“Esse é tempo de partido,
Tempo de homens partidos.”
(Carlos Drummond de Andrade)
A CAUDA DO PAVÃO
A marcha empreendida por Macaco de Vidro e seu grupo, após o brado das pedras, veio a ser épica. Excedeu a própria Grande Marcha, liderada por Mao-Tsé-Tung, tanto em extensão como em grandiosidade. Não deixou de ultrapassar também a penosidade daquela travessia. No entanto, a beleza dos caminhos que os amigos palmilharam, as sensações exóticas que experimentaram e o vulto das descobertas que lograram remiram todas as penas. O leitor não custará a entender por quê.
Ao se aproximarem de um ponto em que as árvores começavam a rarear e um calvo planalto substituía a selva, os quatro amigos depararam um Pavão a exibir com garbo a cauda multicolorida.
-- Salve, eminência! saudou-o Macaco de Vidro. Que fazes nestas paragens? Por que não te internas na floresta, onde há mais árvores para te ocultares?
-- Não me interessa ocultar-me. Nunca me interessou. Nós, os Pavões, impomo-nos pela exuberância de nosso porte. O avantajado de nossa plumagem, o colorido que dela emana são dignos de ostentação. Dois metros, repito, dois metros é a altura que alcançamos com esse adorno!
-- Mas que vantagem pode conferir tão pesada cauda? Não vives arcado debaixo dela? perguntou Macaco de Caco, como se ele próprio partisse sob aquele peso.
-- Ouviste falar de seleção sexual? Um Homem chamado Darwin mostrou que, em certas situações, os animais têm de lutar pela posse do sexo oposto. Principalmente os machos, pelas fêmeas. O resultado do embate é a seleção sexual. Só os mais aptos a conquistar o outro sexo sobrevivem, disse o Pavão empertigado.
-- Darwin, sim Darwin, o grande cientista! lembrou-se de Caco.
-- Grande, é verdade, retorquiu o Pavão, a uns infundindo impressão de respeito, a outros, de despeito. E prosseguiu impávido:
-- Grande, sim. Mas sobretudo esforçado. Os Homens deduzem de um modo estranho. Abstraem demais, sonham ao pensar. Darwin era assim. Nós, bichos, não. Pensamos sempre concretamente. Por isso, o que concluímos é invariavelmente mais útil que as vãs cogitações humanas.
-- Não fazes justiça aos Homens ao afirmá-lo, opôs-se Macaco de Telha. Homem e animal têm modos de raciocinar diferentes. Nenhum é superior ao outro. A perfeição do pensar humano é o abstrato, o genérico; a do animal, o concreto, o individual.
E completou, no mesmo fôlego, para não permitir que o colóquio derivasse do tema eleito:
-- Darwin mostrou muito bem o papel da seleção natural na evolução. Mas por que vossa cauda seria um exemplo desse processo?
-- Nossa cauda não se preservou por seleção natural, mas sexual, corrigiu o Pavão. São coisas distintas. Algumas espécies adquirem vantagem na luta pela sobrevivência, enquanto outras se extinguem. Isso é seleção natural. Outros bichos, como os Pavões, acumulam vantagens reprodutivas. Nossa cauda é infalível em atrair as fêmeas. É a razão do sucesso que granjeamos. Isso é seleção sexual.
-- Algo me intriga na vossa arenga, interveio de Louça, que até então se limitara a pesar as afirmações dos outros. As espécies não se extinguiram por grandes catástrofes, como quedas de meteoros, vulcanismo, liberação de gases de sedimentos marinhos? Qual pode ter sido o papel da seleção natural ou sexual para a definição das espécies que sobreviveram, nessas circunstâncias?
-- Nos cataclismos, o desaparecimento de espécies não se dá do mesmo modo que o de indivíduos. Homens e bichos são vitimados instantaneamente. As espécies extinguem-se muito mais lentamente, não pelas próprias catástrofes, mas por não se adaptarem à transformação ambiental que se segue. De sorte que a seleção, natural e sexual, não as catástrofes, é que determina as espécies que sobrevivem e as que saem de cena.
-- Entendo, afirmou de Louça, apenas para atirar habilmente a discussão numa direção inesperada:
-- Se a transformação ambiental é o que extingue, o mecanismo da seleção natural não pode ser a luta pela sobrevivência. Essa luta significa que as espécies se privam reciprocamente dos meios de sobrevivência, como Darwin afirmou: “Mais indivíduos nascem do que podem sobreviver”. Já a transformação ambiental, introduz condições mesológicas desfavoráveis a todos ou quase todos. Essas novas condições é que fazem escassear os meios de sobrevivência e perecer as espécies, independentemente da luta que travam.
Nesse momento, o Pavão enunciou, com ares de quem despede uma multidão, no encerramento de uma solenidade:
-- A evolução se conduz num quadro geral de harmonia, não de luta entre as espécies. Estas competem entre si, mas também se auxiliam reciprocamente. A floresta em cujo limiar estamos é a prova cabal do que afirmo: os seres que nela vivem agrupados não andam dispersos pelo mundo, porque ajuntar-se e cooperar com os outros os leva a prosperar.
-- A harmonia a que te referes, ponderou Macaco de Vidro, sem se importar com o solene das palavras do Pavão, está associada à ideia antiga de um Criador. A natureza é harmônica, porque foi planejada, criada e é conservada por Deus. Mas se assim é, por que os Homens desenvolveram sua ideia de evolução, prescindindo de Deus ou com intenção de negar a sua existência?
Ante essa indagação, todos quedaram calados. Não só o Pavão e os Macacos, mas a natureza inteira ao redor observou profundo silêncio. Parecia que congelara ou fora paralisada. Macaco de Caco arrepiou-se, na ausência total de som. Após um instante, dirigiu-se ao Pavão:
-- Obrigado por nos lembrares essas coisas. E pela aula que nos ministraste...
-- Não há de quê, trucou o Pavão, esperando ser recompensado com alguns insetos para devorar como paga de sua exposição.
-- A explanação foi mesmo notável, continuou a Ave. Sinceramente, não achais que sou merecedor de uma dessas comendas honoris causa que as Universidades humanas se aprazem em outorgar? Tenho realizado mais pela cultura universal do que muitos doutores agraciados com aqueles títulos...
-- Senhor Pavão, considere melhor o que diz. Tens méritos, mas não os encareças a esse ponto, corrigiu Macaco de Telha.
-- Sou egrégio, apenas isso! retrucou o outro.
Definitivamente, excesso de humildade não era um defeito do Pavão. Por estranha extrapolação, assim como cotejava a própria plumagem com a de outros seres e a encontrava superior, o Pavão se habituara a comparar o seu intelecto com o dos outros e a dessumir exatamente o mesmo. Tal vício perdera sua inteligência. Dificultara-lhe o raciocinar, ao menos em certas direções. Aos amigos, pareceu inútil prosseguir o diálogo naquelas condições. Preferiram despedir-se e continuar sua marcha.
Ao partirem, de Vidro segredou aos outros:
-- A missão em que estamos não é para pessoas inteiras. Os que o são ficam plantados no limiar da floresta.
E ao dizê-lo, marchou com os outros para fora.
Espreitavam-nos os perigos da gélida região montanhosa.