sábado, 29 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (32): A Justiça e os Desvalores

A justiça não é um sentimento que induz à contemplação, mas à ação e à revolução. Não podemos deixar de reconhecer a presença dela no movimento Occupy Wall Street, nas manifestações de meados de 2013, no Brasil, nos confrontos de fevereiro de 2014, na Ucrânia, e nas revoltas desta semana, nos Estados Unidos. Em todos esses casos, o sentimento de justiça motivou movimentos e transformações sociais importantes.
O filósofo do direito italiano Giorgio del Vecchio referiu-se a esse sentimento em termos translúcidos: “O homem tem uma faculdade originária, não induzível da experiência, graças à qual nos é possível distinguir a Justiça da injustiça. Aristóteles já punha em relevo essa faculdade, também designada por sentimento do justo e do injusto [...] Deve admitir-se, portanto, que o sentimento jurídico, inerente à nossa própria natureza, é uma  força viva, originária e autônoma, e a fonte primária da evolução do Direito” (DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Armênio Amado, 1951. p. 394).
Como podemos entender a importância da justiça para as transformações sociais, à luz do princípio da prevalência das causas econômicas dos acontecimentos enunciado por Marx? Se a justiça é uma simples ideia ou um sentimento, não um fato econômico, como pode ter tanto peso nos acontecimentos? Ocorre que a justiça nunca é pensada à parte dos fatos ou, se preferirmos o enunciado inverso, os atos humanos não são eventos brutos, mas acontecimentos movidos por ideias e sentimentos. Por isso, quando nos referimos à prevalência das causas econômicas, incluímos nelas os pensamentos característicos dos fatos humanos.
Kelsen apontou, com razão, o quanto o conteúdo da justiça nos escapa. Podemos acrescentar que, quando isso ocorre, o valor social da justiça deixa de exercer influência sobre os acontecimentos. Porém, tanto a obscuridade como a não influência da justiça só se manifestam na medida em que tentamos extraí-la de relações numerosas demais, no espaço ou no tempo. Nesses casos, a justiça se torna indeterminada e irrelevante. Porém, quando a pensamos em contextos mais limitados, a justiça permanece clara e exerce a força conformadora dos acontecimentos a que já nos referimos.
Ubi societas, ibi jus, diz o brocardo milenar. Se o alterássemos ligeiramente, de modo a enunciar Ubi societas, ibi justitia, o brocardo exprimiria algo ainda mais profundo. Diria que onde há sociedade, há justiça. Portanto, que a justiça é tão real quanto a sociedade em que vigora. Mas, talvez por ser um sentimento, ela é de algum modo vaga e vaporosa, o que cria a necessidade de o jurista e o filósofo do direito precisarem o seu conteúdo. 
O método de determinação do conteúdo da justiça proposto nos últimos textos tem essa finalidade. Permite precisar o que é a justiça, não em todas as sociedades, mas para cada uma delas em particular e nas suas condições específicas de existência. Vimos que a justiça é sempre o vetor resultante dos valores que fundamentam as instituições. Toda instituição se funda em valores. A religião estriba-se na fé, na esperança e na caridade. O direito à vida fundamenta-se na vingança de sangue, nas sociedades em que o Estado ainda não se organizou, já que, onde não há Estado, não há reação coletiva à ofensa à vida, a não ser a vindita. A partir de quando o Estado se organiza, o direito à vida passa a repousar nele.
Por isso, nas sociedades em que a religião se desenvolveu e o Estado ainda não, a caridade coexiste com a vingança. Podemos afirmar que, em tais sociedades, a justiça inclui tanto a caridade quanto a vingança e que o critério de inclusão das duas é de ordem prática: se a justiça não incluísse um dos dois valores, ele ficaria sem proteção, o que seria prejudicial para a religião ou para o direito à vida.
A existência da vingança não importa a inexistência da justiça. O mesmo pode ser dito de instituições e desvalores como a escravidão e a exploração. Nenhuma delas é justa em si mesma ou em todas as situações, mas encontra justificação na medida em que a sua supressão implica a não proteção de valores fundamentais, como a produção dos meios de vida e a sobrevivência. 
Não precisamos negar a existência da vingança, da escravidão ou da exploração econômica, na História, para afirmar a da justiça. Em todos os modos de produção, sempre houve exploração. Podemos admitir até mesmo que ela foi essencial aos arranjos econômicos de todas as épocas e que só deixará de haver exploração, numa sociedade, quando a luta de classes e a dominação forem eliminadas. Mas não é isso que a História mostra, como Marx e Engels provaram no Manifesto comunista. A História é fortemente marcada pela luta de classes, que leva à dominação e à exploração dos mais fracos pelos mais fortes.
Porém, nem a luta, nem a dominação ou a exploração são casuais. Elas são consequências de leis sociais. Marx e Engels mostraram que os modos de produção são regidos por leis. É auspicioso que, no seu livro recente, Thomas Piketty tenha reconhecido a existência dessas leis e derivado delas a sua intepretação da desigualdade (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 57 e 165).
Prestemos atenção a este ponto. Piketty postula que a desigualdade não pode ser entendida, se as leis que a produzem não o forem. Mas, se assim é, a desigualdade é uma florescência de leis sociais. E, como toda lei é uma relação necessária, temos de concluir que a desigualdade é um fenômeno necessário. Como nenhum fato baseado em necessidade pode ser injusto, segue-se que a desigualdade, na medida em que necessária, não é injusta. Ressalto que essa conclusão decorre do estudo da desigualdade pelo método adotado por Piketty, ou seja, a partir de leis.
Estou a afirmar que a desigualdade nunca é injusta? Não. Afirmo que ela pode ser ou não ser injusta e que não o é, quando decorre de uma necessidade. Há uma desigualdade que decorre e outra que não decorre de necessidade. Portanto, há desigualdade que ofende e que não ofende a justiça. O fundamental é que a existência da desigualdade não impede a da justiça, exatamente como a vingança não a impede.
Não é diferente com a luta de classes, a dominação e a exploração econômica. Assim como a desigualdade, esses fenômenos também são corolários das leis que regem os modos de produção. Como corolários de leis, eles são necessários. E, por serem necessários, não ofendem a justiça, antes coexistem com ela.
Teço essas observações para tornar claro que a existência de fenômenos como a desigualdade, a luta de classes, a dominação, a exploração e outros semelhantes não constitui prova de que a justiça não existe. Não estou a afirmar que tais fenômenos são justos. A justiça social é um agregado de valores, nunca de desvalores. Porém, numa sociedade constituída por homens e mulheres imperfeitos, o agregado não exclui os desvalores: coexiste com eles. A justiça não existe em estado de pureza, mas em meio a impurezas. Nem por isso estou a propor uma teoria impura do direito.
Fácil é perceber que não concebo a justiça como aquele ideal etéreo e irrealizável cuja existência é negada peremptoriamente por Kelsen. A justiça não só é realizável como constitui o princípio de tudo o que pode realizar-se no território da ética. Nenhum objeto bom pode existir, se não for conforme a justiça. Nenhum mau o pode, se não coexistir com ela. 
Mais que negar a justiça, portanto, precisamos estabelecer um método que nos permita determinar o conteúdo dela com segurança. Um método que converta a justiça de ideal incerto num conceito socialmente aceito e determinado. Vimos que esse método pode consistir em identificar os valores que as instituições promovem, compará-los e eliminar os que atentam contra outros valores. Assim, a justiça passa a ter configuração clara, em sociedades limitadas no tempo e no espaço.
Essa configuração não é impedida por desequilíbrios persistentes na sociedade. Pensemos na conservação da desigualdade que Piketty descreve e quantifica. Se, em todos os modos de produção, os níveis de desigualdade sempre foram semelhantes, com a notável exceção do século XX, a desigualdade deve ser considerada injusta? A resposta há de ser sim apenas para a desigualdade não baseada em necessidade. Se entendermos que a justiça como harmonia de valores vigora sem excluir os desvalores, o funcionamento básico da sociedade poderá ser considerado justo, e a prática dos desvalores, atribuída à necessidade.
Passemos a um fato mais recente, como a crise financeira de 2007-2008. Ela deveu-se ao endividamento que se seguiu ao arrocho da renda da classe média, nos Estados Unidos. Deveu-se também à criação de obrigações jurídicas nunca antes vistas, que multiplicaram e concentraram as dívidas nas empresas que vieram a falir. Esses foram os fatos. O que invoca os fantasmas da interpretação são as tentativas desastradas de entendê-los em termos de justiça.
À luz da concepção de justiça aqui defendida, o arrocho da classe média que causou a crise não foi justo, mas coexistiu com a justiça do regime capitalista, o que significa que não a eliminou. Por outro lado, a multiplicação de obrigações jurídicas novas que levou à concentração das dívidas tampouco inviabilizou a justiça social, antes coexistiu com ela. A realização simultânea dos opostos - de um lado a justiça inerente ao sistema, de outro os arrochos e a concentração das dívidas - é tão inegável quanto que, num sistema de normas, a justiça responde pelo todo e a injustiça pelas partes. Portanto, uma análise equilibrada conduz à conclusão de que as duas coisas coexistem e não devemos negar uma delas para afirmar a outra. A justiça existe e responde pelo sistema; as injustiças incidem nas partes dele. 
