Durante milênios, as pessoas se acostumaram a viver, com base nos conceitos e regras das coletividades a que pertenciam, sem os questionar ou modificar criativamente. Isso as levou a adiar o parto do que podemos denominar as individualidades humanas, que só se deram a conhecer, a partir do surgimento do cristianismo e, ainda assim, progressivamente e em meio a dificuldades.
Como se definia o certo e o errado naquele tempo? Definia-se com base naquilo que o meio social praticava e inculcava. Que um homem devia realizar durante a vida? E uma mulher? Em que espécie de saber eles deviam ser educados? A quem deviam obedecer? A quem imitar? Com quem deviam casar-se e por que não podiam se casar com outros? Em que situações lhes era facultado descasar? Com quem deviam contrair amizade, sociedade, alianças? Que cada um podia fazer às várias classes de cidadãos, escravos e estrangeiros e em que situações? As leis e os costumes não deixavam brecha para o indivíduo definir como essas numerosas relações podiam ser validamente desenvolvidas. Uma verdadeira mecânica do certo e do errado imposta por métodos sociais substituía a liberdade individual, determinando como o homem devia viver.
Esses são alguns exemplos de temas e mecanismos por meio dos quais a coletividade e a sociedade dominaram completamente o indivíduo. Por muitos milênios, a dimensão individual da personalidade humana permaneceu anã, atrofiada, subdesenvolvida, comparativamente à dimensão coletiva gigantesca, hipertrofiada e hiperdesenvolvida. Mal se pode afirmar que, durante esse tempo, a personalidade humana individual se tenha afirmado. Ela permaneceu tão raquítica, tão mirrada que o ser do homem praticamente igualou-se ao da sociedade. A vida humana permaneceu a vida da sociedade; a alma humana, a alma da sociedade. Só em casos excepcionais, pessoas foram capazes de sacudir o jugo de uma identidade coletiva para criar ou tentar criar outra individual. Na maior parte das vezes em que isso ocorreu, o movimento foi abafado.
Nesse contexto, a religião sempre foi o grito da alma oprimida. Marx o afirmou não como quem anuncia uma novidade, mas como quem reitera uma verdade bem conhecida e imemorial. A História da humanidade até três séculos atrás pode ser sumariada como uma luta do indivíduo oprimido, que faz da fé seu gemido e, por vezes, um grito de libertação. Quando menos, do ponto de vista da subjetividade humana, essa foi a tônica da História.
No entanto, o problema que pretendo abordar, nesta postagem, é muito mais específico do que expus até agora. Quando, após tanta luta pela afirmação do indivíduo, finalmente se pôde afirmar que ele nascera ou fora libertado do cativeiro em que havia sido mantido, um outro problema grave surgiu, na era cristã: a religião se tornou a força mais opressiva jamais exercida sobre a cerviz desse homem.
A religião redentora que, por séculos, constituíra o gemido e o brado da criatura cativa, assumiu o papel reacionário, que hoje a caracteriza, a partir de quando se tornou a força conformadora do pensamento individual ao coletivo, dos sentimentos livres e pessoais ao sentimento geral e padronizado e da personalidade concreta de cada ser humano à personalidade abstrata de um grupo local ou supralocal. Assim como a afirmação do indivíduo começou com o cristianismo, a reação anti-individual não teve outra gênese. Não foi sem razão que Lutero afirmou que o cristianismo deu ao mundo as melhores e as piores coisas que ele possui.
Fato é que, hoje, observamos pessoas ingressarem numa igreja ou outra instituição cristã e, pouco tempo depois, passarem a pensar e a sentir como as pessoas daquele meio. Pior do que isso é que a porta de saída de tais ambientes costuma ser guarnecida por querubins, cujas espadas flamejantes lhes foram entregues por líderes não destituídos de interesse pessoal em engrossar as fileiras, a fama e a arrecadação daquele “seu rebanho”. Ainda pior é o massacre de personalidades e mentes atestado pelo sofrimento, pelos transtornos psíquicos, pela instigação de pessoas contra pessoas e pela destruição de unidades familiares, que se verifica nos mesmos meios.
Gênesis 2 a 4 propõem-nos experiência muito diferente dessa, na medida em que colocam o indivíduo (representado por Adão e seus descendentes) diretamente diante de Deus. A experiência de estar perante Deus, no caso de Adão ou de Caim, consiste em ouvir o que Deus lhe fala e em reagir a essa palavra. As Institutas da religião cristã são uma obra maçante, mas indispensável para se tomar o pulso da História da Igreja e começar a entendê-la. Nela, Calvino afirma que ser obrigado pela consciência é ser obrigado perante Deus. Essa afirmação foi o pomo da grande discórdia católico-protestante do décimo-sexto século. Porem, ela não faz mais do que nos reportar ao problema de Gênesis 2 a 4.
Deus disse a Adão: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:16-17). Essa simples palavra obrigou o homem criado por Deus. A questão é: obrigou-o perante quem? Perante outro homem? Perante a sociedade? Perante seus líderes? Certamente não. Ela obrigou-o para com Deus e perante Deus.
Ninguém se faz cristão sem internalizar profundamente o mandamento de Gênesis 2:17. Ninguém se faz sequer monoteísta sem passar pelo mar aberto desse versículo, pois tanto o Cristianismo como o Judaísmo e o Islamismo aceitam e partem do texto sobre o Jardim do Éden. Internalizar Gênesis 2:17 não é senão atribuir à questão “quem sou?” um significado divino.
