no lugar central do pensamento de Bergson a versão radical da crítica da espacialização pela qual ele chegou a atribuir ao espaço um papel na distinção de conceitos puros. O núcleo da crítica da espacialização de Bergson, não é esse. Pode ser encontrado em obras às vezes mais difíceis e negligenciadas, como Duração e simultaneidade (São Paulo: Martins Fontes, 2006), na qual aquele filósofo comparou cuidadosamente o seu conceito filosófico de duração às descobertas da Teoria Especial da Relatividade, de Einstein, a fim de dar expressão exata ao seu pensamento. Se essa obra de Bergson fosse lida com a necessária frequência e atenção, seria possível extrair dela uma delimitação muito mais precisa da crítica à espacialização do que por vezes se encontra nas fileiras do bergsonismo.
Após uma análise que os filósofos contemporâneos denominariam arqueológica das experiências empíricas e das equações matemáticas das quais Einstein extraiu sua teoria, Bergson resumiu, com bastante clareza, os resultados a que chegou: "No que concerne mais especialmente ao tempo, foi do relógio sideral que [a Física Clássica] fez uso para o desenvolvimento da física e da astronomia; descobiru-se, sobretudo, a lei de atração newtoniana e o princípio da conservação da energia. Mas esses resultados são incompatíveis com a constância do dia sideral, pois, de acordo com eles, as marés devem agir como um freio sobre a rotação da Terra. De modo que a utilização do relógio sideral conduz a consequências que impõem a adoção de um novo relógio. é muito provável que o progresso da física [introduzido pela teoria da relatividade] tenda a nos apre-sentar o relógio óptico - ou seja, a propagação da luz - como o relógio-limite, aquele que está no final de todas essas aproximações sucessivas. A Teoria da Relatividade registra esse resultado. E, como é da essência da física identificar a coisa com sua medida, a linha de luz será concomitantemente a medida do tempo e o próprio tempo" (BERGSON, Ob. cit. p. 149).
Essa é a espacialização que Bergson provou. Devemos denominá-la espacialização do pensamento empírico, não do ideal ou puro. O que vai além dessa conclusão não provém de Bergson. Pelo contrário, é exagero do bergsonismo ou, quando muito, um desdobramento incidental destituído da importância que tem a denúncia da espacialização do pensamento empírico.
O que Russell refuta, portanto, é muito menos o pensamento de Bergson do que s aplicação exagerada dele por seus discípulos. Ele lança mão da Matemática Moderna para desenvolver a refutação desses últimos: “Se, com os matemáticos, evitarmos a suposição de que o movimento é também descontínuo, não cairemos nas dificuldades dos filósofos. Num cinematógrafo [projetor], em que há um número infinito de quadros [formando um filme], não há um único quadro seguinte, porque um número infinito vem entre dois quadros quaisquer” (idem. p. 370). Por que é assim? Porque onde cabem números, cabem infinitos deles. Russell quer sugerir que, se a Matemática é aplicável à Física, como a ciência parece indicar, o movimento é formado por infinitos atos.
É surpreendente, mas Russell encontra infinitos momentos entre dois momentos de um movimento, assim como encontra infinitos números entre dois números. Os princípios dessa concepção, que ele utiliza para refutar a continuidade do movimento, aplicam-se tão bem às noções kantianas de espaço e de tempo subjetivos: “Se adotamos a tese, que na física se tem por assentada, de que os nossos perceptos [objetos de percepção] têm causas externas que são (em certo sentido) materiais, somos levados à conclusão de que todas as qualidades reais dos perceptos são diferentes das de suas causas [por exemplo, os comprimentos de ondas que percebemos como cores não são verdadeiras cores], mas que há uma certa semelhança estrutural entre o sistema de perceptos e o sistema de suas causas. Há, por exemplo, uma correlação entre as cores (tais como são percebidas) e os comprimentos de onda (tais como são inferidos pelos físicos). Deve haver, do mesmo modo, uma correlação entre o espaço como ingrediente dos perceptos e o espaço como ingrediente do sistema das causas não percebidas dos perceptos. Tudo isto se baseia na máxima ‘mesma causa, mesmo efeito’, com o seu anverso ‘diferentes efeitos, diferentes causas’” (idem. Cap. XX, p. 267).
