“Em vão percorremos volumes.”
(Carlos Drummond de Andrade)
UMA PALAVRINHA
Os Macacos tiveram de interromper a discussão para caçar. Se é que se pode denominar assim o tentar abater as raras Aves que pousavam nas ruínas em busca de Insetos. Pois as carreiras e saltos que os amigos deram, no esforço de capturar os voláteis, as tocaias que lhes armaram, os pios que arremedaram jamais alcançaram o objetivo e só vagamente imitaram o ato de caçar. No fim, tantos botes foram tentados quantos malograram. E, em vez de abater os Pássaros, de Vidro e seus companheiros tiveram de compartilhar os Insetos locais com eles. Cada um, pois, os tragou como pôde e tentou aproveitar o resto do dia.
Mas nem isso lograram, pois a lua não se alteara no céu e, embora muitas, as estrelas não deram para dourar a noite. Tão grande sequestro de claridade suprimiu a chance de boas conversas e brincadeiras. E para tudo perder, o lúgubre do lugar expandiu-se, como metal no crisol. De sorte que os quatro ficaram ao redor taciturnos. Por fim, vendo não haver conserto para o oco do estômago e o enfado da noite, foram dormir.
E se o jantar fora parco, e a noite, insípida, o repouso subsidiou-se da fraqueza que os Macacos tinham acumulado. Um sono pesado caiu sobre todos. E sonharam que Anfíbios ofereciam-se a eles como refeição, árvores brotavam espontaneamente do solo, e as rochas deitavam água em abundância. Comeram e beberam, pois, nos seus sonhos, tudo o que lhes faltara por longos dias naquele deserto.
Ao despertarem, comentaram os sonhos que haviam sonhado. Mas pronto se lembraram do conselho que as rochas lhes tinham transmitido para que estudassem os manuscritos e se puseram a fazê-lo.
Tomando o rolo maior, de Vidro leu o latim “In principio creavit Deus caelum et terram”. E o traduziu:
-- “No princípio criou Deus os céus e a terra”.
Como os quatro sabiam que o verso original tinha sido escrito em hebraico, de Vidro imediatamente saltou para o verso naquele idioma:
-- “Bere’sit bara elohim et hasamayim we’et ha’ares”.
E como todos se calaram ao ouvi-lo, o Macaco continuou a ler os versos seguintes, sobre os dias da criação. Quando entrou no trigésimo-quinto, que é o quarto do capítulo 2 de Gênesis, seus olhos reluziram de um modo diferente, ao se encontrarem com as palavras “Istae sunt generationes caeli et terrae, quando creata sunt”. De Vidro leu-as para os outros, assim como o verso correspondente em hebraico: “eleh toledot hasamayim weha’ares behibare’am”.
-- Essas palavras significam “Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados”, explicou ao concluir.
E emendou no mesmo fôlego:
-- O último verso é muito semelhante ao primeiro que lemos.
Caco aproximou-se do irmão que tinha o rolo nas mãos para comparar os dois versos. Viu novamente que o primeiro dizia: “No princípio criou Deus os céus e a terra”; e o outro: “Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados”.
-- As palavras céus e terra aparecem nos dois versículos, observou de Vidro. E o verbo ligado a elas é o mesmo: bara, que significa criar. O sujeito que pratica a ação de criar também é idêntico: Deus. Portanto, os dois trechos formulam a mesma afirmação.
-- Estamos diante de uma repetição? perguntou Caco.
-- De certo modo... respondeu o outro, relativizando sem convicção o que recém dissera.
-- Quero dizer... É sem dúvida uma repetição, completou.
-- Mas o adjunto do versículo 1, “no princípio”, não aparece no outro verso, replicou Caco.
-- O adjunto não, mas a locução que está no seu lugar, eleh toledot, tem o mesmo significado de origem ou princípio. Portanto, o sujeito, o verbo, o objeto e as locuções de tempo dos versos equivalem-se.
-- Bem, disse Caco, se é uma repetição do último verso, o primeiro não se refere aos dias da criação, como faz aquele?
-- Foi a impressão que tive e abalei-me, ao ler o quarto versículo do capítulo 2, ainda há pouco. Quando pensam que “No princípio criou Deus os céus e a terra” refere-se a um tempo anterior aos sete dias, as pessoas negam a equivalência entre esse verso e o que se inicia com as palavras “Eis as origens”. Isso introduz a ideia de uma criação em dois tempos. Há séculos, as principais correntes da teologia cristã enveredaram por esse caminho interpretativo.
