Poucos temas bíblicos foram tão desacreditados, saíram tanto de moda ou de circulação, nos dias atuais, quanto a ira de Deus. Tal é o silêncio sobre ele, em certos meios cristãos, que um pacto parece vigorar, segundo o qual é possível discorrer sobre os mais variados assuntos bíblicos, desde que o tema espantoso da ira divina (orgé theou) seja contornado. É como se o Novo Testamento e o advento da graça em Cristo Jesus tivessem abolido o direito de Deus à sua ira.
No entanto, ao percorrermos as páginas do Novo Testamento, percebemos que o tema da ira de Deus está tão presente quanto nos livros de Gênesis a Malaquias. Ao expor o evangelho de Deus aos romanos, o apóstolo Paulo afirmou que “a ira de Deus se manifesta dos céus sobre a impiedade e a injustiça dos homens, que retêm a verdade na injustiça” (Rm 1:18).
Não é diferente no Apocalipse, que se encerra com o derramamento da ira divina contida nas sete taças. Gostemos ou não, queiramos ou não queiramos, aceitemo-lo ou o rejeitemos, a ira de Deus em estado puro, isenta de toda mistura, é a essência das sete taças.
Como a Bíblia a descreve, a ira divina é semelhante a uma força da natureza. Do modo como o Everest é o que é e como é, independentemente do que achamos que é, a ira de Deus é uma força autônoma e incontrolável. E ainda mais que uma força da natureza (por exemplo, os fenômenos atmosféricos), ela é imprevisível. Não é possível prever se Deus usará de misericórdia ou manifestará a sua ira, quando o homem lhe dá motivo, pois isso depende dele e só dele. Porém, em geral, a ira divina é acumulada, poupada, entesourada, para se manifestar no momento futuro adequado à sua plena atuação. De acordo com esse princípio, as sete taças serão derramadas no momento de todos os momentos, no momento mais adequado à revelação da ira de Deus na História.
O paralelismo das taças e das trombetas não pode ser negado. Da primeira até a sétima, cada taça atinge o mesmo objeto da trombeta correspondente. Uma única diferença se percebe entre elas: enquanto as trombetas incidem na terça parte do mundo, as taças caem sobre o mundo todo. Isso indica que a grande concentração do mal, que produzirá Anticristo, surgirá na terça parte da terra, mas infestará todo o mundo civilizado.
O mistério da iniquidade forma-se e cresce, na terceira parte da terra, mas se dissemina pelo mundo todo. Por isso, as taças são derramadas no mundo. Mas é possível perguntar: por que aquele mistério se espalha de tal maneira e com tal ímpeto? De que modo ele se difunde? Será Anticristo o único responsável por tão vasta subversão?
Se a resposta a essas inquietações for acessível ao entendimento humano, ela deverá provir do intervalo entre as trombetas e as taças. As primeiras são avisos e terminam com a aparição de Anticristo, no palco da História. Como tais, elas prenunciam um mal muito maior do que elas próprias. Esse mal as sucede e, ao mesmo tempo, antecede o derramamento das taças. Ocorre, pois, no intervalo entre as trombetas e as taças, quando as vozes dos quatro anjos são pronunciadas. O objetivo delas é alertar os homens para que temam a Deus e o glorifiquem (14:7), de que a grande Babilônia caiu (14:8), de que os adoradores da besta e sua imagem sofrerão a ira de Deus (14:9-10) e de que aos mortos no Senhor durante a atuação da besta estão garantidas bem-aventuranças (14:13). Isso aponta para a adoração de Anticristo como o grande fator da disseminação mundial do mistério da iniquidade.
Não é preciso supor que a mundialização do culto à besta ocorrerá, por conquistas militares. Mais provavelmente, ela resultará da aproximação política de países de civilizações diferentes e da sua interligação por recursos tecnológicos. Essas duas condições deverão permitir que a veneração da besta, semelhante ao culto dos Imperadores em Roma Antiga, se espalhe pelo mundo todo.
Se alguma dúvida há sobre o meio cultural em que esse novo culto será constituído, basta notar que a quinta trombeta recai na terceira parte do mundo, e a quinta taça, no trono da besta. Isso mostra que a besta estabelecerá o seu trono na terceira parte do mundo, isto é, no território dos povos orientais conquistados por Alexandre Magno. Na sexta taça, assim como na sexta trombeta, o Eufrates é especificamente mencionado, por constituir a fronteira entre os territórios representados pela terceira e pela quarta partes do mundo. De modo que esta é formada pelas terras orientais conquistadas por Alexandre.
O mistério da iniquidade é o culto de homens em vida. Não que o culto de reis e outros homens, após a sua morte, seja algo aceitável. Porém, do ponto de vista histórico, ele sempre foi praticado. Nunca foi novidade. Diferente era o caso do culto de seres humanos em vida. Por volta do primeiro século, quando Apocalipse foi escrito, os Imperadores romanos haviam tornado esse culto comum. Por isso, o Livro de Apocalipse o reflete e caracteriza como o mistério da iniquidade.
Sobre esse mistério, esse culto, será derramada a ira de Deus. A ira contida, armazenada, recalcada, intensificada até o máximo grau de pureza, de repente, desabará sobre o mundo magnetizado pelo homem do pecado como por um grande ímã. Essa ira recortada no pano da História, como inverso do mal, dos paroxismos do pecado e do ódio ao amor divino, porá fim à História até então decorrida. Não sem que uma nova etapa da História, muito mais luminosa e assinalada pela obediência de Deus, seja inaugurada.