Many Scriptures affirm we are servants of God, but only Luke 17,7-10 explains what that means: "Which of you, employing a servant in farming or herding will tell him, when he comes back from the field, Come now and make yourself at table? And will not tell him, Prepare me supper, gird yourself, and serve me while I eat and drink, afterwards you shall eat and drink. Shall he thank the servant for doing what he commanded? Likewise, when you do all that has been commanded you, say, I am an unprofitable servant, for I did only what I should do".
The parables of Luke contain soliloquies. The prodigal son is the classic example. The anti-hero not only abandons his old life. Before doing so, he ponders: "How many of my father 's have bread, and I perish here with hunger! I will get up, and go to my father." In this and in other parables, the words of the soliloquies undress the soul of the character. They show whom he is. In Luke 17, the only difference is that the monologue comes at the end, when Jesus commands: "Say, I am an unprofitable servant, for I did only what I should."
Those who find the center of the parable in the soliloquy at its very end do not exaggerate. Faith is to utter that sentence and preach it with the verve with which Anthony preached to the fish: "God gave men reason without the use, and gave fish its use without reason." Faith is to exhort ourselves to repentance, attend the court of conscience, and confess our own futility with downcast eyes and a naked soul. Without this attitude, there can be service to God, but no kingdom of God.
The monologue of Luke 17,10 is what gives birth to the servant of God. Without uttering it intimately, the worker for God is only a false servant, someone ready to take the step of betrayal. He only becomes a true servant, when he becomes a servant inside. Echoing this principle, Paul said to Philemon that Onesimus had been useless before (Fm 11). In these words, the scent of Luke 17,10 can be distinguished. Onesimus had been Philemon’s slave, which means he had been useless. This is the biblical concept of servitude.
Luther was a hot tempered man. Catholic historians have tried to portray him as a stubborn sinner. But it cannot be denied that Luther reached a deep sense of his misery and utter worthlessness. In a famous passage, he expressed it clearly: "We are all beggars, that’s the whole truth." One needs to ignore human condition to deny this verdict.
However, the world is full of people who think they are able to serve God without regarding themselves useless. How many know everything about everything! How many were with God, when he laid the foundations of the earth, when he established its measures and stretched the line upon it, when the foundations of the world were probed, and the morning stars sang for joy (Job 38:4-7). How many have ready answers to give about these and all other mysteries. They can say what took place in remote antiquity, they can teach all that is written from Genesis to Revelation. They also know all it takes to fix others and the very church of God. The only thing they do not know is that they are totally useless.
It is amazing how this swarm of wannabes are not willing to lift a finger to pursue wisdom. They do not want to go into the field, come back, and prepare the supper table.Thus they are far from proclaiming their worthlessness. And the parable does not exhort them to do so, but to go into the field, shed their sweat, learn the meaning of fatigue and that they are miserable, poor, blind and naked.
One thing is to do nothing and confess to be useless. Quite another is to do all, complete a splendid work, and exclaim: "Lord, I am a useless servant, because I did only what I should do." This is the masterpiece of the Spirit of God in man. God’s creation consisted of bringing forth things, and saying "It's good". His new creation is produced when man, the crown of his works, pronounces the good soliloquy.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Livre Exame de Romanos (24): O Tempo do Arrependimento
No texto sobre a oliveira cultivada, Paulo não vacila em afirmar que os ramos desobedientes serão cortados. A afirmação é feita de maneira tão clara que somos levados a concluir que a reprovação da pessoa que inicialmente creu no evangelho era uma possibilidade clara, na mente do apóstolo. Todo aquele que um dia creu pode permanecer nessa fé ou decair dela.
Paulo não desenvolve além desse ponto a doutrina do desvio da fé. Limita-se a afirmar que essa é uma possibilidade real, mas não esclarece se os desviados podem ou não ser restaurados e até quando a chance de restauração lhes é oferecida. Duas são as razões principais da omissão: primeiramente, Paulo não tem o objetivo de entrar em detalhes sobre esse ponto específico; em segundo lugar, parece implícito que, se a fé produz o enxerto, não importa o momento em que o indivíduo crê: se ele o faz ou não após uma queda; em todos os casos, o que crê é enxertado.A declaração “se não permanecerem na incredulidade serão enxertados” (11:23) aplica-se tanto aos que creem, na primeira oportunidade que lhes é oferecida, quanto aos que se arrependem, após terem caído da fé. Seria cruel Deus cortar pela falta de fé e não enxertar pela fé. Portanto, Se corta, ele também enxerta. Se corta sempre que há incredulidade, enxerta todas as vezes em que há fé, inclusive após uma queda espiritual.
Mas há quem duvide de que seja assim. O motivo da dúvida são textos como Hebreus 6:4-6, que declara ser “impossível que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que de novo estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia”.
Contudo, a impossibilidade a que Hebreus se refere não é de que o pecador seja restaurado. É, antes, impossibilidade de renovação do arrependimento ou, como o autor já dissera, de lançar novamente a base do arrependimento (Hb 6:1). O judaísmo envolvia muitos atos de purificação, o que levava o judeu a questionar se o arrependimento devia ser renovado cada vez em que ele se purificava. Porém, em grego, arrependimento (metanoia) significa mudança de mente. Não é possível, ao ser humano, mudar tantas vezes de mente. Embora possamos sentir arrependimento em muitas ocasiões, só podemos lançar uma vez a base do arrependimento. Como Efésios afirma que há um só batismo (Ef 4:5), o qual é para arrependimento (At 13:24), devemos entender que há um só arrependimento.
Embora Paulo não entre em detalhes, está implícito no seu pensamento que os ramos cortados da oliveira podem ser restaurados, pelo retorno à base do arrependimento. Resta, portanto, indagar até quando a chance de restauração permanece para eles. Podem os decaídos ser restaurados até o instante da sua morte ou mesmo depois dela?
Que o homem será julgado pelo que tiver feito no corpo está claro, nas Escrituras. Paulo afirma que “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2 Co 5:10). Porém, no versículo anterior a esse, o apóstolo diz que “nos esforçamos, quer presentes, quer ausentes, para ser agradáveis” a Deus (2 Co 5:9). Ausentes significa ausentes de Cristo, pois a passagem esclarece que, “enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor” (2 Co 5:6). É, pois, fácil entender, por essa passagem, que o cristão pode esforçar-se para agradar a Deus não só enquanto permanece no corpo, mas também depois de se despojar dele.
Digamos que uma pessoa se desvie da fé e morra no estado de incredulidade. Estamos em condição de afirmar que, após a morte, ela ainda terá oportunidade de se arrepender? Podemos declarar que a oportunidade lhe será oferecida assim como foi em vida, ou seja, de modo ininterrupto? As Escrituras não respondem essas perguntas de maneira clara. E o que não está claramente revelado pode ser objeto de diferentes opiniões. Mas uma coisa está clara: que a incredulidade leva à separação, e à fé, à reimplantação na oliveira. Disso não podemos duvidar.
O clássico O pastor de Hermas, escrito em meados do século II, ensina que o tempo do arrependimento não é a vida no corpo, mas o período em que a igreja de Cristo é edificada. Enquanto a edificação da igreja não houver terminado, o arrependimento estará à disposição tanto dos vivos quanto dos mortos.
O Pastor foi mantido em alta estima pela igreja cristã, durante muito tempo. Chegou a ser incluído no cânon das Sagradas Escrituras, mas foi finalmente retirado e incluído no rol dos apócrifos. Os termos em que ele coloca a oportunidade do arrependimento são excessivamente fluidos. Não parece diferenciar entre arrependimento dos que um dia creram e dos que nunca chegaram a crer. A todos os tipos de pessoas, em todas as situações possíveis, oferece alguma possibilidade de arrependimento.
Fixa esse ensinamento em visões. Uma delas é a da construção da torre (a igreja). Algumas pedras são incluídas na construção, outras não. “Ouve agora o que se refere às pedras que entram na construção”, diz a mulher que explica a visão a Hermas. “As quadradas e brancas, que se ajustam bem entre si, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos [...] Uns já morreram e outros ainda vivem [...] As [pedras] que entram na construção sem ser talhadas são os que o Senhor aprovou, porque andaram no caminho reto do Senhor e respeitaram perfeitamente seus mandamentos [...] E aquelas que são levadas e postas na construção são os novatos na fé, porém fieis” (O Pastor de Hermas. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. pp. 181-182).
As pedras não incluídas na torre, porém, “são aqueles que pecaram e que desejam fazer penitência. Por isso não foram jogados muito longe da torre. Se fizerem penitência, serão úteis para a construção [...] contanto que façam penitência agora, enquanto a torre ainda está em construção” (idem. p. 182). Por fim, as pedras “jogadas bem longe da torre são os filhos da iniquidade: têm fé hipócrita e nenhuma forma de maldade se afastou deles. É por isso que não alcançam a salvação” (idem). Esses que foram jogados longe da torre “tiveram fé, mas, devido às suas dúvidas, abandonaram o verdadeiro caminho” (idem. p. 183).
Após essas explicações, o autor pergunta à mulher: “As pedras rejeitadas e impróprias para a construção podem fazer penitência e encontrar lugar na torre? Ela lhe responde: Podem fazer penitência, mas não podem se encaixar nessa torre. Elas se encaixarão em outro lugar muito menor e só depois que tiverem passado pelas provações da penitência e cumprido os dias necessários para expiar seus pecados” (idem. p. 184).
Vê-se que, na visão do Pastor, o tempo do arrependimento é o da construção da torre, ou seja, da igreja (idem. p. 256). Ensina também que, a cada tipo de penitência, corresponde uma espécie de salvação. Os próprios filhos da iniquidade, deixados longe da torre, podem arrepender-se e ser incluídos no “lugar muito menor”, ainda que não na torre. De sorte que não há penitência a que não corresponda salvação.
Pode, porém, não haver penitência alguma, como no caso dos “apóstatas e traidores da igreja que, com seus pecados, blasfemaram o Senhor e que ainda se envergonharam do nome do Senhor invocado sobre eles. Tais indivíduos estão definitivamente mortos para Deus” (idem. p. 240). Os que não alcançam arrependimento não podem ser salvos, porém os que o alcançam, ainda que tarde, não podem deixar de o ser.
Claro que o Pastor não pertence ao cânon das Escrituras. Não tem, por isso, a autoridade de Romanos. Mas ilustra como os cristãos antigos pensavam. No mínimo, deixa claro que eles criam firmemente na eficácia do arrependimento. E esse ensinamento de O pastor de Hermas não desafia o das Escrituras, antes o reflete. Hebreus, por exemplo, não afirma que Esaú arrependeu-se, mas não foi salvo. Diz, ao contrário, que “não achou lugar de arrependimento, embora, com lágrimas, o houvesse buscado” (Hb 12:17). Esaú buscou, mas não encontrou o que buscava. Se tivesse encontrado, teria sido aceito.
Tudo indica, portanto, que o arrependimento verdadeiro e único, aquele no qual Hebreus nos exorta a permanecer, foi posto por Deus como uma base segura e certa de salvação. A vida inteira do homem, não só parte dela, deve refletir o seu arrependimento. Deve ser marcada por ele. Isso significa, com toda simplicidade, que quem um dia se achegou a Cristo não pode e não deve, de maneira alguma ou por pretexto qualquer neste mundo, voltar-lhe as costas. Fazê-lo seria arrepender-se do arrependimento pelo qual foi salvo. E arrepender-se do arrependimento é não se arrepender de maneira alguma.
Vivemos num mundo cheio de cantos de sereia. Cada qual entoa uma tentação. Uns dizem: “Quando a pessoa se acha em estado de desespero, crer é aceitável, mas não quando ela se liberta do desespero”. Outros arrazoam: “Para quem não é instruído ou autossuficiente, a fé pode ser uma boa alternativa de vida, mas não para quem o é”. E ainda outros propõem: “Na idade imatura, crer pode ser uma atitude romântica, mas é preciso abandonar as coisas de criança, quando a razão pede o seu preço”. A esses cantos de sereia, que turvam a mente e alucinam o coração, respondo somente: por que um homem que se arrependeu dos seus pecados deve arrepender-se do seu arrependimento? Não agiu responsavelmente ao se arrepender? Para que deve revogar o seu ato responsável, a não ser para assumir uma vida de pura irresponsabilidade?
Não importa se somos modernos ou antigos, cultos e inteligentes ou ignorantes e ineptos, somos antes de tudo responsáveis para com Deus. Pode parecer lindo o homem inventar o seu próprio pós-cristianismo. No fundo, é um canto de sereia medonho, que leva a trocar a promessa pelo repasto, o bem eterno pelo festival dos prazeres: “Guarda-te não te esqueças do Senhor teu Deus [...] para não suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de haveres edificado boas casas, e morado nelas; depois de se multiplicarem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração e te esqueças do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt 8:11-14).
Esse texto é o evangelho no Antigo Testamento. Exorta-nos a não experimentar o arrependimento como algo fugaz, passageiro, que a mesa que engorda o coração dissipa como uma névoa. Exorta-nos a ter o coração marcado, de modo perene, pelo arrependimento e a terminar por meio dele o que se iniciou com ele.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
O Fim da Alma
Na Idade Média, os europeus esperavam o fim repentino do mundo. Previram-no e se prepararam para ele, durante séculos, mas sempre encerraram o mundo uma só vez. Nunca liquidaram em parcelas o imenso empreendimento do braço humano.
