domingo, 26 de junho de 2011

Restauração: o que é, o que não é

O apóstolo Paulo sugeriu que a saída do povo de Israel do Egito e a sua peregrinação no deserto retratam, simbolicamente, a experiência muito posterior dos cristãos. De acordo com ele, “todos [os israelitas] foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de uma mesma comida espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual” (1 Co 10:2-4). Porém, “estas coisas foram-nos feitas em figura” (1 Co 10:6). No pensamento de Paulo, o Êxodo prefigurava algo mais, algo diferente dele próprio, a saber: o desenvolvimento da salvação trazida por Cristo.
Essa afirmativa de Paulo estabelece um importante princípio de interpretação. Para o apóstolo, a História de Israel prefigurava a da Igreja. Portanto, não apenas a saída do Egito, a passagem pelo mar, a permanência sob a nuvem, a alimentação do maná e o jorro de água da rocha tinham esse sentido, mas os acontecimentos posteriores também.
A ideia de que a igreja cristã experimentou uma degradação seguida de restauração decorre da possibilidade de se ver a História recente na antiga, da maneira claramente pretendida por Paulo. O Cativeiro de Israel em Babilônia representa um período, no qual o cerne da nova aliança, representado simbolicamente pelo Templo e pelo culto, foi destruído ou suspenso. Porém, à destruição seguiu-se a plena restauração daqueles elementos.
Não foi por outra razão que Lutero escreveu uma célebre obra sobre o Cativeiro Babilônico da igreja. Ele estendeu o princípio da prefiguração afirmado por Paulo ao período de derrota e desolação, durante o qual o culto divino permaneceu suspenso em Israel. Para ele, do século IX ao XVI, o Papado reproduziu as principais características daquela particular prefiguração, pois aprisionou os cristãos num regime supersticioso estranho ao Novo Testamento.
Ao projetar o Cativeiro Babilônico de Israel em sua própria época, Lutero foi consequente. Ele fez simplesmente o mesmo que o apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios. Esse trabalho de projeção descortina uma ampla visão da História, no centro da qual se percebe um processo de degradação seguido da restauração da igreja cristã. Sondar os princípios e os detalhes dessa visão é o objetivo do presente texto.
O contraste entre a adoração de Israel a Deus, em Canaã, por cerca de 900 anos, e a degradação desse culto, durante o Cativeiro, salta aos olhos. Ele indica que a História da Igreja Cristã até o Cativeiro pode ser claramente dividida em um período de normalidade geral e outro de anormalidade. Assim como, no Antigo Testamento, o período que antecedeu a degradação do culto foi de normalidade, apesar das constantes oscilações, a vida da igreja transcorreu sob uma normalidade abençoada e divina, durante séculos. Isso não significa que não existiram problemas. Pelo contrário, eles foram abundantes. Porém, aos olhos de Deus, o contorno geral do longo período inicial de existência da igreja, no mundo, foi a sua normalidade espiritual. Como Israel havia sido chamado para fora do Egito, a fim de adorar a Deus em Canaã e fez isso durante 900 anos, embora com altos e baixos, a igreja viveu uma situação regular, aos olhos de Deus, ao longo de séculos. Só o Cativeiro Babilônico, a que Lutero se referiu, pôs fim a tal situação.
Esse modo de ver a História da Igreja sugere que não devemos considerá-la uma sucessão de fracassos só contrastados pela fidelidade de uns poucos cristãos a Deus. A maioria dos pregadores e adeptos da ideia de restauração considera que cada período histórico é marcado pela infidelidade da maior parte e pela fidelidade de uns poucos cristãos à aliança com Deus. Em cada época, predomina a degradação, porém Deus escolhe um remanescente para sustentar o seu testemunho.
