Há tantos grupos, comunidades, igrejas e ministérios cristãos quantas identidades coletivas foram construídas ao longo da História. Essas identidades fizeram nascer círculos de comunhão, que têm pleno direito de existir, porém não de se excluir mutuamente. Exclusões geralmente ocorrem quando as pessoas reivindicam atributos próprios de um círculo para outro ou quando consideram impuros os círculos umas das outras. Isso se dá, por exemplo, quando elas atribuem autoridade universal a um líder local ou quando consideram que uma Igreja Nacional ou um Conselho Latino-Americano de Igrejas são contrassensos.
O único contrassenso consiste em negar que a Bíblia estabeleça parâmetros, para a existência de círculos de comunhão em todas as esferas da vida humana ou em afirmar, ao contrário, o direito exclusivo de um círculo. A diferenciação que se pode traçar é a dos direitos específicos de cada esfera de comunhão (universal, civilizacional, nacional, local). O círculo pertencente a uma das esferas não pode reivindicar atributo de outra. Nas postagens anteriores, escrevi sobre as esferas universal, nacional e civilizacional da vida cristã. Nesta, tratarei da esfera local.
No Novo Testamento, quase todo o trabalho realizado pelos apóstolos foi de natureza local. Por vários anos após a crucificação, os Doze permaneceram em Jerusalém. Portanto, tiveram atuação eminentemente local. Mais tarde, eles migraram para outras regiões, mas não há evidência de que se tenham tornado itinerantes. Pelo menos na maioria dos casos, não deve ter sido assim.
O próprio Paulo, embora mais vocacionado do que os outros apóstolos para viajar, estabeleceu-se em Antioquia por vários anos. A primeira viagem dele foi encarada como uma missão da igreja em Antioquia. Isso significa que a relação desenvolvida por Paulo com as igrejas da Ásia Menor não foi simplesmente sua, mas da igreja a que pertencia. O mesmo ocorreu na segunda e terceira viagens do apóstolo.
Portanto, nem Paulo se comportou como apóstolo itinerante ou peripatético. Só em dois tipos de situação, Paulo passava rapidamente de um lugar para outro: quando o local se situava no caminho das cidades a que pretendia chegar e quando era perseguido. Todo o restante do tempo, o ministério de Paulo foi baseado na permanência por longos períodos nas mesmas localidades.
Embora fundadas por enviados de Antioquia, as próprias igrejas que Paulo levantou permaneceram independentes. Elas não se tornaram parte da igreja em Antioquia. Até porque as limitações de comunicação e transporte do primeiro século impediam qualquer interferência contínua. Não era possível a comunidades tão novas quanto as cristãs desenvolverem estruturas supralocais.
A tendência a se estabelecer num lugar e ali trabalhar por bastante tempo foi ainda mais assinalada nos outros apóstolos. Depois de deixar Jerusalém, Pedro residiu, sucessivamente, em Jope e Antioquia. É o que o Novo Testamento e a tradição histórica indicam. A última ainda acrescenta que Pedro e Paulo moraram juntos em Roma, nos anos 60 do primeiro século. O que sabemos sobre os outros apóstolos não sugere a existência de práticas distintas dessas.
Os pregadores de obediência literal à Bíblia deveriam sentir vergonha das obras supralocais que desenvolvem sem parada ou descanso. O mundo cristão está cheio de obras assim. Não estou a afirmar que elas não tenham razão de ser. É claro que têm. Há esferas universal, civilizacional, nacional e local na igreja, sem mencionar as que ficam dentro dessas e também são legítimas. O que não é coerente é os cristãos desenvolverem obras supralocais em obediência literal à Bíblia, se elas não estão na Bíblia.