Caco atalhou:
-- Mas os teólogos podem ter-se confundido, na medida em que o cristianismo se universalizou e perdeu o contato mais íntimo com a língua hebraica. Um indício desse desvio pode residir no fato de a criação em dois tempos não ser facilmente encontrada, na literatura judaica antiga. O judeu Flávio Josefo, por exemplo, interpretou “no princípio” como no primeiro dia da criação. Assim ele expôs o primeiro versículo de Gênesis, no início de sua obra sobre as Antiguidades judaicas. E é natural que o tenha feito, se o texto da criação em hebraico equipara os versículos que analisamos.
De Vidro lembrou:
-- A criação em dois tempos era uma ideia grega. Tanto a religião primitiva como a olímpica ensinavam que primeiro se formou um Caos, depois a ordem. Para os gregos, a criação desdobrava-se nessas etapas. Porém, os judeus não adotaram semelhante ideia. O autor do 2º Livro dos Macabeus é um exemplo, pois admoestou: “Meu filho, olha para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e pensa bem que Deus as criou do nada, assim como todos os homens”. A criação do céu e da terra, no primeiro verso de Gênesis, e a de tudo o que neles há, inclusive os homens, narrada nos sete dias, são mencionadas sem distinções ou nuanças, como uma só sequência.
Enquanto os dois dialogavam, de Louça tinha os olhos pregados no manuscrito. Era evidente que estava num ápice de concentração. De repente, gritou:
-- O verbo hebraico, bara! Aparece nos dois versículos e também nos de números 21 e 27!
Os outros imediatamente releram os trechos citados por Louça.
-- Tens razão, reconheceu Caco. Mas aonde nos queres levar com a afirmação?
-- Bara é o mesmo que criar. Embora o capítulo 1 inteiro trate da criação, o verbo criar só aparece nos versos 1, 21 e 27.
-- Admito que é um uso bastante parcimonioso, disse de Vidro. Especialmente se considerarmos que bara é o termo que melhor exprime a ideia de criação.
Caco tornou a intervir:
-- Se nos afastarmos um pouco de Josefo, poderemos concluir que os sete dias não começam no versículo 1, mas no 3. Assim como o verso “Eis as origens dos céus e da terra” é um fechamento geral, as palavras “No princípio criou Deus os céus e a terra” formam uma introdução geral, um preâmbulo. Não descrevem ainda os sete dias.
De Telha permanecera em silêncio, até então, pois despendia um esforço particular: tentava entender e reunir as ideias dos outros num quadro geral. Mas a intervenção de Macaco de Louça levou-o a antecipar seu balanço:
-- Dois importantes pontos do texto atraíram-nos a atenção esta manhã. O primeiro é a equivalência entre o verso “No princípio criou Deus os céus e a terra” e o que diz “Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados”. Bara aparece nos dois. Para os judeus antigos, a obra da criação abrangida nesses versos foi realizada em sete dias. Por outro lado, nos versos 21 e 27, bara é empregado para descrever a origem de seres particulares dos céus e da terra: os grandes animais marinhos, as Aves e o Homem.
-- Esse modo de sintetizar é muito apropriado! concordou Caco. Induz à compreensão. Entre as palavras de abertura e de fechamento, que se referem à obra geral da criação, os sete dias descrevem os atos particulares de Deus. Neles, o verbo bara só aparece duas vezes. E em ambas é associado à bênção de Deus.
Caco indagou:
-- Isso não forma um... padrão? Se isolarmos os sete dias, deixando de parte a introdução e a conclusão introduzidas por “No princípio” e “Eis as origens”, os verbos haver, separar, ajuntar, aparecer, fazer, povoar são usados para descrever os atos criadores de Deus, com a exceção dos que aparecem associados às bênçãos divinas. A estes, só o verbo bara é ligado.
Caco tirara do texto a ilação extrema: a obra dos sete dias revela um padrão consistente no uso de verbos sempre variados para os seres não abençoados por Deus e de um único verbo (bara) para os seres abençoados.