O fundamento em que essa interpretação da sociedade repousa é a admissão de que o que unifica as normas éticas e jurídicas é a justiça, sem a qual elas não formam um sistema. E, se o sistema é constituído precisamente pela justiça, não é possível afirmar que ele é injusto. Injustas são partes dele, nunca o sistema todo, nem suas bases. Portanto, para afirmar a injustiça de um modo de produção, não há outro caminho a não ser negar a sua organização em sistema. Mas o que observamos em todas as sociedades é exatamente o contrário. É que as normas que regem os modos de produção dispõem-se e o dispõem em sistema, pela força unificadora exercida pela justiça. Assim, somos compelidos a admitir que, na medida em que são regidos por normas sistematizadas, os modo de produção são justos.
Vemos que é perfeitamente possível interpretar a sociedade com base na justiça, sem eliminar o contrário dela: os desvalores. Aliás, quanto mais admitirmos que a justiça e os desvalores coexistem, mais a interpretação funcionará, pois mais o comportamento das pessoas  e dos grupos poderá ser explicado sem distorções. O desafio consiste em identificar o princípio dessa coexistência e em demonstrar em que condições ele opera. Sem esse discernimento, tudo o que restará, na ciência social, serão interpretações tão idealizadas quanto incapazes de captar o real funcionamento da sociedade.

sábado, 22 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (31): A Justiça e os Outros Valores

A faculdade pela qual o homem se distingue dos outros animais é a consciência reflexiva ou poder de conhecer objetos que não estão presentes aos sentidos. Contudo, no ser humano, essa espécie peculiar de consciência emerge de outra que ele compartilha com os animais e que é amplamente determinada pelo sentido.
Os animais conhecem o mundo fora deles, porém não como é em si mesmo. Podemos afirmar que o conhecem como o mundo exterior os afeta. O experimento narrado a seguir deixa isso claro:
“Lettvin e seus colegas inseriram um pequenino eletrodo no nervo ótico da rã para registrar sua reação aos estímulos externos. Os olhos da rã foram então expostos a vários estímulos óticos e se registraram os impulsos elétricos das fibras do nervo ótico do animal. Os resultados foram uma revelação [...] Algumas células reagiam, por exemplo, se um pequeno objeto passasse pelo campo visual. A equipe de pesquisa escreveu: ‘Fomos tentados a chamá-las detectoras de insetos’. Naturalmente, o olho da rã precisa reagir a pequenos objetos voadores – insetos. Os insetos são um dos alimentos da rã. Outra classe de fibras reagia quando uma grande sombra passava repentinamente pelo seu campo visual. Essas fibras poderiam ser chamadas de detectoras de cegonhas. Detectar aves predatórias que se aproximam repentinamente é tão importante para a rã como detectar insetos. Significativamente, se os pequenos objetos ou as grandes sombras não estavam se movendo, as células óticas paravam de reagir; moscas e mosquitos não ficam parados no ar, nem uma cegonha em mergulho” (SZAMOSI, Gésa. Tempo e espaço – as dimensões gêmeas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 33).
O experimento mostra, de maneira clara, que a consciência animal não forma uma imagem do mundo como ele é, mas elimina certas características e seleciona outras do mundo, de acordo com a utilidade de que se revestem para a sobrevivência da espécie, no ambiente em que ela evoluiu. Como a sobrevivência é facultada pelo instinto peculiar de cada espécie, podemos afirmar que a consciência animal é essencialmente instintiva.
Mas o instinto, que é? Podemos defini-lo como o conhecimento de reações corporais que se seguem, de maneira automática, a estímulos do meio ambiente. Assim concebido, o instinto coincide com a emoção, no sentido que William James conferiu a essa palavra. De acordo com esse pensador, “nosso modo natural de pensar as emoções mais grosseiras é que a percepção mental de algum fato excita a afeição chamada emoção e que esse último estado da mente gera a expressão corporal”. Essa é, porém, apenas a maneira comum de pensar. A ciência, porém, demonstra que a sequência dos fatos é um pouco diferente, pois "as mudanças corpóreas seguem diretamente a percepção dos ,fatos e o nosso sentimento das mesmas mudanças é a emoção” (JAMES, William. Principles of Psychology. In Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 53, p. 743).
O núcleo da lição de James pode ser identificado com a afirmativa de que a emoção não prepara a mudança corporal, mas se segue a ela. Ele cita uma série de fatos que provam essa ordem dos elementos na experiência emocional. Não é o caso de os repetirmos aqui, mas de retermos a conclusão a que ele chega de que a emoção é o conhecimento que a mente desenvolve de mudanças corporais provocadas, nos animais e no homem, por estímulos do mundo exterior.
Ocorre que, se as emoções correspondentes às reações corporais parecem automáticas, pois se desencadeiam imediatamente, assim como o estado de alerta ou o medo que resultam da presença de um predador, as reações corporais que as antecedem o são ainda mais. O animal vê o predador, seu corpo reage, e essa reação provoca emoções. Essa é a sequência de fatos que desencadeiam as emoções e que William James fez questão de clarificar.
A sequência mostra que a emoção acontece sem que o animal tome qualquer deliberação, ao contrário do que ocorre nos estados de consciência reflexiva, em que o conhecimento e as reações que o seguem são dirigidos, ao mesmo tempo, por forças externas e pela mente do sujeito. Porém, a consciência reflexiva preserva marcas da outra mais primitiva da qual emerge. A marca principal é o fato de ela estruturar-se a partir das emoções. O homem pensa o infinitamente pequeno, a partícula, o átomo, assim como o infinitamente vasto, o Universo, mas ele sempre o faz com vistas a fins ditados por emoções e sentimentos.
Como o homem tem consciência reflexiva, tanto as emoções que ele sente, a exemplo da fome e do medo, quanto os sentimentos que forma, como o amor e o ódio, fazem-se acompanhar de pensamentos racionais. Os pensamentos primeiros que ele concebe nas situações que lhe inspiram emoções e sentimentos são relacionados a interesses: “A cada emoção [e sentimento] correspondem interesses bem definidos. Por exemplo, ao amor que um homem sente por uma mulher correspondem os interesses de ser correspondido por ela e, em alguns casos, de unir-se em matrimônio com ela. A pessoa faminta tem interesse em comer, a sedenta se interessa em beber, e a cansada, em descansar” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 365-366).
As emoções e os sentimentos não se formam  racionalmente, ao contrário dos interesses, que são ideias racionais. Porém, os interesses são ideias de uma espécie particular. “Devido ao fato de os interesses e os valores serem, em geral, designados por substantivos e as regras por orações, tendemos a pensar nos interesses e nos valores como entidades substanciais ou, pelo menos, como objetos ideais relacionados a [coisas e situações] definidas. Precisamos recordar, entretanto, que nem toda regra é expressa por meio de uma oração com sujeito, verbo e predicado. Há regras expressas por uma única palavra. Quando diz ao enfermeiro: ‘Bisturi’, o cirurgião quer dizer ‘Dê-me o bisturi’. O substantivo é empregado sozinho como uma regra, como uma proposição de dever-ser. No fundo, embora designados por substantivos, os interesses e os valores têm a natureza de regras. Ter um interesse não é um ato puramente lógico ou neutro. Ter um interesse é ter uma regra para a própria conduta. O mesmo é verdade em relação aos valores” (idem. p. 367). 
Podemos afirmar, portanto, que o mundo das normas se ergue sobre a emoção e o sentimento. Isso significa que, por mais que a Ética e o Direito tenham a aparência de disciplinas racionais, o seu fundamento é de ordem irracional. Chegamos, assim, ao problema nuclear das duas disciplinas, que consiste no fato de tanto os interesses como os valores serem incomensuráveis, ou seja, não poderem ser comparados ou julgados em função de qualquer critério. De fato, a característica principal dessas normas é se referirem a bens que não podem ser comparados em abstrato. Por exemplo, é impossível comparar a vida com a liberdade, de modo a definir qual das duas é mais importante. Também é impossível definir se o interesse de se alimentar é mais importante que o de se relacionar com outras pessoas. Trata-se de bens tão diversos que não é possível medi-los por uma escala, qualquer que ela seja. E ainda mais difícil é medir a importância relativa dos interesse e dos valores em abstrato. Assim, por não poderem ser comparados, os interesses e os valores tampouco podem ser dispostos numa escala hierárquico.
Essa é uma dificuldade que a doutrina do direito natural enfrenta. O direito natural é concebido como sistema de normas. Goffredo Telles Júnior afirma que “um Direito autenticamente natural é sempre um conjunto de normas jurídicas [...] consoante com o sistema ético de referência da coletividade em que ele vigora” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico – ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 7ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. pp. 325-326). Porém, existe de fato um sistema ético de referência? Se a Ética e o Direito baseiam-se em valores incomensuráveis, como eles podem formar um sistema? 
Apesar dessas dúvidas, é amplamente aceito que as normas morais e jurídicas formam ordenamentos. Nem umas, nem outras dispõem-se caoticamente. Tampouco se dão à utilização arbitrária. Ora, o fato de as normas formarem ordenações implica que elas são, em algum grau, sistematizáveis. Portanto que existe um sistema ético de referência, com o qual o sistema jurídico se coordena. Trata-se de descobrir o método pelo qual esses sistemas se formam.