Quanta coisa mudou, de lá para cá! O mundo se transfigurou, mas a consciência do grande destino, que nos atrai com a precisão de um relógio, permanece misteriosamente aninhada na alma do homem. Drummond descreve a expectativa do fim do mundo, numa metrópole contemporânea:
"Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes
Helena, que amava os homens
Sebastião, que se arruinava
Artur, que não dizia nada
embarcam para a eternidade
Tudo era irreparável
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
que o mundo ia acabar às 7 e 45"
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião - 10 Livros de Poesia. São Paulo: José Olympio. p. 30)
Porém, a criação mais recente, em matéria de fim do mundo, é o método Jack, o estripador. Na Idade Média, os homens esperavam o fim repentino do mundo todo; hoje, acabam com ele em partes. Tornou-se moda decretar o fim de partes da realidade conhecida há séculos. Deus, a fé, a religião, a metafísica, a ideologia, a utopia, a história, o Estado, foram todos liquidados, por este ou aquele pensador, em diferentes momentos históricos. Para não mencionar as classes sociais, o direito, o capitalismo, que são destinados à desgraça eterna de tempos em tempos, mas principalmente quando a crise atraca no cais ou se condensa nas nuvens de possibilidades dos pregões das bolsas.
Estamos realmente diante de um modo nunca antes visto de pôr termo ao mundo, de uma escatologia secular e por partes. Curioso: na Idade Média, era o mundo a acabar de uma vez; hoje, o mundo é só parte do que chega a termo. Antes dele, acabam com Deus e a sua maior criatura: a alma humana. Soou a trombeta: o homem não tem, nunca teve, alma. Forjou essa invenção para fundamentar a esperança ilusória de que continuará a existir depois da morte. "Tirem do homem a ilusão, e tirarão a sua esperança!” É o que proclamam.
Tal é a mistura de doutrinas céticas, no nosso tempo, que é preciso cuidado para discernir o que cada uma realmente propõe. No caso da alma humana, é preciso critério para entender que entidade espiritual cada doutrina aniquila com convicção que diríamos crédula se seus autores não a proclamassem ateia. Há dois modos principais, ambos clássicos, de entender a alma. O mais antigo a concebe como princípio dos movimentos do corpo. Nesse sentido amplo, a alma não é concebida como imortal, nem como oposta à matéria. É simplesmente o que explica o fato de um ser possuir a capacidade de mover-se ou de mudar independentemente de causas exteriores. Porém, no segundo sentido, a alma se opõe não só ao corpo que habita, mas a todos os corpos. É o que se opõe à matéria e que é considerado imortal, por se opor a ela. A obsessão moderna dirige-se contra essa segunda concepção. Dirige-se à alma imortal, já que a outra nunca foi concebida como indestrutível.
A defesa racional mais arguta da primeira concepção foi-nos legada por Aristóteles, no seu livro De anima. A da segunda talvez seja a de Santo Agostinho, no diálogo A grandeza da alma, que sustenta que esta é destituída de grandeza espacial, portanto é inextensa. Nas palavras do próprio Santo, "a alma não é nem extensa, nem larga, nem forte, nem possui alguma dessas propriedades que se costuma encontrar nas medidas dos corpos" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 263). O segundo modo de pensar a alma dominou amplamente as discussões até a época de Descartes.
No presente texto, cuidarei da última concepção, pois é a mais controvertida. De todos os argumentos apresentados em favor da existência da alma imortal, o mais inexpugnável talvez seja o que reconhece que "as faculdades superiores [do homem] podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores" (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). "Os sentidos não podem perceber nada além da matéria" (idem), porque o inferior não compreende o superior, nem o mais simples, o mais complexo.
O argumento assim apresentado por Boécio decorre da doutrina dos graus de atividade da alma, que Santo Agostinho desenvolveu (HIPONA, Agostinho de. Ob. cit. pp. 339-344). Os dois primeiros graus são aqueles pelos quais conhecemos os corpos. É em parte possível explicá-los com base no movimento dos próprios corpos. Porém, por ser mais simples, a atividade dos dois primeiros graus não explica a dos outros cinco, que tem de ser produzida por um espírito imaterial.
Essa fundamentação da existência de uma alma independente do corpo foi cada vez mais desafiada, nos tempos modernos, até que, em 2004, onze neurocientistas alemães publicaram um Manifesto sobre a realidade presente e futura da pesquisa do cérebro com "um sóbrio e diferenciado balanço de sua ciência [...] Foram conseguidos importantes avanços", nessa ciência, escreveram eles, "por um lado, ao nível mais elevado – foram pesquisadas as funções e interações das áreas cerebrais mais extensas [...] por outro lado, ao nível menos elevado, entendemos hoje amplamente os processos em nível das células e moléculas individuais [...] mas não em nível intermediário – onde sabemos pouquíssimo o que acontece [...] Atualmente, a pesquisa do cérebro não tem a oferecer sobre a ligação entre cérebro e espírito, entre consciência e sistema nervoso, nenhuma teoria que possa ser empiricamente verificada.” (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas – ciências naturais e religião. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 245-247).
Essa citação deveria bastar para exibir as dificuldades do dilema mente-corpo. No entanto, o consenso que se delineia, não só na Alemanha, mas em muitos outros países, no sentido de que não é possível se refutar ou provar a existência da alma, tem servido de estímulo para os esquartejadores do mundo se erguerem, tomarem a trombeta dourada e anunciarem, do eirado, a consumação da alma. De fato, é impossível mencionar uma a uma as invectivas que têm sido dirigidas aos defensores da ideia de que o dilema alma-corpo não está resolvido. Uma avalanche de artigos e manifestações com tal teor tem inundado a mídia, tornando difícil entender a própria questão controvertida.
E o pior é que a barafunda das opiniões não convence o leitor atento e informado de que o estado real da questão seja bem expresso pelos autores céticos. Para se ter noção dos progressos realmente efetuados, nesse campo, em 2012, o neurocientista Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, propôs uma teoria que tem sido saudada como "um passo gigantesco para a resolução final do problema mente-corpo” (KOCH, Christof. "Is conscience universal?" In Scientifc American. dez/2013). De acordo com ele, a consciência é idêntica ao que costumamos denominar informação integrada (TONONI, Giulio. “Integrated information theory of consciousness: na updated account”. In Archives italiennes de Biologie. Dez/2012, nº 4, pp. 293-329).
Podemos perguntar por que tem de ser assim. Tononi responde que a integração é uma característica de certos sistemas físicos e não de outros. Ela não pode ser quebrada, sem que a consciência desvaneça ao mesmo tempo. Não podemos nos forçar, por exemplo, a ver um objeto azul em preto e branco, pois a consciência é a integração da cor com a forma e muitas outras informações. Eliminar um aspecto da experiência integrada implica extinguir juntamente a consciência.
A integração não decorre do aumento da informação. Ainda que a memória de um computador excedesse a do cérebro humano, nenhuma informação dentro dele seria integrada. Para que a integração se produza, é necessário que cada informação seja, desde o início, conectada a outras. A qualidade integrada tem de estar presente, entre as menores informações, para que o sistema adquira autoconsciência. Do contrário, isso jamais acontecerá.
Em outras palavras, a consciência não é um fenômeno associado à organização essencial da matéria, vale dizer, ao que diferencia o material do imaterial, já que pode não ocorrer quando todos os elementos constitutivos da matéria estão presentes. É, antes, um fenômeno associado de modo imprevisto, porque não causal, a certos corpos materiais. Ao menos é essa a conclusão a que as pesquisas de Tononi conduzem.
Talvez seja útil acrescentar duas palavras sobre a questão mente-corpo, do ponto de vista teológico. Em boa parte do Antigo Testamento, a ideia predominante a respeito da alma é a de uma entidade inseparável do corpo, enquanto o homem vive, e da sepultura, depois que ele morre (Ez 26:20; Is 14:9-10; 26:14,19; 38:18; Jó 14:10-13). Isso não implica que a alma seja, por natureza, imortal. É uma espécie de sombra, uma entidade que não se aparta da matéria enquanto continua a existir. Porém, já no Antigo Testamento, a existência da alma tem duas etapas: enquanto ela permanece unida ao corpo e após a morte (1 Sm 28:19; 2 Sm 12:23).
Pouco antes do tempo de Jesus, porém, a seita judaica mais numerosa (os fariseus) passou a crer numa sobrevivência mais definida da alma à morte. O próprio Jesus professou convicção semelhante ao declarar: “Não temais os que podem matar o corpo, porém não a alma” (Mt 10:28), “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43) e coisas semelhantes. O apóstolo Paulo professou ideia semelhante (2 Co 5:1-8; Fp 1:23).
Mas, apesar da introdução da ideia de imortalidade da alma, não há, no Novo Testamento, sinal explícito da separação radical, platônica, cartesiana, entre a alma e o corpo. A alma neotestamentária não se molda à concepção de alma imortal que se tornou clássica. Esta é a concepção platônico-agostiniana, que Descartes reafirmou, de alma inextensa e imortal. É muito importante que se trace essa distinção, pois a alma bíblica é herdeira da doutrina judaica da inseparabilidade entre corpo e alma, que não se altera entre Gênesis e Apocalipse.
Pode-se perguntar que evidência tem a ciência nas mãos para mostrar que a alma assim concebida não existe? A resposta mais coerente é nenhuma. A concepção platônico-agostiniana e cartesiana de alma, de fato, foi refutada. Não há lugar, na ciência, para a alma inextensa, sem relação com o espaço-tempo. Não há lugar para a alma radicalmente distinta do corpo. Mas o mesmo não ocorre com a noção judaicocristã de alma, que não foi refutada pelo conhecimento moderno.
As evidências geralmente alegadas para negar a existência da alma provam apenas a relação existente entre o sistema nervoso e a mente. A alma sempre aparece em conexão com o cérebro ou com o sistema nervoso. Mas isso é o que Tononi descreve como a emergência imprevista da alma, em certos sistemas físicos.
É importante notar que a proposta desse cientista invalida a descrição causal da relação mente-corpo. Infelizmente, essa descrição sempre foi e ainda é muito comum, mas nunca foi comprovada. A própria ideia de relação é a de uma sucessão de ações e reações entre dois ou mais seres. Normalmente, não é possível predizer, numa relação, qual ser praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem parece predeterminada, já que a causa vem antes do efeito. David Hume, porém, mostrou que ela apenas parece vir antes, sem vir realmente. A predeterminação resulta do hábito mental de simplificar excessivamente a observação e generalizar para todos os acontecimentos o que se passa em alguns.
Quando parte dos cientistas afirma que o dilema mente-corpo não foi resolvido, portanto, um dos motivos é não sabermos o que vem antes e o que vem depois, no nosso pensar: o cérebro ou a alma. A afirmação de que o cérebro vem antes não é mais que ingênua, na medida em que considera causal uma relação mais complexa.
Consideremos o fenômeno da possessão demoníaca, que os céticos costumam reduzir à esquizofrenia ou a outras psicoses. Nessas doenças descritas pela Medicina, o indivíduo não perde a noção de si. O esquizofrênico ouve vozes, vê vultos e interage com eles, mas sabe que ele é quem ouve as vozes e vê os vultos. Isso é completamente claro tanto na observação como na literatura especializada.
O mesmo parece ocorrer nos outros transtornos e doenças psíquicas. Em todos eles, persiste o senso que o indivíduo doente possui de si. Não é diferente nos estados inconscientes não patológicos, como o sono e as alucinações causadas por drogas. Na possessão, porém, impera a sensação de ser outro ente. Temos, pois, evidências empíricas importantes de transtornos que não seguem o figurino das doenças psíquicas e parecem ter raízes muito mais profundas. Claro que a diferença pode perfeitamente corresponder à que existe entre o mental e o cerebral.
Posso afirmar tudo isso com a autoridade do neurologista ou do psicanalista? Não. Posso fazê-lo apenas como investigador atento da religião e do mundo. Mas essas duas investigações, que juntas moem a alma, também a afirmam. E o fazem empiricamente, na medida em que mostram que certos eventos psíquicos possuem uma natureza exclusiva e inteiramente diversa de tudo o que tem causa cerebral aparente.
A verdade das mortes que o homem contemporâneo anunciou e das ezéquias que celebrou tem sido a ressurreição. Os fins revelaram-se novos começos, e as realidades aniquiladas retornaram. Eis o mundo de novo povoado delas. A alma, porém, vai adiante do séquito dos ressurretos. E é impossível esconder o seu antigo sentido bíblico, já que no seu estandarte se lê: “Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo” (“Peca com ardor, mas com mais ardor confia e regozija-te em Cristo”).
Quanta coisa mudou, de lá para cá! O mundo se transfigurou, mas a consciência do grande destino, que nos atrai com a precisão de um relógio, permanece misteriosamente aninhada na alma do homem. Drummond descreve a expectativa do fim do mundo, numa metrópole contemporânea:
"Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes
Helena, que amava os homens
Sebastião, que se arruinava
Artur, que não dizia nada
embarcam para a eternidade
Tudo era irreparável
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
que o mundo ia acabar às 7 e 45"
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião - 10 Livros de Poesia. São Paulo: José Olympio. p. 30)
Porém, a criação mais recente, em matéria de fim do mundo, é o método Jack, o estripador. Na Idade Média, os homens esperavam o fim repentino do mundo todo; hoje, acabam com ele em partes. Tornou-se moda decretar o fim de partes da realidade conhecida há séculos. Deus, a fé, a religião, a metafísica, a ideologia, a utopia, a história, o Estado, foram todos liquidados, por este ou aquele pensador, em diferentes momentos históricos. Para não mencionar as classes sociais, o direito, o capitalismo, que são destinados à desgraça eterna de tempos em tempos, mas principalmente quando a crise atraca no cais ou se condensa nas nuvens de possibilidades dos pregões das bolsas.
Estamos realmente diante de um modo nunca antes visto de pôr termo ao mundo, de uma escatologia secular e por partes. Curioso: na Idade Média, era o mundo a acabar de uma vez; hoje, o mundo é só parte do que chega a termo. Antes dele, acabam com Deus e a sua maior criatura: a alma humana. Soou a trombeta: o homem não tem, nunca teve, alma. Forjou essa invenção para fundamentar a esperança ilusória de que continuará a existir depois da morte. "Tirem do homem a ilusão, e tirarão a sua esperança!” É o que proclamam.