É sempre útil indagar como a esfera local se define, no Novo Testamento. Salta aos olhos, em Atos e nas Epístolas, que a noção de localidade está associada à cidade. Atos refere-se a igrejas únicas em cada cidade. Paulo edificou uma igreja por cidade. E Apocalipse também nos fala de uma igreja em cada cidade da Ásia. Essas evidências são inegáveis, mas ao mesmo tempo são um tanto óbvias. A informação quase salta das páginas do Novo Testamento, quando as abrimos.
Raramente, o óbvio é a única face da realidade. A advertência para não negarmos o direito à existência de outras comunidades nunca é demasiada. O fato de o Novo Testamento se referir, recorrentemente, a igrejas únicas em cada cidade não deve ser tomado como proibição de outras formas de comunidade. Assim como a inexistência de obras supralocais não implica a proibição delas, a (suposta) inexistência de diversas igrejas locais, na mesma cidade, não deve ser encarada como uma proibição da sua edificação.
O caráter local da igreja, da obra e da comunidade cristã não está restrito à cidade. Afirmar essa restrição é incorrer na ignorância (um tanto suprema) de que o mundo romano estava dividido em cidade e campo. Acaso, os moradores do campo não podiam ter comunidades locais diferentes das congregações urbanas? Essas comunidades não podiam se chamar igrejas?
A palavra ekklesia (igreja em grego) não era como o nome de Iahweh, que os judeus tinham receio de usar. Não era proibido aos cristãos usá-la, em certas situações ou para determinadas realidades, sob pena de morte. Pelo contrário, o termo era de uso corrente, em situações variadas. O Novo Testamento chama ekklesia a congregação de Israel no deserto (Atos 7:38) e o ajuntamento de pagãos no anfiteatro de Éfeso (19:32,41). Como conceder aos judeus e aos pagãos o direito de ser igreja, porém não aos cristãos?
Nada impede que os cristãos desenvolvam igrejas, comunidades, ministérios e obras, em sentidos locais diversos. Para nos atermos às igrejas, o localismo que Paulo lhes reconhece não é só o da cidade. Ele dirigiu a Epístola aos Romanos a todos os amados de Deus que estavam em Roma (Rm 1:7). Alguém duvida de que essas pessoas fossem todos os que criam em Deus e em Cristo naquela cidade? Ou será que Deus só amava alguns? No fim da epístola, Paulo exortou os seus destinatários (os amados de Deus em Roma) a saudar a igreja na casa de Áquila e Priscila (Rm 16:3,5). Se só admitisse a igreja na cidade e houvesse escrito somente a ela, Paulo não poderia ter mandado essa igreja saudar a igreja na casa de Áquila e Priscila, sem cometer grave lapso. Tão grave quanto mandar João ou José saudar-se a si mesmo.
Negar o direito de igreja a comunidades diversas, na mesma cidade, é reivindicar direito exclusivo para uma forma de igreja. É afirmar um único molde de comunidade cristã. É entregar a esse molde o poder de conformar a igreja. União e divisão não se aferem dessa maneira. Menos ainda é possível formar identidades coletivas saudáveis, sob tão grandes limitações.
Nada disso implica negar o princípio neotestamentário de uma cidade - uma igreja. Implica negar somente que a unidade da igreja local seja uma unicidade. Os cristãos na mesma cidade não devem viver divididos, mas podem ter várias comunidades. Aliás, se estamos prontos a sustentar a unidade da igreja em cada cidade, devemos estar também para sustentar que as obras cristãs ainda podem ser realizadas, sem impérios transnacionais ou mesmo supralocais. Assim como a única igreja em cada cidade é um princípio do Novo Testamento, o ministério local também o é. Apóstolo significa enviado, porque o ponto de partida da obra que ele realizava era o envio por uma comunidade local.
Coletivamente, o que importa é o grupo ou comunidade cristã ter uma identidade legítima e forte. O que não se admite é que as identidades sejam negadas, sem bons motivos. Do ponto de vista individual, o cristão deve crer em Deus e em Cristo. Do ponto de vista coletivo, sua tarefa é desenvolver identidades comuns uns com os outros e não as excluir.