Kelsen propôs que os sistemas de normas jurídicas se formam por um método formal. Cada norma do ordenamento é considerada válida se for criada de acordo com esse método. Porém, essa concepção formal é frequentemente rejeitada com base no fato de que o ter sido criada por certo método não garante que a norma seja obedecida. E, se não for obedecida, a norma não será norma. De modo que o método formal de Kelsen não explica como os ordenamentos de normas se formam.
O enigma da formação dos sistemas éticos e jurídicos pode ser resolvido com base no valor da justiça. Para isso, basta adotarmos o método apresentado no último texto, que parte das instituições sociais, identifica os valores específicos que elas promovem e verifica se eles são compatíveis, isto é, se a realização de um valor não exclui a dos demais. O método prevê que, quando dois valores se excluírem, o que atentar contra o outro deve ser eliminado do conceito de justiça social, que resultará da conjugação dos demais. Assim os valores e as outras normas éticas e jurídicas poderão coexistir num sistema.
A configuração geral do sistema não será tão rígida quanto sob a concepção de que as normas se articulam em diversas camadas, com base no método de criação. Não será mais possível falar do ordenamento jurídico, por exemplo, como uma pirâmide de normas claramente articuladas em diversos níveis. A sistematização das normas será garantida, simplesmente, pela ideia de justiça, que funcionará como a argamassa que mantém unidos os outros valores e normas. A importância será, então, a mesma de toda argamassa: ela e só ela tornará viável a construção. Sem a justiça, não será possível manter a coesão dos valores por absoluta falta de liame lógico. Por isso também, sem ela, o inteiro conjunto das normas se desarticulará, o edifício da Ética e do Direito desabará e terá de ser substituído por uma só palavra: arbítrio.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (30): A Justiça Institucional

Qual é o fundamento do direito, se é que ele existe? Que dados as instituições responsáveis pela distribuição da justiça entendem constituir a base desse valor social? Ou, para dizê-lo sinteticamente, que vem a ser a justiça? Tenho-me feito essas perguntas há anos e procurado estabelecer, ao menos, os lineamentos das respostas possíveis para elas.
Em Filosofia do direito positivo (Campinas: EV, 1993), assentei que o direito, na nossa cultura, tem fundamento metafísico e está atrelado à ideia de Deus. Isso cria um grave problema de interpretação da missão do Estado que, nas nossas sociedades, apresenta caráter inteiramente laico. Se o fundamento metafísico do direito está ligado a Deus, como o Estado laico pode ser capaz de entender o seu espírito e aplicá-lo?
O problema reaparece em meus textos posteriores. Em A função social do lucro, lembrei que “o sentimento religioso não pode ser transformado em nota de rodapé da história” e “que a missão da religião não é separável da missão política” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. A função social do lucro – e a sociedade pós-capitalista. São Paulo: Themis, 2010. p. 52). Porém, como é possível conciliar missões tão heterogêneas e, às vezes, até opostas?
A perfeição do ideal do Estado laico foram os Estados ateus do século XX, alguns dos quais sobrevivem ainda hoje. No entanto, o fato de quase todos esses Estados terem desmoronado, não só economicamente, mas também do ponto de vista político, devido ao fracasso em conciliar o seu ateísmo com a religiosidade popular, sugere a existência de um problema básico com o ideal. Em outras palavras, já é tempo de repensarmos o princípio do Estado laico, o que não significa que ele deva ser abolido, mas modificado com base no ideal alternativo proposto por ninguém menos que Montesquieu. É de lamentar que os teóricos do Estado laico não tenham atribuído a devida atenção a essa proposta:
“Montesquieu louvou a atitude do Imperador Augusto, que ‘proibiu pessoas jovens de qualquer sexo de frequentar cerimônias religiosas noturnas, quando não acompanhadas de um parente mais velho’” (MONTESQUIEU. The spirit of laws. In Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 35, p. 204). Para o pensador setecentista, a intervenção do Estado na religião era [...] benfazeja, assim como a influência reversa, da religião na política: ‘A religião é capaz de dar sustentação a um Estado, quando as leis não o conseguem fazer. Quando um reino é frequentemente agitado por guerras civis, a religião pode contribuir muito, obrigando uma parte do Estado a se aquietar. Entre os gregos, os sacerdotes de Apolo sempre viveram em paz. No Japão, a cidade sagrada de Meaco desfruta de uma constante paz. A religião é o esteio dessa regra e império, que é único sobre a terra e que não depende, como jamais dependerá, de estrangeiros para manter um comércio que a guerra é incapaz de arruinar’” (idem. pp. 204-205).
A ideia defendida por Montesquieu não é a da separação radical, mas a da preservação da autonomia e, ao mesmo tempo, da colaboração entre religião e Estado. Com base nesse princípio, a solução mais adequada para o problema da incompatibilidade da base metafísica do direito com o Estado laico não consiste na negação daquela base ou na abolição do laicismo estatal. Consiste na compatibilização dos dois. Porém, como a compatibilização pode operar-se? No livro publicado em 1993, adotei o ponto de vista de que religião e Estado aproximam-se, sobretudo, na tentativa de realizar a justiça num sentido superior, que transcende os propósitos da ética subjetivista:
“O casamento de um modo, estribado em certos valores, é tão válido e legitimado quanto o [que se dá] de outro modo, estribado em outros valores. Tudo depende da cabeça de cada um. Poder-se-ia chamar tal tendência de ética subjetivista”. É o que prevalece amplamente no nosso tempo. No entanto, a tendência há de ser criticada, pois "a falta de parâmetros objetivos para a construção de qualquer sistema moral só pode ser catastrófica. Assim como a afirmação de um sistema ético, seja ele qual for, não pode prescindir de um elemento subjetivo [...] tampouco pode ela abrir mão de um elemento objetivo” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Filosofia do direito positivo. Campinas: EV, 1993. pp. 283-284).
A falta de parâmetros objetivos suficientes mutila o sistema ético e o torna disfuncional. A questão é como estabelecer esses parâmetros de maneira lógica sem incidir em arbitrariedade. Para isso, o caminho mais adequado é atrelar tanto a Ética como o Direito à justiça concebida como valor, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo. O fundamento subjetivo da justiça são as opções que os fundadores de um sistema moral ou jurídico realizam ao definirem o seu conteúdo. É intuitivo que a definição não pode incluir vetores axiológicos tão contraditórios que impeçam a formação de um vetor resultante. A justiça só é um valor social na medida em que permanece inteligível às pessoas, o que se dá quando os vetores axiológicos que a compõem convergem, de modo a permitir a formação de um vetor resultante nítido. Podemos afirmar que o fundamento objetivo da justiça é, precisamente, esse vetor resultante.
Essa concepção coincide, em parte, com a da justiça que Aristóteles chama universal, que “é comumente pensada como a maior de todas as virtudes". "Na justiça [em sua acepção universal]", ensinava aquele filósofo, "estão incluídas todas as virtudes" (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Book V, 1. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britan-nica, 1993. Vol. 8, p. 377). Roscoe Pound lembra que Aristóteles concorda com Platão no tocante à justiça universal (POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. p. 3.), embora, nos dois primeiros livros de A república, essa noção seja apresentada ao lado de várias outras. De todo modo, como percebemos, a noção da justiça como compêndio de todos os outros valores tem uma longa e ilustre história. 

Se desenvolvermos o exemplo das uniões hetero e homoafetivas com base nesses parâmetros, concluiremos que os valores da primeira (procriação e assistência à prole) podem e até mesmo devem ser considerados compatíveis com os da segunda (assistência recíproca entre os consortes), de modo que as duas formas de convivência sejam consideradas justas. Porém, a partir de quando inserimos entre os valores a obediência ao mandamento de Deus para o homem ou a mulher se casar com alguém do outro sexo, a união homoafetiva passa a ser considerada injusta. 
Em ambos os casos, porém, é possível avaliar a compatibilidade dos valores das instituições antagônicas por um procedimento em três passos. No primeiro passo, são identificados os valores em que as instituições assentam. No segundo, verificamos se os valores identificados são reciprocamente compatíveis ou não. Por fim, no terceiro passo, um dos valores incompatíveis é eliminado. Os valores específicos que a união heteroafetiva realiza são a procriação e a assistência à prole. Não que o amparo e o amor entre os consortes não possam ser associados àquela espécie de união, porém eles são visados também pela união homoafetiva. Como os valores que devem ser identificados durante o primeiro passo são os mais específicos da instituição, devemos limitar-nos a citar a procriação e a assistência à prole como fundantes do casamento heteroafetivo. Esses valores não são incompatíveis com o amparo e o amor de um dos consortes ao outro, que fundamentam a outra união. Por isso, temos de concluir que, em princípio, as duas formas de união atendem as exigências da justiça social. Essa conclusão só mudará, se levarmos em consideração o valor adicional do mandamento religioso.
Em Filosofia do direito positivo, chamei objetiva a concepção de justiça a que se chega por esse método lógico. A objetividade da concepção decorre do fato de a compatibilidade dos vetores axiológicos das instituições ser verificável por meios lógicos. Não precisamos sequer refinar a concepção de Lógica para que a verificação se torne possível. A Lógica aristotélica basta para esse fim. Aliás, é a mais adequada ao procedimento de verificação, pois a sua aplicação à realidade social permite extrair, com clareza e simplicidade, as conclusões de que necessitamos sobre os vetores axiológicos das instituições e, consequentemente, sobre o vetor resultante da justiça.
