terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (24): Equidade Versus Desigualdade

A ruptura epistemológica não é uma invenção da esquerda. Foi praticada, pela primeira vez, pelos filósofos pré-socráticos, que reformularam a visão de mundo grega de um Universo eterno composto por objetos sensíveis. Sem abandonar o materialismo dos antigos gregos, antes o reafirmando, aqueles filósofos foram capazes de acomodar até mesmo o imperceptível (como os átomos de Leucipo e Demócrito), na sua visão de mundo, alterando a maneira grega de pensar por meio da crítica racional.
No entanto, a ruptura epistemológica dos pré-socráticos foi de pequena extensão, do ponto de vista da História da Filosofia. Talvez por isso, teve de ser aprofundada, nos séculos XVIII e XIX, pelos materialistas franceses e, em maior medida, por Marx e Engels, que colocaram uma base extraordinariamente ampla de dados e teorias da História, da Antropologia, da Economia, da Política e, em menor medida, também da Física a serviço da teoria social.
Por essa extraordinária realização, o pensamento de esquerda, representado por Marx e Engels, concluiu uma ruptura epistemológica tão relevante e ampla quanto a que Platão e sua escola tinham encetado, em direção diametralmente oposta, a partir do século V a. C. Assim, não é errado, é antes necessário concluir que o pensamento metafísico e o da esquerda social foram ambos frutos de rupturas levadas ao apogeu, no primeiro caso, pela Filosofia Cristã, e no outro, por Marx e Engels.
Embora os pontos de vista materialista e metafísico sejam em ampla medida antagônicos, é inegável que eles também têm pontos de contato, a começar pela gênese em rupturas tendentes à introdução da epistème (ciência). Podem, por isso, não ser tão irreconciliáveis quanto é usual afirmar. Uma obra digna das realizações passadas das duas visões de mundo consistiria em cada qual revisar os seus pontos de vista, no campo em que é mais frágil e em que a outra mais se desenvolveu. No caso da Metafísica, essa tarefa se põe como uma revisão de seus pontos de vista sociais.
Felizmente, a tarefa já começou a ser realizada, principalmente pelos representantes da Doutrina Social da Igreja e da Teologia da Libertação. De sorte que, para empreender a revisão do pensamento cristão social, é preciso dar continuidade ao trabalho iniciado por esses movimentos, muito mais do que reconstruí-lo ab ovo.
É essa uma tarefa possível? Pode a Metafísica aproximar-se, de fato, do pensamento social? Não é mais sensato concluir que eles simplesmente se excluem? A meu ver, o direito natural é a melhor resposta a indagações como essas. Sua sobrevivência aos desafios históricos que lhe foram postos, a reafirmação constante do jus naturalis pela Igreja e pelos filósofos cristãos, sua reaparição na obra de pensadores de Radbruch a Alexy e de Reale a Dworkin parecem indicar que o direito natural constitui um terreno no qual a aproximação da Metafísica do pensamento de esquerda poderá realizar-se.
Dentre as vertentes em que o direito natural se desdobra, penso que a reflexão sobre a justiça é a que oferece as melhores perspectivas para a aproximação. E que a teoria da justiça como equidade, de Rawls, mesmo sem integrar a tradição jusnaturalista, pode ser usada como painel das preocupações contemporâneas às quais qualquer versão atualizada do direito natural deve responder. Vale, por isso, a pena considerar como o filósofo político americano lançou as bases do seu pensamento sobre a justiça.
Para Rawls, a equidade resulta da eleição de dois princípios pelos membros de uma sociedade hipotética que desconhecem seus próprios interesses individuais. Claro que Rawls não acredita que essa situação tenha-se jamais realizado. Porém, ela ajuda a aclarar o modo como concebemos a sociedade. Na situação inicial hipotética, diz Rawls, os cidadãos elegeriam os seguintes princípios fundamentais da justiça: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 64).
As palavras primeiro e segundo, na citação acima, assinalam os princípios em que a justiça social se bifurca. Na situação emergente da escolha desses princípios, “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos [os] valores traga vantagens para todos” (idem. p. 66). A distribuição igualitária ou desigual, porém vantajosa para todos, dos bens da vida fornece uma imagem bastante adequada da equidade como Rawls a concebe.
Retenhamos o núcleo da teoria de Rawls, no qual ele aloja os princípios da justiça, que doravante denominarei número 1 e número 2. Após tê-los enunciado da maneira acima, Rawls reelabora o princípio número 2 com base no que denomina princípio da diferença. Para que as ideias não se sobreponham de modo indevido, na mente do leitor, esclareço que o princípio da diferença não se confunde com o número 1 ou o número 2 em que as múltiplas faces da justiça se subsumem. Princípio da diferença é, na verdade, a primeira metade do princípio número 2 reelaborado de maneira a afirmar: “As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de modo a serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos favorecidos e (b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades” (idem. p. 88).
O princípio da diferença encontra-se sintetizado na letra a do enunciado acima. Rawls o explica mais prolongadamente, em outras passagens: “Supondo-se a estrutura de instituições exigida pela liberdade igual e pela igualdade equitativa de oportunidades, as maiores expectativas daqueles em melhor situação são justas se, e somente se, funcionam como parte de um esquema que melhora as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade” (idem. pp. 79-80). E de novo: “Quando as contribuições das posições mais favorecidas se espalham [...] parece plausível que se os menos favorecidos se beneficiam, o mesmo acontece com os outros das camadas intermediárias” (idem. p. 87).
Nesse último trecho, Rawls esclarece que o princípio da diferença não opera só a favor dos mais desfavorecidos, mas também das classes intermediárias da sociedade. Cabe, porém, uma ressalva: “O princípio da diferença certamente não é o princípio da reparação. Ele não exige que a sociedade tente contrabalançar as desvantagens [de alguns em relação a outros]”. Por isso, “os que foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes” (idem. pp. 107-108).
Assim entendidas, as desigualdades naturais devem ser admitidas tanto quanto postas a serviço do corpo social. Para Rawls, “a distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos” (idem. p. 109).
Como operadoras privilegiadas dos dois princípios, as instituições a que Rawls se refere devem ser escolhidas logo em seguida à eleição dos princípios fundamentais da justiça. De acordo com ele, “as principais instituições dessa estrutura são as de uma democracia constitucional” (idem. p. 211).
Um diferencial específico da teoria de Rawls é a prioridade que ele atribui ao princípio número 1 (o da maior liberdade), em relação ao 2 (o da igualdade): “As pessoas na posição original são movidas por uma certa hierarquia de interesses. Devem primeiro assegurar o seu interesse de ordem superior e seus objetivos fundamentais (dos quais apenas a forma genérica lhes é conhecida), e esse fato se reflete na precedência que dão à liberdade; a aquisição dos meios que lhes permitem promover seus outros desejos e objetivos tem um lugar secundário” (idem. p. 604).
Vejamos o que estudiosos que examinaram profundamente a teoria de Rawls afirmaram a respeito dela. O economista e Prêmio Nobel Amartya Sen, que trabalhou com o filósofo americano na década de 1960, considera que ele desenvolveu uma das tradições derivadas do Iluminismo: “Há duas linhas básicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça entre importantes filósofos ligados ao pensamento radical daquele período [...] Uma abordagem – iniciada por Thomas Hobbes no século XVII, e seguida, de diferentes modos, por destacados pensadores, como Jean-Jacques Rousseau [assim como Kant e o próprio John Rawls] – concentrou-se na identificação de arranjos institucionais justos para uma sociedade. Essa abordagem, que pode ser chamada institucionalismo transcendental, tem duas características distintas. Primeiro, concentra a atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça [...] Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais” (SEN, Amartya. A ideia de justiça. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 35-36).
A segunda corrente sobre a justiça emanada do Iluminismo é a dos pensadores que “adotaram uma variedade de abordagens comparativas endereçadas às realizações sociais (resultantes de instituições reais, comportamentos reais e outras influências). Diferentes versões desse pensamento comparativo podem ser encontradas, por exemplo, nas obras de Adam Smith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, Karl Marx, John Stuart Mill” (idem. p. 37).
Sen filia-se à segunda tradição. Para ele, a opção contratualista (de Rousseau, Kant e Rawls) quase sempre resulta da sobrevalorização da liberdade, o que equivale a colocá-la acima das outras virtudes: “É possível aceitar que a liberdade deve ter algum tipo de prioridade, mas uma prioridade totalmente irrestrita é quase com certeza um exagero” (idem. p. 96).
A preferência pela liberdade e a colocação dela acima das outras virtudes são bons motivos para classificarmos Rawls como um pensador liberal. É-nos difícil segui-lo nesse ponto, devido ao exagero que a defesa prioritária da liberdade implica. Michael Sandel expõe com argúcia uma das consequências dessa posição de Rawls: “Atualmente não pensamos na política como algo que tenha uma finalidade particular e independente, mas como algo aberto às diversas finalidades que os cidadãos venham a adotar [...] Nossa relutância em atribuir à justiça um determinado télos ou finalidade mostra uma preocupação com a liberdade” (SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 13ª ed., São Paulo: Rio de Janeiro, 2014. pp. 239-240). No entanto (é o que Sandel pensa), em muitos momentos, essa preocupação deve ceder espaço à afirmação de um télos diverso para a liberdade.
Apesar da perícia dessa ponderação de Sandel, o mais forte argumento anti-Rawls talvez seja o que Amartya Sen maneja contra “a escolha única, na posição inicial, de determinado conjunto de princípios para as instituições justas necessárias para uma sociedade plenamente justa. Há interesses gerais genuinamente plurais, e às vezes conflitantes, que afetam nossa compreensão da justiça. Eles não precisam diferir [...] de forma que só um conjunto de princípios realmente incorpore a imparcialidade e a equidade, enquanto os outros não” (
SEN, Amartya. Ob. cit. p. 87).
