“Visito os fatos,
Não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz?”
(Carlos Drummond de Andrade)
O HOMEM E O MAMUTE
À frente da floresta onde Macaco de Vidro e seus pares tinham vivido, fitando-a como a um céu de esmeraldas arreado por anjos, erguia-se uma imponente cadeia de montanhas com picos vestidos de branco. O grupo escalava arfante as veredas íngremes que davam no cimo. Envolvia-o uma bruma, que se adensava conforme ascendiam e o ar se rarefazia.
A cada rajada de frio que os ventos uivantes sopravam, a mente de Caco se enchia de pensamentos sombrios, como se o ar lhe invadisse o crânio e implantasse sugestões de desistência, estados de depressão e desacorçoamento. Não era diferente com os outros três. O afã que levara o grupo a abraçar a grande empreitada parecia evolar-se para os cumes da cordilheira. Súbito, pararam como se fossem membros interligados de um mesmo corpo consumido pelo interminável caminhar. Entreolharam-se a se perguntar com a vista e a expressão devastada o que lhes subia ao coração.
-- Não aguentamos mais caminhar. Melhor é buscarmos abrigo, exprimiu de Vidro.
Tão unânime foi o assentimento a essas palavras que os outros sequer contestaram. Julgaram desnecessário acrescer algo à conclusão de de Vidro, pois espelhava os pensamentos de todos. Imediatamente, puseram-se a procurar uma caverna, uma toca, um coberto, ainda que exíguo, onde se pudessem refugiar. Após estafante varredura do local, finalmente avistaram um antro que parecia escavado na parede de uma elevação. Submetidos que estavam, vergados de exaustão, meteram-se ali, novamente sem pronunciar palavra.
Então dormiram a solto sono. Ao acordarem, como tinha sido regra desde o princípio da marcha, banquetearam-se com escassos frutos subtraídos do arvoredo local. Beberam bocados de água. Ao final, sentindo-se renovados como se houvessem tragado coragem e deglutido ânimo, retomaram o ataque ao cimo.
Ao sol da manhã, lograram maior avanço que o do dia pregresso. A ponto de, pelas doze horas, já terem alcançado a maior geleira da região e começado a explorá-la. Entrementes, Macaco de Louça avistou algo semelhante a uma rocha de gelo, à distância de quase um quilômetro. Alterando sua rota numa direção oblíqua à de seus companheiros, avançou decidido para a intrigante formação, mas a meio caminho, inopinadamente, gritou:
-- Corram! Venham ver se deliro ou é um mamute no gelo!
À uma, os quatro saíram em pinote. Encontraram-se ao pé de uma rocha de gelo azul, com gradações de matiz e de brilho que a faziam esplender como um cristal banhado por luz. Tinha mais de mil vezes o tamanho de qualquer dos Macacos. E para estupor de todos, no âmago daquele colosso, jaziam um Mamute e um Homem totalmente preservados.
-- Céus! exclamou Macaco de Vidro. Um Mamute real! E um Homem com ele!
O Homem no interior da peça tinha o braço estendido em direção a um dos chifres do mastodonte, como se o houvera agarrado, no instante em que pereceram.
Macaco de Telha arriscou:
-- Devem ter sido arrastados por águas que ao depois congelaram. O Homem agarrou-se à presa do Mamute como a uma tábua de salvação.
De Louça pareceu discordar. Ou lucubrar:
-- Podem ter morrido em momentos distintos: primeiro o Mamute, depois o Homem.
Num instante, de Vidro lembrou-se e exclamou:
-- Mas os Mamutes foram extintos há milhares de anos! O Homem congelado que vemos usa calça e agasalho de estilo moderno. Seu aspecto é inteiramente atual. Não, não é possível que os Mamutes tenham vivido com o Homem contemporâneo!
-- Como não é possível, irmão meu, se os vemos lado a lado? indagou de Caco. Só podem ter sido congelados juntos, se viveram e morreram na mesma época...
Os outros Macacos calaram-se, ante a lógica irretocável de Caco. Como negá-la? Coube a de Vidro extrair a conclusão incoercível:
-- Se estás certo, de Caco, essa é a evidência mais importante já encontrada da evolução cultural. Se significar o que conjecturamos, essa pedra de gelo mostra que o Homem contemporâneo foi também pré-histórico.
-- Mais do que isso, ela mostra que uma cultura como a dos Homens de hoje existiu há milhares de anos, completou de Caco.
-- Mas cultura tão avançada não pode ter existido milhares de anos atrás, respondeu de Vidro. E acrescentou após refletir pouco mais:
-- Se criações como as dos humanos de hoje existiram há milênios, onde estão os vestígios dos automóveis, ônibus espaciais, edifícios, pontes e outras construções da época? Por que um povo tão adiantado não deixou registros escritos? Por que não escreveu sobre suas fantásticas realizações e sobre os próprios Mamutes, que conheceram?