Embora as instituições e os vetores mudem com o tempo, o método de verificação deles permanece válido. Podemos aplicá-lo às instituições de hoje tanto quanto às da época de Aristóteles e chegar às mesmas conclusões, pois a concepção da justiça objetiva não se altera. No máximo, em determinada época, ela pode não ter sido largamente adotada e depois ter passado a ser ou primeiro ter sido admitida e mais tarde abandonada. Porém, em todos os casos, a concepção esteve disponível, pois sempre foi possível compreendê-la e usá-la.
Não nego que essa interpretação da justiça conduza a complicações, pois a verificação da compatibilidade dos valores que fundamentaram as instituições de todas as épocas é uma tarefa infinita. Porém, para cada número restrito de instituições, o procedimento se simplifica bastante, como vimos no caso das duas espécies de união. E, uma vez executado, ele permite chegar a conclusões bastante claras sobre a influência de cada valor na formação da ideia de justiça. 
À luz dessas considerações, o desafio de Kelsen ao direito natural pode ser recolocado da seguinte maneira: quanto maior o período histórico ou o número de sociedades considerado, maior a probabilidade de não encontrarmos um único valor moral que tenha sido universalmente reconhecido. Todo valor vigente, por certo tempo, numa sociedade, foi negado em outro tempo ou em outra sociedade. De modo que não há valores universais, no espaço ou no tempo. E, por não haver tais valores, não há também um direito natural.
Essa crítica de Kelsen às noções de justiça universal e direito natural fez escola. Foi adotada na Europa, nos Estados Unidos e em toda outra parte onde o direito não se encontrava profundamente entretecido com a religião. Porém, ainda é possível aprimorá-la ou aprimorar a sua expressão do seguinte modo: em vez de afirmar peremptoriamente que não há valores universais, podemos admitir que o conteúdo desses valores se torna cada vez mais indeterminado, conforme nos referimos a períodos históricos mais e mais amplos.
Assim, embora os povos tenham admitido hipóteses muito distintas em que é possível tirar a vida de alguém sem cometer crime, nenhum povo conhecido jamais permitiu o assassinato indiscriminado. Nenhum admitiu a liberdade de matar, sem mitigação alguma. Com isso, todos elevaram a vida humana à condição de um valor moral. Podemos afirmar que fizeram da vida um bem universal, ainda que a proteção atribuída a ela tenha variado de tal modo que não nos é possível precisar o conteúdo do bem universalmente protegido. E o que se pode afirmar da vida, como princípio axiológico, pode ser reproduzido, de modo muito semelhante, da verdade, da liberdade, da integridade física e moral, da propriedade, do matrimônio, do dever familiar e de outros bens morais.
Assim reformulada, a razão da crítica de Kelsen já não reside na inexistência, mas na indeterminação dos valores universais. A referência a algo tão indefinido quanto esses valores é necessariamente quimérica, vale dizer, destituída de importância prática. Como o direito é uma disciplina prática, não faz sentido calcá-lo em valores quiméricos, cujo conteúdo nos é desconhecido.
Porém, o fato de não ser possível apontar um valor que não tenha sido compreendido de maneiras diversas, em lugares e épocas diferentes, não significa que não possamos situar a variação percebida no tempo e no espaço e utilizar esse dado para entender o ideal de justiça das respectivas sociedades. Quanto mais limitada a variação dos vetores das instituições, no tempo ou no espaço, mais facilmente as pessoas reconhecem o ideal de justiça subjacente.  Assim, quando observam que os valores vigentes num espaço geográfico limitado durante um tempo curto são compatíveis entre si, as pessoas tendem a considerá-los parte integrante do ideal de justiça. 
Eliminando, portanto, os vetores contraditórios e preservando os que se revelam reciprocamente harmônicos, as pessoas se erguem à noção de justiça objetiva em vigor na sociedade, ainda que não compreendam ou tenham dificuldade para compreender a justiça mais ampla e universal. “A justiça é um valor de ordem natural-cultural. Nem só cultural, nem apenas natural. Existem conotações de justiça peculiares de um tempo e conotações de vigor universal” (ob. cit. p. 291). As conotações peculiares de um tempo são compreendidas pelas pessoas que vivem nele; as universais não são compreendidas. De sorte que, quanto mais universal, mais indeterminada e menos compreendida tende a ser a concepção de justiça.
Como os graus de universalidade variam em função do tempo e do espaço, a partir de um limiar relativamente baixo, a noção de justiça se torna tão determinada que os sociólogos, os juízes, os governantes e o homem comum não têm mais dificuldades para a conceberem. No entanto, quase sempre, eles o fazem de maneira intuitiva. Só isso explica a popularidade do valor da justiça. Só isso explica a frequência com que as pessoas pensam em termos de justiça. Porém, o fato de a ideia de justiça ser entendida com relativa facilidade não significa que não se assente em bases lógicas. Pelo contrário, essa base é bastante evidente e, se não estiver equivocado, pode ser relacionada ao procedimento de verificação discutido acima.
O procedimento envolve uma dificuldade primeira: quando a incompatibilidade de dois valores é detectada, qual deles deve ser eliminado da noção de justiça? Admito que o problema é real, pois, se o método apresentado pretende ser lógico, nenhuma decisão arbitrária sobre os valores em análise pode ser admitida. Porém, parece-me possível resolver o impasse, retomando a afirmativa central do texto anterior, segundo a qual, na justiça, os outros valores apresentam-se em versões atenuadas, com exceção da liberdade e da igualdade, que constituem os vetores principais dela. Por isso, embora a justiça deva ser concebida como um complexo de valores, eles não devem ser situados todos no mesmo plano. Pelo contrário, à liberdade e à igualdade deve ser reconhecido o lugar principal. Por isso, deve-lhes ser reconhecido um peso maior não só na ponderação dos valores que compõem a justiça como também na resolução dos conflitos entre eles. Em outras palavras, os conflito entre os valores que compõem a justiça hão de ser sempre resolvidos pela sua sujeição aos sobreprincípios da liberdade e da igualdade ou, pelo menos, a um dos dois.
Enfim, a justiça pode ser pensada, em diferentes graus de generalidade, até o limiar a partir do qual seu conceito se torna indeterminado. Todas essas concepções gerais são importantes para o direito. Formam, aliás, a própria base dele. Não só isso: nas sociedades cristãs, as concepções gerais de justiça refletem os valores em que as instituições sociais se fundam há séculos. Trata-se de valores estreitamente relacionados ao cristianismo. Por isso, ainda que a epiderme do tempo arrepie, não há como não afirmar que a justiça é, no fundo, uma constelação de valores que só se compreendem em sua histórica relação com a fé.

domingo, 16 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (29): O Estado de Bem-Estar

Enquanto a lei natural atua, incessantemente, ao longo de milhões de anos, porque as condições que permitem o seu funcionamento são extremamente estáveis, as leis históricas permanecem contingentes, posto que os pressupostos para a sua verificação podem não existir ou ser eliminados após terem existido. Por exemplo, as condições necessárias à constituição do feudalismo podem não se verificar ou deixar de existir, após se verificarem, o que conduz à desorganização fatal do modo de produção feudal.
Por outro lado, embora os modos de produção sejam regidos por leis, as casualidades e o entrechoque de forças, que também se verificam neles, fazem com que os resultados da operação das leis não sejam certos. Há razões para considerarmos a função social do lucro um resultado específico que as leis do modo de produção capitalista tendem a produzir, mas que pode não ser alcançado por força de casualidades e contingências.
Em outras palavras, o fato de o capitalismo funcionar de acordo com leis, e essas leis produzirem a função social do lucro, em condições específicas, não significa que o mesmo resultado será alcançado sempre. No primeiro século após a invenção da máquina a vapor, ocorreu a substituição maciça de investimentos em salários por investimentos em máquinas, o que fez surgir o exército industrial de reserva (trabalhadores desempregados), estagnar os salários e explodir a miséria urbana. Nesse período, a função social do lucro foi suprimida.
Impõe-se, portanto, a conclusão de que a função social da mais-valia das empresas não é um resultado necessário, mas contingente da produção capitalista. A busca do lucro tende a fazer com que os empreendimentos baseados no capital desenvolvam função social, porém, em determinadas circunstâncias, o desenvolvimento pode ser suspenso. Foi o que ocorreu em alguns períodos da Revolução Industrial.
Para entendermos quando e por que a função social do lucro é suspensa, é útil fixarmos com maior precisão aquele conceito. Uma prática adquire função social quando beneficia não apenas um segmento, mas toda a sociedade. Particularmente, o lucro assume função social quando a sua cobrança redunda em benefícios para a sociedade. E, como a mais-valia é recebida pelo dono do capital situado numa camada intermediária ou superior da sociedade, sua função social consiste, mais precisamente, na irradiação dos benefícios dela às camadas inferiores.
Essa transmissão é o que afirmei que pode ou não ocorrer e que, quando ocorre, pode resultar em efeitos mais ou menos significativos, a depender da intensidade do processo. A função social será mais forte, mais fraca ou nula, de acordo com tal intensidade. Porém, sempre que se verificar, ela consistirá na superação das barreiras que impedem a propagação dos benefícios do lucro das camadas superiores e médias para os estratos inferiores da organização social.