Não precisamos considerar que Russell esteja certo em todos os pontos dessa refutação para entendermos que ele se baseia em avanços muito bem demonstrados da Matemática, da Geometria e da Física. Podemos perguntar, com razão, para que insistir no subjetivismo espacial de Kant, se a ciência estabeleceu correlação clara e objetiva entre o espaço real e a nossa percepção dele.
Algo semelhante pode ser afirmado do tempo: “Uma coisa-em-si A produz a minha percepção do relâmpago, e outra coisa-em-si B produz a minha percepção do trovão, mas [para Kant] A não foi anterior a B, já que o tempo só existe nas relações de perceptos [na mente humana]. [...] Tomemos um caso como o seguinte: ouvimos um homem falar, respondemo-lhe e ele nos ouve. O seu ato de escutar [...] sucede a nossa resposta. Ademais o seu falar precede a nossa ação de escutar [...] Está claro que a relação [designada pelas palavras] precede e sucede deve ser a mesma em todas estas proposições [algumas das quais se referem a ocorrências mentais, e outras, a extramentais]” (idem. pp. 265, 268).
De novo, encontramos a correlação. Russell não hesita em concluir que “não há nenhum sentido em que o tempo perceptual seja subjetivo” (idem. p. 268). Suas críticas podem parecer diletantismo de filósofos, ocupados ou desocupados, mas não o são. Para entender por que, basta recordar que, neste ponto da nossa dissertação, das categorias aristotélicas, resta só pó. E as kantianas, que as substituíram, estão interditadas pela Defesa Civil, por risco de desabamento. E, ao sermos despojados das categorias aristotélicas e as kantianas, não ficamos só sem brinquedos filosóficos. Ficamos sem uma imagem do mundo, já que não é possível entender coisa alguma do que ocorre sem o tempo, o espaço e as 12 categorias que Kant deles deduz.
Ou não deduz? Alguém negará que as categorias kantianas (unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causalidade, comunidade, possibilidade, existência e necessidade) derivam do espaço e do tempo e não subsistem sem eles? Que diz Kant a esse respeito? Ele escreve: “Chamo dedução transcendental o exame do modo como conceitos a priori podem ser aplicados a objetos e o distingo da dedução empírica” (KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, p. 54).
Com essa diferenciação, Kant quer enfatizar que há conceitos a priori derivados de outros. Esses conceitos de que outros derivam a priori são, antes de tudo, as categorias. A razão desse fato é fácil de perceber: “Podemos colher dos fenômenos uma lei, segundo a qual isso ou aquilo usualmente acontece, mas o elemento de necessidade não será encontrado” (idem. p. 47). A experiência não nos autoriza a entender qualquer objeto sob as relações necessárias a que as categorias os sujeitam. Portanto, temos de concluir que a necessidade é ínsita às categorias enquanto noções a priori, não aos fenômenos.
Mas e as próprias categorias: são deduzidas de leis empíricas ou de puros conceitos? Kant rejeita o caminho da dedução empírica. E acrescenta: “Há apenas duas condições de possibilidade do conhecimento de objetos: primeiramente, a intuição [percepção] [...] em segundo lugar, o conceito [a categoria], por meio do qual o objeto que corresponde àquela intuição é pensado” (idem. p. 47).
A categoria é, para Kant, o que faz o objeto corresponder à intuição. É o que o conforma a ela. Por isso, o entendimento se subordina à intuição, não o contrário. De sorte que o fundamento do suntuoso edifício lógico do conhecimento são o tempo e o espaço a priori.
Mas as dificuldades criadas pela crítica de Russell não nos autorizam a substituir o espaço e o tempo de Kant pelo espaço-tempo de Einstein, a fim de salvar o edifício do conhecimento, já que, na teoria de Einstein, o espaço-tempo é deduzido empiricamente, ao passo que, em Kant, eles integram um procedimento transcendental. A dedução empírica não combina com a transcendental. Fica ainda pior como remendo de pano novo em vestido velho. Portanto, só há uma solução: substituir o edifício inteiro das categorias kantianas, que está em vias de desmoronar.