Tal é a mistura de doutrinas céticas, no nosso tempo, que é preciso cuidado para discernir o que cada uma realmente propõe. No caso da alma humana, é preciso critério para entender que entidade espiritual cada doutrina aniquila com convicção que diríamos crédula se seus autores não a proclamassem ateia. Há dois modos principais, ambos clássicos, de entender a alma. O mais antigo a concebe como princípio dos movimentos do corpo. Nesse sentido amplo, a alma não é concebida como imortal, nem como oposta à matéria. É simplesmente o que explica o fato de um ser possuir a capacidade de mover-se ou de mudar independentemente de causas exteriores. Porém, no segundo sentido, a alma se opõe não só ao corpo que habita, mas a todos os corpos. É o que se opõe à matéria e que é considerado imortal, por se opor a ela. A obsessão moderna dirige-se contra essa segunda concepção. Dirige-se à alma imortal, já que a outra nunca foi concebida como indestrutível.
A defesa racional mais arguta da primeira concepção foi-nos legada por Aristóteles, no seu livro De anima. A da segunda talvez seja a de Santo Agostinho, no diálogo A grandeza da alma, que sustenta que esta é destituída de grandeza espacial, portanto é inextensa. Nas palavras do próprio Santo, "a alma não é nem extensa, nem larga, nem forte, nem possui alguma dessas propriedades que se costuma encontrar nas medidas dos corpos" (HIPONA, Agostinho de. A grandeza da alma. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2008. p. 263). O segundo modo de pensar a alma dominou amplamente as discussões até a época de Descartes.
No presente texto, cuidarei da última concepção, pois é a mais controvertida. De todos os argumentos apresentados em favor da existência da alma imortal, o mais inexpugnável talvez seja o que reconhece que "as faculdades superiores [do homem] podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores" (BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 144). "Os sentidos não podem perceber nada além da matéria" (idem), porque o inferior não compreende o superior, nem o mais simples, o mais complexo.
O argumento assim apresentado por Boécio decorre da doutrina dos graus de atividade da alma, que Santo Agostinho desenvolveu (HIPONA, Agostinho de. Ob. cit. pp. 339-344). Os dois primeiros graus são aqueles pelos quais conhecemos os corpos. É em parte possível explicá-los com base no movimento dos próprios corpos. Porém, por ser mais simples, a atividade dos dois primeiros graus não explica a dos outros cinco, que tem de ser produzida por um espírito imaterial.
Essa fundamentação da existência de uma alma independente do corpo foi cada vez mais desafiada, nos tempos modernos, até que, em 2004, onze neurocientistas alemães publicaram um Manifesto sobre a realidade presente e futura da pesquisa do cérebro com "um sóbrio e diferenciado balanço de sua ciência [...] Foram conseguidos importantes avanços", nessa ciência, escreveram eles, "por um lado, ao nível mais elevado – foram pesquisadas as funções e interações das áreas cerebrais mais extensas [...] por outro lado, ao nível menos elevado, entendemos hoje amplamente os processos em nível das células e moléculas individuais [...] mas não em nível intermediário – onde sabemos pouquíssimo o que acontece [...] Atualmente, a pesquisa do cérebro não tem a oferecer sobre a ligação entre cérebro e espírito, entre consciência e sistema nervoso, nenhuma teoria que possa ser empiricamente verificada.” (KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas – ciências naturais e religião. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 245-247).
Essa citação deveria bastar para exibir as dificuldades do dilema mente-corpo. No entanto, o consenso que se delineia, não só na Alemanha, mas em muitos outros países, no sentido de que não é possível se refutar ou provar a existência da alma, tem servido de estímulo para os esquartejadores do mundo se erguerem, tomarem a trombeta dourada e anunciarem, do eirado, a consumação da alma. De fato, é impossível mencionar uma a uma as invectivas que têm sido dirigidas aos defensores da ideia de que o dilema alma-corpo não está resolvido. Uma avalanche de artigos e manifestações com tal teor tem inundado a mídia, tornando difícil entender a própria questão controvertida.
E o pior é que a barafunda das opiniões não convence o leitor atento e informado de que o estado real da questão seja bem expresso pelos autores céticos. Para se ter noção dos progressos realmente efetuados, nesse campo, em 2012, o neurocientista Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, propôs uma teoria que tem sido saudada como "um passo gigantesco para a resolução final do problema mente-corpo” (KOCH, Christof. "Is conscience universal?" In Scientifc American. dez/2013). De acordo com ele, a consciência é idêntica ao que costumamos denominar informação integrada (TONONI, Giulio. “Integrated information theory of consciousness: na updated account”. In Archives italiennes de Biologie. Dez/2012, nº 4, pp. 293-329).
Podemos perguntar por que tem de ser assim. Tononi responde que a integração é uma característica de certos sistemas físicos e não de outros. Ela não pode ser quebrada, sem que a consciência desvaneça ao mesmo tempo. Não podemos nos forçar, por exemplo, a ver um objeto azul em preto e branco, pois a consciência é a integração da cor com a forma e muitas outras informações. Eliminar um aspecto da experiência integrada implica extinguir juntamente a consciência.
A integração não decorre do aumento da informação. Ainda que a memória de um computador excedesse a do cérebro humano, nenhuma informação dentro dele seria integrada. Para que a integração se produza, é necessário que cada informação seja, desde o início, conectada a outras. A qualidade integrada tem de estar presente, entre as menores informações, para que o sistema adquira autoconsciência. Do contrário, isso jamais acontecerá.
Em outras palavras, a consciência não é um fenômeno associado à organização essencial da matéria, vale dizer, ao que diferencia o material do imaterial, já que pode não ocorrer quando todos os elementos constitutivos da matéria estão presentes. É, antes, um fenômeno associado de modo imprevisto, porque não causal, a certos corpos materiais. Ao menos é essa a conclusão a que as pesquisas de Tononi conduzem.
Talvez seja útil acrescentar duas palavras sobre a questão mente-corpo, do ponto de vista teológico. Em boa parte do Antigo Testamento, a ideia predominante a respeito da alma é a de uma entidade inseparável do corpo, enquanto o homem vive, e da sepultura, depois que ele morre (Ez 26:20; Is 14:9-10; 26:14,19; 38:18; Jó 14:10-13). Isso não implica que a alma seja, por natureza, imortal. É uma espécie de sombra, uma entidade que não se aparta da matéria enquanto continua a existir. Porém, já no Antigo Testamento, a existência da alma tem duas etapas: enquanto ela permanece unida ao corpo e após a morte (1 Sm 28:19; 2 Sm 12:23).
Pouco antes do tempo de Jesus, porém, a seita judaica mais numerosa (os fariseus) passou a crer numa sobrevivência mais definida da alma à morte. O próprio Jesus professou convicção semelhante ao declarar: “Não temais os que podem matar o corpo, porém não a alma” (Mt 10:28), “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43) e coisas semelhantes. O apóstolo Paulo professou ideia semelhante (2 Co 5:1-8; Fp 1:23).
Mas, apesar da introdução da ideia de imortalidade da alma, não há, no Novo Testamento, sinal explícito da separação radical, platônica, cartesiana, entre a alma e o corpo. A alma neotestamentária não se molda à concepção de alma imortal que se tornou clássica. Esta é a concepção platônico-agostiniana, que Descartes reafirmou, de alma inextensa e imortal. É muito importante que se trace essa distinção, pois a alma bíblica é herdeira da doutrina judaica da inseparabilidade entre corpo e alma, que não se altera entre Gênesis e Apocalipse.
Pode-se perguntar que evidência tem a ciência nas mãos para mostrar que a alma assim concebida não existe? A resposta mais coerente é nenhuma. A concepção platônico-agostiniana e cartesiana de alma, de fato, foi refutada. Não há lugar, na ciência, para a alma inextensa, sem relação com o espaço-tempo. Não há lugar para a alma radicalmente distinta do corpo. Mas o mesmo não ocorre com a noção judaicocristã de alma, que não foi refutada pelo conhecimento moderno.
As evidências geralmente alegadas para negar a existência da alma provam apenas a relação existente entre o sistema nervoso e a mente. A alma sempre aparece em conexão com o cérebro ou com o sistema nervoso. Mas isso é o que Tononi descreve como a emergência imprevista da alma, em certos sistemas físicos.
É importante notar que a proposta desse cientista invalida a descrição causal da relação mente-corpo. Infelizmente, essa descrição sempre foi e ainda é muito comum, mas nunca foi comprovada. A própria ideia de relação é a de uma sucessão de ações e reações entre dois ou mais seres. Normalmente, não é possível predizer, numa relação, qual ser praticará a ação, e qual, a reação. Só na relação causal, essa ordem parece predeterminada, já que a causa vem antes do efeito. David Hume, porém, mostrou que ela apenas parece vir antes, sem vir realmente. A predeterminação resulta do hábito mental de simplificar excessivamente a observação e generalizar para todos os acontecimentos o que se passa em alguns.
Quando parte dos cientistas afirma que o dilema mente-corpo não foi resolvido, portanto, um dos motivos é não sabermos o que vem antes e o que vem depois, no nosso pensar: o cérebro ou a alma. A afirmação de que o cérebro vem antes não é mais que ingênua, na medida em que considera causal uma relação mais complexa.
Consideremos o fenômeno da possessão demoníaca, que os céticos costumam reduzir à esquizofrenia ou a outras psicoses. Nessas doenças descritas pela Medicina, o indivíduo não perde a noção de si. O esquizofrênico ouve vozes, vê vultos e interage com eles, mas sabe que ele é quem ouve as vozes e vê os vultos. Isso é completamente claro tanto na observação como na literatura especializada.
O mesmo parece ocorrer nos outros transtornos e doenças psíquicas. Em todos eles, persiste o senso que o indivíduo doente possui de si. Não é diferente nos estados inconscientes não patológicos, como o sono e as alucinações causadas por drogas. Na possessão, porém, impera a sensação de ser outro ente. Temos, pois, evidências empíricas importantes de transtornos que não seguem o figurino das doenças psíquicas e parecem ter raízes muito mais profundas. Claro que a diferença pode perfeitamente corresponder à que existe entre o mental e o cerebral.
Posso afirmar tudo isso com a autoridade do neurologista ou do psicanalista? Não. Posso fazê-lo apenas como investigador atento da religião e do mundo. Mas essas duas investigações, que juntas moem a alma, também a afirmam. E o fazem empiricamente, na medida em que mostram que certos eventos psíquicos possuem uma natureza exclusiva e inteiramente diversa de tudo o que tem causa cerebral aparente.
A verdade das mortes que o homem contemporâneo anunciou e das ezéquias que celebrou tem sido a ressurreição. Os fins revelaram-se novos começos, e as realidades aniquiladas retornaram. Eis o mundo de novo povoado delas. A alma, porém, vai adiante do séquito dos ressurretos. E é impossível esconder o seu antigo sentido bíblico, já que no seu estandarte se lê: “Pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo” (“Peca com ardor, mas com mais ardor confia e regozija-te em Cristo”).
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
The Shortest Parables (1): The Scribe Learned in the Kingdom of Heaven
The idea of discipleship is rooted in the great commission, in which Jesus told the eleven to “go and make disciples from all nations” (Mt 28,19). In this command, Christians are represented not only as believers, but also as people who undergo a serious and ongoing discipleship.
The meaning of Christian discipleship is controversial. But, since Jesus never taught something divorced from historical reality, we can take for granted that the disciples mentioned in the commission are the consequence of a typical relationship of the first century. Various aspects of this relationship are represented in the eight parables told by Jesus in Matthew chapter 13. In verse 51, he asked his disciples, “Have you understood all these things [the previous parables]? They said: “Yes.” And he concluded: “Therefore every scribe learned in the kingdom of heaven is like a householder, who brings both new and old things out of his storehouse” (Mt 13,52).Unlike the sower of Matthew 13,3-8, which is singular, the scribes of Matthew 13,52 are several. The sower is a symbol of the Son of Man (Mt 13,37), the scribe is not a symbol, but the reality represented by one. We know this because, in Matthew, most parables begin with the sentence “the kingdom of heaven is like.” In the comparison of the scribe and the father, that sentence is replaced by the statement that the scribe is like a father, who takes things out of his treasure. Therefore, the scribe is in the place of the kingdom of heaven. And as the kingdom is represented by several symbols in the previous parables, the scribe is the object symbolized in this parable.
It is often discussed whether it is lawful for a Christian teacher to have disciples. The answer of the parable is affirmative, since it portrays a scribe in the kingdom of heaven, not in Judaism. At the time of Jesus, the scribe was a teacher who had disciples, just like today’s teacher has students. Since the scribe of the parable is not a symbol, but a reality, the allusion to one who is “learned in the kingdom of heaven” means there are teachers with disciples in the kingdom of God.
Discipleship involves freedom. This is a basic principle. However, it also brings in the caveat that, in the kingdom of heaven, every teacher exercises his ministry after Jesus delivered speeches such as the one in Matthew 5 through 7. The inevitable comparison with Jesus makes Christian teachers real non-teachers. Teaching after Jesus is like an apprentice playing after Beethoven in a concert, or an inexperienced painter exhibiting his screen in the inauguration of the Sistine Chapel. In a nutshell, to teach after Jesus is to feel that nothing is taught.
By his teaching, Jesus was lifted to the rank of master of all masters. “You call me Master and Lord, and you say well, for I am” (John 13,13). And also: “Do not be called masters: for one is your Master” (Matthew 23,8). The ban to be called master, in the last verse, should not be considered absolute. Ephesians 4,11 says that God gave teachers to the church. And if he did, it’s okay to call someone a master. As being a master implies having disciples, the disciple-master relationship is entirely appropriate in the kingdom of heaven. But even so, the Christian teacher is, at bottom, a non-teacher.