Essa concepção revela-se equivocada, quando é examinada pelo prisma dos acontecimentos do Antigo Testamento. Sob esse ponto de vista, o fracasso só se disseminou, só afundou raízes, na História da Igreja, com o nefasto acontecimento que Lutero denominou Cativeiro Babilônico da igreja. Tudo o que veio antes, por mais que estivesse misturado a erros, não deve ser visto como fracasso geral. Essa é a visão da História, sobre a qual a visão mais restrita da restauração deve ser estabelecida. A restauração não é a reação de uma minoria a erros acumulados, pelos filhos de Deus, durante eras sem fim. Tampouco é um processo contínuo, como uma corrida de revezamento, em que cada atleta passa o bastão a outro. A restauração é um acontecimento que se dá num período relativamente curto, em resposta a uma degradação também concentrada no tempo.
Para ser ainda mais claro: se antes do Cativeiro Babilônico do Antigo Testamento houve um longo período de normalidade no culto a Deus, quando nos transportamos à era atual, a adoração católica da Antiguidade e de parte da Idade Média não deve ser considerada anormal, por mais que estivesse misturada a orações aos santos, à veneração de objetos materiais e a certas superstições. Ao mesmo tempo em que se considera esses erros, há de se levar em conta, e ainda mais, que a situação da igreja, em qualquer época, não se determina pelos seus erros em sentido amplo, mas pelo trato que desenvolve com a palavra de Deus. Sob esse ponto de vista, a degradação da vida da igreja, isto é, a virtual suspensão do culto normal a Deus, só ocorreu bem mais tarde, quando o ministério da palavra cessou.
Quando a palavra de Deus é ministrada, pregada, ensinada, há normalidade no culto a Deus; quando ela não o é, a anormalidade se instaura. Refiro-me principalmente à palavra sujeita ao livre exame, e só secundariamente às interpretações compulsórias dela. Os dados históricos são claros, ao apontar que o ministério da palavra baseado no livre exame cessou, quando o latim se tornou língua morta, e nada foi feito, a princípio, para que a palavra da Bíblia pudesse chegar ao povo e este pudesse lê-la livremente.
Quando os povos da Europa e do mundo deixaram de falar e de compreender o latim, e a missa continuou a ser proferida naquele idioma, o canal mais privilegiado de acesso à palavra de Deus foi obstruído. Como quase toda a população da época era analfabeta, e a literatura estava enclausurada nas ordens religiosas e nas igrejas, a Bíblia e os livros do que a própria Igreja reverencia como sua Tradição deixaram de ser lidos, pregados e ouvidos. O latim e os claustros tornaram-se o seu sepulcro.
Repercutindo essa maneira de ser da Igreja medieval, a maior parte dos cargos hierárquicos surgidos na Baixa Idade Média perdeu parte fundamental de sua relação com o ministério da palavra. Nas Institutas, Calvino registrou que a função de várias dignidades eclesiásticas da sua época era cantar, recitar orações ou realizar outras tarefas sem relação alguma com a Bíblia (CALVINO, Jean. The Institutes of Christian religion. In Great books of the western world. 2a. ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Book Fourth, Chapter V, 10. p. 366). E, embora a Tradição eclesiástica também conhenha a palavra de Deus, a Bíblia não pode ser substituída por ela, até porque os conflitos interpretativos das duas devem ser resolvidos à luz das Escrituras. Por isso se pode afirmar que o desaparecimento da Bíblia desnaturou o ministério da palavra, na igreja, a partir de determinado momento histórico.
A Reforma foi responsável pela devolução da Bíblia ao povo, mediante a tradução para a linguagem comum, que permitiu o triunfo do livre exame e a recolocação do ministério da palavra no centro do culto público. E isso não só no meio protestante, mas, cada vez em maior medida, nos séculos seguintes, também no católico.
No Novo Testamento, é extremamente claro que os primeiros cristãos entenderam a ordem espiritual instituída por Cristo como uma substituição do culto material baseado no Templo de Jerusalém pelo culto baseado na palavra de Deus. A destruição do Templo, no ano 70, foi apenas o sinal visível da substituição. O Templo se foi, porque a palavra já havia sido colocada no seu lugar. Porque tudo o que era material e visível, na antiga ordem, tornou-se verbal, portanto invisível, debaixo da nova. Por isso, a degradação da igreja se deu com a corrupção do ministério da palavra, e a sua restauração, com a retomada dele, na época da Reforma Protestante e Católica.