As críticas de Sen e de Sandel à teoria de Rawls merecem, em grande parte, ser acolhidas. Porém, é preciso admitir, ao mesmo tempo, que elas não infirmam a posição básica de Rawls consistente em tornar a liberdade e a igualdade os pilares da justiça social. Pelo contrário, com as correções necessárias, a teoria da justiça como equidade continua a sintetizar extraordinariamente bem as aspirações contemporâneas sobre a justiça.
Se considerarmos a justiça uma combinação de versões atenuadas de outras virtudes, como tenho sustentado nesta série, e admitirmos que a medida das atenuações deve ser estabelecida pelas instituições, poderemos utilizar o princípio da diferença para garantir que a igualdade sócio-econômica seja menos atenuada que todos os outros valores exceto a liberdade. Dessa maneira, chegaremos a um equilíbrio entre as virtudes, de modo que nem a igualdade prevalecerá sobre a liberdade, nem esta sobre aquela.
Sob tal concepção, os impasses na aplicação dos princípios da liberdade e da igualdade não deverão ser resolvidos à maneira de Rawls, por uma prevenção favorável à liberdade, nem pela prevenção oposta, favorável à igualdade, e sim à luz das particularidades de cada caso. Assim, em algumas situações de conflito, a liberdade será privilegiada em lugar da igualdade, ao passo que, em outras, sucederá o contrário.
O arranjo de princípios que proponho como descrição da justiça não é, absolutamente, universal. Não pode, por isso, ser incorporado ao direito natural. Mas é fundamental perceber que ele tampouco é contrário ao direito natural. Nos termos da classificação proposta por Amartya Sen, poderia ser entendido como uma espécie híbrida: um institucionalismo comparativo. Porém, acima de tudo e mais simplesmente, o que proponho é um aggiornamento do direito natural. Sou tentado a afirmar, até mesmo, que esse aggiornamento permite a ruptura epistemológica que procuro.
Na verdade, o princípio da diferença, modificado de modo a elevar a igualdade ao patamar axiológico da liberdade, 
é o que faculta a ruptura. Porém, assim conduzida, a ruptura permite-nos posicionar o pensamento sobre a justiça na fronteira da Metafísica Cristã com a esquerda social. Permite mais invocar o princípio da diferença, quando a ordem social for ameaçada pelo uso desenfreado da liberdade, para instituir políticas públicas não reparatórias, mas aptas a mitigar a desigualdade. E é claro que o reequilíbrio contrário, em prol da liberdade, poderá ser também realizado, quando o princípio abusado for o da diferença.
Mostrarei em outros textos que a acumulação do capital pode ocorrer de modo a satisfazer ou não o princípio da diferença. Este é um ponto de particular importância na busca de uma teoria social mista, nem liberal, nem excessivamente à esquerda, que empreendo. Sinto a necessidade de encarecê-lo, por envolver um dos pontos mais obscuros e mal compreendidos da teoria social no nosso tempo.
Passado o choque da Revolução Industrial, a reprodução do capital disparou mecanismos que forçaram o aumento proporcional dos salários e a redução da desigualdade, em diversos países. A tradução desse fato em termos de justiça permite concluir que o capital é capaz de satisfazer o princípio da diferença, em certo número de situações. Claro que o contrário também pode ocorrer. A acumulação do capital também pode tornar-se ofensiva à justiça. Trata-se de determinar qual é a situação mais comum: a conformidade ou a inconformidade da acumulação com o princípio da diferença. Se o progresso da ciência envolve problemas, esse é de todos o mais especial da nossa época. Um problema que o capricho do tempo quis transformar em dilema.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (6): A Doutrina Cristã Social

Papa Pio XI
Após o fracasso das tentativas de implantação do socialismo, no século XX, a revisão do pensamento de esquerda ainda não se adiantou, tamanha a confusão que reina a seu respeito. Todos concordam que o ideal da igualdade sobreviveu à ruína do socialismo, assim como a liberdade escapou do fracasso do liberalismo. Porém, conclusões menos abstratas e mais definitivas que essas ainda não foram assentadas, em qualquer dos dois casos.
Para mim, o legado central do pensamento de esquerda é a combinação do ideal da igualdade com a ruptura epistemológica representada pela substituição de um pensamento tradicional por outro científico e crítico. Diversas propostas de conciliação do pensamento cristão com esse legado têm sido formuladas. Entre as mais bem-sucedidas, figuram a Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação.
Vivemos num tempo em que tanto o pensamento de esquerda como o de direita perderam o fascínio e não podem ser intensamente aplicados à sociedade. A situação tem, porém, uma vantagem: sabemos que o caminho de construção da sociedade futura envolve a combinação de elementos do liberalismo e da esquerda social. A combinação não nos remete necessariamente ao ponto médio entre eles, mas tampouco nos relega à tarefa inglória de inventar o absolutamente novo. Admito a necessidade de reinventarmos as formas de vida social, porém inventá-las a partir de um marco zero, qualquer que ele seja, não é lá tarefa humana.
Para combinar elementos das visões de mundo liberais e de esquerda, em vez de enxergá-las como absolutamente irreconciliáveis, é preciso encontrar os seus pontos de contato. Esse é o desafio que aceito e que procurarei responder nesta curta série. Como não me compete partir do zero, na tentativa de encontrar tais pontos, devo escolher uma das propostas de conciliação já formuladas como referência. Por motivos de afinidade, minha opção será pela Doutrina Social da Igreja.
No entanto, qualquer aproximação verdadeira da esquerda envolve não só uma forte preocupação com a igualdade, mas também com a ruptura epistemológica necessária para que o pensamento se inspire, sem se orientar pelo passado. O que me conduz à admissão de que, para partir da Doutrina da Igreja, precisarei buscar a ruptura epistemológica por conta própria, posto que o Magistério não a realiza. Mesmo assim, a crítica das teorias sociais de esquerda e direita, por parte da Igreja, contém uma abertura para o pensamento social de ruptura que vale a pena explorar.
A doutrina social católica começou a ser formulada no pontificado de Leão XIII (1878-1903), que publicou uma série de textos sobre a questão social, dentre os quais merecem realce a Rerum novarum (1891), que contém as bases do pensamento social católico, Arcanum (1881), sobre a família e o matrimônio, Diuturnum (1881), que trata da autoridade civil, Immortale Dei (1885), acerca das relações entre Estado e Igreja, Sapientiae christianae (1890), que se detém nos deveres dos cidadãos católicos, Quod apostolici muneris (1878), a respeito do socialismo, e Libertas (1888), dedicada ao combate às falsas doutrinas da liberdade.
Pelas datas dessas encíclicas, percebemos que, ao lançar a mais importante delas, a Rerum novarum, Leão já se tinha celebrizado como o Papa da questão social. Mesmo sem ter recebido educação formal em ciências sociais, ele foi logo aclamado não apenas como fundador da doutrina social católica, mas como uma das mais importantes vozes da História sobre as interfaces da questão social com a moral e a religião.
Não muito depois de Leão, em 1931, Pio XI brindou-nos com outra encíclica social, a Quadragesimo anno, que contém uma das mais hábeis sínteses do pensamento social católico. Na parte do texto dedicada ao direito de propriedade, lemos que “o homem é anterior ao Estado” e “a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real [...] Não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual” (Pio XI. Quadragesimo anno. II, 1, nº 49).
Nesses trechos, Pio encadeia três citações da Rerum novarum, cujo quadragésimo aniversário ele comemorava, para transmitir a noção de que o direito antecede o homem e a família, e ambos, a sociedade civil. As citações têm o claro propósito de antepor o natural ao jurídico. Por isso mesmo, sugerem que o direito deve seguir os modelos de ordenação presentes na natureza.
A razão para isso é clara. A natureza não apenas se organizou como foi criada por Deus. Na Doutrina da Igreja, esse é sempre um ponto de honra, uma ideia fundamental. Pio, porém, o ultrapassa ao afirmar que Deus não apenas criou o Universo como inspirou os homens do passado a forjarem uma ordem social que reflete a razão natural: “O que temos ensinado acerca da restauração e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá realizar-se sem a reforma dos costumes, como até a mesma história eloquentemente demonstra. De fato, houve já uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de algum modo, dadas as circunstâncias e exigências do tempo, conforme à reta razão. E se essa ordem já de há muito se extinguiu não foi de certo por ser incapaz de evolucionar e alargar-se” (idem. II, 5).
A palavra restauração sugere que a doutrina social católica não tem por finalidade implantar algo novo, mas recuperar o que existiu em outras épocas. Para não pensarmos que as coisas que carecem de restauração são uns poucos elementos antigos, é importante notar que o texto se refere a toda “uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era de algum modo [...] conforme à reta razão”. O ideal natural católico não é só ideal, nem só natural. Ele se realizou. Tomou a forma visível não de um ou de outro costume, mas de toda uma sociedade.
A que época Pio XI alude? À medieval, pois nela e só nela a Igreja realmente reinou, às vezes sobre boa parte do orbe. Não por acaso, a Idade Média é também a época a que a Igreja retorna para haurir a teologia que entende sobressair a todas as outras: a de Santo Tomás.
Assim concebido, o direito natural católico deixa de se basear apenas na ordem natural que antecede o próprio homem para se pautar, também e principalmente, num modelo histórico de sociedade. Em outras palavras, o parâmetro do direito natural católico não é a natureza, na sua imutabilidade, mas a sociedade como setor dela e uma sociedade particular, que a Igreja considera o modelo prático da reta razão: a que existiu na Idade Média.