The master-disciple relationship was thus modified by Jesus. The Christian teacher is not like the scribe coopted by the religious power of the Temple, or like the rabbi who thinks he understands all mysteries. He is more like Jacob, after God touched the nerve of his thigh. Jacob wrestled and even triumphed over God. But only until God touched his thigh.
The strong and invincible master, like Jacob who wrestled with God and won, is the opposite of another kind of master, a second Jacob, who became weak and had his name changed by God. The lame leg of this Jacob is his strength. To transform Jacob into Israel, God does not need to make him stronger; he has to withdraw his strength. Likewise, before being touched by God, the teacher of the Scriptures is wise, but his wisdom is misused. Only the divine touch turns him into someone who remains a teacher, but no longer feels like one, who continues to be wise, but gains a deep awareness of the illegality of all his titles. In short, while in Judaism the rabbi, the master in the strong sense, needed to affirm his wisdom, in the procession of Christ, the master in the weak sense is constituted more by the denial than by the affirmation of what he knows. And the motive for this is not in himself, but in the master of masters.
Throughout the first century, Judea and Galilee boiled with teachers and students of the first kind. The relationship between them was the most important one. It was the very ground, in which Jewish society was built. In the parable of the father who takes new and old things out of his treasure, Jesus showed that, after the establishment of the kingdom of heaven, this relationship underwent a metamorphosis. By an experience like the touch of God in the usurper’s thigh, the master became a father, and his relationship with the Temple was unfolded as that of a family.
The family is the spiritual children of the master in the kingdom of heaven. What does the father do to his children? The parable says that he takes new and old stuff not from others, but from himself. When touched by God, the new teacher acquires the precious words of the Old and the New Testaments. They cease to be mere teachings, and become food to him. They cease to be alien and start to be his own, that is, his subjective experience, the word of God written not on tablets of stone, but of flesh.
And what does the father do with the things he pulls from his priceless deposit? The parable does not say. Jesus chose to describe by silence what is beyond words. Thus he showed the true teacher is not loquacious. He knows that silence is as important as words. Silence is like the space between the wires that make up the upholstery or between the cells that form the organism. As a body includes the space between its pieces, the teaching of a true master is made up by his silence and his words. Jesus showed this by omitting that the father of the parable gives what he takes out of his treasure. Thus the action that most defines the new teacher remained implied, that is, his giving. That sort of giving cannot be rendered, for love is ineffable. So it was omitted, transferred to the air to become an exhalation, the spiritual essence of love of the teacher learned in the kingdom of heaven.
In the light of the short parable of Matthew 13,52, the commission to make disciples is shown to be a unique work, but not the work of a unique human master. Many scribes carry it out jointly, since there is no jealousy or exclusiveness in the kingdom of heaven. As Jesus performed miracles and gave his followers the power to perform them, as he preached and sent his disciples to preach, took care of people, and commanded us to take care of them, so also Jesus taught and sent his disciples to teach the nations. He instituted a shared and ongoing discipleship. A discipleship that only those whose nerve was touched by God are able to exert.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Os Franciscos (3): Cristianismo Secular
A expressão cristianismo secular é, no mínimo, ambígua. Temos de nos esforçar para conceber algo real que possa corresponder a ela. Perguntamo-nos: será coisa de padre moderno? Mundo com Cristo e sem padre? Mas que espécie de mundo é essa? Confessemos a insuficiência da nossa imaginação para responder tais perguntas.
Lennon cantou um mundo sem países e sem religião. Tentemos imaginar, mais simplesmente, o que seja um cristianismo secular. O que seja um mundo com o evangelho, mas sem igrejas e organizações clericais. Um mundo em que a fé não se manifeste como hierarquia e poder, um mundo que a Tolerância governe a tal ponto que crer ou não crer, ser cristão ou ateu, já não seja motivo de discórdia. Enfim, um mundo em que o cristão aceite o ateísmo como expressão sincera de consciência, e o ateu, o cristianismo como um dos pontos culminantes da espiritualidade humana.
Minha experiência da arte não vai muito longe. Não passo de um escutador frequente de música e de um leitor de verso e de prosa. Mas, se encontro na arte uma obra que expressa, mais do que outras, a utopia do cristianismo secular é a de Chico Buarque de Hollanda. Quantas vezes, ao ouvir Chico, sinto tremer a corda do coração que vibra quando leio a Bíblia! Desvaneço e admiro-me dessa experiência, mas não tenho como a negar.
Será porque Deus está em tantas estrofes das canções de Chico? Porque o amor ao próximo e a sensibilidade para com os desfavorecidos pulsam em partes ainda mais numerosas delas? Desconfio que sim. Deus não precisa ser mencionado, de certo jeito ou do jeito certo, para que a corda da piedade vibre no nosso coração. Não precisa ser citado do jeito eclesiástico, clerical, ritual ou teológico. Basta a boca o invocar para que o coração se derreta no calor da sua presença.
No samba “Pedro pedreiro”, composto por Chico na tenra idade, já se nota o divino, o transcendente: “Pedro não sabe/ Mas talvez no fundo/ Espere alguma coisa/ Mais linda que o mundo/ Maior do que o mar”. E que dizer de “Deus lhe pague”? Nela, o Criador não só está no refrão como lhe é suplicada paga por tudo. Por coisas boas, como “a piada no bar e o futebol pra aplaudir”, e pelas ruins, como “o crime pra comentar”. O jeito de suplicar também muda. Ora o poeta pede com piedade, ora sem ela. Sobra até para o sarcasmo: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague”. Nunca pede, porém, sem dor.
Esse modo de compor não é gratuito, nem casual. Chico recebeu educação católica. Foi bastante influenciado pelo pensamento cristão, inclusive tradicionalista, na juventude. Sua mãe, Maria Amélia, era mulher devota. Esses dados ajudam a entender a presença cristã em Chico e o seu modo sempre muito próprio de refleti-la. Ajuda a entender, também, que há um cristianismo cultural fortemente secularizado que a música reflete.
Mas o que há de próprio, nesse cristianismo, além do conteúdo secular, é a multidão de aspectos que o manifestam. Chico retrata a vida, e a vida é concreta. Por isso, seu cristianismo, se houver motivo para encontrá-lo nas suas canções, é também concreto. E, talvez mais do que outros setores da existência, a fé é o território em que o homem se mostra contraditório, partido. O homem crê e não crê. Confia em Deus, mas se rende a crendices, como na canção em que Chico e Toquinho homenageiam Vinícius de Morais e que termina com “Vinícius, mestre, saravá!”
A contradição inerente ao cristianismo secular tem o seu clímax em “Gente humilde”, poema de Chico e Vinícius que recebeu música de Garoto. Leonardo Boff chamou-o “a mais comovente e perfeita” canção de uma obra “que é tão fecunda que desafia vários saberes” (BOFF, Leonardo. “Chico Buarque e a cultura humanista e cristã”. In Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. pp. 89, 94). Não sei se é a mais perfeita música, mas é das mais ricas em contrastes. Retrata a gente simples que anda a pé por não ter dinheiro para a condução, e o poeta “muito bem vindo de trem de algum lugar”. No entanto, embora vá muito bem, o poeta sente-se menos do que essa gente. Inveja-a por ir “em frente/ sem nem ter com quem contar”. Mas o maior de todos os contrastes, reserva-o o final: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente”.
Assim vai Chico, espalhando a seu modo coisas que, quando não são cristãs, sente-se que foram incensadas pelo evangelho e cheiram ao cristianismo sem cheirar a sacristia. Não se poderia esperar ortodoxia, nem muita reverência desse profeta da fé e da incerteza. Isso está claro. Mas ele é mais irreverente consigo do que com Deus. Em “Partido alto”, o poeta descreve a sua criação por Deus: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/ Pele e osso simplesmente, quase sem recheio/ Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/ Dou pernada três por quatro e nem me despenteio”. Não entende como esse não-ser pôde ser criado e posto num canto tão peculiar do mundo. Explica-o à sua moda: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ Pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro/ Mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ Na barriga da miséria, nasci brasileiro/ Eu sou do Rio de Janeiro”. Nem conto o que mais Chico diz nessa canção...
A irreverência o segue, é verdade. Em “O que será”, o Padre Eterno dá sua bênção à sociedade utópica, “aquele inferno”, “o que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
Tantas facetas da fé e da descrença, do sagrado e do profano, da virtude e do pecado resistem a todo esforço de unificação. O cristianismo secular de Chico não parece ser um, mas mil. Ou, se for um, é um mosaico feito de mil pedacinhos. A imagem do mosaico parece boa, mas, se for mesmo adequada, onde se pode ver o contorno do cristianismo formado com os pedacinhos? Alguma canção o expressa melhor do que outras? “Salmo”, que Chico compôs com Edu Lobo, é uma das candidatas. Está tão crivada de antíteses que parece um poema barroco: “Meu corpo está sofrendo/ É grande o meu torpor/ Eu vou enlanguescendo/ Rendo-vos mil graças, meu Senhor”. E em outra estrofe: “Meu Deus abri-me as portas/ Da eterna servidão/ Lançai-me vossa cólera/ No templo de Sião”.
Mas há uma canção que talvez exprima o mosaico de modo ainda mais perfeito que “Salmo”. É “Umas e outras”, obra de juventude em que sensibilidade religiosa e consciência social contraem núpcias. A canção retrata uma freira e uma prostituta não como duas pessoas, mas como uma só. Enfim, como opostos que, na sua oposição, são um.
“Se uma nunca tem sorriso/ É pra melhor se reservar/ E diz que espera o paraíso/ E a hora de desabafar/ A vida é feita de um rosário/ Que custa tanto a se acabar/ Por isso às vezes ela para/ E senta um pouco pra chorar”. Essa é a freira. A meretriz é a sua antítese: “Se a outra não tem paraíso/ Não dá muita importância, não/ Pois já forjou o seu sorriso/ E fez do mesmo profissão/ A vida é sempre aquela dança/ Onde não se escolhe o par/ Por isso às vezes ela cansa/ E senta um pouco pra chorar”.
Mas nosso artista é tão concreto! Não se contenta em pintar as duas. Detém-se num único dia da vida da religiosa: “Que dia! Nossa, pra que tanta conta/ Já perdi a conta de tanto rezar”. E num dia da vida da outra: “Que dia! Puxa, que vida danada/ Tem tanta calçada pra se caminhar”. Um dia nos proporciona visão mais aguda do que um perfil. Mas nem um dia permite focar plenamente o contraste entre as mulheres. Por isso, o poeta detém-se num só instante do dia delas: aquele em que as duas se encontram. “E toda santa madrugada/ Quando uma já sonhou com Deus/ E a outra, triste namorada/ Coitada, já deitou com os seus/ O acaso faz com que essas duas/ Que a sorte sempre separou/ Se cruzem pela mesma rua/ Olhando-se com a mesma dor”.
O mosaico se forma na última estrofe. Cada mulher não é uma, mas várias. Várias freiras, várias prostitutas. Por isso, a música se chama “Umas e outras”. Mas tantas mulheres são uma na dor que sentem. A dor unifica o diverso. Cola os pedaços do mosaico. O cristianismo vário e concreto se faz um, no lugar geométrico do sofrimento, onde todos se dão as mãos.
Mas a mesma dor não se cura com o mesmo remédio? E, se assim é, a dor dos opostos inconciliáveis não se alivia com o mesmo Deus? São as perguntas que lemos no mosaico. O cristianismo secular conduz até elas. Não oferece a resposta, é verdade. Esta fica para um cristianismo mais essencial ou para a utopia política. Mas faz certamente a pergunta a respeito da dor. Tira-a até mesmo do átimo, em que dois olhares se encontram na rua.
Sim, uma dor tão igual se deve curar com remédio igual. Mas que remédio? A sociedade utópica? Essa foi a resposta de Chico à pergunta, nos anos 70. Deus foi a resposta anterior. Mas, se a dor é igual, e o remédio, o mesmo, dou-me o direito de perguntar se a resposta do moço e a do homem feito não são também uma só.
Lennon cantou um mundo sem países e sem religião. Tentemos imaginar, mais simplesmente, o que seja um cristianismo secular. O que seja um mundo com o evangelho, mas sem igrejas e organizações clericais. Um mundo em que a fé não se manifeste como hierarquia e poder, um mundo que a Tolerância governe a tal ponto que crer ou não crer, ser cristão ou ateu, já não seja motivo de discórdia. Enfim, um mundo em que o cristão aceite o ateísmo como expressão sincera de consciência, e o ateu, o cristianismo como um dos pontos culminantes da espiritualidade humana.
Minha experiência da arte não vai muito longe. Não passo de um escutador frequente de música e de um leitor de verso e de prosa. Mas, se encontro na arte uma obra que expressa, mais do que outras, a utopia do cristianismo secular é a de Chico Buarque de Hollanda. Quantas vezes, ao ouvir Chico, sinto tremer a corda do coração que vibra quando leio a Bíblia! Desvaneço e admiro-me dessa experiência, mas não tenho como a negar.
Será porque Deus está em tantas estrofes das canções de Chico? Porque o amor ao próximo e a sensibilidade para com os desfavorecidos pulsam em partes ainda mais numerosas delas? Desconfio que sim. Deus não precisa ser mencionado, de certo jeito ou do jeito certo, para que a corda da piedade vibre no nosso coração. Não precisa ser citado do jeito eclesiástico, clerical, ritual ou teológico. Basta a boca o invocar para que o coração se derreta no calor da sua presença.
