terça-feira, 1 de maio de 2012

O Inquérito dos Macacos (1)


“A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.”
(Carlos Drummond de Andrade)

UM RAIO DE LUZ

A manhã resplandecia como diamante saído das mãos do ourives. A atmosfera estava dotada da mais perfeita transparência. Cruzando num átimo suas quilométricas partes como se fossem inextensas, raios de sol chegavam à floresta, onde espécies sem número compartilhavam os dons da existência. Cheiros exóticos, fragrâncias mil espalhavam-se, no interior do lugar idílico, enquanto os seus habitantes se extasiavam com o inarrável esplendor daquela manhã. Uma animação vigorosa, um elã incomum preenchiam até os seres mais lânguidos, estimulando-os e quase ordenando que brincadeiras se organizassem, exercícios fossem realizados, e diálogos, entabulados para coroar com palavras a cena suprema.
Dos entes que haviam erigido seu lar na mata, um gozava da proeminência, da realeza tácita entre os demais. E não era o Leão, por intuitivo que fosse supô-lo, mas o Macaco. A fina inteligência, a habilidade de pensar a vida, sem se perder em abstrações, aliadas à destreza para executar o que se propunha, eram o cetro invisível que emprestava ao Macaco a mais incontestável realeza.
Contudo, naquela manhã, Sua Majestade contrastava com os outros moradores do impressionante colosso verde a inspirar e expirar a espaços ritmados. É verdade que, como todos os outros entes que ali residiam, o pensador da floresta se sentia inspirado, poder-se-ia afirmar até inebriado, pelo feitiço a emanar de cada recôndito do gigantesco verde. Mas à diferença dos outros, o Macaco tinha um ar intrigado. Mirava um raio de luz, que se materializava num feixe semelhante a névoa, a se insinuar entre as copas das árvores e se refletir na face tranquila de uma poça d’água.
Disse o Macaco ao Rouxinol, que pousara numa clareira próxima:
-- Amigo, tu que és exímio na arte do canto, mas cantas sempre escondido, dize-me: por que a luz que se exibe onde passa vem-se ocultar no escuro desta floresta? Que faz o ser que tudo revela desejar se esconder na mata?
-- Quem me chama? Quem se dirige a mim? perguntou o Rouxinol desconfiado. Tu, Macaco, tu me chamas? E como te chamas?
-- Macaco de Vidro é meu nome.
-- Como? Macaco de quê?
-- De Vidro, nobre cantor. Ma-ca-co de Vi-dro.
-- Ah, de Vidro. E quem te atribuiu tão estranho nome?
-- Meus pais. Nem poderia ser de outra forma. É costume ancestral dos Símios os pais nomearem os filhos. Desde que os Antropoides se diferenciaram dos outros Primatas, tem sido assim.
-- Quem foram esses outros Primatas? indagou o passarinho surpreso.
-- O nome já diz: foram primos. Primos dos Antropoides. Mas, perguntava-te, por que a luz que se exibe onde passa vem-se ocultar na floresta? Vou simplificar a questão: por que a luz bate na poça d’água?
-- Ah, agora entendi... Vejo que te referes àquela poça, não é? A luz bate nela, porque está no seu caminho, afirmou o Rouxinol com ar meditativo.
-- Disso estou compenetrado, respondeu-lhe o interlocutor. O que me incita o intelecto não são tais coisas. É antes a flutuação da ordem. Por que a luz, que se apraz em espargir-se livremente no firmamento, no éter, no nada, deixa-se aprisionar no labirinto da mata?
-- Ah, isso não posso responder, admitiu o Rouxinol. Meus voos são lentos e baixos. Não tenho como acompanhar a luz em suas viagens, para desvendar-lhe os mistérios e entender os porquês de suas trajetórias.
Ao avistar Macaco de Vidro a debater essas coisas com o Rouxinol, um grupo de Símios se aproximou. Assustado, o Rouxinol bateu asas. Foi esconder-se numa árvore. O grupo acercou-se. Era formado por três Antropoides: Macaco de Telha, Macaco de Louça e Macaco de Caco. O primeiro indagou ao que estivera entretido com o Rouxinol:
-- Irmão, que conversavas com aquele Pássaro?
-- Que bom é me perguntarem! Preciso mesmo falar-vos. Estou num dilema. Outro dia encontrei um Macaco fugitivo do Centro de Pesquisas. Estava fora de si. Por muito tempo, ele e outros Macacos tinham sido estudados, judiados, até torturados por pesquisadores de drogas para combater moléstias humanas.
-- Não diga! exclamou Macaco de Caco. E por que testavam drogas para Homens em Símios?
-- Por causa da semelhança genética entre as espécies primatas, respondeu de Vidro. Para não se matarem e se torturarem com drogas perigosas, matavam e torturavam Macacos!
-- Homens me mordam! Como podem chegar a esses extremos! Como se atrevem a cometer tais atrocidades! bradou Macaco de Telha, num acesso de fúria. Pouco a pouco, porém, abrandou-se e arrematou:
-- É a velha história da semelhança genética entre Homens e Símios! Cobrem-nos com essa fama, esse estigma, há 200 anos! Não bastasse e ainda se põem a nos torturar e nos matar para entender como funcionam. É o cúmulo. A ciência humana é chegada ao cúmulo de suas contradições...
-- Precisamente! Concordo com o que dizes. Ocupei-me desses pensamentos a manhã inteira, atalhou Macaco de Vidro. Basta! Basta de devaneios sobre a semelhança de Homens e Símios! É hora de passarmos a questão a limpo. É hora de descobrirmos, sozinhos, se Homens e Símios têm a mesma ancestralidade. Mesmo!
-- Bravo! gritou Macaco de Caco. Desconhecem a condição símia, as agruras de ser Macaco. Alegam ser nossos parentes. E ainda passam a nos torturar e matar, quando à sua moda se certificam de que o são. Vamos passar essa história a limpo, do princípio ao fim. Companheiros, devemos unir-nos para investigar as nossas origens!
Macaco de Louça ponderou:
-- Os Homens sequer resolveram de todo a questão da sua ancestralidade. Há séculos discutem-na, sem chegar a consenso sobre importantes pontos. Não é possível esperarmos que o façam. Façamo-lo nós. “Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer”.
-- Bravo, bravo! bradaram em uníssono os outros.
Nesse momento, as pedras que estavam ao redor do grupo clamaram:
-- Era tempo! Era tempo! Faltava esperarem todos os bichos do mundo sofrerem os mesmos abusos, para fazerem alguma coisa! Faltava esperarem a selva acabar, para se porem a investigar!
O inesperado clamor das pedras chocou os moradores da floresta. Mais do que os outros, porém, os quatro símios ficaram aturdidos. Alguns minutos depois, restabelecidos, refletiram a respeito do grito que lhes ferira os ouvidos. Concluíram que as pedras apoiavam ativamente a sua iniciativa, ainda que lhes censurassem a demora em tomá-la.
Então, os quatro animais celebraram um compromisso. Juraram despender todo o esforço que lhes fosse possível para investigar e elucidar, cabalmente, o palpitante enigma da sua origem. De onde surgiram os Símios? Como se originaram?: doravante, deviam tentar responder juntos essas perguntas, a qualquer custo.
Conceberam para isso um plano. Excursionariam aos mais diversos ambientes da Terra para buscar as respostas às perguntas que se tinham proposto. Viajariam a uma grande geleira, a um deserto, a uma mata costeira e ao mar, para pesquisarem e quiçá entenderem o que impede a vida de surgir em certos lugares, enquanto se desenvolve e se molda em outros.
Assim, a porta da verdade se abriu a quatro novas metades. Quem sabe entrariam por ela os primeiros Símios... De qualquer modo, ao vasto empreendimento investigativo que conceberam, nossos quatro amigos denominaram “o grande inquérito”. Um intelectual humano típico chama-lo-ia um processo kafkiano.