Se de Caco exprimira-se com propriedade sobre o significado da descoberta, de Vidro não lhe ficara a dever com esse sutil reparo. O acervo literário dos povos atesta a inexistência de engenhos ultra-avançados, na Pré-História. Tampouco foram encontrados restos desses engenhos. No entanto, a prova da coexistência do Homem atual e do Mamute estava no interior daquele bloco de gelo azul, exposta ao olhar dos amigos. E parecia irrefutável.
De Vidro disse aterrado:
-- Nenhum animal do passado foi preservado tão perfeitamente quanto o Homem e o Mamute diante de nós. Se revirarmos os depósitos fósseis de todos os continentes, não encontraremos um único ser tão conservado quanto esses. Ainda assim, não queremos crer no que os nossos olhos veem...
E continuou:
-- A ideia de que a cultura humana desenvolveu-se de estágios antigos e simples a estágios recentes e complexos tornou-se um paradigma. A questão é saber o que se faz necessário para romper-se um paradigma. Que evidências devem ser consideradas suficientes para embasar a abolição de um modelo científico com o rol de crenças e pressupostos que originou?
De Louça interveio:
-- Esse grande bloco de gelo está a nos dizer algo sobre tuas perguntas. Está a nos dizer que o Homem atual e o Mamute coexistiram. Isso está lá provado. Porém a prova se insere num cabedal de evidências muito maior, acumuladas durante séculos ou mesmo milênios, que afirma exatamente o contrário.
-- Sim, concordou de Vidro, o cabedal a que te referes assegura que o Homem atual e os Mamutes não viveram na mesma época. Qual corpo de evidências terá, então, de ceder ao outro?
-- Não creio que a escolha deva basear-se no número de provas de um e de outro lado, redarguiu de Caco. Se for assim, há milhares de evidências de que o Homem moderno não coexistiu com os Mamutes e uma só em sentido contrário: o bloco de gelo diante de nós. Contudo, a verdade empírica não se constitui pelo número de provas. Forma-se antes pela força probatória seja de uma, seja de muitas provas, indiferentemente. Uma evidência, só e isolada, se for robusta o bastante, pode afastar um milhar em contrário.
A discussão assim encetada prolongou-se por muito tempo. Se afirmarmos que os autores da descoberta chegaram a uma conclusão, após discutirem, faltaremos com a verdade. Mas algo relacionado ao objeto do inquérito ficou assentado no espírito deles: a inexpugnabilidade de uma teoria à prova aumenta na proporção do alcance dela. Quanto mais ampla a teoria, quanto maior o número de fatos que explica, mais resistente se torna à prova individual. Mais obsessiva se faz, também, a crença na teoria.
Conforme mergulhavam nesses pensamentos, os amigos sentiam crescer a desconfiança de que a evolução das culturas mais simples às mais complexas não seria absolutamente abalada pela descoberta tremenda que tinham feito. Mesmo que cientistas investigassem o bloco de gelo até a medula, o paradigma da evolução cultural não seria ameaçado.
De Vidro e seus pares entenderam que a evolução de Homens e Macacos a partir de ancestrais comuns é uma dessas ideias humanas de alcance extremamente amplo. Significa que todos os Homens e todos os Macacos, de todos os tempos, evoluíram daqueles ancestrais. E tremeram ao pensar que, em certas condições, uma ideia assim elastecida pode tornar-se indesafiável por fatos, quaisquer que eles sejam, e se convolar em verdade a priori. Enfim, num credo.
Esses pensamentos infundiram secreto horror aos amigos. Macacos estão acostumados a procurar o alimento do almoço, ou seja, a pensar em função de dificuldades práticas, até mesmo prementes, como merecer o amendoim ou a pipoca, que o Homem lhes atira no Zoológico. Das três perguntas com que um humano se tortura (De onde venho? Quem sou? Para onde vou?), só a última interessou realmente aos Macacos, nos últimos milhões de anos. Ainda assim, num sentido exageradamente imediato.
Mesmo quando se excedem, quando ultrapassam limites, Macacos chegam no máximo a precárias sínteses. E logo depois as esquecem, perdem-nas de vista assim como à presa que lhes escapa das garras, no instante em que a abraçam.
Por tudo isso, num rasgo de intuição, os amigos não julgaram sensato, antes desconfiaram da tentação de aderir a um saber como a ciência humana das origens, com pretensões universais de validade. Mais provável lhes pareceu que a precária síntese que perseguiam se ocultasse fora dos lugares universais daquela ciência. Não se tratava de concluir: todos os Macacos vieram, ou não vieram, dessa ou daquela espécie ancestral. Os Símios podiam ter diferentes nexos de ancestralidade. Podiam derivar de mais de uma espécie. Assim como os fatos podiam abranger exceções às mais confirmadas leis científicas.