Durante séculos, a estrada de Jerusalém para Jericó foi a mais importante via de transporte da Judeia. H. B. Tristam descreveu-a nos seguintes termos:
"Desde a saída da pobre aldeia de Betânia [ao lado de Jerusalém], que tínhamos deixado à nossa esquerda, a descida tornou-se cada vez mais rápida, ao longo dos degraus rochosos [...] Duas milhas antes de chegar à planície, uma garganta alarga-se bruscamente e o viajante, dominado por uma falésia abrupta e recortada, encontra-se à beira de um precipício de 500 pés de profundidade, cuja parede é perfurada por numerosas grutas [...] Da base desta falésia, donde a estrada serpenteia até ao fundo do vale, pudemos contemplar um dos mais belos panoramas da Palestina do Sul. A nossos pés estendia-se uma floresta verdejante, depois uma vasta planície acastanhada, e, por fim, o Jordão” (H. B. Tristram. Citado em A Bíblia: Terra, História e Cultura dos Textos Sagrados. Lisboa: Del Prado, 1984. Vol. II, p. 184).
Infelizmente, assaltos eram comuns na poeirenta estrada de Jericó. As numerosas grutas a que Tristam se referiu serviam de esconderijo para ladrões, que surgiam de surpresa para roubar e agredir os viajantes. Jesus referiu-se a uma cena típica da época, na parábola do bom samaritano:
"Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; e, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar" (Lc 10:30-35).
A parábola foi proferida em resposta à pergunta de um intérprete da lei, sobre quem devemos considerar nosso próximo. A resposta à pergunta pode parecer óbvia hoje, mas na época era objeto de intenso debate. Os rabis e o escribas interrogavam-se mutuamente para determinar se o cuidado para com o próximo era devido apenas por um judeu a outro ou também ao estrangeiro. E, se era devido ao estrangeiro, como a Torá estabelecia, que variedade de pessoas estava incluída no conceito de não judeu, ou seja, de estranho? Os samaritanos, por exemplo, depois de se haverem apartado do culto em Jerusalém, deviam ser objeto da solidariedade judia?
Ao responder a pergunta do interrogante, Jesus não refutou a noção de proximidade baseada em relações de sangue, de vizinhança física ou da posição religiosa (samaritano, levita ou sacerdote), já que uma nação necessita desses critérios para tornar visíveis os limites da solidariedade entre seus cidadãos. Mostrou, porém, que a proximidade entre os homens, sobre a qual o escriba indagara, devia transcender esses critérios para se basear, principalmente, na compaixão pelo outro em situações concretas de vida.
A necessidade desse ensinamento pode nos parecer estranha, pois não estamos acostumados a pensar no sacerdócio como causa de aproximação das pessoas. Para que mostrar que um sacerdote não é alguém próximo, se a vida no-lo ensina com tantos exemplos? Se todos sabemos, por experiência, que o sacerdote permanece isolado num templo e distante dos nossos problemas? Mas, devido ao contexto da época, Jesus teve de combater a ideia de que a condição sacerdotal ou outra de índole exterior bastasse para definir a proximidade em relação a outras pessoas.
Jesus procurou mostrar, ao contrário, que o critério interior da proximidade baseada na compaixão era mais importante e não era observado pelos religiosos judeus. Nem o sacerdote, nem o levita, que passaram pelo local onde o viajante estava estirado, o socorreram. Isso indica que os titulares daqueles ofícios frequentemente negligenciavam a sua vocação. A compaixão se lhes tornara um sentimento tão estranho quanto para os ladrões que haviam deixado a vítima meio morta.
No entanto, além do sacerdote e do levita, a parábola mostra uma outra personagem: exatamente um samaritano, que passa pelo caminho, é movido por compaixão e socorre o viajante. Um samaritano era o reverso de tudo o que o sacerdócio representava naquela época. Sua origem era bem conhecida: quando o Reino do Norte foi conquistado pelos assírios, estes fizeram povoar as cidades locais por israelitas e gentios provenientes de vários lugares do mundo. Essas pessoas deram origem a uma população mista, que adotou um culto igualmente misto, a Deus e aos ídolos.
No século II a. C., a população mista de Samaria entrou em sério conflito com os judeus. E, para complicar ainda mais a relação entre esses povos, no ano 6 d. C., os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém com ossos humanos. Esses incidentes foram tão graves que o Evangelho de João informa que, à época de Jesus, "os judeus não se comunicavam com os samaritanos" (Jo 4:9).
A falta de comunicação é um dos maiores sinais de inimizade. Inimigos não se falam: odeiam-se e, se puderem, trucidam-se. Por isso, mais do que como herege, o samaritano era visto como a encarnação, a expressão acabada do inimigo do judeu da época. Essa inimizade visceral, esse trato tão determinado pelos instintos mais rebaixados do homem, constituem o pano de fundo da parábola: o judeu assaltado, espancado, abandonado à morte foi amado pelo seu maior inimigo.
