sábado, 12 de maio de 2012

O Inquérito dos Macacos (4)

"Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade."
(Carlos Drummond de Andrade)

NA TOCA DO URSO

O frio montês guardava surpresas terríveis na algibeira. E com o declínio do dia, quase sempre as sacava com as mais pérfidas intenções. Pelas cinco da tarde, um vento paralisante começou a soprar com tal força que Macaco de Caco temeu pelo grupo. Quem podia afiançar-lhes – pensou – que os descobridores do Mamute e do Homem, por ironia ou acaso, amanhã não se tornariam a descoberta de outros: um cubo d'água com quatro objetos, que o feitiço do tempo faria mais valiosos que a rocha que tinham encontrado?
De Caco já havia pensado naquilo antes mas, quando o vento norte uivou na geleira, não pôde deixar de mirar ideias de desistência, sob uma luz que as fez mais claras, brilhantes, irresistíveis como a sereia e seu canto aos ouvidos do náufrago. Julgou ser melhor tornarem à floresta, imediatamente, do que perecerem de frio ali. De Vidro, porém, descobriu-lhe os pensamentos:
-- Ânimo, ânimo! disse com o resto de força que reuniu e mais para si do que para o companheiro. O amor à verdade moveu-nos a este inquérito. Não podemos dar cabo dele por meio de uma desistência.
-- Amor, amor! exclamou de Caco. O mais inspirador, o mais elevado dos sentimentos, mas que tênues reflexos produz na vontade, símia ou humana! Quantas vezes o dia seguinte do amor é a desistência, o desencanto, a traição. Só um oráculo irônico, um decreto contraditório dos céus pode ter determinado que o mais nobre dos sentimentos desse à luz o mais pobre dos consentimentos...
-- Caco, não! disse horrorizado Macaco de Vidro. O compromisso que contraímos e tornamos firme por meio de um juramento não pode ser traído agora! Juntemos o brio ao amor, e a coragem ao brio, irmão. Prossigamos!
As palavras de Vidro exprimiam maior fidelidade do que sensatez, mais constância do que razão. Estavam impregnadas do inefável, que tem o estranho condão de espevitar os morrões fumegantes e reacender, uma a uma, as tochas da fé. Dir-se-ia que uma constelação invisível, assim incandescida, brilhou com ardor renovado no céu da alma de todos e foi responsável pela restauração daquela supremacia do espírito sobre as circunstâncias que leva às vitórias impossíveis.
Esse ardor permitiu que a caminhada se retomasse, embora para baixo, o que é dizer para fora do gelo. Enquanto desciam, um alívio crescente os felicitava. Porém, tão lentamente que parecia pingar-lhes na alma. A meia descida, quando a lua cheia projetava uma réstia de luz no caminho, ouviram um som forte e rouco vindo da vegetação rarefeita, e a silhueta de um Urso de pelos trigueiros emergiu dos arbustos.
Dar com um Urso àquela hora e naquele lugar era o cúmulo da má sorte, pensou de Caco, madrastaria do Destino, conspiração de Musas mal amadas, sabia-se lá o quê, menos acaso. De Louça gelou de medo, quando o Urso terminou de sair da mata e fitou-os com cara de fome. Desesperado, saltou como os Símios fazem num sem-número de situações. Mas vendo que os excessos cênicos não abalavam o Urso, nem inspiravam o grupo a arrostá-lo, de Louça sentou-se e tapou os olhos com os dedos, para não ver o ingente animal aviar seu banquete.
Com maior presença de espírito, de Telha arriscou a estratégia da camaradagem. Destemido, dirigiu-se ao recém-chegado:
-- Boa noite, senhor Urso!
-- Boa noite, Símio, respondeu-lhe o brutamonte.
-- Aonde vais a esta hora?
-- Vou para a toca. E vós?
-- Procuramos o abrigo em que dormimos na noite passada, mas ainda não o encontramos.
-- Hum... fez o Urso. Quereis juntar-vos a mim? Moro numa gruta espaçosa. Há palha bastante para cinco camas. E também alimento. Fui bem-sucedido na caça estes dias.
Ao ouvir a última frase, de Louça gelou novamente. Caco estava mais conformado com a situação, Vidro mantinha reservas, mas Telha pensou: “Não escaparemos, se nos quiser por manjar; melhor é aceitar-lhe o convite”. E o fez imediatamente, em nome de todo o grupo. Então, dirigiram-se à toca do Urso.
Conforme conversavam, no abrigo, os quatro sentiram aumentar a confiança no seu anfitrião. Tranquilizou-os descobrir que o Urso realmente estava na posse de um vasto estoque de carne, que as baixas temperaturas o ajudavam a conservar. E terminaram de recobrar confiança, quando o dono do frigorífico (pois o depósito de animais estraçalhados no interior da toca não era menos que isso) se pôs a ofertar-lhes carnes de toda espécie, acompanhadas de ervas de várias qualidades e cores. Só de Louça manteve desconfianças. Pensou: "E se for um serial killer?". Mas, como o metabolismo é capaz de prodígios, ao longo da comilança, também se relaxou.
