A pergunta “quem somos nós?” é uma das mais importantes que os membros de uma comunidade podem formular. Assim como o indivíduo possui uma personalidade, que tende a se desintegrar se ele não for capaz de responder a pergunta “quem sou?”, as comunidades têm o seu estatuto de identidade. Se não souberem responder a questão “quem somos?”, elas tendem a se desarticular e a deixar de existir.
Os cristãos não constituem exceção. Também eles se veem frente a frente com a angustiante interrogação sobre a sua identidade. Nada mais legítimo do que diferentes comunidades responderem a pergunta de maneiras distintas. Como tudo, na natureza e na sociedade, tende a ser diversificado e a apresentar uma pluralidade intrínseca, não é diferente com o meio cristão. Comunidades distintas, voltadas a fins diversos, surgem e se desenvolvem no seu interior. É normal essas comunidades responderem questões de identidade de diferentes modos.
O que não é normal, nem positivo é uma comunidade negar à outra o direito de definir a sua identidade. Essa denegação é fonte de graves atritos entre as comunidades. Outro problema consiste em uma comunidade considerar negativa ou nociva a identidade da outra. Esse problema se tornou tão comum que nos leva a indagar se o mandamento de Cristo para que não julguemos (nolite judicare) se estende apenas a indivíduos ou também a comunidades. Penso que, se as comunidades têm direito de existir tanto quanto os indivíduos, a proteção contra o juízo condenatório dos homens lhes deve ser estendida. Elas não devem ser julgadas por existirem e afirmarem identidades peculiares.
Esse princípio se aplica às igrejas, ministérios e comunidades cristãs com que nos deparamos. Verdade é que o número estonteante dessas agremiações é fonte de contínua perplexidade para cristãos e não cristãos. Não é raro encontrarmos pessoas que pensam, não sem razões, que a extrema segmentação do cristianismo trai a oração de Cristo para que os seus seguidores fossem um (Jo 17:21). Porém, não devemos levar a insatisfação ao ponto de negar a legitimidade dos grupos com fisionomia própria e identidades bem caracterizadas. Fazê-lo seria um erro tão grande quanto negar a possibilidade de múltiplas comunidades existirem.
Ainda assim, temos de ser capazes de lidar com o sentimento de desconcerto que nos invade e nos toma, ao olharmos para tantas identidades cristãs diferentes. Alguns cuidados podem ajudar-nos a lidar melhor com este assunto. Falarei deles a seguir e nos próximos dois textos. O primeiro cuidado importante consiste em entender que o cristão possui uma identidade maior, uma identidade que é mais importante que a dos grupos e comunidades particulares. Essa identidade interliga pessoas de todas as épocas por meio da fé que lhes é comum, tornando-as uma corrente caudalosa e inquebrantável.
Quando o povo de Israel estava prestes a ingressar em Canaã, Deus recapitulou toda a história da peregrinação de 40 anos no deserto. O Livro de Deuteronômio retrata essa recapitulação. No pensamento do autor sagrado, sem passar pela recapitulação, o povo de Deus simplesmente não estava pronto para entrar na boa terra.
A geração que viveu a recordação não foi a mesma que saiu do Egito. Aquela já havia perecido, com exceção de Josué, Calebe, Moisés e alguns outros. Foi necessário que a geração nascida no deserto recordasse a que perecera, antes de entrar em Canaã. Para quê? Para que ela se sentisse ligada à geração anterior. Recordar é sentir. Ao lembrarem a anterior geração, os israelitas sentiram-na viver com eles.
Durante a recapitulação, Moisés afirmou que a geração que saíra do Egito não entraria em Canaã, por causa da sua desobediência. Lembrou ainda que ele próprio não entraria, por ter desobedecido a Deus no episódio isolado da rocha: “O Senhor se indignou contra mim por causa de vós, dizendo: Também tu lá não entrarás. Josué, filho de Num, que está diante de ti, ele ali entrará; fortalece-o, porque ele fará herdar a Israel” (Dt 1:37-38).
Moisés citou as próprias palavras com que Deus lhe comunicou que não entraria em Canaã. A notícia deve ter causado em sua alma o efeito de um ácido sobre a pele. Moisés foi corroído pelo juízo de Deus. Porém, no estado de prostração, desconsolo e fundo arrependimento a que foi reduzido, ele ouviu Deus dizer-lhe que Josué entraria em Canaã. No contexto da grande recapitulação de Deuteronômio, essas palavras têm forte sentido de consolação: Moisés não entraria em Canaã, mas Josué o faria.
Se o povo de Deus não tivesse uma identidade, seria impossível a Moisés alegrar-se ou se consolar com a notícia de que ele não entraria, mas Josué, filho de Num, ingressaria em Canaã. O relato continua com a entrega de um mandamento impressionante de Deus a Moisés. No profundo abatimento em que mergulhou, no estado de melancolia ou de depressão a que foi reduzido, Moisés ouviu Deus dizer-lhe a respeito de Josué: “Fortalece-o”!
Talvez Moisés tenha perguntado a Deus o que nós, com a mentalidade individualista que nos caracteriza, certamente perguntaríamos: “Como assim? Eu preciso ser fortalecido e tu me dizes para fortalecer a outro?” “Eu me sinto destruído e devo dar força a meu irmão?" É exatamente isso. Num povo com forte identidade coletiva, Moisés importava muito, mas Israel importava mais. Para Moisés, deveria ser motivo de grande alegria saber que, embora não fosse ingressar em Canaã, alguém entraria lá. Esse alguém era Josué, o fiel Josué, uma pessoa tão próxima de Moisés que o acompanhara e servira durante anos. Josué ingressar em Canaã seria o mesmo que Moisés entrar por seus pés. Moisés viveria em Josué, e Josué nele.
Poderia citar vários outros exemplos, já que a Bíblia é pródiga neles. Paulo preferia ser anátema, separado de Cristo, para que seus compatriotas judeus fossem salvos (Rm 9:3). Levi pagou dízimo no pagamento de dízimos de Abraão (Hb 7:9), pois os dois tinham uma só identidade coletiva. O próprio Abraão não se infelicitou por não ter possuído o espaço de um fio de cabelo da terra prometida. Hebreus 11:9 afirma que ele “habitou na terra da promessa como em terra alheia, morando em cabanas com Isaque e Jacó”. As palavras “como em terra alheia” indicam que o pai dos que creem não recebeu o espaço de um pé da boa terra. Mesmo assim, ele se alegrou, pois Deus lhe prometeu entregá-la à sua descendência.
O sentimento de pertença ao povo de Deus é extremamente importante. Ele é o que constitui esse povo. A questão que as múltiplas comunidades, igrejas, ministérios e grupos cristãos suscitam é: esse sentimento deve levar-nos a negar as manifestações coletivas diversas e as várias identidades que as definem? A resposta é um rotundo não. Por fundamental que seja, o sentimento de pertença ao povo de Deus não nos deve levar a excluir identidades coletivas mais limitadas, como mostrarei nos próximos textos.