quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Inquérito dos Macacos (5)

“Meu nome é tumulto, e escreve-se
Na pedra.”
(Carlos Drummond de Andrade)

PEGADAS NA ROCHA

O frio fazia estalar os ossos, quando os amigos despediram-se demoradamente do anfitrião que lhes proporcionara as mais agradáveis horas da expedição até aquele ponto e, em plena madrugada, retomaram a descida da face montanhosa oposta à que os havia conduzido ao pico.
Em poucas horas, os quatro alcançaram um desfiladeiro, cuja extensão venceram com cuidado para não subirem desapercebidos os taludes que se multiplicavam na impressionante formação. Ao final, deram com um terreno árido e levemente ondulado, que lhes pareceu desértico. Pelo que se julgaram na trilha correta.
A paisagem transfigurara-se. Em vez do gelo e das árvores das montanhas, estendia-se um solo arenoso tão vasto que parecia encravar-se no horizonte. E em lugar do frio cortante e do aroma silvestre que a umidade extraía do solo, nas terras altas, um vento morno crestava as faces dos expedicionários. Contudo, curiosamente, cenários assim tão diversos tinham algo em comum: ambos guardavam mistérios.
No deserto em pleno altiplano, esses mistérios estavam concentrados em rochas alcantiladas, a intervalos de poucos quilômetros umas das outras, que ofereciam refúgio a criaturas bizarras, cuja variedade abrangia de Artrópodes a Mamíferos e bandos de Homens. O chão ardia durante as manhãs e as tardes, mas esfriava conforme a temperatura do ar declinava aos níveis das regiões temperadas. Dessas características principais, que se abrangiam na palavra rusticidade, o lugar derivava seu encanto próprio. Ensinava outrossim a lição de que o espaço, mais do que um dado abstrato, é condição de possibilidade da própria existência e só costuma albergar os fortes ou os muito cooperativos. Especialmente os muito cooperativos.
Após caminharem duas horas sob sol causticante, os Macacos viram um pequeno oásis, onde se detiveram. Dessedentaram-se na fonte que brotava como milagre do chão arenoso, admiraram as árvores dispostas ao seu redor e comeram-lhes os frutos pendentes. Por fim, como o calor aumentasse, refugiaram-se num rochedo escarpado, que se erguia atrás da fonte como dedo a apontar para o céu.
No interior do penedo, não se via um ser vivo, um único vegetal, à exceção de musgos que teimavam em cobrir algumas pedras. Rochas, porém, as havia por toda parte: nas paredes, no teto e, principalmente, no chão. Aliás, de tão numerosas, estas últimas atapetavam a extensão do piso como um tesouro de conchas que ocultam pérolas. O leitor logo entenderá por quê.
Não resistindo à oferta incomum de seixos, Macaco de Telha pôs-se a bulir com eles. A uns agarrou, outros lançou, ainda outros friccionou. O que bastou para que percebesse que uma parte do calhau podia ser afiada e brandida como arma. Não vacilou, então, em emprestar às pedras formatos de armas, no que foi imitado pelos companheiros. E entraram a brincar e a correr e a guerrear com as formas inertes no interior da caverna. Porém, de um modo soturno, suas sombras projetadas na parede fronteira faziam-nos lutar com espectros e a quase crer que eram reais. Ao cabo, poder-se-ia concluir que o Acaso quisera encenar o mito platônico de um modo mais adequado à ciência, que tanto projeta vultos quanto examina fatos.
E como se respondesse ao Acaso, brincando, de Telha golpeou uma pedra com a ponta de um seixo afiado, com força e perícia tais que ele se abriu, como um livro, em partes iguais. Para alvoroço e confusão gerais, nas faces que haviam jazido no âmago do mineral durante eras, duas nítidas marcas se desvelaram. Tinham o formato de pés. No canto inferior de uma delas, um não sei quê estava incrustado; na posição correspondente da outra, uma pequena cova denunciava o local em que o objeto repousara, antes do golpe de Telha o desentranhar.
De Telha tomou nas mãos a meia pedra com o objeto encravado. Olhou-os por múltiplos ângulos. Como a penumbra não ajudava a enxergá-los, por instância dos companheiros, levou a pedra para fora, para que, ao sol, pudessem submetê-la à almejável disceptação. E qual não foi o assombro de todos, ao verem, consecutivamente, a nítida forma de um animalzinho em relevo!
-- É um Trilobita! gritou de Vidro num êxtase.
-- Sim, um Trilobita! anuiu o que rachara a pedra. E a marca em que está alojado é uma pegada humana! (*)
-- Hum, a caverna deve conter outras pedras desse feitio... completou de Caco. Temos descoberto um depósito fóssil!
A conclusão parecia sensata. No entanto, incrédulos, os quatro ainda olharam a pegada com o animal durante algum tempo. Miraram-na e tornaram a mirá-la, preguiçosamente. Depois a apalparam e discutiram, antes de se decidirem a buscar outros fósseis. Mas quando a isso se resolveram, levaram o resto da tarde a golpear e abrir pedras com outras pedras, com ferramentas desajeitadas, até mesmo com as mãos. Brincavam ainda, porquanto brincar era a sua função no mundo, mas já o faziam de maneira séria.
Com alegria semelhante à que os tomara momentos antes, os amigos realizaram outras e outras descobertas de Trilobitas e de pisadas humanas em algumas das rochas que abriram. No entanto, pedra como a primeira, com um Trilobita sobreposto à pisada, não descobriram. Ainda assim, deram-se por mais do que satisfeitos.