No samba “Pedro pedreiro”, composto por Chico na tenra idade, já se nota o divino, o transcendente: “Pedro não sabe/ Mas talvez no fundo/ Espere alguma coisa/ Mais linda que o mundo/ Maior do que o mar”. E que dizer de “Deus lhe pague”? Nela, o Criador não só está no refrão como lhe é suplicada paga por tudo. Por coisas boas, como “a piada no bar e o futebol pra aplaudir”, e pelas ruins, como “o crime pra comentar”. O jeito de suplicar também muda. Ora o poeta pede com piedade, ora sem ela. Sobra até para o sarcasmo: “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague”. Nunca pede, porém, sem dor.
Esse modo de compor não é gratuito, nem casual. Chico recebeu educação católica. Foi bastante influenciado pelo pensamento cristão, inclusive tradicionalista, na juventude. Sua mãe, Maria Amélia, era mulher devota. Esses dados ajudam a entender a presença cristã em Chico e o seu modo sempre muito próprio de refleti-la. Ajuda a entender, também, que há um cristianismo cultural fortemente secularizado que a música reflete.
Mas o que há de próprio, nesse cristianismo, além do conteúdo secular, é a multidão de aspectos que o manifestam. Chico retrata a vida, e a vida é concreta. Por isso, seu cristianismo, se houver motivo para encontrá-lo nas suas canções, é também concreto. E, talvez mais do que outros setores da existência, a fé é o território em que o homem se mostra contraditório, partido. O homem crê e não crê. Confia em Deus, mas se rende a crendices, como na canção em que Chico e Toquinho homenageiam Vinícius de Morais e que termina com “Vinícius, mestre, saravá!”
A contradição inerente ao cristianismo secular tem o seu clímax em “Gente humilde”, poema de Chico e Vinícius que recebeu música de Garoto. Leonardo Boff chamou-o “a mais comovente e perfeita” canção de uma obra “que é tão fecunda que desafia vários saberes” (BOFF, Leonardo. “Chico Buarque e a cultura humanista e cristã”. In Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. pp. 89, 94). Não sei se é a mais perfeita música, mas é das mais ricas em contrastes. Retrata a gente simples que anda a pé por não ter dinheiro para a condução, e o poeta “muito bem vindo de trem de algum lugar”. No entanto, embora vá muito bem, o poeta sente-se menos do que essa gente. Inveja-a por ir “em frente/ sem nem ter com quem contar”. Mas o maior de todos os contrastes, reserva-o o final: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente”.
Assim vai Chico, espalhando a seu modo coisas que, quando não são cristãs, sente-se que foram incensadas pelo evangelho e cheiram ao cristianismo sem cheirar a sacristia. Não se poderia esperar ortodoxia, nem muita reverência desse profeta da fé e da incerteza. Isso está claro. Mas ele é mais irreverente consigo do que com Deus. Em “Partido alto”, o poeta descreve a sua criação por Deus: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/ Pele e osso simplesmente, quase sem recheio/ Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/ Dou pernada três por quatro e nem me despenteio”. Não entende como esse não-ser pôde ser criado e posto num canto tão peculiar do mundo. Explica-o à sua moda: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ Pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro/ Mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ Na barriga da miséria, nasci brasileiro/ Eu sou do Rio de Janeiro”. Nem conto o que mais Chico diz nessa canção...
A irreverência o segue, é verdade. Em “O que será”, o Padre Eterno dá sua bênção à sociedade utópica, “aquele inferno”, “o que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
Tantas facetas da fé e da descrença, do sagrado e do profano, da virtude e do pecado resistem a todo esforço de unificação. O cristianismo secular de Chico não parece ser um, mas mil. Ou, se for um, é um mosaico feito de mil pedacinhos. A imagem do mosaico parece boa, mas, se for mesmo adequada, onde se pode ver o contorno do cristianismo formado com os pedacinhos? Alguma canção o expressa melhor do que outras? “Salmo”, que Chico compôs com Edu Lobo, é uma das candidatas. Está tão crivada de antíteses que parece um poema barroco: “Meu corpo está sofrendo/ É grande o meu torpor/ Eu vou enlanguescendo/ Rendo-vos mil graças, meu Senhor”. E em outra estrofe: “Meu Deus abri-me as portas/ Da eterna servidão/ Lançai-me vossa cólera/ No templo de Sião”.
Mas há uma canção que talvez exprima o mosaico de modo ainda mais perfeito que “Salmo”. É “Umas e outras”, obra de juventude em que sensibilidade religiosa e consciência social contraem núpcias. A canção retrata uma freira e uma prostituta não como duas pessoas, mas como uma só. Enfim, como opostos que, na sua oposição, são um.
“Se uma nunca tem sorriso/ É pra melhor se reservar/ E diz que espera o paraíso/ E a hora de desabafar/ A vida é feita de um rosário/ Que custa tanto a se acabar/ Por isso às vezes ela para/ E senta um pouco pra chorar”. Essa é a freira. A meretriz é a sua antítese: “Se a outra não tem paraíso/ Não dá muita importância, não/ Pois já forjou o seu sorriso/ E fez do mesmo profissão/ A vida é sempre aquela dança/ Onde não se escolhe o par/ Por isso às vezes ela cansa/ E senta um pouco pra chorar”.
Mas nosso artista é tão concreto! Não se contenta em pintar as duas. Detém-se num único dia da vida da religiosa: “Que dia! Nossa, pra que tanta conta/ Já perdi a conta de tanto rezar”. E num dia da vida da outra: “Que dia! Puxa, que vida danada/ Tem tanta calçada pra se caminhar”. Um dia nos proporciona visão mais aguda do que um perfil. Mas nem um dia permite focar plenamente o contraste entre as mulheres. Por isso, o poeta detém-se num só instante do dia delas: aquele em que as duas se encontram. “E toda santa madrugada/ Quando uma já sonhou com Deus/ E a outra, triste namorada/ Coitada, já deitou com os seus/ O acaso faz com que essas duas/ Que a sorte sempre separou/ Se cruzem pela mesma rua/ Olhando-se com a mesma dor”.
O mosaico se forma na última estrofe. Cada mulher não é uma, mas várias. Várias freiras, várias prostitutas. Por isso, a música se chama “Umas e outras”. Mas tantas mulheres são uma na dor que sentem. A dor unifica o diverso. Cola os pedaços do mosaico. O cristianismo vário e concreto se faz um, no lugar geométrico do sofrimento, onde todos se dão as mãos.
Mas a mesma dor não se cura com o mesmo remédio? E, se assim é, a dor dos opostos inconciliáveis não se alivia com o mesmo Deus? São as perguntas que lemos no mosaico. O cristianismo secular conduz até elas. Não oferece a resposta, é verdade. Esta fica para um cristianismo mais essencial ou para a utopia política. Mas faz certamente a pergunta a respeito da dor. Tira-a até mesmo do átimo, em que dois olhares se encontram na rua.
Sim, uma dor tão igual se deve curar com remédio igual. Mas que remédio? A sociedade utópica? Essa foi a resposta de Chico à pergunta, nos anos 70. Deus foi a resposta anterior. Mas, se a dor é igual, e o remédio, o mesmo, dou-me o direito de perguntar se a resposta do moço e a do homem feito não são também uma só.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
Livre Exame de Romanos (23): As Duas Oliveiras
Romanos 11:32 traz uma declaração exatamente inversa à de 3:23. Enquanto este último verso atesta que “todos pecaram e carecem da glória de Deus”, o capítulo 11 se encerra com a afirmação de que “Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos”. Na estrutura cuidadosamente concebida da Carta aos Romanos, esse não é um pormenor irrelevante. Indica, ao contrário, que, como o pecado se tornou universal, a misericórdia divina também atinge todos os homens.
Simplesmente não é correto enfatizar a condenação geral e não a misericórdia de Deus para com todos. Mais do que isso, a condenação é a situação inicial; a misericórdia, a situação final, na linha do tempo em que Paulo situa a revelação do evangelho. Temos, portanto, motivos para nos perguntarmos se, por vir depois da condenação, a misericórdia não a suplanta e cancela. Mas, para concluir se isso de fato acontece, precisamos considerar primeiro o que Paulo ensina no capítulo 11.Logo no início, ele afirma a distinção existente entre o povo de Deus e Israel. Diz que o primeiro foi preconhecido por Deus (11:2). Sabemos que o que Deus conhece, conhece totalmente. Portanto, não só conhece o seu povo como sabe que ele será salvo. O preconhecimento de Deus implica que o que ele conhece realizar-se-á. Não é o conhecimento do possível, mas do certo. É, por isso, inseparável da predestinação (8:29).
O povo de Deus mencionado em 11:1-2 é, portanto, o conjunto de todos os que haverão de ser salvos. Mas Israel, citado a seguir, não o é. É uma nação igualmente eleita por Deus, pois Paulo diz que os judeus são inimigos quanto ao evangelho e amados quanto à eleição (11:28). Porém, a eleição deles é distinta da que a igreja cristã recebe. Visa a cumprir o propósito secular de Deus, ao passo que a igreja cumpre o seu propósito espiritual.
Por isso, a eleição dos membros da igreja é chamada da graça (11:5). É formada por pessoas como os sete mil que não curvaram os joelhos a Baal (11:4). O Israel secular, porém, inclui não só os sete mil, mas também aqueles a quem “Deus deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (11:8). Dos quais diz o salmo: “Torne-se-lhes a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos para que não vejam, e fiquem para sempre encurvadas as suas costas” (11:9-10).
Trata-se de grupos bastante distintos, porém entrelaçados. E o que os entrelaça é a vontade de Deus expressa pela palavra eleição. Tanto um como o outro grupo foi eleito por Deus. E, embora se trate de eleições distintas, eles devem conviver harmonicamente por terem sido escolhidos pelo mesmo Deus. O propósito das duas eleições não é entrarem em conflito. Daí o entrelaçamento do povo de Deus com o Israel secular.
A oliveira cultivada é a imagem perfeita disso. Ela não foi plantada, nem veio a existir, no momento em que os gentios foram enxertados. Já existia antes. E, se alguns ramos dessa oliveira foram cortados, é claro que ela não inclui somente a eleição da graça, mas também a da lei.
A oliveira cultivada não é a assembleia dos eleitos, a igreja invisível, universal ou como mais a chamemos. É, antes, a mescla das duas eleições: o Israel histórico, no qual coexistiam judeus de sangue e os eleitos para receberem a graça de Cristo.
Porém, a situação da oliveira mudou, quando os ramos incrédulos (judeus) foram cortados, e os crentes gentios, enxertados. Essa mudança separou a eleição da graça da eleição da lei e a relacionou a um terceiro grupo representado pela oliveira brava. As árvores cultivada e selvagem não se tornaram uma só, o que indica que o mundo e a igreja não foram mesclados, como Israel e a igreja antes foram, mas muitos ramos da oliveira brava foram enxertados na cultivada.
A oliveira brava representa uma terceira eleição. Não a eleição da lei, nem a da graça. Mas, se acompanharmos cuidadosamente a narrativa de Gênesis, perceberemos que os gentios mencionados pelas Escrituras descendem dos filhos de Noé, com quem Deus celebrou uma aliança ao dizer: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais [...] Disse também Deus a Noé a seus filhos: Eis que estabeleço a minha aliança convosco e com a vossa descendência” (Gn 9:1-2,8-9).
Quando Deus rejeitou os judeus, a eleição da graça foi separada da lei. Os ramos incrédulos foram cortados da boa oliveira, e os da oliveira brava foram enxertados. Nem por isso, deve reinar a desarmonia entre judeus e cristãos, pois Deus pretende reintroduzir o Israel secular na sua oliveira. Mas a ligação estreita, no tempo atual, da boa oliveira não é mais com os judeus e sim com os descendentes de Noé, ou seja, com o mundo gentio.
Claro: os gentios são idólatras. Por isso, a oliveira cultivada não é assimilada a eles. Eles é que se transformam na boa oliveira. Porém, embora essa ressalva deva ser formulada, a parábola mostra que a eleição da graça é colocada em união com o mundo. A oliveira cultivada passa a receber ramos não cultivados, com todas as suas características selvagens.
Tanto os ramos naturais da oliveira como os que foram enxertados nela e a própria oliveira brava têm a mesma natureza. Todos são oliveiras: o mesmo vegetal, com a mesma essência e a mesma vida. Isso reforça o que temos afirmado, ao longo deste livre exame: que a salvação não consiste na comunicação de uma nova vida ou numa mudança de natureza no crente ou fiel, mas num procedimento legal realizado por Deus em Cristo. Falamos bastante disso, ao tratar do capítulo 4. Não o retomaremos aqui. Mas cabe ressaltar que a parábola das oliveiras reforça esse ponto.
Uma oliveira, três eleições. Deus não atua por meio das obras do homem, a não ser enquanto preparadas por ele próprio para que andássemos nelas (Ef 2:10). A salvação não procede do homem, mas de Deus. Esse é o princípio, a única base na qual Deus salva. Mas, de certa maneira, a parábola das oliveiras nos fala de três experiências de salvação. Uma é a salvação dos que guardam o pacto com Noé; outra, a dos que são da lei; e ainda outra, a da graça.
Se todas são eleições, todas implicam salvação. Quando Deus escolheu os gentios para encherem a terra de homens, seu propósito não era que isso não se cumprisse. A figura das oliveiras mostra que uma não cumpre o papel da outra. A oliveira selvagem cumpre a missão de encher a Terra com a vida humana e temor a Deus. A outra existe para fim diverso: para dar frutos ao agricultor e àqueles com quem ele os compartilha.
Voltamos, assim, ao princípio com que abrimos este texto. Romanos 11 nos fala da misericórdia geral e irrestrita de Deus. Da sua misericórdia universal, que se estende aos judeus e aos gentios. Tanto aos judeus que creem como aos que são cortados, aos gentios enxertados e aos que permanecem na oliveira brava. Fala, enfim, de uma misericórdia que tem várias espécies e que produz resultados diversos, sem deixar de ser sempre misericórdia.