A propagação dos benefícios do lucro às camadas inferiores é diretamente garantida pela geração de empregos e, em maior medida, pelo aumento real dos salários, que tende a ocorrer mais intensamente com o desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, ela é também fomentada pela forte relação que se verifica entre o lucro e o crescimento econômico, a qual estimula o aumento da riqueza e a ampliação do acesso das pessoas a ela. O próprio Piketty reconhece o potencial distributivo do crescimento, em diversas passagens 
da sua obra recente, como ao declarar que "não há dúvida alguma de que o crescimento econômico proporcionou uma melhoria considerável das condições de vida durante longos períodos, multiplicando, segundo as melhores estimativas disponíveis, por um fator maior que dez a renda média mundial [em termos reais] entre 1700 e 2012 (de 70 euros para 760 euros por mês) e por um fator maior que vinte no caso dos países mais ricos (de 100 euros para 2.500 euros por mês)" (idem. p. 96). No entanto, todos esses benefícios indiscutíveis podem ser cortados pelo aumento do desemprego e o arrocho salarial, ainda que o crescimento persista. Nesses casos, a função social do lucro é suspensa.
Mas, se o lucro possui ou pode possuir inequívoca função social, outras instituições também a possuem, o que cria a necessidade de as compararmos para entendermos as suas vantagens e desvantagens, bem como o modo como a justiça social pode ser realizada por meio delas. Dentre as instituições com utilidade social mais manifesta, estão a previdência social e os serviços públicos de educação e saúde.
Piketty apresenta dados significativos sobre a carga tributária cobrada, no Reino Unido, na França, nos Estados Unidos e na Suécia, para financiar a previdência e os serviços públicos de educação e saúde. Em todos esses países, a carga tributária girava em torno de 7 ou 8%, antes da 1ª Guerra Mundial. Com o desenvolvimento do Estado de bem-estar, ela passou a 35% no Reino Unido e 30% nos outros países, por volta de 1950, e se estabilizou em diferentes patamares, a partir de 1975: 31% nos Estados Unidos, 40% no Reino Unido, 45-50% na França e 55% na Suécia (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 463).
Os 7 ou 8% arrecadados originalmente pelos quatro países serviam para financiar as funções soberanas do Estado até a 1ª Guerra: segurança interna e externa, governo e distribuição da justiça. Ainda hoje, os gastos necessários ao desempenho dessas funções representam menos de 10% do PIB, no Reino Unido, na França, na Suécia e nos Estados Unidos. Portanto, o aumento da arrecadação ocorrido nesses países foi utilizado, quase inteiramente, para financiar novas atividades públicas, que Piketty divide em dois grupos: de um lado, educação e saúde e, de outro, substituição e transferência.
Os gastos dos quatro Estados com educação e saúde situam-se, hoje, entre 10% e 15% do PIB. Aproximadamente o mesmo percentual é gasto com substituição e transferência de renda, que incluem o pagamento de aposentadorias, seguro-desemprego e bolsas de renda mínima (idem. p. 465). Os volumes de dispêndios para pagamento desses benefícios são desiguais, pois o total de gastos com aposentadorias é muito superior às indenizações de seguro-desemprego, e estas, às bolsas de renda mínima. Porém, números significativos de pessoas são beneficiados por todos os três gastos.
Chegamos, assim, à conclusão assentada em bases claras, porque estatísticas, de que a arrecadação de tributos, depois da 2ª Guerra Mundial, teve marcada destinação social. Foi usada, em grande parte, para erradicar a pobreza na terceira idade, que ainda assolava a Europa, para melhorar a qualidade e a expectativa de vida, por meio do seguro-saúde, e para aperfeiçoar o desempenho profissional pela educação.
Parte das realizações desse período foi induzida pelo aumento do nível dos salários, a partir da revolução fordista. O Estado funcionou como garante de que tal aumento não seria 
perdido, em casos de desemprego e aposentadoria. Ao mesmo tempo, assegurou serviços de educação e saúde isentos de custos para os trabalhadores. Assim, a sua atuação se somou ao aumento do nível salarial propiciado pela produção capitalista. Porém, quando olho para o quadro dessa evolução geral, não posso deixar de reconhecer que ele envolve um risco considerável.
Refiro-me ao grau de estatização da renda nacional que o Reino Unido, a França e a Suécia tiveram de implementar para criar a rede de serviços e benefícios públicos de seus Estados. Nos países ricos da Europa considerados em conjunto, cerca de metade da renda total produzida a cada ano vai para o Estado, que a devolve em forma de serviços e benefícios sociais. Porém, o fato de uma enorme concentração da renda ser necessária, antes da sua distribuição, cria riscos de outra forma ausentes. Recorda a estatização ainda maior do patrimônio e da renda existente na antiga União Soviética e faz suspeitar que, por baixo da aparência de solidez e avanço civilizatório, fragilidades também comparáveis às soviéticas possam estar em formação.
A crise financeira e a Grande Recessão que afligiram a economia mundial, entre 2008 e 2011, tiveram maior repercussão na Europa, entre outras coisas, por causa do peso dos Estados de bem-estar ali existentes. Já ouço dizerem-me que os países europeus mais afetados pela crise foram a Grécia, Portugal, Chipre e, a princípio, também a Irlanda, não a Suécia ou a Noruega, que têm os Estados de bem-estar mais dispendiosos do continente. No entanto, a crise não se agravou apenas em função dos gastos sociais dos Estados, mas também, como é óbvio, em razão da capacidade de arrecadação de cada um deles.
Vejamos como essa capacidade de arredação pode ser descrita. Os países da Europa Ocidental podem ser agrupados em três categorias, de acordo com o perfil demográfico e o capital. Num primeiro grupo, situam-se os mais abastados e populosos, como Alemanha, França, Reino Unido e Itália. No segundo grupo, ficam países também abastados, mas menos populosos, como os da Escandinávia, Islândia, Irlanda, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça. Por fim, no terceiro grupo, ficam os países com menor relação renda/população, como Portugal, Grécia e Chipre. Se olharmos atentamente, perceberemos que os países mais afligidos pela crise europeia foram os do último grupo e os menos ricos dos dois primeiros. De modo que os problemas europeus parecem ter relação direta com a capacidade dos Estados já comprometidos com gastos elevados de arrecadar somas adicionais expressivas de um setor privado sobrecarregado de impostos.

Ninguém pense que a Grécia, para nos atermos ao caso dela, não tinha um Estado de bem-estar quando a crise estourou. Tinha-o, embora ele fosse menos célebre que o da Suécia. A Grécia empregava 20,55% do PIB em gastos sociais, em 2005. Quase o mesmo percentual da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que era de 20,57%. Apenas para comparar, naquele ano, o Reino Unido utilizou 21,29% do PIB para financiar seus serviços sociais. Não é difícil entender por que, participando do mesmo modelo de Estado social, mas sendo menos pujante que o Reino Unido, a Grécia apresentou mais rapidamente problemas nas contas públicas.
A Grande Recessão iniciada em 2008 foi, antes de tudo, uma crise de liquidez. Nos países em que a renda se concentra no Estado, a adoção de medidas anticíclicas mediante o aumento dos gastos públicos para impedir uma queda ainda maior da atividade econômica revelou-se um flagelo. Se o Estado já recebia ali, em média, 40-50% de tudo o que se produz, como exigir que os que pagam impostos nesse montante contribuam com uma fatia ainda maior, se a renda foi diminuída pela recessão?
Porém, esse exato sacrifício foi demandado, desde que a recessão se instalou, em 2008. O resultado foram déficits públicos crescentes, que se acumularam até a situação se tornar insustentável, por volta de 2010. Portanto, a crise mostrou que, embora a Europa tivesse a relação capital/renda mais alta de toda a História e fosse, nesse sentido, o lugar mais rico do mundo, nenhum país mais pobre que ela sentiu tanto as consequências de médio prazo da crise.
A causa profunda do problema europeu parece ter sido o peso da estatização de metade da renda nacional. Nos Estados Unidos, onde a parcela da renda que passa pelas mãos do Estado é de 30% do PIB, foi mais fácil arrecadar o necessário às políticas anticíclicas dos que detêm os outros 70% do que foi, para as autoridades europeias, coletá-lo dos que possuem apenas 50%. Antes de 2008, essa diferença nas estruturas tributárias dos Estados Unidos e da Europa não era tão sentida, porém a crise se incumbiu de desnudar os limites tanto lógicos quanto práticos a que a estrutura arrecadatória europeia parece sujeita.
Nesse contexto, não é espantoso que os Estados Unidos tenham-se recuperado antes e de forma muito mais robusta da crise mundial do que as potências europeias, embora a relação capital/renda seja maior na Europa. A crise desvendou algo que estava oculto, a saber: que os Estados de bem-estar, embora realizem prodígios distributivos, impõem limites à arrecadação e, portanto, ao aumento dos gastos públicos em situações extraordinárias.
Essa face do Estado de bem-estar social não pode ser ignorada, pois cedo ou tarde está fadada a aparecer e cobrar o seu preço. Não estou a propor, obviamente, que a rede de serviços públicos desses Estados seja desmontada, mas que é melhor reduzirmos as suas proporções onde já foi construída e limitarmos o seu alcance, ali onde se encontra atualmente em construção, como é o caso do Brasil.