Embora a atração católica pelo medieval pareça bastante questionável, a historicização do ideal de uma sociedade, vale dizer, a sua realização parcial tem grande interesse, pois provê ao direito natural uma face histórica que, a um tempo, aumenta a sua nitidez e permite explicar as imperfeições da justiça humana sem deixar de conectá-la à que se inspira na natureza. Para a Igreja, nenhuma sociedade é um espelho perfeito da razão natural. Nem sequer a que ela toma como modelo. Porém, isso não impede que ela constitua uma manifestação privilegiada do direito natural.
Até aqui, não vislumbramos abertura alguma para o pensamento social de vanguarda. Porém, a Doutrina da Igreja não inclui somente a defesa de um modelo social do passado, de corte medieval, mas também a crítica das sociedades presentes. Essa é a vertente na qual ela se abre para o pensamento progressista. Vejamos o que ela tem a dizer-nos a esse respeito.
Pio recorda que, “no fim do século XIX, em consequência de um novo gênero de economia, que se ia formando, e dos grandes progressos da indústria em muitas nações, aparecia a sociedade cada vez mais dividida em duas classes: das quais uma, pequena em número, gozava de quase todas as comodidades que as invenções modernas fornecem em abundância; ao passo que a outra, composta de uma multidão imensa de operários, a gemer na mais calamitosa miséria, em vão se esforçava por sair da penúria” (idem. nº 3).
No esforço de compreender esse estado de coisas, a Igreja identifica a dominação econômica dos mais fracos pelos poderosos e a denuncia decididamente: “Desde que as artes mecânicas e a indústria moderna em pouquíssimo tempo invadiram completamente e dominaram regiões inumeráveis, tanto as terras chamadas novas, como o remoto Oriente cultivado já na Antiguidade, cresceu desmesuradamente o número de proletários pobres” (idem. II, 3).
Fica, assim, claro que o princípio por trás da Doutrina da Igreja, o ponto em que ela se torna mais útil ao progresso social, é a identificação e a denúncia de males sociais como “violações da justiça, não só toleradas, mas por vezes até impostas pelos legisladores” (idem. nº 4). Expressões como essas tornaram-se comuns, nos documentos da Igreja, desde o final do século XIX. A justiça a que Pio se referiu é obviamente a natural. É, porém, uma justiça natural historicizada ou encarnada, para nos valermos do evocativo termo da doutrina teológica em que ela se inspira.
A justiça historicizada da Igreja não é um ideal naturalizado, mas encarnado. Todo valor tem a realizabilidade por atributo. Tanto os valores individuais como os sociais realizam-se, em alguma medida, na História. Não é diferente com a aparição e o desenvolvimento da justiça, no interior de uma sociedade. Também eles constituem a realização parcial de um valor, pela sua transposição do plano ideal ao da História.
A mesma lógica permite identificar o que nega o ideal da justiça, no âmbito histórico: “Por muito tempo pôde o capital arrogar-se demasiados direitos. Todos os produtos e todos os lucros reclamava-os ele para si” (idem. II, 2). Pio condenou nesses termos a traição do caráter social da propriedade. Para ele, quando essa forma de relação se difundiu, no século XIX, “apregoava-se que, por fatal lei econômica, pertencia aos patrões acumular todo o capital, e que a mesma lei condenava e acorrentava os operários à perpétua pobreza e vida miserável” (idem).
Porém, uma série de ressalvas aninha-se nessas denúncias, de modo a afastar a aparente coincidência delas com as posições da esquerda social. A primeira ressalva nos lembra que a natureza do regime capitalista “não é viciosa” e que “só viola a reta ordem, quando o capital escraviza os operários ou a classe proletária” (idem. III, 1).
Pode parecer estranho a Igreja sustentar a natureza não viciosa do capital e, ao mesmo tempo, defender a função social da propriedade. Quadragesimo anno desfaz a aparente contradição, na passagem em que lemos: “O direito de propriedade é distinto do seu uso. Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento não pode urgir-se por vias jurídicas” (idem. II, 1).
A justiça comutativa impõe que A não viole a propriedade de B, ou B, a de A. Porém, nada sabemos de uma justiça que obrigue os proprietários a usar o que é seu de modo altruísta. Agir com altruísmo não importa satisfazer a justiça, comutativa ou distributiva, mas outras virtudes, como a magnificência. Pio tem claro que a justiça, numa concepção social, não é a magnificência. Aquela é tutelada pelo direito, esta não. Nunca se viu a lei obrigar o pedestre a dar esmola ao mendigo que lhe suplica. A generosidade, como o altruísmo, não são valores tuteláveis juridicamente. Por isso, como um direito natural, a propriedade se orienta ao benefício de todos, porém não compulsoriamente.
Essa lição não se encontra somente em Pio, mas também em Leão, em João XXIII e em Francisco. Enfim, está em toda parte na Doutrina Católica. A justiça envolve as outras virtudes, mas em medida atenuada. É uma espécie de compêndio de versões mitigadas dos outros valores.
Nem o liberalismo, nem o socialismo conduzem à realização da justiça. No primeiro, as classes lutam para “alcançar o predomínio econômico; depois combatem-se renhidamente por obter predomínio no governo da nação [...] enfim lutam os Estados entre si” (idem. III, 1). No socialismo, as liberdades individuais são sacrificadas, sem ganhos notáveis para o conjunto da sociedade.
Não é difícil perceber, nessas palavras, que a Igreja utiliza o flagelo crítico para condenar tanto os males do liberalismo quanto os da esquerda social. Porém, ao condená-los tão veementemente e poupar o ideal de ruptura epistemológica, ela remove coisas bastantes para que a cisão com partes do pensamento antigo possa penetrar no seu sistema. Feliz ou infelizmente, a própria Igreja não leva a cabo essa cisão. Deixa, porém, explícito que é possível realizá-la a partir da doutrina cristã.
A cisão é tentada, de certa maneira, pelas correntes que compõem o pensamento cristão de esquerda, entre as quais se destaca a Teologia da Libertação. Duas coisas sobressaem à primeira leitura dos autores dessa corrente teológica: sua consciência privilegiada da realidade histórica dos pobres e o risco em que incorre de tornar secundária a orientação da doutrina cristã ao divino. Os teólogos da libertação sempre procuraram desenvolver aquela consciência, mantendo sob controle o risco que ela envolve. Leonardo Boff encontra na encarnação do Verbo, descrita no prólogo do Evangelho de João (1:14), o princípio desse equilíbrio: "Que nos diz a tradição dogmática sobre a encarnação? Que o Filho de Deus deixou sua transcendência e assumiu em Jesus de Nazaré a natureza humana em situação de carne, quer dizer, limitada, vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito, aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma ‘inconfundível, imutável, indivisa e inseparável’ sendo Jesus, a um só tempo, ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem’ (Calcedônia, ano 451). Mas a encarnação não se limita a Jesus. Comenta a Gaudium et spes: ‘Por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem’ (nº 22)" (BOFF, Leonardo. “Pelos pobres, contra a estreiteza do método”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271). 
Boff bem poderia ter mencionado outras passagens da Gaudium et spes em prol de sua posição, como a que afirma que "o Verbo de Deus [...] entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a" [47]. De fato, na fé católica, o princípio da encarnação envolve não só a assunção de um corpo, mas da História por Deus. Esse é o princípio que anima a Teologia da Libertação, se a compreendo. A costura que ela realiza da pobreza em Deus não é exterior, aparente ou superficial. Não é um remendo, mas um enxerto dela na natureza divina.
Contra os excessos dessa visão, um dos mais eminentes teólogos da libertação entre nós Clodovis Boff insurgiu-se, recentemente, ao propor que o princípio Cristo (o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, enquanto fundamento da fé) não inclui a pobreza. Na linguagem do teólogo brasileiro, isso implica reconhecer a ambiguidade da Teologia da Libertação, ao identificar o pobre com Cristo, em sentido absoluto e não relativo. Cristo e só Cristo deve ser afirmado como princípio fundamental e absoluto da fé. Sem se esquecer que "princípio é princípio. É coisa límpida, inequívoca, efeito da reductio ad unum. Agora, quando se começa a vacilar, falando nestes termos: ‘princípio, sim, mas mediado’, princípio-fé, sim, mas também princípio-misericórdia’, ‘Deus, sim, mas sempre com os pobres’ [como faz a Teologia da Libertação], pronto, acabou-se o princípio e começou a derivação" (BOFF, Clodovis. “Volta ao fundamento – réplica”. In Revista Eclesiástica Brasileira. nº 271, 2008).
Parece existir, de fato, uma discrepância entre a ligação da pobreza à natureza divina, que a Teologia da Libertação realiza, e a interpretação mais aceita da encarnação. Duas fórmulas tradicionais sintetizam essa interpretação: o cânon de Niceia (325 d. C.) que declara que Cristo “é gerado, não criado, homoousios (consubstancial) ao Pai” e o do Concílio de Calcedônia (451 d. C.), segundo o qual se deve “confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito em divindade e perfeito em humanidade, o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto de uma alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade [...] um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão”.
No contexto da literatura grega, a palavra ousios assume diversos significados. Contudo, o tratamento que lhe foi dado por Aristóteles fez com que um dos significados sobressaísse, ao menos no âmbito filosófico: "A concepção tradicional supõe que o conceito de ousia tenha sido fixado pela discussão de Aristóteles nas Categorias" (STEAD, Christopher. A Filosofia na Antiguidade Cristã. São Paulo: Paulus, 1999. p. 151). E, assim como Aristóteles influenciou o uso filosófico de ousia, os pais capadócios (Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo) tiveram peso semelhante na definição do sentido teológico"A distinção entre ousia e hipóstase [...] foi pela primeira vez exposta de modo amplo pelos Padres Capadócios" (idem. p. 165). Consistiu em "restringir o sentido de ousia para a espécie; o indivíduo deveria ser indicado pela palavra hipóstase" (idem. p. 152). Desde os padres capadócios, portanto também em Calcedônia, ousia passou a ser cada vez mais claramente utilizado para indicar a espécie, e hyposthasis, para referir-se ao indivíduo.
