domingo, 26 de junho de 2011

A Retomada da Restauração

Na postagem anterior, afirmei que a restauração da igreja se dá pelo restabelecimento do ministério da palavra e o livre exame das Escrituras. Essas experiências foram alcançadas, em boa medida, no décimo-sexto século, nas igrejas originárias da Reforma. A primeira delas o foi, aliás, também no meio católico. Pode-se, pois, perguntar se a restauração se completou naquela época. Porém, embora o ministério da palavra e o livre exame tenham sido implantados, no século XVI, esse último voltou a declinar em seguida, e uma outra etapa da restauração teve de ocorrer, a fim de restaurá-lo, mais tarde. Sobre ela, discorrerei neste texto.
As duas obras de reconstrução da igreja foram, de algum modo, antecipadas no Antigo Testamento. O trabalho dos reformadores do décimo-sexto século é prefigurado pela reconstrução do Templo e o restabelecimento do culto. Já a segunda e última parte da restauração pode ser vista no símbolo da recuperação da liberdade política de Israel, durante o Período Macabeu. Embora muitos judeus tenham retornado de Babilônia, reedificado o Templo e restaurado o culto a Deus, no século VI a. C., o país continuou a ser governado por povos estrangeiros, por mais 350 anos. A independência política só foi alcançada, após a insurreição liderada pelos macabeus, no século II a. C. Somente a partir desse ponto, Israel deixou de sofrer pressões para adotar práticas cultuais estranhas.
Do ponto de vista da interpretação alegórica, o poder exercido por potências estrangeiras sobre Israel, entre as duas etapas da restauração, representa as forças que impedem o pleno funcionamento da aliança com Deus. No Antigo Testamento, a aliança centrava-se no Templo e no sistema de sacrifícios, sobre os quais a influência estrangeira foi exercida; na era atual, a aliança com Deus se baseia na palavra examinada livremente por cada consciência. Num primeiro momento histórico, as potências que tentaram sufocar a palavra desenvolveram-se no seio da Igreja Católica, porém mais tarde elas estenderam os seus tentáculos a outras organizações, que passaram a impedir ou dificultar o livre exame, por meio das interpretações obrigatórias da Bíblia que preconizam.
Tudo isso indica, a meu ver claramente, que há uma segunda etapa da restauração da igreja, após a Reforma do décimo-sexto século. Se é possível se situar a primeira fase da restauração na época de Lutero, a etapa mais adiantada pode ser vislumbrada quando um acontecimento de importância espiritual tão grande quanto a Reforma Protestante teve lugar. Esse acontecimento foi a rejeição dos poderes eclesiásticos e do próprio clericalismo, por cristãos ingleses e de outros países, no século XIX. Esses cristãos ficaram conhecidos, na História, pelo epíteto de Irmãos Unidos.
Um dos princípios com base nos quais os Irmãos estabeleceram as suas assembleias e que os diferenciou do restante do cristianismo foi a simplicidade da igreja local. Para eles, essa simplicidade se traduzia numa radical autonomia em relação a todo poder supralocal (chame-se ele comunhão, ministério, organização de igrejas ou receba qualquer outro nome).
A simplicidade da assembleia local, como os Irmãos a entenderam, não é um fim em si mesma, mas um instrumento para a preservação da palavra de Deus e do seu livre exame. Para que o trato com as Escrituras seja realmente livre, é preciso que a assembleia local da igreja também o seja. Daí a posição assumida pelos Irmãos. Desconheço qualquer movimento ou grupo de pessoas, que tenha exigido que a assembleia cristã local fosse livre de toda e qualquer potência eclesiástica, antes dos Irmãos Unidos.
Os Irmãos foram criticados pelo seu zelo doutrinário. Provavelmente, muitos deles exageraram nesse tocante. É um fato bem conhecido que os Irmãos acabaram por se dividir em dois ramos, por causa de divergências doutrinárias. Porém, não há notícia de que eles tenham, depois, se dividido em quatro, oito ou dezesseis pedaços, como muitos críticos deles fizeram. Além disso, o profundo senso de responsabilidade pessoal, que os Irmãos desenvolveram para com Deus, no que tange ao exame da Bíblia, justifica boa parte do zelo doutrinário deles.
Para que o elemento central da nova aliança (a palavra de Deus) possa ser livremente examinado por todos os cristãos, é indispensável que a igreja local seja, ela própria, livre de toda e qualquer instituição, seja eclesiástica, seja ministerial, seja secular. A liberdade prática da igreja deve ser radical, assim como o livre exame. O fato de terem praticado a vida da igreja dessa nova maneira foi, a meu ver, o “tiro certeiro” dos Irmãos. Tão certeiro que pode ser considerado um passo decisivo, na restauração da igreja, após o seu Cativeiro Babilônico e a retomada do ministério da palavra no século XVI.
Como Lutero, Calvino e a Reforma Católica foram fundamentais para que o ministério da palavra fosse instaurado no devido lugar e a Bíblia fosse levada a todas as pessoas, a atitude dos Irmãos Unidos de separar as suas congregações, de fato e não retoricamente, de todo poder instituído foi igualmente fundamental. Na época de Lutero, os cristãos deixaram Babilônia, mas continuaram a ser oprimidos pelo poder estrangeiro; com os Irmãos, eles começaram a se libertar do poder estrangeiro, ou seja, de todo poder contrário ao livre exame da Bíblia.
Só uma atitude forte como a dos Irmãos Unidos pode permitir aos cristãos não apenas reverter os efeitos da destruição que o poder estrangeiro realizou na igreja, mas confrontar e vencer esse poder, em sua essência, eliminando toda possibilidade de uma interpretação obrigatória da Bíblia se sobrepor ao livre exame. Por esse motivo, o exemplo dos Irmãos Unidos deve ser cuidadosamente levado em conta e seguido.
Não faz sentido um número de cristãos colocar-se no campo novo desbravado pelos Irmãos para seguir uma doutrina ou uma linha ministerial obrigatória, seja qual for. Seguir uma doutrina ou um ministério único significa adotar uma maneira específica de interpretar a Bíblia. Isso é contrário ao livre exame das Escrituras. É contrário ao princípio da nova restauração alcançada pelos Irmãos. Ou temos a doutrina obrigatória, ou o livre exame. Ou seguimos um líder, ou a consciência diante de Deus. Se o que queremos é uma pessoa ou um modo de pensamento exaltados, devemos optar pela doutrina ou o ministério obrigatório. Porém, se desejamos que a palavra de Deus atue maximamente, não precisamos disso e sim do livre exame.
O reconhecimento do papel dos Irmãos Unidos, na restauração, é importante por várias razões. Primeiramente, porque eles permanecem muito pouco conhecidos no meio cristão. A penetração das ideias dos Irmãos não se compara à dos reformadores do século XVI. Em segundo lugar, o conhecimento do que os Irmãos realizaram é importante, para que possamos manter o que eles alcançaram. Cada conquista, na história da restauração é decisiva para os cristãos. Por isso, é indispensável que eles a mantenham intrepidamente.