Melhor desistir? Não, pois sem as categorias não há como formar uma imagem do mundo. E sem imagem do mundo, não podemos sequer nos comunicar. Toda tentativa de comunicação é como nuvem de palha ao vento. É como pólvora não detonada.
Infelizmente, Russell não se preocupou em reapresentar as categorias, após ter destruído as de Kant, o que nos leva a indagar se, como filósofo da linguagem, ele não cavou a sepultura daquela escola, com a pá de sua crítica. Comunicar o quê, se não há tempo, espaço ou categorias? Se as 12 pedras foram sepultadas no rio Jordão?
A Filosofia é um método lógico, que só pode ser bem exercido com uma base de conhecimentos empíricos ampla e atualizada. Por isso, é de todo indispensável desenvolvermos o método filosófico pari passu com o científico e a Filosofia à luz da ciência. Mas essa não é uma tarefa em que alguém possa obter sucesso, pela simples utilização simultânea dos dois saberes. Abordagens interdisciplinares não bastam. Tampouco a conversa hoje disseminada de transdisciplinaridade. Numa direção reflexiva muito diferente dessas, é preciso encontrar, na História do Pensamento, os exatos pontos em que os dois conhecimentos se interceptam do modo mais luminoso e construir sobre eles.
Isso se realizou de forma exemplar, no início do século passado, quando avanços científicos extraordinários bateram à porta da Filosofia, e alguns comensais a abriram. Marx tinha realizado algo parecido, na interface da Economia e da Filosofia Social. O que obteve de mais perene constitui seu legado específico. Mas fatos tão incomuns quanto esses passaram quase despercebidos. E o pior é que, em ocasiões anteriores e posteriores, descobertas tão ou mais extraordinárias bateram à porta da Filosofia, e ninguém lhes abriu.
As descobertas matemáticas que Russell utiliza têm o potencial senão de salvar totalmente, ao menos de preservar um conteúdo para as categorias clássicas. Na concepção desse filósofo, elas não devem corresponder a nada. Antes de Russell, Hume tinha propugnado um ponto de vista semelhante. Depois dele, a Física Quântica o reforçou ainda mais. De modo que as categorias foram envolvidas em dúvidas, mas não exatamente desintegradas. Forçoso é desenvolver um tratamento para essas dúvidas, o que tentarei em outros textos.
Drummond escreveu: “A porta da verdade/ Estava aberta/ Mas só deixava passar/ Meia pessoa de cada vez”. Mostrou-nos, com isso, como é difícil entrar pela porta. Mas o pior sobrevém, quando a própria verdade é barrada ou quando tomamos a chave da porta, não entramos e não permitimos que entrem os que o desejam (Lc 11:52). Quantos achados científicos deixaram de ser trabalhados, no âmbito filosófico, com a minúcia e o domínio que Russell, Whitehead, Popper e outros alcançaram dos seus! Quantos permanecem sob o pó do esquecimento e o ávido olhar das traças!
O edifício da verdade está interditado. Sua porta, lacrada. Mas poucos parecem ligar. O antiprofeta já os consolou: “Temos arte o bastante para não morrer da verdade!” Como se houvera bradado: Viva o edifício da arte! Dane-se o da verdade!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Romance da Filosofia (17): A Ciência no Tribunal de Parmênides

Os capítulos anteriores permitem-nos suspeitar de que o “pecado original” do conhecimento filosófico do Ocidente, se a metáfora religiosa for aqui perdoável, é a Metafísica Clássica. Isso é tão verdadeiro que, se a Filosofia realizou progressos, como crítica do senso comum, ao longo dos séculos, ele consistiu, em boa medida, na contínua superação do vício da substantificação das ideias.
A superação não foi linear, na medida em que sempre se acreditou haver elementos (não facilmente discerníveis) a serem preservados naquela Metafísica. Acrescente-se o fato de muitas tentativas de superação terem-se revelado desorientadas. Para ilustrar a afirmativa com um fato, a maior revolução da Física, no século XX, ao lado da Mecânica Quântica – a Relatividade Geral de Einstein – introduziu problemas teóricos de tal envergadura que as suas resoluções, não raro, envolveram recursos ao erro platônico. O primeiro cientista acima de qualquer contestação a lançar mão desses recursos foi o próprio Einstein, ao repensar as leis físicas em termos teológicos, isto é, como idênticas ao Deus de Spinoza.
