O segundo cuidado que devemos adotar, ao tratar da multiplicidade de grupos e ministérios cristãos, é o de manter consciência de que cada qual tem uma esfera própria de atuação. Não podemos confundir as esferas. A do povo de Deus de todos os tempos pertence-lhe exclusivamente. Nenhum grupo sobre a Terra, hoje, pode alegar representá-lo de maneira especial. Nenhuma coletividade, no tempo e no espaço, pode reivindicar para si atributos do conjunto de todas as gerações que creem.
No entanto, além da esfera universal, há a civilizacional, a nacional e a local. Nenhuma delas deve ser desprezada. Desconsiderá-las equivale a negar dimensões inteiras da vida humana. Se não há rei sobre a terra que não tenha sido estabelecido por Deus (Rm 13:1), muito menos há civilização ou nação que se tenha formado à revelia da vontade dele. Assim como é uma nação santa, o povo de Deus também é uma civilização. Isso não significa uma nação pairando no ar ou uma civilização das nuvens. Significa uma nação que começa na Terra e uma civilização no interior da História. A própria Bíblia não adota conceitos de nação e civilização diversos dos que a História provê. Para ela, nação é nação histórica, e civilização é civilização real, é cultura.
Entre as esferas universal e local do povo de Deus, situam-se as esferas nacional e civilizacional, que os cristãos tão frequentemente esquecem e desprezam. Reitero que essas esferas não são menos bíblicas que a universal e a local. Ou será que Israel era outra coisa que uma nação? Ou será que ele não constituía uma civilização capaz de sobreviver, inclusive, ao colapso do seu Estado?
Os mais espirituais costumam afirmar que a igreja não é Israel. Eles se esquecem de que ela é o Israel de Deus. O conceito de igreja separada de Israel é um absurdo anticristão. Romanos 11 ensina que os cristãos gentios foram enxertados em Israel, a oliveira cultivada. Portanto, Israel não foi excluído. Muito pelo contrário. A ideia de uma igreja constituída no vácuo da rejeição de Israel é absurda. Chega a ser ofensiva à identidade universal do povo de Deus. Não é preciso dizer que essa ideia era estranha aos apóstolos.
Assim como Israel era uma nação na Terra, a igreja deve ser uma ou mais nações sobre a Terra. Ela deve ter uma nítida dimensão nacional. Isso significa que as nações devem ser cristãs, tanto quanto os indivíduos. Está bem: vivemos no tempo do Estado laico. Vá lá; mas não vivemos no tempo da nação laica. A nação existe para abraçar a fé. Essa é a razão mais exaltada da sua existência política.
Não é diferente com a civilização. Todas as civilizações vieram à existência com ajuda de Deus. Portanto, todas são dádivas divinas para a humanidade. O homem cristão não pode viver à revelia da sua civilização. Fazê-lo seria como cortar uma mão, uma perna ou arrancar um olho da face. O ser humano tornou-se civilizado: isso é uma bênção. Uma grande e exaltada bênção. A própria Bíblia começa, quando a civilização principia. Adão não era um homem das cavernas. As Escrituras não narram histórias passadas em grutas pré-históricas, porque Deus começou a agir fortemente, na humanidade, quando o espírito dela se expandiu das escuras cavernas paleolíticas para a luz da civilização.
O Éden abrangia a Mesopotâmia, berço de toda a civilização. Nele começa a história da Bíblia, vale dizer, no interior da primeira civilização. Que temos nós, os cristãos, com isso? Simplesmente tudo, pois somos seguidores dos princípios bíblicos. No entanto, é comum formarmos igrejinhas locais, que se tornam universos e ignoram completamente as dimensões nacionais e civilizacionais da existência humana. É comum revestirmos essas igrejinhas e panelinhas com atributos fantásticos que nem a nação, nem a civilização possuem, mas apenas o povo de Deus dos séculos. Disso só podem resultar desastres e mal-estar. É o que vemos e o que sentimos, quando olhamos para grupos cristãos que, embora legítimos, dão forte impressão de desorientação.
Sejamos práticos. Que significa uma consciência cristã nacional ou civilizacional? Como já expressei, embora tenham finalidades divinas (entenda-se religiosas), a nação e a civilização são realidades terrenas e temporais. Não é preciso dourar essa pílula mais do que já já vem dourada. Ter consciência cristã nacional e civilizacional é viver a fé em Deus nessas dimensões. É preocupar-se em bordar os valores da fé cristã na nação e na civilização.