Em que princípio havemos de nos basear para conter o custo implicado por esse modelo de Estado? Nenhum princípio parece melhor que o da diferença proposto por Rawls. De acordo com ele, uma prática só pode ser considerada justa, se beneficiar todas as camadas da sociedade. Voltarei ao princípio em outro texto. Por ora, basta-me fixar que uma instituição 
que contribui para a justiça social como o Estado de bem-estar só pode ser substituída, se for mesmo o caso de substituí-la em parte, por outra que exerça a mesma função entendida da mesma maneira, ou seja, de acordo com o princípio de Rawls. Ora, se a empresa capitalista é capaz de desenvolver função social relevante, ao pagar salários justos, por que não a devemos considerar uma alternativa à estatização da renda nacional? Não que a empresa com função social deva substituir realmente a atuação do Poder Público, mas elas podem ser somadas para que, da prova de que não se excluem ao se combinarem, possa quem sabe resultar a melhor solução já tentada para o problema da desigualdade.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (28): A Desproletarização

Adam Smith considerava que o desenvolvimento comercial dos séculos XVI e XVII beneficiara a sociedade europeia como um todo e não só as classes superiores. De acordo com ele, o trabalhador jornaleiro da Grã Bretanha ou da Holanda “suporta em seus ombros todo o edifício da sociedade humana”. Nada parece pior que a sua situação. Porém, “esse humílimo e desprezadíssimo membro da sociedade evoluída” é mais rico que um príncipe pele-vermelha, o qual é “o dono absoluto da vida e da liberdade de um milhar de selvagens nus” (citado em COLLETTI, Lucio. Ultrapassando o marxismo – e as ideologias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983. p. 159).
Em O capital no século XXI, Thomas Piketty mostrou que não dispomos de dados que nos permitam julgar se essa avaliação do capitalismo dos séculos XVI e XVII é correta ou não. Só a partir do final do século XVIII, informações confiáveis sobre as sociedades europeias começaram a ser reunidas. Piketty utiliza esses dados para mostrar que a participação tanto do décimo como do centésimo superiores na riqueza do Reino Unido e da França, aumentou de modo sustentado, durante todo o século XIX (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. pp. 332, 335). No Reino Unido, o centésimo mais rico passou de 55% a 70%, e o décimo superior, de 82% a 92% da riqueza total, de 1810 a 1910. Na França, as variações foram de 45% a 60% e de 80% a 89%.
Esses dados comprovam o que a literatura sempre nos informou, a saber: que a Revolução Industrial do século XIX, de certo modo, empobreceu a população urbana da Europa. Marx, por exemplo, escreveu que, “como resultado do movimento industrial [...] já não são os pobres surgidos naturalmente e oprimidos pela sociedade, mas as camadas artificialmente empobrecidas pela dissolução drástica da sociedade, sobretudo a classe média, que vem a formar o proletariado atual” (MARX, Karl. Critique of Hegel’s Philosophy of Right. Introduction. Disponível em www.marxists.org).
Esses fatos foram razoavelmente comprovados. Porém, devemo-nos precaver contra a manipulação imprecisa deles. O filósofo Olavo de Carvalho preveniu-nos contra esse perigo, antes mesmo de Piketty ter publicado suas estatísticas. Numa afamada discussão na Internet, ele afirmou: "Saí do Partido [Comunista] [...] e durante 25 anos não dei palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja" (http://www.olavodecarvalho.org/ textos/ debate_usp_1.htm).
Se deixarmos de lado o tom polêmico e até acusatório da fala de Carvalho, sua  afirmativa de que os dados sobre desigualdade disponíveis, na maior parte das nações, no século XIX, não eram confiáveis coincide, aproximadamente, com a avaliação de Piketty. E o mais curioso é que eles convergem até onde parecem divergir, vale dizer, no ponto relativo à condição da classe trabalhadora. Carvalho afirma que os dados a que Marx teve acesso mostravam que essa condição melhorara. As informações de Piketty, por sua vez, mostram o aumento da desigualdade a partir de 1810. Porém, já vimos que esse aumento normalmente nada tem a ver com piora da condição de classe. Portanto, Carvalho e Piketty concordam nesse particular. Assim, se pudermos juntar os dados de meados do século XIX (que Carvalho afirma terem sido lidos e omitidos por Marx) com os de Piketty sobre o período de 1810 a 1910, concluiremos que a condição da classe trabalhadora melhorou até mesmo na parte do século XIX em que a desigualdade aumentou.
Porém, no início da Revolução Industrial, a produção da pobreza, de fato, deixou de ocorrer pelos antigos métodos de opressão, que foram substituídos pela dissolução de camadas sociais inteiras, “sobretudo a classe média”. Marx presenciou esse processo e o registrou, como Smith vivera o anterior e o registrara. A diferença é que a ciência social pôde resgatar dados confiáveis do século XIX, que comprovaram o processo descrito por Marx, porém não dados capazes de atestar o processo a que Smith aludiu e que teria tornado o menor, “humílimo e desprezadíssimo membro da sociedade evoluída mais rico que um príncipe pele-vermelha”.
Chamemos proletarização o processo de pauperização da classe média ocorrido entre o fim do século XVIII e o fim do XIX. Sabemos que ele se deveu, acima de tudo, à substituição da força de trabalho humana por máquinas. Digno de destaque é que as estatísticas publicadas por Piketty confirmam e descrevem, com precisão, a extensão desse processo.
É importante observar que a proletarização não foi revertida pelas altas taxas de crescimento verificadas durante a Revolução Industrial, que teriam sido suficientes para melhorar de modo substancial a condição do proletariado, se a substituição maciça de força de trabalho por máquinas não tivesse ocorrido. Como o crescimento acima de certo limiar é o fator principal de melhora da condição das classes sociais, é espantoso que taxas tão elevadas quanto as do século XIX não tenham sido suficientes para elevar a condição do proletariado. E que os acontecimentos tenham mostrado que, ainda assim, a proletarização se reverteu, entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX.
Vale a pena comparar essas considerações com o que Peter Drucker escreveu no fim do século passado: “Até a Primeira Guerra Mundial, nenhum governo na história havia conseguido – mesmo em tempo de guerra – obter do seu povo mais que uma pequena fração da renda nacional do país, talvez 5 ou 6 por cento. Mas na Primeira Guerra Mundial todos os beligerantes, até mesmo os mais pobres, descobriram que praticamente não havia limites para aquilo que o governo pode extrair da população. Quando começou a guerra as economias de todas as nações beligerantes estavam plenamente monetizadas. Como resultado os dois mais pobres, a Áustria-Hungria e a Rússia, conseguiram, em vários anos da guerra, taxar e tomar emprestado mais que a renda total anual das suas respectivas populações. Elas conseguiram liquidar o capital acumulado ao longo de muitas décadas e transformá-lo em material bélico. Joseph Schumpeter, que então ainda vivia  na Áustria, entendeu imediatamente o que havia acontecido. Mas os outros economistas e a maior parte dos governos precisaram de mais uma lição: a Segunda Guerra Mundial” (DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. pp. 90-91).
Drucker sugere que as duas Guerras Mundiais levaram à descoberta dos meios pelos quais o limite de 5 ou 6% do PIB (pouco mais, em alguns casos), ao qual a tributação sempre estivera sujeita, podia ser excedido. A descoberta teve alcance comparável à invenção do computador, pois nunca mais a carga tributária foi a mesma. E é indispensável observar que o aumento dela não se deveu a necessidades incontornáveis, mas à expansão pura e simples da capacidade arrecadatória dos Estados pela monetização econômica.
Drucker prossegue na sua análise do fenômeno que denomina Estado fiscal: “A União Soviética, oficialmente dedicada à igualdade, criou uma grande nomenklatura de funcionários privilegiados, com níveis de renda muito superiores àqueles dos ricos no tempo dos czares. Quanto mais estagnava a produtividade soviética, maior se tornava a desigualdade de renda” (idem. p. 95). 
Contudo, os soviéticos não detinham o monopólio da combinação de concentração de riqueza e desigualdade de renda. Nos Estados Unidos, “a partir da Guerra do Vietnã, a desigualdade de renda começou a crescer firmemente, a despeito da taxação. Fez pouca diferença os ricos serem pesadamente taxados nos governos Nixon e Carter e muito menos taxados no governo Reagan. Da mesma forma, no Reino Unido, a despeito de um compromisso declarado com o igualitarismo e de um sistema fiscal concebido para minimizar a desigualdade de renda, a distribuição de renda vem se tornando cada vez mais desigual nos últimos trinta anos, quando a produtividade parou de crescer” (idem. p. 96).
Se Drucker tem alguma razão, o aumento de impostos não pode ser associado necessariamente à queda da desigualdade. À maior tributação pode ou não se seguir tal queda. Portanto, se o aumento dos impostos sobre o capital é efetivamente capaz de explicar a queda da desigualdade, no século XX, como Piketty sugere e podemos aceitar, a capacidade é específica daquela modalidade tributária. Não se estende a outras modalidades de impostos. Muito menos à tributação em geral.