Vejamos o caso dos judeus incrédulos. Paulo afirma que “quanto ao evangelho, [eles] são inimigos por vossa causa; quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas” (11:28). “Porventura tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum” (11:11). Não há propósito na queda dos judeus. Nem eles quiseram cair, nem Deus quis que caíssem. E quem nunca quis que caíssem, um dia, os restaurará: “Virá de Sião o libertador, ele apartará de Jacó as impiedades” (11:26). Essa é a porção de misericórdia de Deus para os judeus incrédulos.
Mas e os gentios, que vivem nos seus pecados e na vacuidade dos seus pensamentos? Eles foram chamados a povoar a Terra com temor a Deus e respeito aos seus semelhantes. Quer Deus que isso se cumpra ou que não se cumpra? O que Deus quer pode ser frustrado? Nas bênçãos inerentes à aliança do povoamento da Terra consiste a misericórdia de Deus para com os gentios.
Porém, a parábola das oliveiras se centra na que representa a igreja, não na outra. Isso significa que a misericórdia de Deus para com o seu povo consiste em dispensar-lhe o seu cuidado como o agricultor cuida da lavoura. Nem os gentios, nem os judeus que foram cortados recebem esse cuidado. Portanto, o cuidado consistente no cultivo é a misericórdia específica e suprema de Deus para com o seu povo, que só é povo enquanto objeto do cuidado divino.
Na salvação daqueles que creem, o que faz a diferença é o que Deus realiza, não a natureza do homem. Podemos ser bons ou maus, fortes ou fracos, inteligentes ou ignorantes: isso importa para outras coisas, não para a salvação. Só o trabalho de Deus salva, só ele torna a oliveira útil para os homens. E esse trabalho consiste em cortar e enxertar. Deus corta a desobediência e enxerta a fé. Mas o faz de maneira tal que os cortados hoje poderão ser enxertados amanhã, e os enxertados poderão ser cortados (11:22-23).
Há um amor que é vizinho do ódio e se transforma nele. Um amor que motiva o crime passional. A misericórdia de Deus é o contrário dele: é a dissipação da ira. É a ira que o amor transfigura e cai sobre o mundo em forma de misericórdia. Deus, que faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a sua chuva sobre justos e injustos, acaso fará descer a sua misericórdia só sobre alguns? Haverá porventura impossível maior do que esse?
A misericórdia estende-se sobre os homens, como o céu cobre a Terra. Nenhuma parte do mundo lhe escapa. E não há nela traço de ira. Como a flor que não tem um só ponto de que se possa dizer: não é belo!, a misericórdia de Deus é isenta do mais leve aspecto do qual se possa afirmar: não é pura bondade!
quarta-feira, 8 de janeiro de 2014
História Hipotética da Igreja (1): As Quatro Narrativas
Muitas passagens do Novo Testamento revelam os atributos da igreja. É o caso de Efésios 5:27, que afirma: “Para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito”. Não há dúvida de que a glória, a santidade e a perfeição mencionadas nesse verso são atributos e ajudam a formar o retrato neotestamentário da igreja.
Porém, precisamos acautelar-nos contra a tendência a construir verdadeiras eclesiologias sobre a base de um ou dois versículos bíblicos. Até porque versos como Efésios 5:27, ao mesmo tempo em que se referem à igreja, são aplicáveis a cada fiel individualmente. Como não são exclusivos do aspecto coletivo de Cristo, ainda que se refiram à igreja, esses versos não a definem propriamente. De modo que, para entender o que a igreja é, precisamos procurar definições que caibam com exclusividade à dimensão coletiva da fé cristã e não também aos cristãos individuais. No Novo Testamento, essas definições sempre aparecem em forma de disjunções, como a que estabelece que a igreja é universal ou local e a que a descreve como o conjunto de todos os que apresentam sinais de fé ou como o contingente mais reduzido dos eleitos de Deus. Nesses dois casos, disjunções são enunciados que se excluem e, por isso, têm de se manifestar em entidades distintas. Por exemplo, o caráter local exclui o universal. Por isso, a igreja local é diferente da universal. Do mesmo modo, as pessoas que participam dos sinais exteriores de fé (inclusive os sacramentos) não são necessariamente os eleitos de Deus.As definições da igreja, no Novo Testamento, estão contidas em disjunções como essas. Mas, se nos fornecem uma descrição mais precisa da igreja, ao mesmo tempo elas geram um problema, pois a cada definição corresponde outra oposta. Por um lado, a igreja é o corpo formado por todos os que creem; por outro lado, é o conjunto dos que participam dos sinais exteriores de fé. Por um lado, ela é universal; por outro, é local. De sorte que a igreja, como o Novo Testamento a define, é antes de tudo uma realidade com aspectos opostos.
E, se precisamos recorrer às disjunções para entender o que a igreja é, precisamos identificá-las também nos acontecimentos para entender a sua história. A História da Igreja é composta por fatos, nos quais a união dos eleitos e dos que apresentam sinais de fé se manifesta, em nível local e universal. Por essa razão, os melhores relatos já escritos a respeito dela valorizam um dos aspectos, em prejuízo dos demais. Ou valorizam os acontecimentos que se repetem em escala universal, em detrimento do local e do particular, ou o local e o particular em detrimento do universal, ou contam a saga dos que ostentam sinais de fé, ou ainda as experiências características da eleição de Deus. Nunca esses vários planos da realidade histórica são apresentados ao mesmo tempo, já que ninguém é capaz de apreender a sua complexidade. Para possuirmos o quadro completo da História, precisamos dispor das descrições complementares e ligá-las de modo a formar um quadro geral.
Pode-se propor que, das quatro dimensões da História Eclesiástica e da limitação de cada autor a uma delas, procedem quatro narrativas básicas, que se tornaram clássicas. São elas a narrativa secular, a católica, a protestante e a ecumênica. A narrativa secular é focada no poder, que costuma se concentrar nas instituições eclesiásticas mais abrangentes. Tende, por isso, à universalização, ou seja, ao princípio da igreja universal. Mas, por ser secular, não valoriza tanto o elemento de fé e o entrelaça frequentemente à política.
A narrativa católica, por sua vez, privilegia a dimensão sacramental da igreja. Sacramentos são sinais visíveis de fé e de participação na graça. A Igreja de Roma e seus historiadores creem que os sacramentos são sete: o Batismo, o Crisma, a Confissão, a Eucaristia, o Casamento, a Ordem e a Unção dos Enfermos. Os protestantes só admitem dois (o Batismo e a Eucaristia) e, por não se concentrarem na dimensão sacramental, sequer os enfatizam como os católicos. Há proporcionalmente mais evangélicos não batizados do que católicos, e a Ceia do Senhor é um acontecimento menos frequente entre os protestantes do que na Igreja de Roma.
A terceira narrativa da História, a protestante, se centra na igreja como corpo constituído pelos eleitos de Deus. Embora reconheçam também a igreja visível, os protestantes tendem a concebê-la como uma reprodução parcial e distorcida da assembleia dos eleitos. A ideia de Reforma, tão essencial ao Protestantismo, supõe a ampla degradação da igreja durante a sua História. É, pois, consequente que essa concepção, ao reconhecer a corrupção, proponha um conceito mais aperfeiçoado, embora obscuro de igreja, que é exatamente o dos eleitos.
Por fim, a quarta narrativa da História da Igreja é a ecumênica. Por aceitar, com base em certos critérios, tanto a perspectiva católica como a protestante, o ecumenismo é às vezes pensado como movimento eclético. Mas não o é verdadeiramente, visto que a ótica ecumênica é específica e não uma soma de outras óticas. Por não somar as crenças e práticas católicas e protestantes, o ecumenismo se define em função de outra coisa, a saber: a complementaridade em relação ao Catolicismo e ao Protestantismo. Ele não concorre com um ou com outro. Por isso, em suas melhores vertentes, o movimento ecumênico não enfatiza a realização de cultos próprios. E, por ser complementar e se desenvolver, em grande parte, depois das outras três, a abordagem ecumênica tende a enfatizar o de que as outras menos tratam, isto é, a experiência de fé sem bandeiras ou dependência para com instituições religiosas, que tende a se manifestar em circunstâncias altamente particulares e absorver as características delas.
Como já pude afirmar, nenhuma História da Igreja deve furtar-se à opção entre essas quatro abordagens. Eleger uma delas e desenvolvê-la é, ao que tudo indica, a melhor maneira de narrar os atos do corpo de Cristo no mundo, já que cabe a indivíduos fazê-lo, e eles não são capazes de desenvolver as quatro perspectivas ao mesmo tempo. Portanto, a virtude de uma História não reside em transcender esse imperativo, mas em admiti-lo e manter consciência profunda dele.
Em vez de narrar os acontecimentos em todas as suas dimensões, a História da Igreja deve primar pela nitidez da opção que realiza por uma delas. Torna-se confusa, quando mistura as dimensões, sem discernir as suas peculiaridades e os limites entre elas. Pior ainda, quando se concentra num atributo, como a glória ou a santidade, incapaz de definir a igreja, por não refletir os aspectos disjuntivos dela. É o caso das Histórias de cunho idealista, que tratam da igreja como entidade mais ou menos infalível.
Nos textos seguintes, discorrerei sobre uma só faceta da História da Igreja Cristã, mas uma que me parece fundamental, a saber: a dos eventos de alcance mais ou menos local que refletem a experiência de fé com a menor dependência possível das grandes instituições eclesiásticas. Isso significará privilegiar o dado local em detrimento dos demais, não por os considerar indignos, mas em respeito à limitação já apontada.
Porém, o imperativo da apresentação de um aspecto disjuntivo da Igreja, em prejuízo dos demais, contribui, de certa maneira, para tornar a narrativa menos certa e mais hipotética. A consciência, profunda e incômoda, de narrar uma face dos acontecimentos reveste-a de inevitável grau de subjetividade. Torna-a fruto de uma opção do autor, da sua identificação com um olhar e uma ótica, ao mesmo tempo em que exprime fatos locais e circunscritos. Afasta, enfim, a narrativa do velho figurino de retrato de em desenrolar geral de fatos, de um bird's eye view, aproximando-a de uma hipótese sobre fatos muito mais circunscritos. Daí o nome da série que se inicia.
Mas a série leva esse nome ainda por outra razão: porque é uma história da igreja através dos textos. Os acontecimentos locais, pontuais, a serem contados, serão extraídos de textos que os espelham de modo exemplar e que fixaram uma interpretação significativa deles. Assim, no próximo texto, tratarei das divisões na igreja em Corinto, com base no olhar que Clemente de Roma lhes dirigiu ao escrever sua epístola aos cristãos daquela cidade. Esse é somente um exemplo. Outros se seguirão, ressaltando o caráter hipotético e interpretativo, mais do que o cunho de exposição objetiva de fatos, que pretendo imprimir a esta série.
sábado, 4 de janeiro de 2014
Deus é Pai (4): O Atentado
Se o princípio da religião é a ideia do pai celeste, é natural indagarmos por que existem tantos deuses, tantos olimpos e panteões. Embora a religião seja, antes de tudo, mistério, é necessário responder, de algum modo, essa indagação para continuar a sustentar a interpretação até aqui defendida sobre o sentido dela.
A resposta que vislumbramos passa pela consciência de que o conhecimento que o homem tem de seu pai terreno é sempre ambíguo. Envolve, de um lado, a gratidão pela proteção que o pai lhe dispensa. Por outro lado, na maior parte dos grupos neolíticos e das sociedades históricas, a figura paterna era a do patriarca que impõe sua vontade ao clã, não raro com base na força. E, se assim era, necessário se faz que as religiões impliquem, ao mesmo tempo, a afirmação e a negação do pai. O politeísmo só pode ser entendido a partir dessa ambiguidade. O pai é um só, mas a religião, como reflexo imperfeito de relações humanas, não tem só necessidade de o afirmar, mas também de o negar. O pai que ela conhece é, ao mesmo tempo, venerável e odioso. Enquanto venerável, ela o afirma; enquanto odioso, ela o nega.
Mas, se Deus é pai, não é possível negá-lo com toda a força do desejo humano, a não ser afirmando outro pai. Nasce daí o impulso politeísta inerente à religião. Após uma das mais vastas pesquisas já empreendidas sobre tema histórico ou científico, antropólogos e arqueólogos tendem a considerar que não é possível estabelecer se o monoteísmo surgiu antes do politeísmo ou o contrário. Ideias e ritos monoteístas existiram ao lado de outros politeístas, desde os primórdios da religião, de modo que não é possível afirmar a antecedência de uns ou de outros.
Mas, se a questão sobre a precedência no tempo não pode ser decidida a favor do monoteísmo ou do politeísmo, a situação é diferente no tocante ao sentido de um e de outro grupo de religiões. Do ponto de vista hermenêutico, o monoteísmo deve ser considerado mais fundamental que o politeísmo. Por isso, o princípio fundador deste último deve ter derivado do primeiro, o que equivale a dizer que os deuses são reproduções modificadas do único Deus. São múltiplos pais que o horror ao pai terreno fez surgir.
Vejamos se essa derivação pode ser comprovada no interior de uma religião específica. Tomarei o politeísmo grecorromano como exemplo, mas a mesma comprovação pode ser tentada e talvez levada a bom termo em outros cultos.
A mitologia grega afirma que, antes do nascimento do mundo, existia o Caos, a mistura dos elementos. Pela atuação de uma força estranha, esses elementos foram separados. Surgiram o Céu estrelado, a Terra, os Mares revoltos e o Ar que a luz atravessa.
Urano é o Céu, o mais velho de todos os deuses. Cibele ou Gaia é a Terra, sua companheira, de quem Urano teve muitos filhos. Esses primeiros deuses distinguem-se por não serem antropomórficos (não terem forma humana). São simplesmente o Céu e a Terra físicos que conhecemos.