Somos brasileiros. Também somos latino-americanos. No entanto, a primeira dessas identidades bem pouco significa para a maioria de nós. A última significa nada. Quando significa, geralmente é algo depreciativo ou negativo. Nossas músicas dizem que o cidadão latino-americano é alguém sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Até pouco tempo, ser brasileiro não era muito diferente. Era ter a consciência de um vira-lata entre os cães.
No entanto, as vocações do brasileiro e do latino-americano são muito diferentes disso. São vocações grandiosas. Tão grandiosas quanto a do antigo Israel. O Brasil é a maior nação do Hemisfério Sul. Um país que já realizou um dos mais impressionantes processos de desenvolvimento da História. Nenhuma das 10, 20 ou 30 maiores economias do mundo partiu de um estágio tão atrasado e chegou onde o Brasil chegou. No entanto, o brasileiro ainda não tem consciência disso. Ele não sabe quem é ou para que é. Por isso, procura encontrar a sua identidade no Ocidente, vale dizer, na Europa ou nos Estados Unidos. Não sabe que nunca a encontrará ali, pois não é (culturalmente) ocidental. Nunca o será, por mais que tente ser.
Costuma-se afirmar que o Brasil teve uma época de forte influência francesa e outra de influência ainda mais forte dos Estados Unidos. Isso é lá verdadeiro e nada tem de errado. Provavelmente, foi a melhor estratégia possível para nos desenvolvermos, naquela época. No entanto, o brasileiro, o latino-americano não nasceram para seguir a França e os Estados Unidos, pois não são culturalmente ocidentais. Se o fossem, teriam alcançado o desenvolvimento junto com a Europa e os Estados Unidos. A Suécia, a Noruega, a Finlândia, a Dinamarca, a Inglaterra, Gales, Irlanda, Escócia, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, Espanha, Itália não foram todos penetrados pela mesma onda de desenvolvimento? Os ianques e os canadenses nossos vizinhos também não se desenvolveram, ao passo e ao ritmo da Europa? Por que essa onda parou no México? Porque as nações do México para baixo não são ocidentais como eles. Por isso, o desenvolvimento que aportou em tantos lugares do Hemisfério Norte não penetrou os nossos sertões, nem o poderia ter feito, pois eles eram impenetráveis e assim continuaram por muito tempo.
Ainda hoje, quantos governos de esquerda há na América Latina? Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia, agora Peru, Uruguai, Paraguai, Brasil. É uma metade da América do Sul ou não é? É uma barreira bem formidável à ocidentalização e à americanização ou não é? Nós cristãos fomos doutrinados para pensar que nada disso tem a menor importância. Em outras palavras, fomos ensinados a nos alienar. “O meu reino não é deste mundo”, disse Jesus e repetimos nós. Sim, ele o disse, mas para indicar que o seu reino “está neste mundo”. Por mais que o reino de Deus não seja daqui, ele aqui está. Por esse motivo, as nações e as civilizações devem importar. Se a América Latina tem vocação de imitar o Ocidente e se assimilar a ele ou desenvolver-se como civilização autônoma é algo relevante para os cristãos.
Por que há tantos governos de esquerda no nosso subcontinente? Não será porque temos uma forte vocação de resistência? Ou será porque somos assimiláveis, aculturáveis e dóceis à dominação estrangeira? A História pregou-nos a peça da cortina de ferro, bambu ou alguma outra coisa, no noroeste do nosso subcontinente, exatamente quando a da Europa era substituída por uma mancheia de países rasgados por disputas civilizacionais. Essa marcha ao revés da Europa é espantosa, porém não anacrônica. É a marcha de uma outra civilização.
Alguém insistirá em indagar: que tem isso a ver com os cristãos cujo reino não é deste mundo e sim do outro? Preservado o bom senso e a medida, significa que as nossas igrejas não devem ser meras sucursais de modelos estrangeiros. Nosso reino não é daquele hemisfério, tanto quanto não é deste mundo. Isso não é xenofobia. É identidade. Cabe uma advertência: questões de identidade são sempre as mais relevantes, que a vida coloca. Resolvê-las mal é atrair para si problemas e muita infelicidade.