Do ponto de vista cultural, o transeunte samaritano não tinha razão alguma para amar o judeu meio morto, mas foi movido por terna compaixão. A palavra traduzida "movido por" originalmente indicava as vísceras do corpo da mãe. Indicava, portanto, que o amor do samaritano era semelhante ao que a mãe dedica ao seu rebento. Essa é a verdadeira e a mais elevada resposta à pergunta legal "quem é o meu próximo?"
Curioso é que o samaritano não amou o mísero homem espancado, devolvendo-o ao lar. Tampouco procurou saber quem eram os parentes ou os conhecidos dele. Ao proferir a parábola, Jesus simplesmente não deixou lugar para as relações formais ou envelhecidas pelo tempo. O vinho novo do amor não deve ser despejado em odres velhos, pois isso é quase o mesmo que o desperdiçar. Não raro, parentes socorrem-se por obrigação: o bom samaritano socorreu por compaixão, até mesmo pela compaixão de uma mãe por seu filho. E o fez em relação ao seu maior inimigo. Drenado até a última gota, o ódio do seu coração deu lugar ao amor, assim como o vinho inferior da festa, ao exaurir-se, criou um espaço novo para o vinho melhor.
"A vítima da falta de coração dos homens não devia ser salva sequer por parentes ou amigos, que também eram como o primeiro vinho das bodas de Caná. Ele devia ser salvo pelo aperto da compaixão no peito do seu inimigo".
Era preciso que o fundo amor do samaritano não fosse auxiliado pela obrigação proveniente do parentesco, do coleguismo que nasce do exercício profissional ou de qualquer outro vínculo externo. Por isso, Jesus não disse que o samaritano levou o homem para casa ou informou seus parentes do triste estado em que se encontrava. A vítima da falta de coração dos homens não devia ser salva sequer por parentes ou amigos, que também eram como o primeiro vinho das bodas de Caná. Ele devia ser salvo pelo aperto da compaixão no peito do seu inimigo.
"E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar" (Lc 10:35). A parábola fala-nos de um nada e de três tudos. A vítima foi despojada de tudo o que possuía, exceto o último fio de vida. Foi reduzida a nada, mas recebeu um segundo tudo (tudo de que precisava para recuperar-se), ao preço de tudo o que pudesse custar. Esses tudos lhe vieram da mesma fonte inequívoca: a compaixão entranhada do ex-inimigo samaritano.
Já se disse que o samaritano representa Cristo. Sem dúvida representa. Mas penso que também retrata o inimigo gentio do homem judeu. Dessa inimizade, que embalava a Terra numa vertigem, Jesus retirou a sua definição do que, verdadeiramente, significa amar o próximo. A definição pouco tem de teológico. Pouco tem, até mesmo, de religioso. Tudo tem de subversão da inimizade pela compaixão. Como um abutre, o amor deve nutrir-se do cadáver da inimizade. Ele deve sugar-lhe a carcassa até não sobrarem senão os ossos. Esse é o amor verdadeiro, que Deus e só Deus pode fazer nascer.
Não havia diferença entre um samaritano e um gentio, a não ser quanto ao ódio maior que o judeu votava ao primeiro. Por isso, o samaritano é também o gentio. Efésios 2:14-15 se refere à parede de separação entre os judeus e os gentios. Esse muro maior que o da China, essa Babel global, principiava em Samaria e fazia a roda da Terra. Tornava-a uma enorme prisão, em que todos os homens permaneciam encerrados. Até que o herege samaritano foi movido por compaixão e iniciou a destruição do muro.
Já se disse que a hospedaria é a igreja. Revoltei-me, por um tempo, contra essa interpretação, já que as hospedarias da beira das estradas judias eram estações de malfeitores ou, pelo menos, lugares de duvidosa reputação. Mas cheguei a me convencer de que, se o heroi da parábola é um anti-heroi, se é a figura do inimigo consumado, não há mal em o lugar da convalescença do homem expoliado ser um antro de salteadores. Santo Agostinho e tantos outros lembraram que a igreja, na Terra, não é só a comunidade dos santos. É também esse antro. Mas é e deve ser reconhecida como o melhor lugar para o homem surrado pela vida se restabelecer. Num mundo inóspito, perdido mesmo, a hospedaria é um centro de salvação para o grande número.
O escriba que questionou Jesus sobre o amor não estava, ele próprio, em condições de amar. Ele achava que amar era saudar o próximo com a palavra prescrita na lei: como podia amar verdadeiramente? O escriba também havia sido despojado de tudo e estava semimorto. Um semimorto só pode amar como amam os zumbis. Jesus lhe mostrou que esse amor de zumbis, esse amor que é saudar o próximo com a palavra exata e dizer a Deus a oração aceite, não é mais que alimentar a mais funda inimizade. Amar verdadeiramente é tremer de compaixão pelo próximo, é amá-lo por dentro com a força da vontade renascida da água e do Espírito.