“É tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado, mas
ainda é tempo de viver e contar.”
(Carlos Drummond de Andrade)
OS MANUSCRITOS DO DESERTO
O Burro permaneceu com os quatro por vários dias. Acompanhou-os nas coletas de frutos e raízes, nas buscas de bocados de mel, na caça de bichos que lhes pudessem engrossar as pernas para a marcha. Mais do que tudo, porém, seguiu-os na apuração das espécies que habitavam no oásis, na perscrutação dos seixos que enchiam a caverna em forma de dedo e na investigação que empreenderam do céu.
Assim, em fadigas e deslumbramentos, passaram o tempo de uma estação. Certa noite, com base no movimento de certos astros, calcularam que, se não se apressassem a alcançar a falésia, que marcava a divisa do deserto com o oceano, só o fariam no inverno, o que implicaria penas maiores e talvez a morte. Então, a contragosto, os Símios decidiram arrostar a distância que os segregava da mata à beira-mar e da comunidade animal que a habitava. Conceberam para isso um plano tão simples quanto molesto de se executar: caminhariam de dia e buscariam refúgio em abrigos naturais durante as noites.
Caco, porém, vacilava como uma cana agitada. Incertezas o assaltavam. Terrores povoavam seus sonhos. Ainda assim, emergiu do conflito com a convicção de que deviam partir. Comunicou essa ideia aos amigos, que tremeram ao pensar que, vindo de Caco, o mais reticente do grupo, o convite devia indicar um considerável atraso. Anuíram, pois, preocupados em remir o tempo perdido.
Despediram-se então do Burro, ao qual se tinham afeiçoado, apartaram-se do oásis e retomaram a viagem. Enquanto marchavam, o vento soprava a música característica daquelas paragens. Seu diapasão era como a voz de um profeta, que ecoa quando todas as bocas foram amordaçadas, a força extinguiu-se no coração de todos, e a rendição ditou os seus termos. Enfim, quando a ordem cultural oscila. E a ordem cultural, símia e humana, vacilava de feito.
Por isso, o mavioso oráculo do vento encheu aquele deserto. Transformou-o numa autêntica sala de concerto. E todo ouvido que não era mouco ouviu a sua música. E a música se fez logos e habitou no coração dos quatro.
Após ter enchido as dimensões do espaço desértico, a melodia, Beleza no corpo de sons, não permaneceu vã, antes concebeu e deu à luz. Porém, como todo parto, esse também começou com dores. Mas, por um toque transformador semelhante ao do Burro em seu dono, as dores se converteram em alegria esfuziante, pelo que sucedeu em seguida.
Quando a exaustão atingira o paroxismo e o espírito se esvaía do corpo dos Símios, de quatro nadas se fez a vida. Caco notificou aos demais a presença de uma formação semelhante às grutas e antros em que se tinham albergado durante a saga. A princípio, julgaram tratar-se de uma caverna. Mas, ao se acercarem, viram estupefatos que eram as ruínas de uma construção.
-- Homens viveram aqui, concluiu Caco. Monges, ao que o estilo da construção sugere...
-- É um mosteiro! completou Louça.
De Vidro consentiu e, ato contínuo, informou aos demais: se o era, devia existir ali uma fonte. E se puseram a procurá-la, com o fio de afã que lhes restava. O problema é que o fio tinha a grossura de mícrons, e não havia fonte alguma visível. O que significava a necessidade de cavar.
Sem outro remédio que esse, puseram-se a desbastar e sacar a terra com pedras que acharam ao redor. E não sabiam se cavavam um poço ou a própria cova. As pedras, porém, que encontraram nas ruínas eram tão apropriadas para o mister a que se entregaram que, no espaço de uma hora, chegaram a uma camada de terra úmida.
A vista do estrato de argila, os toques que lhe deram animaram-nos de maneira tal que encontraram forças para escavar um pouco mais celeremente. Decorrida outra hora, deram enfim com água. Sim, água pura e límpida! Mortos que estavam, ajoelharam-se e beberam. E a água os fez reviver.
Deitaram-se, então, à sombra das árvores que teimavam em crescer próximo à fonte, onde dormiram um sono extemporâneo, mas restaurador. Quando despertaram, de Vidro indagou aos demais se não se encontravam num mosteiro hinduísta. Movido pela indagação, que afinal era a de todos, o grupo se pôs a inspecionar a construção. Descobriu que era bastante diminuta, para os padrões da época em que tinha sido edificada.