A Teoria da Relatividade Geral introduziu a possibilidade de o Universo estar em expansão, o que veio a ser confirmado, por observações empíricas. E coube à expansão reavivar, de certo modo, o antigo problema da origem do cosmos a partir do nada, já que, se sofre expansão, o Universo deve ter estado tão mais comprimido quanto mais recuarmos no tempo. O limite dessa compactação é a “bola de fogo” primordial, que reuniu toda a matéria e energia cósmicas em espaço tão exíguo que tudo o que então existia explodiu. Na concepção mais aceita, essa explosão (big bang) deu origem à expansão, ao tempo e ao próprio Universo que conhecemos.
Ao estabelecer desse modo uma origem para o mundo, a cosmologia do big bang reavivou o problema filosófico da passagem do nada ao cosmo. E o que se viu, na tentativa de solucionar o problema, foi a multiplicação de modelos físicos que tentam explicar tal passagem por métodos teóricos, já que não temos dados empíricos sobre o Universo nos seus primeiros milhares de anos.
O problema dos modelos teóricos que tentam explicar o big bang é não partirem de dados empíricos, o que os expõe, particularmente, ao erro clássico da substantificação. Com efeito, embora partam de um ou outro princípio do mundo empírico, como o movimento quântico ou a relatividade geral, os modelos os modificam com base em princípios do pensamento puro como a não-contradição. Assim, os princípios do pensamento são admitidos como diretrizes do Universo físico, ao lado das leis empíricas.
É possível agrupar os modelos teóricos sobre a grande explosão em duas categorias. De um lado, estão os que pressupõem a existência de Universos numerosos, talvez infinitos, numa vasta estrutura denominada Multiverso. De acordo com essa posição, o mundo em que habitamos teria derivado de um ou mais Universos. A segunda posição, por sua vez, consiste postula a origem do nosso Universo literalmente a partir do nada.
O primeiro tipo de modelo evita o problema do nada, varre-o do território da ciência. E, em seu lugar, introduz o conceito engenhoso do Multiverso. Porém, a despeito dos esforços dos defensores desses modelos, o Multiverso que eles propõem continua regido por leis causais, em que consequentes se seguem invariavelmente a antecedentes.
Apesar das críticas de David Hume e outros pensadores à causalidade, esse princípio permanece solidamente instalado no interior da ciência contemporânea, principalmente enquanto o tomamos como relação geral de antecedentes a consequentes. Tanto a gravitação como o eletromagnetismo e as interações nucleares comportam relações dessa espécie, que se fazem presentes e são representadas nos modelos físicos dos múltiplos Universos.
Porém, embora pemaneça lógica, a representação causal das leis físicas não está livre de vícios metafísicos. O próprio arcabouço da causalidade (a relação de antecedentes a consequentes) assemelha-se tanto à associação de premissas e consequências no plano lógico que nos perguntamos se não seria, ela também, um transplante da ordem mental à realidade. Hume afirmou que a associação de ideias, por meios lógicos, é tão arbitrária quanto a relação que chamamos causal. Pode ser que ela forneça o costume básico, do qual, por imitação, derivou o de associar causas e efeitos.
As tentativas de explicação da origem do cosmo a partir do nada não se saem melhor que as teorias de um Multiverso regido por leis causais.Lawrence Krauss é um expoente desse ponto de vista. Ele demonstra a possibilidade de derivarmos a singularidade quântica de algo muito semelhante ao nada, ou seja, de nenhum espaço, nenhum tempo, energia e matéria nulas. Porém, as ideias de Krauss têm sido questionadas, por partirem das leis do movimento quântico e não exatamente do nada.
Ao defender seu modelo contra essas objeções, Krauss insiste na coincidência entre as leis quânticas e o nada. Porém, do ponto de vista filosófico, a insistência é infundada. O nada não é só um vazio. É também o oposto de um conceito. Todo conceito é formado pela associação de outras idéias, que o compõem. Às vezes, uma das ideias exprime a finalidade da combinação que integra. Por exemplo, o conceito de mesa é constituído pelo de um tampo, um pé e a função de manter objetos ao alcance de um usuário.