Assim, quando os documentos do Concílio de Calcedônia referem-se a Cristo como consubstancial (homoousios) ao Pai e a nós, a ideia é a de alguém dotado da mesma substância ou pertencente à espécie de Deus e do homem. Nesse ponto, o uso teológico concorda com o filosófico, já que a tradição derivada de Aristóteles relaciona substância (ousios) com natureza (physis). Tal o sentido provável da fórmula de Calcedônia citada por Leornardo Boff.
Nenhum versículo do Novo Testamento usa a linguagem metafísica tão amplamente para afirmar a unidade do Pai com o Filho. O que há de mais próximo da linguagem de Calcedônia, no Novo Testamento, é “a expressão exata do ser [do Pai]” (Hb 1:3), que o autor de Hebreus atribui a Cristo. O termo grego aqui traduzido ser não é ousios, nem physis, mas hypóstasis, que não tem o mesmo significado daquelas. Entre outras coisas, hypóstasis indica a pessoa. Portanto, o sentido é de que Cristo não é a pessoa (hypóstasis) do Pai, mas a sua expressão exata, sua marca (semelhante à de um selo ou impressão em relevo).
Porém, a adoção da linguagem metafísica, pelos autores do Novo Testamento e, em maior medida, pelos pais dos primeiros séculos, tem uma consequência que não cabe desconsiderar: ela exclui do mistério da encarnação toda carga relacionada ao contexto ou às circunstâncias históricas. A encarnação é pontual: se assumiu as circunstâncias históricas do seu próprio tempo, Cristo não pode ter feito o mesmo com as circunstâncias das outras épocas. Se se encarnou no primeiro século, ele não assumiu o restante do tempo.
As épocas são históricas; a assunção da natureza humana é metafísica. Cristo tomou a natureza do homem em si mesmo, isto é, na sua pessoa. Ele não assumiu as realidades exteriores da época da mesma forma. Como a pobreza é uma situação social, estender à História o significado dos símbolos de Niceia e Calcedônia a respeito da encarnação parece um procedimento hegeliano, contrário ao sentido das fontes cristãs.
Em segundo lugar, não há evidências de que Jesus tenha nascido pobre, no sentido que o termo tinha no primeiro século. O fato de ter sido posto na manjedoura, após Maria ter dado à luz, explica-se pela falta de “lugar para eles na hospedaria” (Lc 2:7), não por uma condição de pobreza atestável. No século I, não poucas famílias judias, da Galileia inclusive, eram abastadas ou pertenciam à classe emergente, em razão do surto de construções empreendidas por Herodes, o Grande. Não há razão clara para excluirmos a família de Jesus desse número ou para afirmarmos que ele se fez pobre ao nascer. Aparentemente, Jesus só se fez pobre, mais tarde, ao renunciar aos bens materiais a fim de levar a cabo o seu ministério.
Paulo aludiu a esse fato ao declarar, em 2ª aos Coríntios 8:9, que “Jesus Cristo, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua pobreza vos tornásseis ricos”. Riqueza é um atributo da forma de Deus, mencionada em Filipenses 2:6. É-lhe, pois, inerente e necessária. Pobreza, ao contrário, não é um atributo da condição humana. É, antes, uma situação contingente. Decorre da escassez de bens vitais. Entre a riqueza e a pobreza,há uma antítese clara e total. Por isso, não é possível entender a pobreza como um dado da natureza humana.
Como Paulo as menciona, a riqueza é espiritual, a pobreza, material; a riqueza é divina, a pobreza, humana; a primeira é necessária, a outra, circunstancial e contingente. Só assim, elas se opõem de todos os modos. Porém assim, também, é afirmado que Cristo, ao encarnar-se, depôs sua riqueza espiritual, inerente e divina para unir-se à natureza humana e, mais tarde, abraçar a pobreza material.
Se Cristo tivesse assumido as circunstâncias do seu próprio tempo ou de todos os tempos, por que responderia ao homem que lhe pediu que mandasse seu irmão repartir a herança com ele: “Quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?”(Lc 12:13-14). Alguma vez Jesus se negou a curar um doente? Não, pois libertar da doença era parte da sua missão. No entanto, ele se recusou a resolver a querela patrimonial de dois homens para mostrar que as obras situadas no domínio da História não são tratadas segundo o princípio da encarnação e sim pelos povos e suas instituições.
Em Betânia, quando Maria, irmã de Marta, ungiu Jesus com óleo caríssimo e foi repreendida por impedir que ele fosse vendido, e o valor, dado aos pobres, Jesus afirmou: “Os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (Mt 26:6-13; Jo 12:1-8). E, insatisfeito, acrescentou: “Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado o que ela fez” (Mt 26:13). A doação aos pobres, a transformação do dinheiro em esmola, era importante e sagrada, mas não havia de ser exagerada ou tornada um exemplo para todos. Seu contrário, o desperdício de Maria, é que foi transformado em exemplo para pessoas de todos os lugares e de todas as épocas.
Um dos textos mais citados pelos representantes da Teologia da Libertação é a parábola do julgamento escatológico. Não poucos teólogos veem no rei que separa as ovelhas dos cabritos um juiz comprometido com os pobres: “Então perguntarão os justos [as ovelhas]: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? [...] O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”(Mt 25:37,40).
No entanto, uma série de dificuldades impede a interpretação de que o rei escatológico julgue de acordo com o comportamento das pessoas em relação aos pobres. Primeiramente, o rei não disse que as ovelhas deram de comer e beber aos pobres, mas aos pequeninos. A condição bem-aventurada, a condição com que Cristo se identifica, não é a pobreza e sim a pequenez, que nos quatro Evangelhos indica a simplicidade de coração. Por isso também, o juiz declarou aos injustos: “Em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer” (Mt 25:45).
Em segundo lugar, é esquecido que o ensino do texto é metafórico. Nem as ovelhas são ovelhas, nem os cabritos são cabritos, nem os pequeninos são crianças, nem a comida é comida, a bebida, bebida e assim por diante. O próprio Jesus afirmou que as ovelhas são os justos, e os cabritos, os ímpios. Nessa linha de pensamento, os pequeninos são os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os perseguidos e assim por diante (Mt 5:3-10). Não são única e exclusivamente os pobres.
Mesmo assim, as Escrituras reservam um lugar importante à atenção aos pobres. Jesus afirmou que “os pobres sempre os tendes convosco” (Mt 26:12). Não quer isso lembrar que a persistência da pobreza nos convoca a não a perder de vista e a dispensar-lhe continuada atenção? A diferença entre essa atenção e a ênfase que a Teologia da Libertação deposita no ministério aos pobres é unicamente de medida. A opção preferencial pelos pobres não pode ser levada ao ponto da atenção preferencial à matéria. Enquanto existir miséria, os cristãos estão convocados a contribuir para atenuá-la. Mas não a transformar a reversão da pobreza em sua missão precípua. O cuidado dos pobres e o envolvimento com a questão da miséria sempre acompanharam a pregação do evangelho. Devem continuar a fazê-lo. Mas, exatamente por acompanharem-na, elas não se confundem com a própria pregação cristã.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (25): Por Que a Desigualdade Diminuiu?

Como o nome já diz, O capital no século XXI, de Thomas Piketty, é um exercício de predição do futuro, a partir de um olhar para o passado. Todos sabemos que não há previsão do futuro possível à razão. A ciência é capaz de antecipar acontecimentos como uma galinha pode voar. Piketty conhece como poucos essa limitação, porém arriscou antecipar o que deverá suceder nas quase nove décadas restantes do século. Um exercício que tudo indica fadar-se ao fracasso. Mesmo assim, não se fala de outra coisa, no meio especializado.
O mais importante, no ambiente festivo e nas celebrações que a mídia criou em torno do livro, é a sua real contribuição à ciência. Nesse ponto, o consenso implícito parece ser de que a exígua chance de o exercício preditivo de Piketty vir a se confirmar não altera o fato de que o olhar para o passado que ele apresenta não tem paralelo na literatura. Nenhuma outra obra abrange uma mole tão relevante de dados sobre os últimos 200 anos da História econômica quanto O capital no século XXI. Claro que outras características da obra de Piketty merecem ser apontadas, ao lado dessa. Dentre elas, eu destacaria a habilidade retórica do autor francês. No entanto, a massa de informações sobre o período de 1810 a 2010 é, a meu ver, a que precisa ser mais cuidadosamente assimilada pela ciência.
Destaco os últimos 200 anos, apesar de Piketty esforçar-se para selecionar informações gerais também sobre os séculos que se estendem do ano zero a 1800. Em que pese o esforço de pesquisa empreendido por ele e seus colaboradores sobre essa longa e obscura etapa, a diferença de qualidade entre os dados relativos aos séculos XIX a XXI e os do período anterior é gritante. Por isso, é mais prudente determo-nos na análise dos dados dos últimos 200 anos, que elucidam o processo de proletarização seguido de desproletarização disparado pela Revolução Industrial.
Sobre esse ponto, Piketty considera “ilusório pensar que existem, na estrutura de crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que conduzam naturalmente a uma redução da desigualdade da riqueza” (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 367). Por isso, ele explica a redução da desigualdade de 1914 a 1945 pelos choques econômicos das guerras e pelo sucesso das políticas públicas que levaram ao aumento dos impostos sobre o capital.