Após terem-se regalado com as iguarias ou interrompido o jantar, conforme o caso (ou o tamanho do estômago de cada um), os convivas puseram-se a conversar animadamente. Discorreram sobre asssuntos amenos e, ao final, o Urso perguntou aos seus hóspedes:
-- Que fazeis em lugar tão frio? Não preferis o calor do sopé da montanha?
-- Em matéria de preferência, inclinamo-nos para a floresta, respondeu de Telha. Mas nos demos uma missão. Por isso estamos aqui.
-- Missão? perguntou o Urso. De que espécie?
-- De uma espécie especial: investigação da origem das espécies.
-- Hum... fez o Urso intrigado. Entendo. Que achais das ideias de Darwin sobre esse assunto?
-- Geniais, respondeu de Telha. Mas nos reservamos pensar sobre o tema de modo menos pretensioso, menos grandioso, por assim dizer. Não temos, como Darwin, a intenção de encontrar uma explicação evolutiva válida para tudo, dos abióticos aos Ursos, Símios e Homens.
Havia lisonja naquela resposta incompleta. De Telha continuou:
-- Vejam o caso da origem da vida. O neodarwinismo propõe que o primeiro ser vivo formou-se por ligação espontânea de moléculas, no interior de um caldo primitivo. A explicação vale para todo o espectro da vida. De acordo com os cientistas, todos os seres vivos provêm dessa origem espontânea. Desconfio que explicação de tão amplo alcance esteja fora dos domínios da ciência e dentro dos da metafísica. A maior descoberta empírica de todos os tempos não a poderia infirmar...
O Urso era dono de uma sabedoria enigmática. Pouco falava, muito escutava e ainda mais refletia. De quando em quando, provocava os interlocutores com questionamentos sagazes. Após ouvir atentamente de Telha dissertar desse modo sobre a origem da vida, falou-lhe:
-- Há uns quatro séculos, os Homens propalam que o céu visível é um quadro muito mais miniaturizado do que pensavam. O tamanho real dos objetos do quadro é muito maior, pois estão a distâncias incalculáveis: as várias origens que propões para a vida na Terra não podem ter ocorrido também nessa escala cósmica?
De Louça, cada vez mais à vontade, interveio:
-- Sem dúvida. Se a vida engendrou-se muitas vezes e de muitas maneiras, numa escala tão vasta, por que a origem espontânea dela, como a ciência a descreve, e a criação divina, que as religiões propõem, não podem ser ambas verdadeiras? Pergunto-me se, ao admitirem a imensidão e a eternidade do cosmo, os cientistas não estão a introduzir as premissas de que decorre a conclusão da origem divina da vida.
-- Os físicos teóricos cada vez mais aventam a possibilidade de o Universo ser um Multiverso, isto é, um concerto de mundos, dos quais o nosso é somente um, atalhou o Urso. A maioria pensa que esses múltiplos Universos são regidos por diferentes conjuntos de leis naturais, cada qual mais ou menos propício à formação da vida como a conhecemos.
-- Alarguemos as vistas do nosso intelecto, respondeu de Louça, alarguemo-las extremamente, e veremos por uma intuição claríssima que, num Multiverso eterno, tudo quanto é possível acontece. Portanto, se a vida pode surgir de várias maneiras, todas essas diferentes origens devem ter-se verificado. A origem divina é uma das possibilidades: como não a levar a sério? Como considerá-la mera superstição?
-- Humm, tornou a fazer o Urso, prolongando ainda mais o som no final. O tema do Universo eterno lembra os antigos filósofos gregos, não lembra?
-- Hum, murmurou Macaco de Louça, imitando o seu interlocutor sem o perceber. O mal é que se tornou comum mutilarem a tradição dos filósofos, quando a retomam. Os antigos gregos consideravam o Universo eterno, mas invariavelmente encontravam lugar para o divino no seu interior. Não é o que ocorre nos nossos dias. A obsessão do Homem atual por excluir o divino do mundo arranca o alicerce lógico da sua ciência. Afinal, se o Multiverso é eterno, um nível de seres divinos deve ter-se formado no seu interior.
E engastou no discurso o fecho da angústia:
-- To be or not to be: that´s the question! Ser ou não ser como os humanos é a questão! Se seguirmos os nossos colaterais, o inquérito em que nos empenhamos terá um rumo e uma conclusão. Seremos vistos pela comunidade símia como pouco mais que Macacos humanizados. Se divergirmos deles, a direção e o final da nossa investigação serão outros. E ainda terminaremos como autênticos Símios. Temos os pés plantados nessa encruzilhada.
Ao Urso, a discussão pareceu ajudar a digestão do antepasto. Mas achara a conversa muita para comida pouca; já aos Macacos, ela parecera pouca para comida muita. Por isso, continuaram a conversar, e o Urso foi completar a refeição. Satisfeitos todos, foram dormir nas camas fofas de palha que o Urso providenciara.
O frio na gruta castigava mais os Macacos que o Urso.