O nada é o oposto exato disso. Para concebê-lo, é preciso não associar quaisquer conceitos, já que ele não tem conteúdo. Em outras palavras, o nada é um falso conceito. Mas as leis quânticas não se confundem com uma ausência qualquer de conceitos. Em outras palavras, o modelo de Krauss substantifica não apenas ideias, mas o anticonceito do nada. É o cúmulo do vício da substantificação.

Em dezembro de 2015, físicos e filósofos da ciência reuniram-se na Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, a fim de discutir a acusação de que alguns ramos da Física teórica estão a se desgarrar da ciência experimental (CATELVECCHI, Davide. “Is string theory science?”. Nature, 23/12/2015). O encontro, em grande parte ins-pirado por críticas como as do artigo pulicado por George Ellis e Joseph Silk na revista Nature, em 2014 (ELLIS, George e SILK, J. Nature, 2014. nº 516, p. 321-323), o encontro não chegou a qualquer consenso, porém serviu para demonstrar que as acusações se centram mais incisivamente nas teorias do Multiverso e das supercordas. 
Não me refiro a outra coisa, quando afirmo que o erro da substantificação penetrou na ciência contemporânea. Trata-se substancialmente da mesma acusação. Claro que o erro é mais comum na Filosofia, mas pode penetrar, e tem feito isso de maneira substancial, em outros ramos do conhecimento, como as ciências sociais e na própria ciência da natureza.
Da divinização da natureza à substantificação do nada, implícita no modelo de Krauss, a ciência permanece permeada pelo vício metafísico de Parmênides e Platão. Como constituiu o pesadelo da Filosofia, ao longo dos séculos, aquele vício continua ser o problema mais básico da ciência hoje. E é, no mínimo, de questionar se um saber que incide em tais falhas, ao lidar com problemas menores da Metafísica, é capaz de resolver problemas maiores relacionados à existência de Deus.
Se a Filosofia puder ser representada como um tribunal presidido por Parmênides, ao qual pessoas de todos os séculos são intimadas a comparecerem, o conteúdo dos depoimentos colhidos permanece variado e contraditório. Porém, alguns pontos comuns podem ser detectados neles. Talvez o ponto de maior convergência seja a confissão de não poucos depoentes do seu envolvimento com o senso comum e os vícios de que está impregnado.
Entre os últimos a deporem, no tribunal de Parmênides, contam-se Einstein e os físicos que o sucederam. Saíram de lá há tão pouco que as suas declarações ainda não foram sequer analisadas. Ainda não se imprimiram no espírito dos juízes. Tudo que se conhece são rumores e comentários sobre o que nelas realmente se encontra.
Com a analogia do tribunal, desejo mostrar que a ciência contemporânea está tão envolvida com o problema da substantificação quanto a Filosofia. Embora tenha surgido muito mais recentemente e pareça não incidir em antigos vícios do pensamento, a ciência não está livre de ranços substancialistas, tanto quanto a Filosofia. Em que pese o espanto que isso provoca, é inútil perguntar: “Até tu, Brutus?”

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O Romance da Filosofia (16): O Deus de Einstein

A Carta de Deus escrita por Einstein um ano antes de morrer foi levada a leilão, em 2012, com lance mínimo estipulado em três milhões de dólares. Muito se tem debatido o que o cientista pode ter escrito, em tal carta, para justificar o interesse expresso em cifra tão astronômica. A resposta mais correta, embora pouco adequada a um leilão, parece ser nada que ele não tenha afirmado, ao longo de todo o restante da sua existência dedicada à ciência.
O documento tornou-se célebre por ter sido escrito por Einstein e por conter comentários (ao livro de Erik Gutkind intitulado Choose life: the biblical call to revolt) como os seguintes: “Para mim, a palavra de Deus não é mais que a expressão e o produto da fraqueza humana. A Bíblia é uma coleção de lendas primitivas que se mostram honoráveis e, não obstante, infantis. Quanto às sutis interpretações da Bíblia [propostas pelos teólogos], são multiformes em natureza e quase nenhuma relação mantêm com o texto original.” E também: “Para mim, a religião judaica, como todas as outras religiões, é uma encarnação das mais infantis superstições”.