De Vidro lembrou:
-- Os estudiosos mostraram que o termo toledot (“eis as origens”) aparece muitas outras vezes no texto hebraico de Gênesis. O verso 4 do capítulo 2 é uma dessas menções: a primeira delas. Em todas, o termo serve para delimitar uma história originalmente transmitida em separado. Portanto, toledot é um termo de ligação, um gonzo, no qual as partes de Gênesis giram. Se o primeiro verso do livro e o quarto do capítulo 2 têm valor idêntico, ele deve ser o de um toledot.
-- Sim, e a história dos sete dias foi originalmente autônoma em relação à que começa no verso 4 do capítulo 2, confirmou Caco. Cada qual foi escrita por autor diferente, em época também diferente. Até o nome usado para designar Deus numa delas é Elohim, e na outra, Iahweh ou Iahweh Elohim. Essa radical autonomia dos capítulos 1 e 2 nos permite pensar em diferentes nuanças da ideia de criação, num e no outro texto. Aliás, se for mesmo assim, o padrão que acabamos de identificar, no primeiro capítulo, pode não se repetir na obra do segundo autor.
A ideia de Caco causou algum estremecimento. Podiam dois autores de fontes bíblicas terem concepções diferentes sobre a criação? Não havia remédio para essa dúvida, a não ser lerem o capítulo 2 de Gênesis, com muita atenção. Os quatro entregaram-se, então, a essa tarefa. Leram todo o capítulo, do modo como tinham lido o primeiro. Notaram que os seres cuja criação é designada pela palavra bara, no capítulo 1, foram “formados” (wayiser, em hebraico) por Deus, no 2. É o caso do Homem, “formado do pó da terra” no verso 7, das Aves, “formadas da terra” no 19, e da Mulher, formada da costela do Homem no 22. Não lhes pareceu, portanto, haver dúvida: o padrão do capítulo 1 não se reproduz no 2, o que confirma a origem autônoma dos textos originais.
Verificaram mais que a associação de bara à bênção de Deus tampouco aparece em trechos esparsos da Bíblia sobre a criação. O que levou Caco a sugerir:
-- Se o padrão não se repete, deve ter sido adotado exclusivamente pelo autor do capítulo 1. Ele pode ter pretendido transmitir algo que nenhum outro autor bíblico afirmou. Pensemos: se o padrão tem por base a bênção, a ideia que introduz é de que criar, para Deus, é criar e abençoar. Portanto, os seres criados, mas não abençoados, nos sete dias, foram criados antes, quando também foram abençoados.
-- Mas isso não nos remete a uma criação em duas etapas, que vimos ter sido estranha ao pensamento judeu da época? perguntou Telha; e tinha boas razões para isso.
-- Remete, sim, admitiu Caco. O autor de Gênesis 1 foi uma voz dissonante, no que tange às duas etapas. Exatamente por isso, pode ter sido um precursor dessa ideia entre os judeus. E pode não a ter divulgado, para não ser hostilizado por pessoas que pensavam diferentemente.
-- Admitamos, disse de Telha. Mas a que parte essas conclusões nos levam? De que nos servem?
-- Se Gênesis 1:1-2 equivalem ao toledot do capítulo 2, verso 4, os sete dias começam quando eles terminam. Assim, o padrão um único verbo para os seres que recebem a bênção divina, vários verbos para os que não a recebem ressalta ainda mais. O padrão é uma mensagem implícita, um testemunho tácito, nas entrelinhas do texto, pois não pôde ser manifesto. Em termos de História Natural, ele indica que a criação foi precedida por outros atos originadores. É preciso considerar esses atos implícitos, para se entender a mensagem da criação em Gênesis. E se os considerarmos, o testemunho bíblico passará a ser de que o mundo foi criado muito antes do quarto ou quinto milênio antes de Cristo, em que Adão é situado.
-- A palavrinha bara... murmurou Caco. Não é ela a chave do texto que lemos? E a chave não abre a porta da sua verdade?
-- Queres dizer que esconderam a chave durante milênios? indagou Louça.
À pergunta de Caco e Louça, Telha pegou várias outras:
-- O discurso da ciência, não contradiz o da Bíblia? Não é a religião a miragem de benefícios como os dos sonhos que tivemos na última noite? E a paixão da ciência: não remove a que inflama o coração crente?
O próprio Vidro acompanhou-os nesse perguntar que era também catarse:
-- A paixão da ciência... murmurou. A paixão em geral... Não são elas a falsa lira? Não percorremos em vão os volumes de uma ciência que se perdeu?