Ao final do dia, colheram côcos, bananas, pitangas, carambolas, granadilas e tamarilos, que carregaram à entrada da caverna. Subproduto dessa operação foi um rastro de frutos que ia das árvores à caverna. Se não aproveitou aos Macacos, o rastro por certo serviu às Aves. De todo modo, findo o mister, os amigos sentaram-se para comer. E o fize-ram bem rápido, pois a fome os assediava, mas não rápido o bastante para não trocarem impressões sobre as emoções do dia.
-- Os fósseis que descobrimos são todos de Homens e Trilobitas, lembrou de Vidro enquanto comiam. O estarem as rochas esparramadas e não dispostas em estratos deve significar que Homens e Trilobitas viveram na mesma época.
Caco somente aguardava que a óbvia, conquanto insólita conclusão fosse proclamada. Confiante, emendou:
-- Mas os Trilobitas extinguiram-se há 250 milhões de anos! Como podem ter convivido com os Homens, que estão na Terra há somente dois?
E sem esperar resposta, trouxe ao centro da discussão outro dado, que não passara despercebido aos demais, mas carecia fosse debatido:
-- Basta notar o formato retilíneo das bordas da pegada, para se concluir que foi produzida por um calçado, não por um pé desnudo. O andarilho esmagou o pequeno animal com uma sandália.
-- O que nos remete a um período ainda mais recente, em que os Homens já usavam calçados e vestimentas, interveio de Louça.
-- Mas a extinção dos Trilobitas, tornou a lembrar de Vidro, está muito bem documentada em Paleontologia. Eles abundam em fósseis de até 250 milhões de anos e então desaparecem. E o testemunho fóssil ainda é corroborado pela ausência total de Trilobitas hoje. Nenhum desses seres, outrora abundantes, foi encontrado vivo ou recentemente morto.
-- Tens razão, respondeu de Louça. A coexistência de Homens e Trilobitas, que as pedras demonstram, pode ser explicada de várias maneiras. Podemos recuar os Homens à época desses animaizinhos ou trazê-los à época humana. Só não podemos negar a coexistência atestada por tão grande número de pedras.
-- Tampouco devemos perder de vista, atalhou de Vidro, que os Trilobitas podem ter sido extintos, entre a época em que prosperaram e o aparecimento dos humanos na Terra. Por mais que a ciência das origens reflita a imagem da árvore, com muitas categorias surgindo de poucas e estas de uma, nada impede que os grupos tenham surgido e ressurgido uma ou mais vezes em lugares e épocas variados. Trilobitas como os que vemos podem ter emergido, sido extintos e reaparecido. Essa hipótese não explica melhor a coexistência deles com os Homens, que as pedras apontam?
-- Dias atrás, recordou de Louça, as pedras lá da floresta gritaram ao nosso redor. Estas não estão menos a ponto de clamar...
Os Macacos falavam enquanto pensavam, pensavam enquanto falavam. A discussão que travavam refletia as circunstâncias quase sempre aflitivas em que o inquérito se desenrolava. O tumulto da aventura induzia a estados de espírito turbulentos, e estes, a discussões às vezes desordenadas e passionais. Mas nem as dificuldades da aventura, nem o acalorado das discussões bastaram para frear a empreitada.
De Vidro apontou a relação da descoberta com a moderna teoria do parentesco dos seres vivos:
-- Uma população ter quase o mesmo patrimônio genético do primeiro ser de sua categoria não significa que descende dele. Os animaizinhos que hoje encontramos compartilham a base genética dos seus semelhantes antigos, mas não descendem deles, já que os primeiros Trilobitas vieram a extinguir-se. O dogma da origem única de cada grupo vacila. E se o faz, não estamos obrigados a conceber a descendência como sinônimo de origem de um único e mesmo tronco ancestral.
Após tanto considerar, de Vidro ainda formulou duas perguntas como quem despede flechas certeiras:
-- Não é de rigor estendermos nossas reflexões sobre os Trilobitas a outros grupos? Se um ser sobre a Terra, hoje, pode não descender do primeiro exemplar do seu tipo, mas de outro posterior, não é legítimo pensarmos que um grupo pode ter-se originado diversas vezes e não uma só? A lei científica, a regularidade natural, a generalização concebida ou inventada pelo Homem deve balizar, mas não coarctar o pensamento. Ela não pode coagir a inteligência a desconsiderar qualquer das possíveis explicações dos fatos. Especialmente as explicações que repousam em provas tão claras que parecem clamar como as pedras.
E arrematou:
-- Darwin criou uma ideia bem definida de descendência com modificação. Esculpiu-a e a lapidou como artista, porém, assim como os fatos de tempos remotos modificaram as espécies do modo como ele propôs, descobertas recentes estão a exigir modificações no conceito de descendência. Mudar ao longo de gerações não necessariamente significa prender-se a um só ancestral. A descendência dos seres de todas as épocas talvez se assemelhe mais a uma teia, com fios entrelaçados, do que a uma árvore.
Não há como negar que tantas conjecturas, perguntas, dúvidas e evidências contraditórias espelhavam mentes em conflito atroz. Mas o tumulto maior que assaltava os amigos e os fazia fremir de emoção estava posto nos fatos. Destes é que ele se desprendia e imprimia na alma dos quatro, como um timbre de muitas verdades ou um feixe de luz que atravessa um prisma.

(*) Um fóssil de trilobita no interior da pegada de um homem calçando sandálias foi descoberto, em 1968, a 70 quilômetros da cidade de Delta, nos Estados Unidos, por William J. Meister. O texto baseia-se nessa descoberta real.