O problema da argumentação de Piketty é que não é fácil perceber como a explicação pelos choques do período das guerras pode corresponder ou somar-se à explicação baseada nas políticas públicas, sem que a estrutura lógica da argumentação sofra fraturas. De fato, quando submetida a testes rigorosos, a argumentação de Piketty se cinde, divide-se em duas explicações estanques e logicamente contraditórias da redução das desigualdades. Vejamos como essas contradições podem ser apontadas. Nas páginas 146 e 147 de O capital, de Piketty, lemos:
“Agora que já abordamos a evolução geral da relação capital/renda e da divisão público-privada no longo prazo, devemos retomar a cronologia e, principalmente, entender as razões para a queda brusca – seguida da extraordinária recuperação – da relação capital/renda ao longo do século XX.
[...] Além da destruição física, os principais fatores que explicam a queda vertiginosa da relação capital/renda entre 1913 e 1950 são, de um lado, o colapso das carteiras de ativos externos e a baixa poupança que caracterizava o período (somados às destruições, esses dois fatores acumulados explicam entre dois terços e três quartos da queda) e, de outro, os baixos níveis de preços dos ativos em vigor no novo contexto político de propriedade mista e regulada do pós-guerra (entre um quarto e um terço da queda)” (idem. pp.146-147).
Aqui, Piketty apresenta o que podemos denominar explicação 1 da redução da desigualdade. Nessa primeira estrutura explicativa, ele trabalha com quatro causas da redução e chega a determinar o peso aproximado de cada uma na deflagração do processo geral. Afirma, por exemplo, que a destruição física de capital e a queda dos ativos externos e da poupança, somados, respondem por dois terços a três quartos da redução da desigualdade observada. Resta a outra terça ou quarta parte que ele atribui, vagamente, ao baixo preço de ativos. A falta de clareza dificulta a compreensão do peso dessa causa específica, porém, em outra passagem, Piketty descreve melhor a baixa ocorrida como uma queda de valor dos ativos imobiliários e corporativos (capital das empresas). Nas suas palavras, “os baixos níveis dos preços imobiliários e corporativos do pós-guerra explicam uma parte nada insignificante – ainda que minoritária – da queda da relação capital-renda nacional entre 1913 e 1950: entre um quarto e um terço da baixa” (idem. p. 149).
Tanta precisão infunde respeito, ainda mais se quem a transmite é o responsável pelo levantamento dos dados discutidos. Porém, a verdade é que as conclusões de Piketty não se ajustam aos dados do período analisado com a precisão que as suas palavras sugerem. Isso é particularmente verdadeiro em relação à década de 1910 a 1920. Outro problema é que a explicação resumida acima é inconciliável com outra, que o próprio Piketty fornece na página 364 do seu livro:
“A tributação do rendimento do capital era muito próxima de 0% até 1900-1910 (e, em todo caso, inferior a 5%) e se estabilizou nos países ricos em torno de 30% a partir dos anos 1950-1980 [...] É possível mostrar que uma taxa de tributação efetiva de 30% – se aplicada a todas as formas de capital – pode ser suficiente para explicar por si só uma grande dispersão da riqueza (da mesma ordem que a queda da parcela do centésimo superior observada historicamente)” (idem. p. 364).
Essa é a explicação 2 da redução da desigualdade que Piketty defende. Também aqui, a precisão é buscada, embora num sentido novo. Ele afirma que a tributação do capital à razão de 30% conduz a uma queda da participação do centésimo superior idêntica à observada na História. Não se trata de uma sugestão casual ou despretensiosa. Piketty pretende que a coincidência apontada explica, de fato, a redução da desigualdade. Se não pretendesse, por que mencionar que a tributação de 30% do capital conduz exatamente à queda da desigualdade observada no século XX? Se ele se mantivesse firme na explicação 1, seria um contrassenso sugerir que o aumento da tributação explica exatamente o mesmo fenômeno.
Admitamos, porém, que não haja contradição alguma e que Piketty esteja a sugerir apenas que políticas públicas como o aumento da tributação do capital foram os instrumentos pelos quais as quatro causas da explicação 1 foram implantadas. Em nenhum momento, Piketty concilia as duas explicações com essa clareza. Em momento nenhum, ele as cose no mesmo tecido lógico. Porém, admitamos que a conciliação esteja na sua mente, como de fato parece estar, já que ele chega a verbalizá-la, obscuramente e de modo fragmentário, aqui e ali. Por exemplo, no início do parágrafo em que apresenta a explicação 1, Piketty afirma: “Na verdade, os choques orçamentários e políticos das guerras tiveram um papel ainda mais destrutivo para o capital do que os próprios combates”. E continua, sem interrupção, com o que transcrevi antes: “Além da destruição física, os principais fatores” etc. (idem. p. 147). Essa inserção parece ter o propósito de ligar os choques das Guerras Mundiais (explicação 1) à atuação estatal mais claramente formulada na explicação 2. É o que os adjetivos orçamentários e políticos inseridos na citação parecem indicar.
Concedamos que, nessa linha isolada, Piketty tenha aproximado a explicação das páginas 146-147 daquela da página 364 do seu livro, associando as quatro causas da redução da desigualdade à intervenção estatal mediante os “choques orçamentários e políticos das guerras”. Quase certamente essa correspondência é o que solda as partes da argumentação na mente de Piketty, embora uma linha não seja suficiente para tornar isso límpido.
O problema fatal é que, dito numa linha ou em mil, não importa, a diminuição do valor dos ativos externos não guarda relação com qualquer espécie de alteração abrupta e relevante do orçamento. As guerras, de fato, introduziram choques orçamentários que se traduziram no aumento da tributação para fazer frente ao esforço bélico. Porém, esses choques de modo nenhum tiveram o condão de causar a queda dos ativos externos das potências europeias. O que levou à queda, nas palavras do próprio Piketty, foram “as expropriações causadas por revoluções e processos de descolonização” (idem. p. 147). Os ativos externos desapareceram da contabilidade das grandes nações, porque foram arrebatados ou destruídos pelo rolo compressor da descolonização, não porque as nações alteraram deliberadamente os seus orçamentos. Assim, a falha na conexão da explicação 1 com a 2 torna-se manifesta.
Digamos, porém, que esse tenha sido um deslize isolado, um mero descuido que não compromete a segurança da interpretação de Piketty. Passemos ao exame da causa seguinte de que nosso autor lança mão na explicação 1 (queda da poupança). Piketty considera que as mudanças estruturais do orçamento público introduzidas, no período das guerras, levaram à queda da poupança. Vejamos o que isso significa, exatamente, para ele. Na página 174, encontramos:
“A poupança privada compreende dois componentes: a poupança direta dos indivíduos (a parte da renda disponível das famílias que não é consumida de imediato); e a poupança das empresas”. E, na página 172, a taxa de poupança é, de novo, conceituada como a participação da poupança privada na renda nacional descontada a depreciação dos ativos. Isso sugere que a poupança a que Piketty se refere é a privada, embora seja conceitualmente admissível e usual falar também de poupança pública.
O problema é que somos abandonados, de novo, a uma sugestão. Parece que a poupança a que Piketty se refere é a privada, mas isso não é posto a salvo de dúvidas. Temos de nos esforçar, novamente, para suprir a falta de esclarecimento. Felizmente, podemos fazê-lo considerando que a poupança pública foi próxima de zero, no período de 1914 a 1945, devido à enorme necessidade de dispêndios gerada pelo esforço de guerra e pela Grande Depressão. Com esse esclarecimento, podemos confirmar que a taxa de poupança medida por Piketty é a que importa considerar.
Nosso autor está, pois, a afirmar que as economias das famílias e das empresas diminuíram, devido ao aumento do orçamento público e outras decisões de guerra, e que isso contribuiu para a redução da desigualdade. Podemos conceder-lhe essas conclusões? A primeira sim, a última aparentemente não. Com as guerras, os Estados europeus, de fato, retiraram das famílias e das empresas os recursos que acrescentaram às rubricas de gastos militares dos seus orçamentos. Porém, a sangria da poupança privada não levou à diminuição da desigualdade. Pelo contrário, por uma amostra de oito países europeus, o próprio Piketty mostrou que a poupança das famílias foi superior à das empresas em seis casos, entre 1970 e 2010. Para nos restringirmos a alguns exemplos, na França, a poupança das famílias foi, em média, de 9% da renda nacional e a das empresas, de 2,1%; na Alemanha, as duas partes da poupança privada representaram 9,4% e 2,8% respectivamente; na Itália, 14,6% e 0,4% (idem. p. 175). Esses dados indicam que, em média, a participação das famílias na poupança privada é superior à das empresas: como é possível a queda da poupança beneficiar as famílias? Como é possível ela reduzir a desigualdade? A conclusão não se extrai das premissas.
É verdade que os dados acima não são do período entre as Guerras Mundiais, no qual ocorreu quase toda a redução da desigualdade que nos interessa. Porém, Piketty não fornece dados de poupança relativos ao período das guerras. Precisamos reter que o ônus da prova é dele, que foi quem reinterpretou vastamente os dados sobre a desigualdade. Se ele sustenta que a queda da taxa de poupança reduziu a desigualdade, cabe-lhe, é claro, fornecer os dados certos para comprová-lo. Infelizmente, Piketty não o faz. Pior do que isso: os dados que mais se ajustam a esse propósito, no seu livro, levam a conclusão contrária à dele.
A única possibilidade restante para a explicação 1 de Piketty se suster é as outras duas causas em que ela se divide salvarem-na. Porém, não é o que acontece. Vejamos por quê. As causas restantes são a queda dos preços dos imóveis e a destruição do capital durante as guerras. Pelos gráficos das páginas 118 e 119, no Reino Unido, a redução do valor dos imóveis, entre 1910 e 1920, correspondeu a cerca de 20% da queda do capital. Na França, ela foi maior. Girou em torno de 37% da queda total. A média dos dois países inscreve-se, perfeitamente, na estimativa da página 149 de O capital, de Piketty (entre um quarto e um terço). Portanto, mesmo que consideremos que nenhum percentual desses imóveis pertencia à classe média e aos mais pobres, um quarto ou um terço podem, no máximo, explicar uma parte menor do processo de redução da desigualdade.