Na sua carta, Einstein contrapõe a visão de mundo bíblica às ideias do “maravilhoso Spinoza”, como ele denomina o filósofo judeu Baruch Spinoza, que viveu no século XVII. Porém, a contraposição foi afirmada, por Einstein, ao longo de toda a sua vida. Por isso, não tem, na carta, a força de testamento, que Richard Dawkins (autor de Deus, um delírio) tenta emprestar-lhe na mídia.
No livro A equação de Deus – como Einstein transformou o conceito de religião (2ª ed., São Paulo: ARX, 2006), Corey S. Powell, editor da revista científica Discover e colaborador de Scientific American, propôs que a devoção do físico alemão à racionalidade do Universo constituiu uma autêntica reorientação da fé religiosa abraçada no colégio católico da infância. Anos mais tarde, Einstein encontrou, em Spinoza, a expressão filosófica mais límpida de suas ideias sobre o Universo. Expressão tão perfeita que o cientista, simplesmente, aderiu a ela. Tornou-se célebre o diálogo em que o rabino Herbert Goldstein, da Sinagoga Institucional de Nova York, perguntou a Einstein se acreditava em Deus, e ele respondeu: “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia de todos os seres, não no Deus que se interessa pela sorte e ação dos homens”. Para quem não se lembra, o Deus de Spinoza a que Einstein se referiu está na natureza e é idêntico a ela (panteísmo).
Por motivos como esse, Powell considera que a passagem de Einstein do catolicismo ao spinozismo constituiu uma autêntica conversão religiosa, que assumiu expressão científica cada vez mais indelével, conforme ele realizava as suas descobertas. Não foi à toa que, em frases como a citada acima, Einstein exprimiu suas ideias científicas em linguagem religiosa. Ele falava mais sério do que se supõe quando fez aquela declaração e também ao afirmar que “Deus não joga dados” ou que a sua empreitada científica consistia em “saber como Deus criou este mundo". "Não estou interessado neste ou naquele fenômeno", disse, "no espectro deste ou daquele elemento. Quero saber os Seus pensamentos.” Tampouco brincava ao declarar: “Quando julgo uma teoria, eu me pergunto: se eu fosse Deus, teria disposto o mundo dessa maneira?” (POWELL. Corey S. Ob. cit. p. 67).
Mas, se o pensamento de Einstein exprime sua transição de uma ideia teológica a outra e não o abandono de ideias teológicas, reduzir o seu panteísmo ao ateísmo, como Richard Dawkins faz, é filosoficamente tão equivocado quanto explicar a combustão com base no flogisto ou postular a transmutação dos metais inferiores em ouro. Equívocos como o de Dawkins não são incomuns, em tempos em que o conflito teísmo-ateísmo assumiu um grau perigoso de radicalização.
No pensamento dos grandes cientistas, há um espaço plástico e flexível, embora recôndito, reservado à mística. No passado, esse espaço foi ocupado pelo flogisto e pela alquimia newtoniana. Hoje, ele abriga toda sorte de devoção religiosa dos homens de ciência, que deixou de se orientar a entes divinos e se redirecionou a objetos outros, naturais ou ideais. Desse tenebroso espaço, não raro, procedem os grandes mal-entendidos da ciência.
No caso de Einstein, sua devoção à harmonia da natureza levou-o a superar diversos erros da Física Clássica. Levou-o, porém, a superar os erros da crença num Deus pessoal? Einstein deu-se tão bem no campo da Teologia quanto no da Física? Isso é, no mínimo, duvidoso. Se não precisamos deixar o domínio da ciência para encontrar pontos em que Einstein se equivocou, como a interpretação da Física Quântica, que dizer de questões situadas fora da sua especialidade? Como todo ser humano, Einstein acertou e errou. Acertou magnificamente, é claro, ao reconstruir, tijolo a tijolo, a Física. Mas errou ao interpretar a Física Quântica e ao abandonar totalmente a ideia de um Deus pessoal.