Esses dados fazem pensar se as tradições sobre Urano, Cibele e seus filhos são fruto de uma concepção teológica distinta da religião olímpica (de Zeus e dos deuses). Sabe-se que, quando a tradição teológica do Olimpo se constituiu, Urano, Cibele e seus filhos Titã e Cronos perderam o papel de deuses supremos, que haviam possuído. Essa revolução é representada no mito da guerra entre eles e os deuses olímpicos.
O mito se encontra na Teogonia, de Hesíodo. Nele, Urano cobre a Terra todas as noites, mistura-se assim com ela, leva-a a conceber e a dar à luz filhos. Porém, por odiar os seus filhos, Urano aprisiona alguns deles no Tártaro, o seio da Terra. Tomada de dor por esse ato, Gaia, a mãe deles, forja uma foice e insta seus filhos a castrarem Urano. Todos se recusaram, com exceção de Cronos, que embosca o próprio pai, corta-lhe os testículos com a foice e os lança ao mar.
Esse não é o único caso de revolta contra os primeiros deuses, na mitologia grecorromana. Cronos, filho de Urano passa a devorar os próprios filhos, desde que um oráculo afirma que um deles haveria de derrubá-lo. Mas, como Gaia se indignara com os maus tratos de Urano a seus filhos, Reia, esposa de Cronos, enche-se de ira pelos infanticídios de seu marido. Mediante um ardil, ela esconde três de seus filhos com Cronos (Zeus, Hades e Poseidon), na ilha de Creta. Depois de crescerem, eles se levantam contra o pai, fazem-lhe guerra e o destituem, juntamente com os outros deuses pré-olímpicos. Com essa derrota de Urano e Cronos, o Céu nunca mais pôde unir-se à Terra. Foi separado dela para sempre. Zeus foi habitar no Olimpo, localizado no Céu, Hades assumiu o governo da Terra, e Poseidon, o do Mar.
Esse mito fundador da religião grecorromana reveste-se de ainda maior interesse, quando nos damos conta de que Urano é o Deus celeste dos gregos, a mais perfeita representação do Deus único. É, pois, o deus que melhor encarna o papel paternal em todas as religiões politeístas. Por isso, o mito da sua destituição não revela um dado qualquer da religião, mas um absolutamente essencial.
Duas linhagens, duas dinastias divinas reinam, sucessivamente, sobre o Universo. Porém, a de Urano é derrotada e destituída pela de Zeus e seus irmãos. A cada uma dessas dinastias corresponde uma religião: a primeira é a religião antiga, a outra, a dos mitos antropomórficos que a sucedem. O mito fundador do antropomorfismo explica, exatamente, a substituição de uma pela outra.
No centro da religião antiga, está Urano, o Deus celeste, ancestral primeiro dos deuses e senhor de tudo o que existe. Por que não dizer Urano, figura do Deus único? Em quase todas as religiões, foi descoberta a figura de um Deus supremo, que não é adorado, nem hostilizado. Na mitologia grega, porém, Urano e os Titãs não só não recebem culto como são humilhados e destituídos.
O ódio e a guerra entre os deuses indicam que a religião mais recente é uma revolta contra a antiga, uma rebelião contra o reinado de Urano, que como os outros deuses de sua geração não se interessava pelos assuntos humanos. É provável que esse desinteresse tenha sido usado, pelos antigos gregos, como justificativa para a rebelião que levaram a efeito contra a adoração pré-olímpica. Tão diferente é o sentimento dos deuses olímpicos para com os homens que assumem frequentemente formas e apresentam características humanas.
A injustiça dos atos de Urano e Cronos contra seus filhos contrapõe-se à justiça da reação destes, o que mostra que o mito da destituição foi composto por adeptos da religião mais recente e antropomórfica. Assim, uma ética particular coroa a revolta, cujos líderes não apenas triunfam, mas se revelam mais justos.
No mito da destituição, a relação entre pai e filho é essencialmente problemática. Odeiam-se e, por isso, se opõem. Contudo, os pais são os algozes, que infligem sofrimento à sua prole. Seus filhos são vítimas, que se defendem por meio da violência. Assim, a semelhança e a proteção muito maior dispensada pelos deuses antropomórficos aos humanos evolui para a incriminação dos deuses antigos.
No fundo, a destituição de Urano e Cronos por Zeus e seus irmãos é a destituição da religião do Deus celeste, pelos adeptos da antropomórfica. Deus é destronado, substituído pelo novo panteão olímpico. E, se a religião grecorromana constitui um momento especialmente relevante na História, é preciso concluir que o politeísmo se funda na revolta contra o Deus único.
Todo um feixe de relações familiares novas surge com a remoção da religião antiga. Os deuses pré-olímpicos tiveram numerosos filhos, porém todos das mesmas deusas. A concepção de família que lhes corresponde é, pois, a monogâmica. Após a destituição deles, os deuses olímpicos, por terem formas e sentimentos humanos, passam a semear a natureza divina, no ventre de mil mulheres. Espalham-na, assim, por toda a Terra. E dessa semeadura nascem outros tantos deuses e herois. Pode-se, pois, concluir que a libertação do jugo dos antigos deuses introduz uma forte liberação dos costumes.
Urano é pai de Cronos, dos ciclopes, dos hecatônquiros e dos titãs. Cronos é pai de Zeus, de Hades e de Poseidon. É também pai de Atena, Apolo, Ártemis, Hermes, Dioniso, Hércules. Em suma, Urano é ancestral direto ou indireto de quase todo o panteão grego. O panteão antigo e o novo formam uma só árvore genealógica, constituem uma só família, encabeçada pelo Deus celeste. Porém, essa família estruturada pela relação fundamental com o pai surge do mais amplo afrouxamento dos costumes.
Freud colocou o parricídio à raiz de todas as religiões. Para isso baseou-se, em grande medida, na trama de Édipo rei. Porém, na mitologia grecorromana, os deuses atentam contra seus pais, não os matam. O propósito de se defender diferencia os atos de Zeus e seus irmãos de um parricídio doloso. O assassinato de Laio por Édipo, na tragédia de Sófocles tão utilizada por Freud, também. Édipo tampouco tem a intenção de assassinar o seu pai.
Mas, mesmo sem parricídios, o mito fundador grego permite-nos perguntar se as religiões não são mecanismos de destituição violenta do Deus celeste. Se o método de investigação com base na experiência fundadora se reveste de alguma eficácia, no caso grego ela indica que a religião antropomórfica tem o sentido de um atentado contra o Deus supremo. E, se o tem, por que as formas menos aperfeiçoadas de politeísmo não poderiam ter o mesmo sentido?
O atentado contra o pai não se restringe à religião grecorromana. Está em muitos outros sistemas de crenças. Algumas vezes, a violência contra o Deus celeste é explícita. Outras vezes, assume a forma dissimulada do sacrifício de um ser colocado em lugar dele. Mas em muitas ocasiões ela está presente. Perguntamos por que não pode funcionar como princípio explicativo de todo o politeísmo.
A resposta que vislumbramos passa pela consciência de que o conhecimento que o homem tem de seu pai terreno é sempre ambíguo. Envolve, de um lado, a gratidão pela proteção que o pai lhe dispensa. Por outro lado, na maior parte dos grupos neolíticos e das sociedades históricas, a figura paterna era a do patriarca que impõe sua vontade ao clã, não raro com base na força. E, se assim era, necessário se faz que as religiões impliquem, ao mesmo tempo, a afirmação e a negação do pai. O politeísmo só pode ser entendido a partir dessa ambiguidade. O pai é um só, mas a religião, como reflexo imperfeito de relações humanas, não tem só necessidade de o afirmar, mas também de o negar. O pai que ela conhece é, ao mesmo tempo, venerável e odioso. Enquanto venerável, ela o afirma; enquanto odioso, ela o nega.
Mas, se Deus é pai, não é possível negá-lo com toda a força do desejo humano, a não ser afirmando outro pai. Nasce daí o impulso politeísta inerente à religião. Após uma das mais vastas pesquisas já empreendidas sobre tema histórico ou científico, antropólogos e arqueólogos tendem a considerar que não é possível estabelecer se o monoteísmo surgiu antes do politeísmo ou o contrário. Ideias e ritos monoteístas existiram ao lado de outros politeístas, desde os primórdios da religião, de modo que não é possível afirmar a antecedência de uns ou de outros.
Mas, se a questão sobre a precedência no tempo não pode ser decidida a favor do monoteísmo ou do politeísmo, a situação é diferente no tocante ao sentido de um e de outro grupo de religiões. Do ponto de vista hermenêutico, o monoteísmo deve ser considerado mais fundamental que o politeísmo. Por isso, o princípio fundador deste último deve ter derivado do primeiro, o que equivale a dizer que os deuses são reproduções modificadas do único Deus. São múltiplos pais que o horror ao pai terreno fez surgir.
Vejamos se essa derivação pode ser comprovada no interior de uma religião específica. Tomarei o politeísmo grecorromano como exemplo, mas a mesma comprovação pode ser tentada e talvez levada a bom termo em outros cultos.
A mitologia grega afirma que, antes do nascimento do mundo, existia o Caos, a mistura dos elementos. Pela atuação de uma força estranha, esses elementos foram separados. Surgiram o Céu estrelado, a Terra, os Mares revoltos e o Ar que a luz atravessa.
Urano é o Céu, o mais velho de todos os deuses. Cibele ou Gaia é a Terra, sua companheira, de quem Urano teve muitos filhos. Esses primeiros deuses distinguem-se por não serem antropomórficos (não terem forma humana). São simplesmente o Céu e a Terra físicos que conhecemos.
Esses dados fazem pensar se as tradições sobre Urano, Cibele e seus filhos são fruto de uma concepção teológica distinta da religião olímpica (de Zeus e dos deuses). Sabe-se que, quando a tradição teológica do Olimpo se constituiu, Urano, Cibele e seus filhos Titã e Cronos perderam o papel de deuses supremos, que haviam possuído. Essa revolução é representada no mito da guerra entre eles e os deuses olímpicos.
O mito se encontra na Teogonia, de Hesíodo. Nele, Urano cobre a Terra todas as noites, mistura-se assim com ela, leva-a a conceber e a dar à luz filhos. Porém, por odiar os seus filhos, Urano aprisiona alguns deles no Tártaro, o seio da Terra. Tomada de dor por esse ato, Gaia, a mãe deles, forja uma foice e insta seus filhos a castrarem Urano. Todos se recusaram, com exceção de Cronos, que embosca o próprio pai, corta-lhe os testículos com a foice e os lança ao mar.
Esse não é o único caso de revolta contra os primeiros deuses, na mitologia grecorromana. Cronos, filho de Urano passa a devorar os próprios filhos, desde que um oráculo afirma que um deles haveria de derrubá-lo. Mas, como Gaia se indignara com os maus tratos de Urano a seus filhos, Reia, esposa de Cronos, enche-se de ira pelos infanticídios de seu marido. Mediante um ardil, ela esconde três de seus filhos com Cronos (Zeus, Hades e Poseidon), na ilha de Creta. Depois de crescerem, eles se levantam contra o pai, fazem-lhe guerra e o destituem, juntamente com os outros deuses pré-olímpicos. Com essa derrota de Urano e Cronos, o Céu nunca mais pôde unir-se à Terra. Foi separado dela para sempre. Zeus foi habitar no Olimpo, localizado no Céu, Hades assumiu o governo da Terra, e Poseidon, o do Mar.
Esse mito fundador da religião grecorromana reveste-se de ainda maior interesse, quando nos damos conta de que Urano é o Deus celeste dos gregos, a mais perfeita representação do Deus único. É, pois, o deus que melhor encarna o papel paternal em todas as religiões politeístas. Por isso, o mito da sua destituição não revela um dado qualquer da religião, mas um absolutamente essencial.
Duas linhagens, duas dinastias divinas reinam, sucessivamente, sobre o Universo. Porém, a de Urano é derrotada e destituída pela de Zeus e seus irmãos. A cada uma dessas dinastias corresponde uma religião: a primeira é a religião antiga, a outra, a dos mitos antropomórficos que a sucedem. O mito fundador do antropomorfismo explica, exatamente, a substituição de uma pela outra.
No centro da religião antiga, está Urano, o Deus celeste, ancestral primeiro dos deuses e senhor de tudo o que existe. Por que não dizer Urano, figura do Deus único? Em quase todas as religiões, foi descoberta a figura de um Deus supremo, que não é adorado, nem hostilizado. Na mitologia grega, porém, Urano e os Titãs não só não recebem culto como são humilhados e destituídos.
O ódio e a guerra entre os deuses indicam que a religião mais recente é uma revolta contra a antiga, uma rebelião contra o reinado de Urano, que como os outros deuses de sua geração não se interessava pelos assuntos humanos. É provável que esse desinteresse tenha sido usado, pelos antigos gregos, como justificativa para a rebelião que levaram a efeito contra a adoração pré-olímpica. Tão diferente é o sentimento dos deuses olímpicos para com os homens que assumem frequentemente formas e apresentam características humanas.
A injustiça dos atos de Urano e Cronos contra seus filhos contrapõe-se à justiça da reação destes, o que mostra que o mito da destituição foi composto por adeptos da religião mais recente e antropomórfica. Assim, uma ética particular coroa a revolta, cujos líderes não apenas triunfam, mas se revelam mais justos.
No mito da destituição, a relação entre pai e filho é essencialmente problemática. Odeiam-se e, por isso, se opõem. Contudo, os pais são os algozes, que infligem sofrimento à sua prole. Seus filhos são vítimas, que se defendem por meio da violência. Assim, a semelhança e a proteção muito maior dispensada pelos deuses antropomórficos aos humanos evolui para a incriminação dos deuses antigos.