Piketty complica um pouco a avaliação dessa causa ao associar a desvalorização dos imóveis à dos ativos das empresas, que não é medida por números. A falta de quantificação dificulta a análise dessa parte da explicação, mas não a impede, visto que o peso total (entre um quarto e um terço) das desvalorizações dos imóveis e dos ativos das empresas é fornecido. Assim, a quantificação das duas quedas permite entender que elas respondem por parte menor da redução do capital observada entre 1910 e 1920, o que equivale a dizer que não a explicam suficientemente.
A última causa da explicação 1 (a destruição do capital) tem força particular. Podemos admiti-la como um fato. Porém, ela não se ajusta à redução dos preços dos imóveis, pois, muitas vezes, onde a desvalorização imobiliária foi mais acenturada, a destruição foi quase nula e vice-versa. De modo que as duas causas não podem ser facilmente somadas, como o economista francês pretende.
O curioso é que, de novo, o acesso a essa conclusão é facultado por fatos citados pelo próprio Piketty. Por exemplo, ele afirma que, “no Reino Unido, a destruição física foi mais limitada – nula durante a Primeira Guerra Mundial” (idem. p. 146). No entanto, o gráfico da página 118 do livro aponta uma queda de 55% no capital interno do Reino Unido, entre 1910 e 1920. Como é impossível explicar mergulho tão abrupto do capital sem destruição pela guerra? A utilização combinada das duas últimas causas não é possível, pois a destruição de capital no Reino Unido, foi "nula durante a Primeira Guerra Mundial". Esse é um dos dados mais importantes do livro de Piketty para a compreensão da queda da desigualdade no século XX.
Em outro trecho de significado obscuro, lemos que “a destruição física do capital foi, por certo, substancial, sobretudo na França durante a Primeira Guerra Mundial (as zonas do front no nordeste do país foram duramente afetadas) na França e na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, com os bombardeios devastadores de 1944-1945 (os combates foram mais curtos que os de 1914-1918; contudo, a tecnologia era bem mais destrutiva). No total, essas destruições acumuladas equivaleram a cerca de um ano da renda nacional na França (entre um quinto e um quarto da redução total da relação capital/renda) e 1,5 ano na Alemanha (ou um terço da redução total da relação capital/renda)” (idem. p. 146). No início desse trecho, Piketty alude à 1ª Guerra, depois à 2ª. Ao final, conclui que a destruição total foi responsável por tal parcela da queda da desigualdade observada, na França, e por tal outra parcela, na Alemanha. Perguntamos: para os dois períodos somados ou apenas para o período mencionado por último (o da 2ª Guerra)? Inclinamo-nos para a primeira explicação, mas, de novo, falta clareza ao texto num momento decisivo.
Demos, porém, a volta às ideias implícitas, que em tudo se mostram tão importantes quanto as explícitas, no festejado livro de reflexões sobre o capital na atualidade. Consideremos que, em vez de se ligarem ou se fundirem numa só visão da desigualdade, as explicações 1 e 2 apliquem-se sucessivamente. Nesse caso, a explicação 1 mostrará como a redução da proporção do capital sobre a renda das classes inferiores se deu, entre 1914 e 1945. À explicação 2 ficará reservado mostrar como a queda alcançada pelos fatores da explicação 1 foi conservada ou não totalmente revertida mais tarde. Não podemos inverter esses papeis, já que, em 1914-1945, a intervenção estatal não tinha a escala, nem as características indispensáveis para diminuir a desigualdade. De sorte que a explicação 1 tem de vir antes da 2 e não o contrário.
Piketty não propõe esse ajuste das explicações, mas vale a pena levá-lo em conta, devido à obscuridade em que ele abandona o seu texto nos pontos decisivos. Esclareço que o exercício tem o propósito de fortalecer a argumentação de Piketty para verificar se ela pode ser salva por esse caminho. Não tem, pois, a intenção de a combater. Porém, independentemente da boa vontade com que a tratemos, a argumentação se esboroa sempre e da mesma maneira. É o que acontece quando utilizamos as explicações 1 e 2 sucessivamente e não ao mesmo tempo. De fato, ao situarmos a explicação 2 depois da 1, como vimos que é necessário, ela passa a depender da primeira. Sem a explicação 1, não há redução da desigualdade alguma para ser mantida pela explicação 2. E, como a explicação 1, na verdade, não explica a queda da desigualdade, não adianta usar uma depois da outra, pois também desse modo elas não dão conta dos fatos.
Por essas razões, Piketty não prova que a destruição de capital e a desvalorização imobiliária ou das empresas expliquem a redução da desigualdade durante a 1ª Guerra. De sorte que somos, de novo, convocados a suprir a falta de esclarecimentos decisivos nos pontos-chave do seu livro. E de novo podemos fazê-lo com os dados do próprio livro, que indicam, a meu ver claramente, que a queda vertiginosa do capital interno do Reino Unido, entre 1910-1920, foi causada por dois fatores: a tendência de redução do capital iniciada no século anterior (retratada na página 118 de Piketty) e o início do processo de descolonização que continuaria até meados do século passado. Esses efeitos somados explicam a queda do capital melhor do que as quatro causas de Piketty.
Os choques mencionados em O capital no século XXI são inseparáveis das duas Guerras Mundiais. Não são, pois, choques comuns ou repetitivos, mas eventos mais ou menos isolados, no concernente à dimensão e impacto que tiveram, na História da humanidade. Contudo, os mecanismos em que esses choques podem ser decompostos não tiveram o peso sugerido por Piketty para a queda da desigualdade.
Essas razões me constrangem a retornar à conclusão de que as duas explicações de Piketty para a redução das desigualdades no século XX não são conciliáveis, entre si ou com os fatos que ele menciona em seu livro. A explicação pelos choques contradiz a explicação baseada na intervenção estatal, apesar de Piketty tentar uni-las, quase sempre obscuramente, por meio de frases soltas e ideias implícitas. Citei como exemplo o primeiro parágrafo da página 147, mas, em várias outras passagens, o autor francês alia o funcionamento dos choques à intervenção estatal de modo obscuro e sem demonstrar os motivos lógicos de suas conclusões.
Talvez, “os choques orçamentários e políticos das guerras" tenham exercido "um papel ainda mais destrutivo para o capital do que os próprios combates”, como lemos na página 147. Porém, eles não reduziram a desigualdade do modo sugerido por Piketty, já que repercutiram negativamente nas famílias tanto quanto nas empresas. E os choques políticos que ele também menciona, como sabemos, só produziram as próprias guerras, nunca a almejável igualdade.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (34): O Direito Natural

A justiça é um valor multidimensional. Existe a justiça religiosa, que inspira as pessoas a enfrentar as dificuldades do seu dia a dia, a justiça como valor pessoal, que cada ser humano professa distintamente, e a justiça que tem por papel agregar os homens. A forma superior da justiça gregária é a que denominamos justiça social. Tenho-me ocupado dela, nos textos desta série.
Do ponto de vista do monge que se refugia na sua cela, a comunhão com Deus e o repouso da alma constituem o fundamento da justiça. Para Antígona, o decreto que negou sepultura ao seu irmão era injusto por afrontar valores religiosos. Mas, para o juiz que sentencia nos autos hoje ou para Creonte, que decidiu contra Antígona, o decreto que criam também realiza a justiça. Assim, embora opostos, os atos do monge, de Antígona e do magistrado buscam todos realizar a justiça e a tomam por fundamento.
Por abrir-se em formas tão díspares, seria a justiça um valor contraditório? Seria ela o nada, já que as concepções do monge, de Antígona e do juiz se cancelam reciprocamente? Se um dos três está certo, os outros têm necessariamente de estar equivocados? Perguntas como essas recordam o mistério da justiça, vale dizer, o fato de as pessoas a buscarem com tanta intensidade, nas mais diversas épocas, e discordarem tão imensamente a respeito dela, 
Se admitirmos que concepções tão distintas de justiça coexistem em harmonia ou, ao menos, sem se excluírem, será preciso encontrar um conjunto de ideias e de palavras (portanto, um vocabulário) que nos permita exprimir os pontos de contato entre elas. Esse conjunto de ideias e o respectivo vocabulário pertencem ao que podemos denominar metajustiça. Historicamente, a teoria que se ocupa da metajustiça é o direito natural.
Ao longo dos séculos, o direito natural foi, às vezes, concebido de maneira dogmática e até intolerante. Porém, isso não impede que ele constitua o estudo da mais vasta concepção de justiça possível, que se forma a partir dos pontos de contato entre concepções mais restritas. Como o materialismo e a metafísica constituem as metavisões de mundo mais importantes da História da Filosofia, o direito natural e o positivismo jurídico são as metavisões mais encontradiças na História do Direito. E, assim como as metavisões de mundo nunca se excluem completamente, as metavisões jurídicas podem ser, em alguma medida, adotadas como complementares.
Para isso, porém, é preciso explicar em que sentido o direito natural pode ser aceito, já que a admissão do direito positivo decorre, de modo manifesto, da sua existência observada e da autonomia das normas jurídicas em relação à moral e à religião. É possível agrupar as concepções do direito natural surgidas na História em dois campos: de um lado, ficam as doutrinas que afirmam a validade universal daquele direito; de outro, as que reconhecem caráter histórico e validade limitada às suas normas. Em Filosofia do direito positivo, afirmei a importância superior da primeira modalidade de direito natural:
“Tudo que se agrega ao direito o faz a partir do núcleo fundamental deste [...] Tal núcleo, sua origem, seus princípios de subsistência e sua influência sobre o conteúdo do fenômeno jurídico são o ponto desde o qual se há de estruturar uma visão filosófica do direito” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. p. 259).