A natureza humana é tal que a questão não pode ser respondida, a não ser por cada indivíduo. Cada ser humano tem de encontrar a sua resposta e afirmá-la, para se iniciar na experiência de Deus. E não pode prosseguir, nessa experiência, se perder o caminho indicado pelo questionamento. Tão-logo tirou Israel do Egito, Deus praticou dois atos fundamentais: entregou os mandamentos, no Monte Sinai, e ordenou que Israel levantasse o censo. Os dois atos estão relacionados. O número de indivíduos foi levantado, porque a atitude de cada um para com a lei do Sinai era o que mais importava a Deus.
Verdade é que as mulheres e as crianças não foram contadas, pois o censo tinha finalidade eminentemente militar. Israel não era um exército, quando saiu do Egito. Ele foi constituído um exército, por meio do censo. Uma identidade coletiva lhe foi assim atribuída. Porém, antes de tudo, essa identidade dependia de outra mais básica, a saber: o que cada um era, na sua relação com Deus, como cada um respondia à sua lei. Essa identidade era comum a homens e mulheres.
Na tradição judaica, cada mandamento da Lei de Moisés admite 600.000 interpretações diferentes, porque esse foi o número de homens em idade de guerra obtido no censo. A cada homem correspondia uma interpretação da lei. Essa é a verdade fundamental para Deus. Não é tanto uma verdade objetiva, quanto é subjetiva. Quero dizer que a lei deve ser tomada, individualmente, por cada homem, diante de Deus. Isso é ser responsável perante o Criador, como Adão o foi no Éden. Isso e somente isso é ter a consciência obrigada, como Calvino afirmou.
Não estou a sugerir que cada pessoa deve inventar uma interpretação objetiva, isto é, racional diferente da palavra de Deus, mas que cada um é responsável por metabolizar individualmente essa palavra. Não importa se as interpretações possíveis do que Deus fala são duas, cinco ou 20: cada pessoa tem de assimilá-las individualmente. Não há interpretação obrigatória para todos. Esse é o sentido básico de Gênesis 2:17 e de toda a Bíblia. É também o sentido do livre exame das Escrituras, pelo qual os reformadores se bateram com tanto zelo.
Perdi a conta de quantas vezes li Deuteronômio 6:6-7: “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa e andando pelo caminho, e ao deitar-te e ao levantar-te”. Quantas vezes esse texto foi pregado também dos púlpitos! No entanto, não é costume se esclarecer quais são as palavras de Deus mencionadas nele. Se olharmos com atenção, veremos que são os Dez Mandamentos, que haviam sido enunciados no capítulo anterior de Deuteronômio. Deus deu os Dez Mandamentos e, em seguida, ordenou: “Estas palavras estarão no teu coração”.
Israel ter 600.000 interpretações dos Dez Mandamentos era guardá-los no coração. Isso é tomar a palavra de Deus subjetivamente. Quando Deus disse a Adão “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento não comerás”, o dever de guardar aquele único mandamento no coração estava implícito. Deus exigia esse guardar. Entender, cumprir e descumprir Gênesis 2:17 eram experiências essencialmente individuais, subjetivas. Assim continuou a ser, através dos séculos, pois não há como se alterar a essência da experiência de Deus.
Essa experiência é o que faz nascer o indivíduo. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). O novo homem é o indivíduo liberto. Sua nova condição é preservada, enquanto ele se mantém perante Deus, enquanto se guia por essa posição e não retorna aos rudimentos do mundo, para nos utilizarmos da linguagem de Paulo. Que são tais rudimentos? Que o próprio Paulo o responda: eles são o aio, cuja função é definir o que a criança deve fazer. Quando seguimos homens, sejam quem forem, não nos relacionamos diretamente com Deus, porque não vivemos como seus filhos (Gl 4:1-3,9). Os aios de hoje, como os de ontem, são sempre representantes de uma mentalidade coletiva, não individual. Como em todos os problemas de identidade, o mal não está nesse fato, mas em não se compatibilizar a mentalidade coletiva com a liberdade individual de interpretação e reação à palavra de Deus.
O problema específico da religião cristã, no nosso tempo, é ter-se tornado contrária à experiência fundadora de toda a Bíblia (Gênesis 2 a 4) e enchido o mundo de aios. Essa religião e esses aios uniformizam constantemente os homens, levam-nos a pensar e sentir as mesmas coisas da mesma maneira e a propagar, com zelo, esse modo de ser cativo como se fosse uma libertação. Por isso, eles se tornaram a mais importante causa de extravio do homem em relação a si mesmo. Não é raro que, hoje, quanto mais frequenta uma igreja e quanto mais religioso se faz, menos dotado de identidade individual um homem se torne.
Claro que os aios a que me refiro não são apresentados, no meio cristão, como no presente texto. Eles são exaltados, adornados com enfeites e roupas de cores mil. Nessas promoções ciganas do coletivo, em prejuízo do individual, reside um grande perigo. Afastar-se da experiência fundadora expressa, em Gênesis 2 a 4, é sempre um risco para o indivíduo e sua fé, pois mortifica o homem e anula a experiência de Deus.