No fundo, a destituição de Urano e Cronos por Zeus e seus irmãos é a destituição da religião do Deus celeste, pelos adeptos da antropomórfica. Deus é destronado, substituído pelo novo panteão olímpico. E, se a religião grecorromana constitui um momento especialmente relevante na História, é preciso concluir que o politeísmo se funda na revolta contra o Deus único.
Todo um feixe de relações familiares novas surge com a remoção da religião antiga. Os deuses pré-olímpicos tiveram numerosos filhos, porém todos das mesmas deusas. A concepção de família que lhes corresponde é, pois, a monogâmica. Após a destituição deles, os deuses olímpicos, por terem formas e sentimentos humanos, passam a semear a natureza divina, no ventre de mil mulheres. Espalham-na, assim, por toda a Terra. E dessa semeadura nascem outros tantos deuses e herois. Pode-se, pois, concluir que a libertação do jugo dos antigos deuses introduz uma forte liberação dos costumes.
Urano é pai de Cronos, dos ciclopes, dos hecatônquiros e dos titãs. Cronos é pai de Zeus, de Hades e de Poseidon. É também pai de Atena, Apolo, Ártemis, Hermes, Dioniso, Hércules. Em suma, Urano é ancestral direto ou indireto de quase todo o panteão grego. O panteão antigo e o novo formam uma só árvore genealógica, constituem uma só família, encabeçada pelo Deus celeste. Porém, essa família estruturada pela relação fundamental com o pai surge do mais amplo afrouxamento dos costumes.
Freud colocou o parricídio à raiz de todas as religiões. Para isso baseou-se, em grande medida, na trama de Édipo rei. Porém, na mitologia grecorromana, os deuses atentam contra seus pais, não os matam. O propósito de se defender diferencia os atos de Zeus e seus irmãos de um parricídio doloso. O assassinato de Laio por Édipo, na tragédia de Sófocles tão utilizada por Freud, também. Édipo tampouco tem a intenção de assassinar o seu pai.
Mas, mesmo sem parricídios, o mito fundador grego permite-nos perguntar se as religiões não são mecanismos de destituição violenta do Deus celeste. Se o método de investigação com base na experiência fundadora se reveste de alguma eficácia, no caso grego ela indica que a religião antropomórfica tem o sentido de um atentado contra o Deus supremo. E, se o tem, por que as formas menos aperfeiçoadas de politeísmo não poderiam ter o mesmo sentido?
O atentado contra o pai não se restringe à religião grecorromana. Está em muitos outros sistemas de crenças. Algumas vezes, a violência contra o Deus celeste é explícita. Outras vezes, assume a forma dissimulada do sacrifício de um ser colocado em lugar dele. Mas em muitas ocasiões ela está presente. Perguntamos por que não pode funcionar como princípio explicativo de todo o politeísmo.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Livre Exame de Romanos (22): Crer e Ouvir
Depois de ter estabelecido que Deus salva o homem da escravidão do pecado, pelo ouvir seguido da fé e da confissão, Paulo passa a explicar por que seus compatriotas, descendentes de Abraão, não alcançaram a salvação. Diz sem rodeios que não foram salvos, porque não creram ou porque, tendo crido, não confessaram a sua fé em Jesus.
Para o afirmar, Paulo se apoia em Isaías, que pergunta quem creu na pregação dos profetas (10:16; Is 13:1). O termo traduzido pregação, nesse verso, é akoi, do qual provém a palavra acústica. Akoi denota o ato de ouvir. A pregação a que Isaías se refere é o ressoar da palavra de Deus aos judeus. A partir dela, o crer ou descrer dos judeus os faz responsáveis diante de Deus.Giorgio Agamben mostrou o percurso seguido pela instituição do juramento (horkos) na cultura grecorromana. Mostrou que, em todas as etapas desse percurso, o juramento esteve ligado à fé (pistis). E que jurar foi o ato pelo qual gregos e romanos sempre prestaram fé da verdade de um fato ou da intenção de cumprir uma promessa. Nesses povos, o valor violado pela quebra do juramento era tão sobranceiro que nenhum castigo ou sanção humana era imposto ao transgressor para que os deuses, pessoalmente, o punissem.
Essas considerações sobre o juramento e a fé tornam tão evidente o sentido jurídico dos termos grego e latino que os designam que, às vezes, Agamben o antepõe ao próprio uso religioso. Ajudam a entender por que, em Romanos, Paulo tece argumentação tão manifestamente jurídica. A salvação, como a apresenta, é um ato jurídico praticado por Deus. Não poderia ser de outro modo, se a palavra pistis estava permeada de tamanho significado legal. Claro que a inteira discussão sobre o caráter judicial ou orgânico, mais judicial que orgânico, mais orgânico que judicial ou tanto orgânico quanto judicial da salvação, que alguns gostam de sustentar, perde sentido, à luz desses dados. Simplesmente não havia, na palavra pistis, a menor implicação de algo orgânico.
Agamben recorda que a fé é “a confiança que depositamos em alguém – a fé que damos – tanto quanto a confiança com que contamos junto a alguém – a fé, o crédito, que temos” (AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem - Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. p. 34). E acrescenta imediatamente que, embora recíproca, a fé não implica uma relação entre iguais. Indica, ao contrário, “a desigualdade das condições [entre as partes que se relacionam]. Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com a proteção sobre aquele que se submete, em troca da sua submissão e na mesma medida desta” (idem. p. 34).
Esse é um ponto por demais fundamental da pistis grega: o fato de relacionar duas partes em situações profundamente desiguais. Não por acaso, Romanos se refere à relação do homem com Deus como uma servidão. Não por acaso, apregoa que, de escravo do pecado, o homem se faz servo de Deus. A servidão cabe no leque de significações de pistis, por constituir uma relação entre desiguais.
Em todos esses pontos, a descrição que Agamben nos fornece da fé concorda com o que o Novo Testamento revela. Contudo, uma comparação mais atenta dos sentidos do termo, num e no outro âmbito, revela também divergências. E é natural que assim seja, pois Paulo usa a palavra pistis para exprimir uma ideia proveniente da cultura judaica, que era muito distinta da grega. Vale a pena indicar quais as principais diferenças no emprego de pistis por Paulo, em relação ao uso grecorromano.
Vimos que, no mundo romano, pistis exprimia uma relação jurídica. Mas o direito que o termo implicava era um método de poder e um regime de força (kratos). Ao usar a palavra fé, Paulo mantém intacto o sentido jurídico dela, mas elimina a implicação de poder. Emprega a palavra de modo a sugerir que Deus, ao nos salvar, volta o direito contra o poder.
Essa implicação decorre dos três primeiros capítulos de Romanos, em que Paulo descreve o pecador, tanto judeu como grego, como alguém enfermo pelo pecado. O enfermo está a tal ponto destituído de força que é incapaz de contrair relações de poder. Quanto mais uma relação com o Deus Todo-Poderoso! E, se assim é, não há razão alguma para pensarmos na fé como expressão de poder. A força e o poder eram significados do termo, no idioma grego e no mundo romano, não no pensamento de Paulo.
A segunda diferença da fé neotestamentária consiste em designar um ato do coração. “Com o coração se crê” (10:10), diz Paulo. Entre os romanos, "fides era um ato verbal acompanhado em geral de um juramento” (idem. p. 35). Esse ato verbal Paulo o transforma num evento silencioso que se passa no coração, numa espécie de assentimento interior à palavra de Deus.
A fé exclui a loquacidade. Exclui toda forma de verbalização. E, se a exclui, devemos entender que rejeita também outras formas de exteriorização. Fé é um momento em que o homem fica a sós com o seu Criador. Por isso, em outra passagem, Paulo nos diz: “Cri, por isso falei; também nós cremos, por isso falamos” (2 Co 4:13). Nesse verso como em Romanos, a fé exclui o falar, ainda que seja seguida por ele. É secreta e silenciosa. Transcorre diante de Deus e apenas ali. É, por definição, o encontro do homem com Deus. O falar é o seu complemento. É o voltar-se do homem que creu para fora de si. Mas, por ser o seu complemento, o falar não é a própria fé. É um ato que se passa diante dos homens: o invocar que Paulo tanto encarece em Romanos 10.
Estas as características estranhas, porque estrangeiras, que Paulo introduz na pistis grega. Ele as introduz não com base em qualquer tradição ou na sua própria opinião, mas por meio das Escrituras. Do solo bíblico, o apóstolo transplanta esses novos significados ao território do grego koiné. Por meio deles, a fé se torna uma experiência distinta da que os gregos e os romanos conheceram. Torna-se o ato de crer sem amparo do poder e sem apelo à exteriorização ritual.
Que experiência surpreendente é essa que Paulo descreve, meticulosamente e em toda a sua extensão? Que palavra nos transmite a sua suma? A que melhor lhe cai é justiça. Paulo diz, tantas vezes, que crer é submeter-se à justiça de Deus! Não pode deixar de dizer, outras tantas , que os judeus não conheceram a justiça de Deus e, por isso, estabeleceram a sua própria: “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus” (10:3).
Justiça é a suma da experiência de fé, como confissão o é da experiência de salvação. Por isso, substituir a justiça de Deus pela própria é errar do pior de todos os modos, com as consequências dignas de lástima que daí decorrem e que vão desde a multidão a clamar “Crucifica-o, crucifica-o” até o endurecimento permanente de Israel.
Paulo lança mão de todas as categorias até então apresentadas, na sua epístola, para explicar esse grave desvio. Cita a pergunta cheia de espanto do profeta Isaías: “Senhor, quem creu em nossa pregação?” Sugere, por ela, que os judeus não creram. E encontra, na incredulidade deles, a resposta que tanto busca. Afirma que os judeus estabeleceram a sua própria justiça, por não terem crido na de Deus.
Mas, essa resposta, Paulo a considera ainda parcial. Não se dá por satisfeito, pois continua a indagar por que os judeus não creram. Põe-se em busca de resposta mais profunda. Teriam, os judeus, permanecido na incredulidade por não terem ouvido? Não é o caso, pois, “por toda a terra saiu a sua voz, e até os confins do mundo as suas palavras” (10:18). A terra citada nesse versículo é a que Deus prometeu a Abraão; confins do mundo (oikoumenes) são os países onde os judeus da Diáspora se estabeleceram. Tanto num como no outro lugar, o evangelho foi pregado. Portanto, as comunidades judaicas, em todo o mundo, o ouviram.
Mas, se ouviram, por que se mantiveram incrédulas? Como um médico incansável, Paulo busca o diagnóstico da doença cujos sintomas se tinham tornado evidentes. Questiona: “Porventura não o souberam?”, como quem pergunta se teriam ouvido, mas não entendido (10:19). Responde que não, pois Deuteronômio afirma que Deus haveria de despertar ciúme em Israel “por causa de um povo insensato” (10:19; Dt 32:21). Se Israel não entendeu e não creu, por que os gentios, que eram faltos de entendimento (insensatos), puderam crer?
E, se a falta de entendimento não explica a incredulidade de Israel, poderia explicá-la a ausência de busca espiritual? De novo não é o caso, pois Isaías profetizou: “Consenti em ser encontrado por aqueles que não me procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome disse: Eis-me aqui” (10:20; Is 65:1). Portanto, se os judeus não se mantiveram incrédulos por não terem ouvido, por não terem entendido ou por não terem procurado, segue-se que não creram, simplesmente, porque a fé não lhes foi dada.
Um olhar de águia sobre a História permite-nos entender que a fé romana, tão igual e tão diferente da que Paulo apresenta, ligada como ela ao direito, mas calcada no poder mais cruento, produziu como resultado o hedonismo. Não um hedonismo completo, pois o prazer não reina absoluto onde o punhal interrompe a lei. Nem um hedonismo democratizado, pois os escravos, os bárbaros e os citas nunca tiveram acesso a ele. Mas, de qualquer modo, um hedonismo substancial. Um dos maiores de toda a História. O hedonismo da Corte dos Césares, das casas dos nobres, das classes abastadas e da legião sempre presente dos que, sem o serem, tentavam ser como eles. Nos centros desse hedonismo, a música mais sublime, os poemas e a literatura mais arrebatadores sempre se misturaram à traição e aos bacanais, como fios de um tecido improvável.
Porém, a civilização calcada no mais extenso poder, em toda a Antiguidade, fracassou ao tentar tornar-se uma civilização do prazer. Após ter-se firmado como a civilização com poder mais extenso, o Ocidente realiza tentativa semelhante, nos nossos dias. Com sua incomparável força, tenta fazer-se uma civilização do prazer. E, como Roma teve de opor o seu hedonismo à fé cristã ao tentar promovê-lo, é necessário que o Ocidente enjeite a fé que o deu ao mundo para propor o seu próprio.
Por que o poder, embora mesclado com a fé, termina assim no hedonismo? Por que terminou assim em Roma e termina do mesmo modo, no nosso tempo? Será porque falte à fé que é poder o elemento capaz de conservar a convivência humana? Será tal poder conservador algo privativo da fé-humildade, que Cristo nos revelou?
A proposta de Cristo ainda se faz ouvir. É a proposta de uma fé sem poder, de uma fé que é humildade e, se é também poder, é poder humilde. Nem por isso o poder é visto pela fé como negativo. Mas ele a vê como tal. Sempre a viu, e isso faz a diferença entre um e outro. Entre fé humilde e poder hedonista. Sobre a histórica cena desse conflito, Santo Agostinho talvez dissesse que duas civilizações tentam erguer duas cidades ao prazer, pela negação de uma só fé. E que a negação nunca trouxe paz ao mundo, somente espada. Trará hoje paz?
P.S.: Agradeço a Maria Izabel Birolli ter-me enviado o livro de Agamben sobre o juramento, que usei para interpretar Romanos 10.
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