Piketty assevera que o aumento dos impostos promove “uma grande dispersão da riqueza” (PIKETTY, Thomas. Ob. cit. p. 364). Não há, nessas palavras conclusivas, nem nos dados de Piketty mais geralmente considerados, qualquer garantia de que a "grande dispersão" equivalha a uma transferência patrimonial do décimo ou do centésimo mais rico para as camadas pobres da população. Pelo contrário, o próprio Piketty esclarece que a transferência efetivamente observada, no século passado, se deu dos estratos superiores para os intermediários da pirâmide social (idem. pp. 329, 364).
Digamos, pois, claramente: se desproletarização é a melhora da condição socioeconômica das camadas mais desfavorecidas de todas, e o aumento de impostos reverteu em favor das classes intermediárias, ele não explica, de maneira alguma, a desproletarização. Aliás, a cronologia do aumento de impostos fornecida por Piketty e Drucker dá conta de que a tributação só alcançou o nível atual após a 2ª Guerra, quando a desproletarização já fizera progressos consideráveis, o que confirma que a relação de causa e efeito entre elas é bastante tênue.
Em A função social do lucro, propus que a desproletarização foi causada pela alocação crescente dos investimentos sob a forma de salário. Como é possível testar essa afirmação com base nos dados fornecidos por Piketty? No gráfico da página 341 de O capital no século XXI, nosso autor mostra que a participação do centésimo e do décimo superiores dos Estados Unidos na riqueza total despencou, entre 1920 e 1940. Na Europa, isso ocorreu, durante um período maior (1910 a 1970), e foi levado mais longe, resultando em maior transferência proporcional de riqueza. 
O impressionante nesses dados é o fato de nos revelarem que, nos dois continentes, o mesmo processo de redução produziu o mesmo resultado básico, no entanto a Europa levou 60 anos para alcançar esse resultado, e os Estados Unidos, apenas 20. Pensamos que a rapidez da mudança, nos EUA, deveu-se à relação maior dela com acontecimentos no interior do mercado (revolução fordista etc.), enquanto na Europa ela teve relação também com a atuação estatal. E que, desse modo, fica comprovada a relação entre a redução da desigualdade e a produção capitalista.
Se, na Europa, o período de queda da desigualdade coincide, em parte, com o aumento da intervenção estatal, nos Estados Unidos, o aumento foi tão precoce quanto rápido. Ocorreu entre 1920 e 1940, quando a intervenção estatal ainda era diminuta, e o imposto sobre o capital ainda não existia (idem. pp. 518-519). A que podemos atribuí-lo? Piketty atribui-o quase inteiramente aos choques induzidos pelas Guerras Mundiais, mas isso não o dispensa de explicar quais foram os mecanismos econômicos pelos quais os conflitos se traduziram em compressão da desigualdade. Esse é, a meu ver, o principal problema da obra de Thomas Piketty. Uma das raras passagens que citam um desses mecanismos é a que se refere à Europa da Belle Époque: "Podemos calcular que 1% dos herdeiros parisienses mais ricos dispunham, na Belle Époque, de um patrimônio que lhes permitia financiar um nível de vida da ordem de oitenta a cem vezes mais alto do que o salário médio da época e ainda reinvestir uma pequena parte do capital, de modo a aumentar um pouco a riqueza que foi recebida [...] O equilíbrio se quebra, nitidamente, no entreguerras: o 0,1% dos herdeiros parisienses mais ricos continuam vivendo mais ou menos como no passado, mas o que eles deixam permite financiar entre trinta e quarenta vezes o salário médio da época" (idem. p. 360).
Esse foi um mecanismo específico, pelo qual os choques da 1ª Guerra traduziram-se em redução da desigualdade. Mas, como já disse, é uma das poucas passagens de O capital no século XXI em que a alusão genérica aos choques é traduzida em mecanismos específicos. Mesmo assim, os gráficos de Piketty mostram que a queda do nível de desigualdade, a partir da 1ª Guerra, foi abrupta demais para não ter relação com os conflitos bélicos. A relação entre ela e as Guerras foi real, mas quero ressaltar que, ao menos no caso dos Estados Unidos, entre 1920 e 1940, não se pode negar que ela mascara uma causa de todo distinta. A ilação mais lógica que se pode estabelecer entre as Guerras e os mecanismos econômicos de redução da desigualdade é que a destruição contínua do capital (indústrias etc.) pelas duas Guerras reduziu drasticamente a taxa de retorno dele. Esse deve ter sido o mecanismo principal, pelo qual os "choques das Guerras" se traduziu em redução da desigualdade. Porém, o mecanismo só funcionou ali onde houve destruição. Os Estados Unidos praticamente não sofreram destruição territorial, durante as Guerras. Pearl Harbor foi exceção e ficava no Havaí. Além disso, a queda da desigualdade, nos Estados Unidos, no século XX, começou após a 1ª Guerra (1920) e terminou antes de o país ingressar na 2ª (1940). É difícil aceitar que os "choques das Guerras" tenham sido responsáveis pela redução da desigualdade americana, exatamente nesse período.
Seria de espantar que efeito tão espetacular quanto a queda da desigualdade no século XX não tivesse concausas provindas de mais de um dos subsistemas da sociedade: no caso, do subsistema político e também do econômico. Piketty quer confinar as causas primárias ao subsistema político, mas os fatos parecem mostrar que elas operaram também no outro. A revolução do fordismo é um exemplo claro de causa econômica que contribuiu, decisivamente, para a queda da desigualdade nos Estados Unidos, entre 1920 e 1940. E, se contribuiu decisivamente nos Estados Unidos, essa causa deve ter feito o mesmo na Europa.
De qualquer modo, os dados que comprovam mais claramente a desproletarização são os da página 219 do livro de Piketty, onde lemos que houve "queda da participação do capital observada no longuíssimo prazo, de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos 2000-2010, e a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para 70-75%" (idem. p. 219). Ao longo do seu livro, Piketty geralmente tece asseverações sobre a desigualdade, com base em dados sobre o centésimo e o décimo mais ricos. A passagem acima é exceção, pois trata não só da participação dos mais ricos, mas também da classe trabalhadora na riqueza social. Ela confirma, de modo inequívoco, o aumento da fatia do proletariado na renda nacional.  
É importante frisar que esse aumento não espelha só transferências em prol da classe média, mas da classe trabalhadora em geral: exatamente o que A função social do lucro postula ter ocorrido no século XX. Do início da Revolução Industrial à atualidade, a participação dos salários na renda aumentou quase 20%. Esse é o dado que mais diretamente comprova a desproletarização.
Juntemos, pois, as conclusões: o Estado tem de suportar gastos substanciais com o funcionalismo, inclusive ao fornecer serviços sociais; por isso, o aumento da arrecadação de impostos, ocorrido em meados do século XX, reverteu substancialmente para a classe média, o que o livro de Piketty comprova. Não nego que o aumento tenha contribuído para a redução da desigualdade, mas que ele responda pela parte dela que redundou em benefício das camadas mais desfavorecidas da população. Só a redução a favor dessas camadas gera a desproletarização. E os fatos parecem indicar que ela pode estar mais associada ao desenvolvimento do capitalismo do que à intervenção estatal. 

sábado, 8 de novembro de 2014

Filosofia e Direito (5): A Grande Aliança

A unidade da História da Filosofia recebe forte testemunho do fato de que os filósofos, geralmente, definem o conteúdo do seu pensamento por identificação tanto com escolas da Antiguidade quanto da atualidade. Não é usual pensadores identificarem-se só com escolas antigas ou só com recentes, talvez porque todos têm a intuição comum da continuidade que há entre elas.
Mas, para essa continuidade ser verdadeira e não ilusória, é preciso mostrar, um pouco melhor, em que consiste a unidade de escolas cujo entrechoque é evidente. Penso que essa unidade é, antes de tudo, explicada pelo fato de as correntes de pensamento e seus representantes agruparem-se em dois campos principais, com base na afinidade que se estabelece entre eles.
De fato, embora se afastem umas das outras em tantos assuntos, as escolas também têm pontos de contato, em função dos quais se aproximam. E, ao se aproximarem, elas dão origem ao que denomino visões de visões de mundo, famílias de mundivisões ou, se preferirmos, metavisões filosóficas. As metavisões principais da História da Filosofia são as de cunho materialista e metafísico.
Os primeiros de todos os filósofos, conhecidos como pré-socráticos, foram materialistas. E o foram por razões tão culturais que não houve, praticamente, dissidência entre eles no tocante a esse ponto. Coube a Platão e Aristóteles desafiar o materialismo antigo, ao promoverem a primeira reação vigorosa às visões de mundo dos pré-socráticos. E o método pelo qual eles levaram a cabo essa reação foi o da Metafísica. Assim, fica claro que a oposição entre as metavisões data dos próprios primórdios da Filosofia.
Curioso é que, embora não existisse antes, a oposição não desapareceu com a morte de Platão e Aristóteles. Prosseguiu ao menos até a difusão do cristianismo no mundo romano 
se completar. Porém, no período que vai de Aristóteles ao cristianismo, a metavisão predominante entre os filósofos continuou a ser o materialismo. E, embora o sucesso do cristianismo tenha feito as doutrinas materialistas recuarem, durante a Idade Média e início da Modernidade, do século XVIII em diante, observamos o retorno vigoroso da metavisão mais antiga, tanto no campo da ciência quanto no da Filosofia.
