“Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.”
(Carlos Drummond de Andrade)
O CÉU ESTRELADO
A noite principiava, quando os Macacos resolveram sair um pouco para tomar ar fresco, após o sofisticado mas angustioso debate que haviam recém mantido. Ao deixarem o claustro rochoso em que se tinham confinado, deram com um céu magnífico, de um negro profundo só contrastado pelo rutilante caminho de estrelas que os antigos apelidaram Via Láctea. Como o dia animava aquele quadro com o movimento e a sinfonia dos pássaros, a noite o mergulhava numa calma e silêncio tais que a alma do observador gelava.
O céu estrelado, palavra final de beleza, sempre constituíra a expressão acabada do mistério da existência. Não foi por outro motivo que esteve em quase todas as manifestações religiosas primitivas. O homem pré-histórico já via o céu como morada dos deuses. Mas quantas vezes essa obra cinzelada de artistas ou esse lance de dados, a depender da filosofia esposada, é esquecido, banalizado ao ponto da insignificância? Logo ele, cujo aspecto inumerável e imensurável parece ditar, linha a linha, a constituição da miséria do espírito que o contempla...
No deserto, a expansão do céu costuma ser extraordinariamente límpida. Nenhuma nuvem lhe oculta as maravilhas, a não ser, muito em raro, uma ou outra de areia. Por isso, ao primeiro e fugaz vislumbre que tiveram do céu noturno, os amigos alcançaram a compreensão imediata de que aquela escuridão magnífica, fosse o que fosse, tinha uma confissão a dizer-lhes. E resolveram tardar um pouco, para que a pudessem tomar.
Contaram para isso com a prodigalidade do oásis, em frutos, raízes, sombras e água. A bem da verdade, a formação vegetal que tinham encontrado não era menos que um microcosmo, um sistema de preservação da vida provido de tudo o que seres vivos necessitam ou podem necessitar, embora rodeado de areias finas cujas temperaturas excediam os 30 gaus. Não é despropositado, pois, afirmar que um oásis tão bem constituído convidava-os a prolongar a temporada tanto quanto fosse preciso para esquadrinhar completamente o céu, como pretendiam.
Foi o que os quatro fizeram, por uma semana. De dia, auscultavam o lugar por inteiro; de noite, sondavam o firmamento. Ao todo, discerniram perto de três mil estrelas. Mas se detiveram nas que se agrupam em constelações, como Andrômeda e as duas Ursas, cujas formas debateram sem consenso possível. No crepúsculo do sétimo dia, quando se dirigiam ao bosque em meio a animada conversação, surpreenderam-se com um Burro a pastar. O animal tinha as orelhas bem retesadas, para capturar os sons mais sutis. Como óbvio, havia escutado a conversa dos quatro.
-- Também me interesso por estrelas, disse sem mais.
-- Que bom! admirou-se de Telha. Temos um novo companheiro!
E perguntou-lhe com tanto rodeio quanto o outro empregara ao abordá-los:
-- Mas como fazes para enxergá-las, se tens a cabeça voltada para o chão?
-- Não entendeste bem. Meu jeito cabisbaixo de andar tem lá seus motivos. Mas tenho o focinho e a boca para baixo, não os olhos. Nada me escapa à vista. Vejo com a mesma perfeição com que ouço.
-- Então deves ver muito bem, pois tens as orelhas bem longas... declarou Telha.
-- Não imaginas quanto! concordou o Burro. E meu focinho, notaste-o?
-- Sim, caro amigo. É ingente.
-- Exageras, mas é tão grande quanto poderoso. Cheiro com perfeição todos os cheiros!
Essas palavras foram a causa de um verdadeiro despertamento dos quatro. Subitamente, atinaram que o seu novo interlocutor tinha os sentidos especialmente acurados. Caco imaginou inclusive que, se entrassem em entendimento, um bicho com tal acuidade talvez pudesse render-lhes um ótimo meio de transporte. Viu-se instalado no dorso do cargueiro, o que lhe acordou os demônios da prostração. E apelou para a lisonja:
-- Tens os sentidos mais poderosos do reino animal!
-- Longe disso, replicou o Burro. Mas me bastam para o gasto e ainda deixam sobras. Também sei pensar escorreitamente. Deduzo, conto, calculo.
Algo naquelas palavras denunciava um sentimento muito particular, mas difícil de discernir. Descartaram a possibilidade de se tratar de soberba, pois desta as palavras do Asno tinham somente a forma. Faltavam o desvanecimento, a ufania, a inchação psíquica, enfim tudo o que constitui o núcleo vital da soberba. Antes, o tom em que o Burro se dirigia a eles era uma antítese daquele sentimento. Mesmo assim, certa dúvida permaneceu sobre o que animava o Asno.
-- Então, dize-nos: quantas estrelas se veem no céu? interveio de Telha.
-- Milhares, respondeu o Burro, mas existem ainda muitas outras.
-- Quantas? insistiu o Macaco.
-- Infinitas.