Num instante, ouviu-se uma voz abafada:
-- Ossos, ossos!
Era a voz de Macaco de Louça, que gritava apavorado. Todos correram para levantar de que se tratava. O Macaco esgueirara-se pela fenda apertada de uma parede ao interior de um túmulo subterrâneo, onde desfalecera de terror ao deparar um número de ossos no chão. O lugar não só era exíguo, hermético e malcheiroso. Era também soturno e escuro, embora não completamente, posto que a luz o invadia por frestas como aquela de que Louça se tinha servido para entrar.
De Telha logo esgueirou-se para dentro do túmulo, no que foi seguido pelos demais. Ao entrarem, viram Macaco de Louça com a cabeça coberta por panos que achara num canto, para se proteger não sabia bem de quem ou de quê. Estava prostrado com ar apoplético sobre um altar a que se ascendia por uma pequena escada.
Acudiram o irmão semimorto e, em seguida, o acalmaram de todas as maneiras que se utilizam para acalmar. Disseram-lhe que os humanos, não raro, oferecem perigo e muito, mas não os seus ossos. Louça acalmou-se com o que lhe falaram, mas principalmente com a última frase. Era como se ela houvesse ativado um hemisfério, um circuito ou sabiam lá o quê, no seu cérebro, que estivera paralisado.
Assim, de Louça pôde inspirar longas lufadas do ar viciado do sepulcro e se sentir um pouco melhor.Com olhos vidrados, de Vidro mirava cada canto, cada centímetro, cada objeto no interior do sarcófago. Mas a penumbra o impedia ver com nitidez. Fez menção de iniciar a constatação dos achados. No entanto, quando se deu conta, o cheiro de mofo tinha expulsado seus companheiros do sepulcro. Não lhe restou alternativa, a não ser os seguir.
Porém, ao transpor a brecha por que haviam ingressado, notou um objeto pegajoso a poucos passos. De um salto, virou-se e o arrebatou. Uma nuvem de pó ergueu-se do achado. Instintivamente, de Vidro protegeu dela os olhos. Depois, descobrindo-os, viu tratar-se de um manuscrito. Tapando o nariz com a mão, examinou-o vagarosamente e pensou: “Pode haver outros”.
E pôs-se a rebuscar o chão, ao redor do local onde havia encontrado o rolo. Fez o mesmo adiante e além. Não poupou esforços, cuidados, exames táteis de toda espécie. Nada encontrou até que, de súbito, tropeçou num segundo objeto deposto num canto. Seu coração palpitava apressadamente. De Vidro apalpou o novo achado, depois o ergueu a meio metro da cabeça, para espiá-lo à claridade da brecha mais próxima. Mas a sequência de movimentos bastou para soerguer uma segunda nuvem, que encheu o aposento.
De Vidro enfezou-se por não ter evitado a última nuvem, quando já havia inalado a primeira. Mas tornou a cobrir os olhos e a esperar o que lhe pareceu lapso suficiente para as partículas de pó baixarem. Ao final, reabriu lentamente os olhos e verificou que estava na posse de um rolo ainda maior que o primeiro.
Animado e inquebrantável na resolução de pesquisar, de Vidro reencetou a perscrutação. Mas concluiu o exame sem encontrar outro objeto valioso. Então, exultante, estreitou os achados nos braços, espremeu-se contra os lados da fresta por que entrara e ganhou novamente o lado de fora.
Ao verem o Macaco sujo da cabeça aos pés, como um Porco do Mato após revirar na imundice, seus amigos riram-se à farta. Porém, como arrastava dois objetos grandes, logo se puseram sérios e correram-lhe ao encontro, mais tomados de interesse do que obsequiosos. À luz do sol, perceberam que um rolo era o texto do Antigo Testamento em seis colunas, cada qual numa versão diferente, e o outro, uma cópia do Contra Celso, de Orígenes de Alexandria.
De Vidro sentiu que aquele momento predestinado reservava-lhes mais, muito mais do que a descoberta de velharias. Não se conteve e exclamou:
-- A música levou-nos nas suas asas, para que vivêssemos o momento presente! Ela nos conduziu pela mão a estes livros...
Os Macacos já tinham ouvido falar da Bíblia. Também possuíam conhecimento da Hexapla, o primeiro dos manuscritos achados, e do Contra Celso. Mas Vidro não se referira ao conhecimento que é apenas um ouvir falar, um rumor que os maus ventos levam para lá e para cá. Referira-se à experiência da música que ele e seus amigos haviam escutado. A sinfonia que tornara possível a travessia fora diferente de tudo o que Vidro jamais tinha ouvido falar sobre a Bíblia.