Entendo que é crime de lesa-majestade tipificado no Código Penal contestar Einstein. Ainda que a majestade lesada não seja a dele, mas a dos "proprietários" do seu legado, como os cientistas que insistem em atribuir ao grande físico uma visão não teológica do mundo. Resta-me confessar o crime, tanto quanto minha firme admiração pelo cientista, pensador e cidadão Albert Einstein.
Mas convém recordar, também, e sempre, que à ciência se devem os tributos da reflexão respeitosa e da mais perseverante suspeição. Não apenas o primeiro deles. Einstein é tomado como mito, toda vez em que se atribui às suas declarações o grau de infalibilidade que se tem reconhecido à “Carta de Deus”. A isso é preciso resistir.
No fundo, o panteísmo de Spinoza e de Einstein é tanto ateísmo quanto o flogisto é fogo. Infelizmente, as vulgarizações disponíveis do pensamento de Spinoza barateiam demais a equação Deus sive Natura (Deus, isto é, a natureza), que costuma ser citada como suma dele. Embora ele tenha afirmado que Deus é tudo, no seu pensamento, esse tudo é uma substância eterna dotada de infinitos atributos e amplamente incompreensível ao homem. Que pode um homem na Terra entender da ideia abstrata de substância? E ainda mais da substância eterna? E dos infinitos atributos dela? Bem pouco. Deus é, portanto, o muito que permanece fora desse pouco, já que não é o que compreendemos da substância, mas ela própria. De sorte que as fragilidades da substância impessoal de Spinoza se exprimem na pergunta: e se o muito que não compreendemos dela possuir apanágios pessoais?
Demos, porém, a volta ao panteísmo spinoziano. Após o termos examinado pelo lado de Deus e do que não sabemos da substância, vejamo-lo pelo ângulo oposto do que ela efetivamente é. Que é tudo (pan) para o homem, a não ser tudo o que ele é capaz de conhecer? Ora, o que o homem pode conhecer é tanto menor quanto diferente do que existe. Parte considerável do conhecimento humano é atávica e não corresponde ao mundo como é ou foi, mas às necessidades de sobrevivência e homeostase dos nossos ancestrais. Portanto, se Deus inclui o que conhecemos dele, que pobre conceito é!
Tiremos, então, as conclusões que essas considerações tornam necessárias. Se Einstein realizou um giro copernicano, ao abandonar o Deus pessoal e aderir ao spinoziano, não é menos verdadeiro que ele não devotou sua vida a examinar os apanágios pessoais de Deus e sim os impessoais. Digamos que, ao deixar o Deus pessoal, ele deixou de lhe devotar a indispensável atenção. Em que pese o odor iconoclasta que exala, essa interpretação está mais próxima da verdade sobre o pensamento teológico de Einstein do que o incensamento da Carta de Deus com o propósito de torná-la um argumento em favor do ateísmo. Se Einstein passou a vida estudando os fenômenos impessoais do Universo e selou, numa carta, o destino do Deus pessoal, por certo mirou num pássaro e acertou em outro.
O giro pelo qual Einstein substituiu o Deus judaico-cristão pela substância cósmica começou, quando se preparava para o Bar Mitzvah (comemoração judaica do ingresso de uma pessoa na puberdade), antes de completar 13 anos, e leu o pensamento de Xenófanes: “Se os bois pudessem pintar, eles representariam seus deuses em forma de boi” (COHEN, Madleine. Albert Einstein. São Paulo: Globo, 2006. p. 13). A impressão desse dito em Einstein foi tão forte que não houve Bar Mitzvah algum!
Mas, se o Deus pessoal é uma ideia infantil, como Einstein afirmou, o seu abandono pelo grande cientista não foi outra coisa. Ele não ocorreu entre os 12 e os 13 anos como sinal de maturidade. Foi, antes, um movimento infantil que se conservou por toda a vida. Por isso, não é demasiado supor que o abandono do Deus pessoal, por Einstein, não é uma lição científica, mas uma linha a mais no capítulo das devoções informes no interior da ciência, um outro objeto introduzido no quarto sombrio das fés relegadas.