Essa particular visão jurídica aliava o jusnaturalismo cristão que eu abraçara à descoberta reivindicada por Miguel Reale “da natureza dialética ou dinâmica de elementos [da experiência jurídica] até então analisados abstraídos um do outro” (REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 4ª ed., São Paulo: Saraiva. P. 98). Os elementos a que Reale se refere são o fato, o valor e a norma. Ele demonstra que a norma não pode ser tomada, como faz Kelsen, “como um dado inicial, recebido pelo jurista como ponto inamovível de partida” (idem. p. 97). Para Reale, “o momento nomogenético [a criação da norma] não pode ser considerado metajurídico, por mais que se insira no campo de pesquisa do sociólogo [...] É da nomogênese, em suma, que resulta o conceito da norma, não podendo ser posta entre parênteses a tensão fático-axiológica da qual e na qual ela emerge” (idem. pp. 97, 70).
Para fundamentar minha adesão ao direito natural universal, recorri ainda ao ensino de Goffredo Telles Júnior, que, “em sua Ética, menciona seis valores fundamentais candidatos à dignidade de universais: liberdade, justiça, bondade, verdade, beleza e poder” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 267). Com base nas lições desses juristas, que me pareciam fundamentais, escorei meu conceito de direito natural num conjunto de sete valores selecionados em função do significado prático que assumem. Eram esses valores: a vida, a intangibilidade física e moral, a liberdade, a verdade, a propriedade, o casamento e o dever familiar. Para mim, o caráter prático desses valores decorria de “a moral natural ser uma moral do respeito e uma moral mínima” (idem. p. 270), o que significava que eles deviam receber, ao menos, uma proteção limitada.
A orientação dos sete valores à práxis explica a divergência do rol que propugnei em relação ao que Goffredo propôs na sua Ética. É que, na época, o rol de Goffredo pareceu-me idealizado. Eu queria encontrar um fundamento para o direito universal que não estivesse localizado nas nuvens e sim na terra. Não me parecia que o consenso dos povos pudesse levá-los a afirmar valores cuja soma fosse adequada a um deus, não a um homem. Valores humanos universais, como os concebi à época, haviam de ser valores mínimos, não máximos, nem idealizados.
Entendido dessa maneira, o direito universal não se ajusta à concepção de Kant de que o conteúdo moral de um ato se define pela sua orientação ao bem como fim em si mesmo e não como meio para alcançar resultado prático. Se o direito universal deve ser definido como o que todas as pessoas respeitam, é difícil admitir que elas se tenham elevado, sempre e invariavelmente, a noções idealizadas do bem. 
Por outro lado, em meu livro de 1993, concluí que, do ponto de vista lógico-formal, o respeito àqueles sete valores deve ser formulado como uma inclinação a priori da razão: “Só nas inclinações gerais, compostas por grupos de formas a priori da razão [prática], se encontra a generalidade e gradação mínima dos juízos da moral natural”, do que “se conclui que a moral natural está latente na razão pura” (idem. p. 276).
Na época, não explicitei como a razão concebe as normas da moral natural. Tentarei fazê-lo agora, a partir da lição de Joseph LeDoux, do Centro de Ciência Neural da Universidade de Nova York, sobre o processamento das emoções. Em O cérebro emocional, LeDoux colocou as emoções em oposição ao conhecimento, uma vez que “os sistemas [nervosos] envolvidos no processamento cognitivo [...] não estão diretamente vinculados com os sistemas de controle de reações. A marca do processamento cognitivo é a flexibilidade de respostas cuja origem é o processamento. A cognição nos dá a possibilidade de escolha”. As emoções, porém, são diferentes: “Os sistemas responsáveis pelas avaliações emocionais mantêm uma relação direta com os sistemas encarregados do controle das reações emocionais. Uma vez que esses sistemas realizam uma avaliação, as reações ocorrem automaticamente” (LEDOUX, Joseph. O cérebro emocional – os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 63).
Embora não conhecesse essa lição científica, o homem antigo percebia a relação entre as normas sociais e as emoções básicas da espécie humana. Ele percebia que, embora criadas pelo intelecto humano, as normas nunca se opõem às emoções básicas. Pelo contrário, as emoções constituem um dado ao qual as normas sempre se moldam. Por isso, quando o pensamento jurídico se tornou mais sofisticado, entre os gregos e os romanos, os jurisconsultos passaram a exprimir a consciência daquela moldagem mediante a noção de direito natural:
“Direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Este direito não é peculiar ao gênero humano, mas comum a todos os animais que nascem no céu, na terra e no mar. Dele resulta a união do macho e da fêmea, a que chamamos matrimônio, a criação dos filhos, e a sua educação. Vemos, em verdade, que também os outros animais usam desse direito, como se o conhecessem” (JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23). Como o homem molda suas normas na fornalha das emoções, os animais fazem coisa análoga. Por isso, para os romanos, o direito natural se fundava na natureza física do homem e do animal.
Exagerada ou não, essa lição reflete a consciência da moldagem de todo direito nas emoções básicas da espécie. Se formos além dela e da concepção filosófica (estoica) que a inspirou, concluiremos que a moldagem do direito nas emoções é tributária da noção de dever. Todas as categorias jurídicas e todas as normas que concebemos dependem logicamente dessa noção, que se funda na conformidade do pensamento normativo com as emoções básicas. 
Muitos juristas contemporâneos têm rejeitado essa espécie de derivação do dever a partir do ser, por implicar o que consideram manifesto equívoco. De fato, o ser é, ao passo que as normas enunciam o que deve ser. A diferença estrutural entre os enunciados das duas esferas impede a derivação de proposições do dever a partir do ser e vice-versa, como vimos anteriormente nesta série.
De fato, tornou-se comum os adversários do direito natural referirem-se à "falácia naturalista" como o procedimento consistente em "extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)" (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico - lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 177). Porém, se considerarmos que a recta ratio não o situa o direito natural no plano da natureza, mas no da razão, que tem o hábito de extrair normas da observação do que acontece, teremos de concluir que a falácia se aplica tanto ao jusnaturalismo quanto ao positivismo ou a nenhum dos dois. Ou será as normas mais básicas do ordenamento jurídico não são postas e concebidas a partir da observação do que ocorre?  
A objeção de falácia perde relevância, na medida em que percebemos que a passagem do ser ao dever é inescapável para o homem. O Direito e a Ética não podem existir, sem tal passagem, já que, ao voltar-se para o comportamento do homem em sociedade, a consciência percebe que ele se ajusta às emoções básicas da espécie. Assim acontece porque as normas que regem o comportamento se ajustam às emoções, ou seja, porque o ser se ajusta ao dever
Em suma, se a ideia de direito universal há de ser explicada em termos lógico-formais, a melhor maneira de fundamentá-la é derivar as normas da noção de dever e essa noção, da moldagem das emoções básicas. Claro que isso não tornará o certo e o errado tão simples e inequívocos quanto as emoções. No âmbito da cultura humana, o certo e o errado complicam-se por sofrerem influência não só dos instintos, mas também dos valores, cujo estatuto é abstrato e por isso complexo. Porém, um limite é posto à abstração e à complexidade dos valores por parte das instituições. 
Tudo indica que esse limite à abstração dos valores é posto no momento em que as instituições sociais os realizam (de modo parcial) no plano da práxis. Embora a medida e o sentido da realização dos valores permaneçam incertos, eles o são muito menos, pois conhecemos o funcionamento real das instituições, do qual podemos extrair como elas afirmam os valores pelos quais se orientam.
É em função desses valores e do valor da justiça que exsurge da afirmação simultânea deles que a noção de direito natural se forma. Direito natural não é ou, ao menos, não precisa ser um direito não histórico. Não precisa ser aquele dado axiológico imaginário ao qual a norma é moldada. Pode ser um dado axiológico concreto, histórico, ou seja, um complexo de valores realizados e não idealizados. Assim, pelo menos, é que o concebo.
Mas exatamente por concebê-lo dessa maneira, reconheço que o direito natural, ao mesmo tempo, liga-se a valores universais e os transcende ao realizá-los. Isso implica que esse direito ao mesmo tempo ideal e histórico inclui não apenas os valores, mas também as regras, por meio das quais eles se realizam e são aplicados. Por isso, em outro texto, afirmei que o direito natural é um complexo de princípios (inclusive valores) e regras.
Miguel Reale mostrou que, ao serem criadas, as normas perdem o caráter próprio dos valores. Normas são expressões finitas de valores inexauríveis. Por isso, a criação e a aplicação delas se dão por um movimento descendente, não ascendente, por um movimento em direção ao direito natural, não em direção aos valores enquanto bens idealizados e inexauríveis.
A lição é precisa. A consciência humana é imantada pelos valores e parte inevitavelmente deles, em toda a sua atividade cultural. Porém, assim como parte de algo determinado, ela desce em direção a algo definido, ao criar as normas. Parte dos valores como tais em direção ao direito natural, isto é, aos valores realizados no plano da História. Constituir, pois, o limite inferior, humilde e não exaltado, feito de palha e não de ouro, desse processo, tal é, precisamente, a função do direito natural.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Filosofia e Direito (26): Mecanismos de Igualdade

Não é incomum o avanço da ciência conduzir à descoberta de respostas a antigas indagações e, ao mesmo tempo, fazer surgirem perguntas novas. Essa é, aliás, a situação mais comum. No caso das disciplinas dedicadas ao estudo da sociedade, não há dúvida de que a abundância de informações publicadas, há alguns anos, por Piketty e seus colaboradores, e a interpretação delas em O capital no século XXI respondem questões nascidas com a própria teoria econômica. Porém, como é usual, as respostas encontradas fizeram surgir novas perguntas.