Macaco de Vidro prosseguiu:
-- Ouvi dizer que Orígenes, que mandou copiar o primeiro e escreveu o segundo rolo que descobrimos, o fez para provar que o judeu Jesus foi o Cristo. A fim de verificar se as diferentes versões do Antigo Testamento realmente afirmavam isso, Orígenes mandou redigi-las verso por verso, em colunas paralelas.
De Telha indagou:
-- Mas por que compará-las, se eram traduções de um só texto? Não diziam todas, basicamente, o mesmo?
-- Não. As diferenças entre as versões eram consideráveis, o que levou Orígenes a alinhá-las e a realizar um longo trabalho de detetive sobre as colunas.
-- Mas as diferenças eram grandes a ponto de justificarem o escrever à mão um texto tão longo quanto o Antigo Testamento? E isso seis vezes? E em vários idiomas? E ainda com o cuidado de alinhar verso a verso o texto? insistiu Telha, perplexo.
-- As versões diferiam muito. Como as colunas paralelas do texto, às vezes, elas só se encontravam no infinito...
As palavras de Macaco de Vidro calaram fundo nos outros e até mesmo nele. Sem esperar, prosseguiu:
-- Orígenes não se deu tamanho trabalho à toa. Ele tinha um problema a resolver. Alguém precisava pronunciar uma palavra mais fundamentada sobre a grande questão judaica da época: se Jesus de Nazaré era o Cristo. Não foi por outra razão que Orígenes mandou incluir na Hexapla somente os livros do Antigo Testamento.
-- E o outro livro que achamos?
-- O Anti-Celso é a resposta de Orígenes ao primeiro libelo de um filósofo contra o cristianismo. Celso viveu no segundo século, quando a fé em Jesus começou a penetrar vigorosamente nos estratos privilegiados do Império Romano. Orígenes transcreveu palavra por palavra o livro de Celso, com o propósito de refutá-lo completamente. Por isso, o manuscrito pesa tanto quando o arrastamos.
De Vidro ainda falava, quando as pedras que tinham usado para cavar o poço disseram:
-- Até quando os homens ouvirão os mortos sem escutar o vento? Até quando lerão Moisés e Orígenes sem darem ouvidos à música que o oriental sopra?
Os quatro gelaram ao ouvirem aquelas palavras. Porém, não tanto quanto na ocasião em que as pedras da floresta haviam clamado. Até de Louça manteve-se composto.
-- Pedras, disse de Telha, quem vos comunicou esse incrível dom de falar?
-- Quem? Ora, quem... Não sabeis que, de pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão?
-- Como assim? perguntou de Louça, num esforço supremo.
-- Quando os homens não ouvem os mortos, nem o canto do vento, quando a ciência se faz bazófia, das pedras, Deus costuma suscitar filhos a Abraão.
-- En... Então sois filhas de Abraão? gaguejou de Louça.
-- Naturalmente...
-- E ainda naturalmente? disse cada vez mais espantado.
-- Sim. Num tempo em que os homens deixaram de ouvir Moisés, Orígenes, a música dos ventos e tantos outros mensageiros, as pedras não se limitam a clamar: fazem-se filhas de Abraão.
-- E Jesus? perguntou o descobridor do túmulo. Não deve também ser ouvido?
-- Não apenas ouvido. Ele é o assunto de que todos falam. “Quem é Jesus?”: esta é a pergunta que as eras formulam. Os manuscritos que descobristes foram compostos em razão dela. A descristianização que vemos grassar, em parte do mundo atual, não a deixa de ecoar. Mas a responde de um modo inverso.
-- Estudem os manuscritos, disseram por fim as pedras.
Depois dessa frase, nenhum outro som partiu delas. Por mais que os Macacos as interrogassem, cutucassem e até mesmo lançassem para cá e para lá, as pedras que haviam usado para escavar não lhes dirigiram mais a palavra. Tornaram ao seu estado natural, ao seu profundo sono.
Porém, os quatro tinham entendido, com inexcedível clareza, que o inquérito que empreendiam era muito mais amplo do que suspeitavam. Era sobre o tempo. E o tempo estava a exigir que os mortos lhes recontassem a antiga história de um novo modo.
E olharam para os manuscritos depostos no solo.