-- Estás a afirmar que o Universo é infinito!
-- Sim, embora isso tenha pouco relevo.
-- Como assim? O Universo ser ou não infinito tem pouco relevo?
-- Tem-no enquanto questão teórica, respondeu prontamente o Burro. A ciência e a filosofia dependem das regras do pensamento conceitual. Elas não as podem trair, sob pena de perderem o próprio sentido. Porém, essas regras se submetem a um imperativo prático de ordem superior: animais só pensam o que os ajuda a realizar tarefas. O Universo infinito não os subsidia nas suas lidas diárias. Assim, não tem relevância.
-- Então a Astronomia é uma disciplina inútil?
-- Não em absoluto. Tudo depende do modo como a desenvolvem. Os antigos fizeram da Astronomia uma Astrologia. Deram-lhe, pois, um sentido prático. Pensavam que os astros deviam ser estudados para se determinar a sua interferência na vida humana. Verdade é que entenderam os movimentos dos corpos celestes muito mais imperfeitamente que o Homem atual. Mas adotaram o princípio certo. Preocupa-me esse princípio, mais que o volume do conhecimento. O conhecimento deve permanecer em harmonia com o seu imperativo prático. Desconfio que os Homens perderam o contato com essa harmonia, ao expandirem descontroladamente o seu conhecimento.
-- Então, lês o Zodíaco todos os dias? questionou de Vidro inopinadamente.
-- Leio as estrelas, estudo-as em busca de suas possíveis mensagens. Não leio horóscopo.
-- E por que não o lês? insistiu de Vidro.
-- Por razões muito práticas. Tenho um amigo, Burro como eu, que não vai trabalhar sem ler seu horóscopo. Por ter nascido em janeiro, crê piamente que a constelação de Capricórnio rege-lhe a vida. Outro dia, leu por engano o horóscopo de Gêmeos e foi trabalhar. Como de costume, só fez o que estava recomendado pela constelação cuja mensagem lera. No fim do dia, seu dono deu-lhe um balde de aveia. O Burro achou que era um prêmio dos astros por sua fidelidade. Empapuçou-se do cereal até não poder. Terminou com uma indigestão. E quando volveu ao horóscopo para entender como o bem se lhe tornara mal, constatou o erro de leitura. Concluiu que a aveia não lhe fora algum prêmio, e a indigestão manifestara a ira dos astros por sua pouca fidelidade em ler a mensagem das constelações. Entendes por que não creio em horóscopo? Não quero acabar como esse amigo. E prezo meu estômago...
De Vidro respondeu:
-- O que expuseste aplica-se à inteira saga da razão, desde que fez sua aparição sobre a Terra. A disjunção que o Homem atual criou, entre razão e fé, nunca foi formulada antes e é profundamente enganosa. Ela encobre uma outra, entre a razão divorciada do seu imperativo prático e a razão em núpcias com ele. Essa é a disjunção que a História da Razão mais demonstra. Fé não é credulidade, superstição, ilusão. É simplesmente a razão em núpcias com o sentido prático da existência. Como tal, ela se justifica pelo seu efeito, pelo resultado prático que produz, não pela descrição do mundo de que se serve. Só um tolo pensaria que o ato de crer tem a finalidade de descrever o mundo. Verdade é que a fé pode enfermar, quando se desgarra da razão, quando se protege das críticas roedoras do intelecto e se aliena. Mas essa não é a situação normal. O problema do tempo atual é ter plasmado um conhecimento contrário ao sentido prático de outros conhecimentos. É ter reincidido na histórica disjunção da razão e seu imperativo prático.
O diálogo, assim encetado, prosseguiu animado por mais algum tempo. Os cinco Mamíferos falavam, enquanto a noite caía sobre o deserto. Ao final, de Vidro perguntou ao Burro:
-- Disseste que teu amigo possui um dono. E o teu, onde está?
-- Não o tenho mais. Como um novo Midas (*), tornei-o um ex-dono, ao aliar a fé à razão e aos sentidos. Desde então, ele saiu pelo mundo a dizer-se Apolo. Assumi a fé que considero adequada à minha natureza; ele assumiu a divindade que pensa convir à sua. E perdeu a razão.
-- Teu ex-dono não disse que creste por seres Burro?
O Asno olhou para de Vidro com o olhar cabisbaixo característico da sua espécie. Foi a única resposta que lhe ofertou. O olhar atravessou de Vidro e perdeu-se na imensidão do deserto.
Junto com os outros, de Vidro continuou a caminhar, para lá e para cá, agora porém em silêncio. As últimas palavras do Asno reverberavam-lhe na mente: "Perdeu a razão. Perdeu a razão". Sim, e nunca mais desasnou.
Sobre os cinco, a verdade esplendia os seus fogos.
(*) Na mitologia grega, Midas foi o rei ao qual, num acesso de fúria, Apolo deu orelhas de burro. Em outro mito, Midas recebeu de Baco o poder de transformar em ouro o que tocasse.