Assim, o agrupamento das doutrinas filosóficas em um território materialista e outro metafísico é extremamente nítido, do século VI a. C. ao V d. C. Por causa desse agrupamento, é que, tão tarde quanto no século IV, a trajetória de Santo Agostinho do academicismo de Cícero ao maniqueísmo e deste ao neoplatonismo, até se fixar no pensamento patrístico, só se compreende à luz da atração que o materialismo exerceu sobre ele. E tão nítida quanto a oposição entre materialismo e metafísica, naqueles dez primeiros séculos, continua a ser a que se restabeleceu na Filosofia, a partir do século XVIII.
Contudo, se o agrupamento das doutrinas, por treze séculos, deu-se com base na 
polarização, em outro período de treze séculos, a visão metafísica reinou de maneira inconteste. Do início do século V ao início do XVIII, os espíritos continuaram a divergir no que tange às visões de mundo, no entanto observamos forte convergência no tocante às metavisões. Nesse período, onde quer que a Filosofia tenha sido cultivada, os filósofos se apresentaram como cultores da Metafísica. E, até em terras onde o cristianismo não prevaleceu, como entre os judeus e os muçulmanos, a Metafísica não deixou de constituir o fundamento de toda a reflexão filosófica. 
Não precisamos olhar para esse período intermediário, em que a tensão entre Metafísica e materialismo se dissipou, como se um houvesse suprimido o outro. É preferível afirmar que, ao longo da Idade Média, o materialismo tornou-se prático, que ele se refugiou na aplicação das artes do Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). De fato, por serem vistos como artes e terem fins práticos, esses conhecimentos permaneceram autônomos em relação à Filosofia governada pela Metafísica. Serviram para orientar o trato do homem medieval com a matéria e mostrar que, ao contrário do que se tornou habitual afirmar hoje em dia, ele não apequenou a dimensão material ao ampliar a espiritual.
Numa metade da História da Filosofia, portanto, as escolas se agrupam, nitidamente, nos territórios materialista e metafísico. Na outra metade, a Metafísica parece suprimir o materialismo, mas não sem que ele continue a constituir, de certa maneira, a face oculta dela. De sorte que, opostos ou conjugados, ocultos ou manifestos, os dois constituíram as principais metavisões, isto é, as visões de visões de mundo filosóficas. Por isso também, ao transitarmos entre as doutrinas filosóficas, só enxergamos as cores da paisagem na medida em que mantemos consciência dos espectros materialista e metafísico que a dominam.
A História da Filosofia não pode ser bem compreendida, sem essa consciência. Tampouco pode a filosofia ser praticada sem ela. No entanto, as metavisões também são visões do mundo. Remetem-nos e devem-nos remeter ao que é, não como esfera ideal, mas real. Filosofar é filosofar sobre o mundo como ele é. Daí a necessidade de perguntarmos o que é o real e, no caso da Filosofia do Direito, o que é a realidade social.
Não pode ser absurdo a Filosofia do Direito construir-se a partir de uma reflexão sobre a sociedade atual. Pelo contrário, é imperativo que isso aconteça. Contudo, ao chegarmos ao plano da visão social, sentimos de imediato a necessidade de utilizar categorias de análise diferentes das que usamos para pensar a natureza. Mas que categorias devemos usar e na análise de que dados havemos de empregá-las?
Essas questões podem ser examinadas, com especial proveito, à luz das estatísticas divulgadas por Thomas Piketty no seu livro de 2013 intitulado O capital no século XXI. A obra se abre 
com a afirmação de que, “para trazer à tona a questão distributiva, é preciso começar reunindo a base de dados históricos mais completa possível” (PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 23). 
A obra de Piketty tem sido aclamada por fazer exatamente isso. Por reunir, pela primeira vez, dados suficientes para uma análise ampla da desigualdade, principalmente nos últimos 200 anos. Esses dados permitiram a Piketty tentar uma reavaliação tão ampla do capital, no século XXI, que tem inspirado paralelos com O capital, de Karl Marx. É como se o autor francês tivesse fornecido uma atualização do balanço de Marx sobre o capital, no século XIX.
O próprio Piketty se refere a Marx como um marco da análise do capital. Nem poderia ser de outro modo. Mas é, no mínimo, surpreendente que, ao tratar do tema cuja análise Marx esgotou na sua época, Piketty cometa deslizes conceituais sérios sobre esse autor. É o que ocorre na página 223 da edição brasileira da sua obra, em que ele se refere ao conceito de taxa de lucro, em Marx, como sinônimo de taxa de rendimento do capital (idem. p. 223). A sinonímia claramente afirmada nesse ponto é negada, na página 58, quando Piketty afirma que a taxa de remuneração "mensura aquilo que ele [o capital] rende ao longo de um ano, qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, alugueis, dividendos, juros, royalties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem do capital investido. Trata-se, portanto, de uma noção mais abrangente do que o conceito de taxa de lucro" (idem. p. 58).
 Ora, se taxa de remuneração é o que o capital rende (“mensura aquilo que ele rende”), convenhamos que é o mesmo que taxa de rendimento do capital, usada na página 223 como sinônimo de taxa de lucro. O problema é que, na página 58, Piketty sustenta que a taxa de rendimento ou de remuneração é um conceito mais amplo que o de taxa de lucro, o que implica certa confusão conceitual.
Esses não são os únicos momentos em que o livro tropeça ao utilizar conceitos de Marx. Piketty refere-se ainda à “taxa de exploração, que mede para Marx a parcela da produção de que o capitalista se apropria” (idem. p. 517). Ocorre que a taxa de exploração, para Marx, não é isso. É, antes, sinônimo de taxa de mais-valia ou a razão entre a mais-valia e o capital variável (montante pago em salários). Em outras palavras, ao mencionar a taxa de exploração em Marx, Piketty põe corretamente a mais-valia no numerador da fração, mas erra ao colocar toda a produção no denominador.
É difícil ver como, de uma apropriação equivocada de conceitos de Marx, possa resultar uma análise superior do capital, se a teorização de Marx sobre esse tema é, de algum modo, vital para a teoria econômica. Parece-me, no mínimo, duvidoso que Piketty tenha realmente superado Marx.
Além disso, em diversos trechos da sua obra, Piketty afirma que a desigualdade que ele descreve foi reduzida apenas em relação à classe média. No entanto, na página 219 da sua obra, surge a informação surpreendente, porquanto não tratada antes, de que houve "queda da participação do capital" na renda nacional " de 35-40% nos anos 1800-1810 para 25-30% nos anos 2000-2010, assim como a alta correspondente da participação do trabalho, de 60-65% para 70-75%". Esse último dado (aumento da participação dos salários na renda) revela que a desigualdade se reduziu também em relação às classes inferiores.
A redução em benefício dos mais desfavorecidos é, de longe, a variedade mais importante, pois inverte a tendência de empobrecimento e proletarização da classe média, cuja relação com a Revolução Industrial Marx considerara irreversível. De fato, para aquele filósofo e estudioso do capitalismo, a mecanização da produção ocorrida no século XIX levaria inevitavelmente à redução da participação dos salários na renda e ao caos social. Piketty, porém, mostrou que o contrário se deu, entre o início da Revolução Industrial e o presente. Só não explicou por que algo tão surpreendente teve lugar.
Digo que não o explicou porque, para Piketty, a redução da desigualdade entre 1914 e 1945 se verificou apenas em relação à classe média. Se uma diminuição de maior alcance ocorreu em período mais longo (1810 a 2010), os mecanismos que a produziram devem ter sido distintos dos que promoveram a igualdade na primeira metade do século passado. Do contrário, a redução de maior alcance teria beneficiado apenas a classe média, assim como a outra. Não foi o que aconteceu. Retornarei a esse assunto nos próximos textos. 
Marx pode ser considerado o maior materialista da História, por ter revolucionado a metavisão inicialmente desenvolvida pelos pré-socráticos. Porém, é irônico que ele não o fez aumentando, mas diminuindo o alcance do materialismo até o ponto de torná-lo um método de interpretação da História e não mais do Universo inteiro. Principalmente os escritos de maturidade de Marx mostram como esse método permite entender os modos de produção da História e as sociedades que eles ajudaram a plasmar. Porém, ao abordar o capitalismo, Marx alimentou o seu método com premissas equivocadas. Supôs que, na etapa industrial, esse modo de produção levaria à acumulação cada vez maior do capital e à participação cada vez menor dos salários na renda. Hoje sabemos que o contrário se verificou. 
Não podemos, porém, julgar o método de Marx com base em informações que ele não possuía. E, se considerarmos que o capitalismo pode produzir os resultados que Marx apontou tanto quanto outros contrários, chegaremos a conclusões inteiramente novas pelo método do materialismo histórico. Chegaremos a conclusões que não apontarão mais para o colapso necessário do regime do capital e sim para a clara possibilidade de que ele continue a existir por tempo indeterminado.
Talvez a teoria da História de Marx possa ser adotada como as sete artes de um novo tempo, em que a oposição contemporânea de Metafísica e materialismo, espírito e matéria, de novo se dissipará e dará lugar à acomodação recíproca deles. A julgar pela exaltação dos espíritos, a aliança das metavisões é improvável. Contudo, isso torna a sua perspectiva tanto maior.