Para mim, as indagações principais que o livro de Piketty suscita dizem respeito à opção interpretativa do seu autor. Apesar de defender a preservação do capitalismo, Piketty alinha-se com os economistas que podemos classificar como pertencentes à esquerda moderada. Talvez a principal bandeira desses economistas seja a importância das políticas públicas para a redução da desigualdade e a condução da economia. Como defensor das políticas do Estado, Piketty procura mostrar que elas foram responsáveis pela redução da desigualdade alcançada, em diversos países, na primeira metade do século passado. Algo inteiramente válido e justificável, dada a necessidade de avanços no tratamento da questão da desigualdade. 
Porém, Piketty restringe a sua explicação às causas políticas. Essa é, a meu ver, a principal limitação da sua obra. Podemos afirmar que, no tocante à interpretação dos dados, Piketty labora num nível explicativo genérico, quando o correto seria descer ao nível específico. Claro que um pesquisador da sua envergadura, ao optar pelas causas políticas, não nega que elas acionem mecanismos econômicos específicos que desencadeiam a redução da desigualdade. O problema é que Piketty quase nunca especifica quais são esses mecanismos e não admite que a queda da desigualdade possa ser condicionada, de modo independente, por fatores econômicos. 
Nos textos anteriores, afirmei que as causas pelas quais Piketty explica a redução das desigualdades são, principalmente, os choques decorrentes das Guerras Mundiais e a tributação estatal. Trata-se de saber se essas causas explicam suficientemente a redução indicada pelos dados. Vejamos se é esse o caso.
Nas páginas 118 e 119 do seu livro, Piketty apresenta dois gráficos do capital, no Reino Unido e na França, entre 1700 e 2010. Em ambos, observamos curvas muito semelhantes que nos informam que, de 1700 a 1910, o estoque de capital manteve-se em torno de 7 anos da renda nacional, nos dois países (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 1914. pp. 118-119). Porém, de 1910 a 1920, o estoque despencou de 7 para 2 anos da renda, no Reino Unido, e de 7 para 3, na França.
Esses dados provam que a participação do capital na riqueza só diminuiu, propriamente, no século XX. No entanto, se olharmos atentamente para os gráficos, perceberemos que o capital só se manteve estável, na segunda metade do século XIX, devido ao retorno dos investimentos externos do Reino Unido e da França. Se nos restringirmos ao capital interno, teremos de reconhecer que ele diminuiu a partir de 1850, no Reino Unido, e de 1810, na França.
Essa perda de capital interno delineada no século XIX continuou a ocorrer no século seguinte. É verdade que causas inteiramente novas, como o desmanche do sistema colonial, as Guerras Mundiais e a Grande Depressão, a intensificaram, porém não podemos, de modo algum, desconsiderar que as causas que a produziram, no século XIX, continuaram a atuar mais tarde. Se admitirmos que a produção das potências europeias estava quase inteiramente sediada nas metrópoles, teremos de concluir que as causas de redução do capital, no século XIX, foram de grande alcance e contribuíram para o declínio da desigualdade observado mais tarde.
A tese de Rosa Luxemburgo de que, por longo tempo, a reprodução do capital das metrópoles só foi viabilizada devido à existência do sistema colonial é confirmada por esses dados. De fato, sem as trocas com o exterior (principalmente com as colônias), Reino Unido e França teriam sofrido uma queda significativa da participação do capital na riqueza nacional, o que teria desencadeado uma forte redução da desigualdade, já no século XIX
É, pois, perfeitamente possível concluir que parte das forças que produziram a redução da desigualdade, no século XX, já operava no XIX. Se desconsiderarmos a contribuição das colônias, teremos de concluir que a atuação dessas forças produziu uma diminuição de cerca de 25% no capital do Reino Unido e da França, na segunda metade do século XIX.
Falamos de um período posterior às guerras napoleônicas e anterior à 1ª Guerra Mundial, portanto de um lapso temporal em que o Reino Unido não sofreu destruição significativa por guerras. A tributação no século XIX era ínfima demais para explicar a diminuição do capital interno. E, embora tenha sido derrotada na Guerra contra a Prússia, em 1870-1871, a própria França não estava em situação diferente da do Reino Unido. Portanto, a conclusão sobre as causas da diminuição do capital naquele país aplica-se também a ela.
Diante de tantas e tais evidências, não há como negar que as causas de redução da desigualdade já estavam ativas, muito antes dos choques das Guerras Mundiais e das políticas intervencionistas enfatizados por Piketty. Se concluirmos que elas se somaram às causas posteriores, de natureza política, com as quais produziram a diminuição espantosa da desigualdade observada em meados do século XX, estaremos diante de dois conjuntos de causas e não de um só, como Piketty pretende. E, se o segundo conjunto teve relação mais próxima com as guerras e as políticas públicas, o outro decorreu, basicamente, da evolução do sistema capitalista.
Essas considerações esclarecem por que é indispensável indagar quais foram os mecanismos pelos quais os choques de 1914-1945 induziram a queda da desigualdade. Sem os mecanismos, a explicação pelas causas políticas permanece genérica e vaga. A especificação, ao contrário, permite entender que os choques influíram na desigualdade, principalmente, pela destruição do capital. Esse foi o mecanismo pelo qual as guerras, além de terem reduzido o estoque de capital, fizeram declinar a sua rentabilidade. E não podemos deixar de observar que a destruição pelas guerras se somou à causada pela Grande Depressão, que reduziu ainda mais o capital privado, nos anos 1930.
Mas, se o mecanismo principal de redução da desigualdade, entre 1914 e 1945, foi a destruição, o Reino Unido não deveria ter sido vitimado por ele, na mesma escala da França e da Alemanha, já que, principalmente na 1ª Guerra, o território (e, portanto, o capital) inglês não foi tão destruído quanto o das nações continentais, pelo motivo simples de que os países que o formavam ficavam num arquipélago e nunca foram invadidos. Mesmo assim, o capital interno do Reino Unido mergulhou de 5 para 2 anos da renda nacional, entre 1910 e 1920 (idem. p. 118)!
No mesmo período, o capital interno da Alemanha reduziu-se de 6 para 4 anos (idem. p. 143), e o da França, de 5,5 para 3 anos da renda nacional (idem. p. 119). Em suma, a redução foi maior, no país menos destruído (o Reino Unido), do que nos mais devastados pela guerra de 1914 a 1918, o que confirma, além de toda dúvida razoável, que lidamos com dois conjuntos de causas de compressão das desigualdades: um relacionado aos conflitos e outro, à economia.
Essa conclusão se impõe tanto mais quanto consideramos que: a tributação média, no período analisado, era de 10% do PIB, quase não havia impostos sobre o capital, a intervenção do Estado na economia era bastante baixa, e a Grande Depressão ainda não somara a destruição do capital por motivos econômicos à dissipação causada pela guerra. Esses fatos ajudam a perceber que nenhuma causa comparável às do século XX contribuiu para a redução do capital entre 1810 e 1910. Portanto, ela deve ter sido determinada por forças internas à economia.
E nos Estados Unidos? Também ali, o capital reduziu-se de 5 para 4 anos da renda nacional, de 1910 a 1920 (idem. p. 150). Podemos, pois, afirmar que o fenômeno europeu reproduziu-se do lado de cá do Atlântico, sem que as causas atuantes na Europa estivessem presentes. Em outras palavras, operando praticamente sozinhas, as causas econômicas conduziram a uma redução significativa do capital, nos Estados Unidos. E a redução só não foi maior, porque os EUA eram menos desiguais que a Europa, no período avaliado.
Simplesmente não é crível que o capital interno de países que não sofreram destruição pela guerra, como o Reino Unido e os Estados Unidos, tenha-se reduzido tanto ou mais que o da Alemanha ou da França, durante a 1ª Guerra. Portanto, a insistência de Piketty na explicação por causas políticas só é possível pelo deslocamento da explicação do nível específico para o genérico, ou seja, pela não explicitação dos mecanismos mediante os quais o conflito de 1914-1918 induziu a redução da desigualdade. Quando a explicitação é feita, torna-se claro que as causas políticas não esclarecem suficientemente o ocorrido.
É preciso, pois, indagar que outras causas estiveram por trás da redução que devemos explicar. A resposta só pode ser causas inerentes ao subsistema econômico da sociedade. Porém, precisamos especificar os mecanismos pelos quais essas causas atuaram, sob pena de incidirmos no mesmo deslocamento de nível em que as explicações políticas incorrem. Explicar algo tão abrangente quanto a desigualdade econômica envolve descer do genérico ao específico e do processo global aos mecanismos que lhe dão suporte.
Em A função social do lucro, descrevi o mecanismo econômico que deve ter pressionado, mais intensamente, a desigualdade, a partir das condições da Revolução Industrial. Mostrei que esse mecanismo deve ter sido o crescimento da composição orgânica do capital, ou seja, o aumento da razão entre o capital constante e o variável. Se, ao lado de causas políticas, tivermos de mencionar outras que contribuíram para a queda da desigualdade, no século XX, a mais fundamental terá sido essa.
Em síntese, ao ler Piketty, não me convenço de que a redução da desigualdade, no século XX, flua de um único subsistema social, ou seja, do subsistema político. O exclusivismo da explicação pela política tem a força restritiva inerente a todas as formas de reducionismo. A queda da desigualdade não precisa estar atrelada ao subsistema político para explicar-se. Pelo contrário, o peso das causas econômicas parece sobrepujar o das causas políticas dela. O problema é que a assimilação desse fato pelas pessoas, na Universidade inclusive, não é tanto uma questão shakespeareana de ser ou não ser quanto uma questão bíblica de ter ou não ter olhos para ver!