Na literatura e no culto cristão, o Espírito Santo é mencionado em fórmulas às vezes tão repetitivas que corremos o risco de o tomar como um tema trivial. Porém, quando prestamos atenção no modo como Cristo e os apóstolos se referiram ao Espírito de Deus, verificamos que ele nada tem de comum. Romanos 8:1-16 é exemplo claro disso. Nesses versículos, a palavra Espírito é usada 17 vezes, quase sempre para se referir à pessoa do Espírito Santo, em termos inusitados e surpreendentes.
A primeira menção do Espírito aparece no versículo 2: “Porque a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus me livrou da lei do pecado e da morte”! Paulo não diz, aí, simplesmente, que o Espírito o livrou do pecado e da morte. Diz que a lei do Espírito o fez. Portanto, associa o trabalho do Espírito a uma lei.
Isso é próprio da mentalidade judaica, para a qual toda revelação de Deus tem relação com a lei. Trata-se, porém, de estabelecer exatamente a que lei Paulo se refere: se à lei a do Antigo Testamento ou a alguma outra.
Ao longo da História, muitos estudiosos das Escrituras tentaram responder essa pergunta. Não faltou, inclusive, quem oferecesse resposta exótica a ela. No entanto, as melhores respostas sempre foram as mais simples. E a mais simples resposta à pergunta é a que reconhece que a lei do Espírito é a que Paulo chama também “lei de Cristo”.
Vemos essa lei mencionada em Gálatas 6:2: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”. E, de novo, em 1ª aos Coríntios 9:21: “Para com os sem lei [procedi] como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo”.
Em hebraico, torá (lei) significa ensino ou instrução. Lei de Cristo é, portanto, o ensino de Cristo a respeito do Antigo Testamento. Durante o seu ministério, na Terra, Jesus ensinou muitas vezes como a palavra de Moisés e dos profetas deve ser interpretada e aplicada. Ele disse, por exemplo, que não veio revogar a lei, mas cumpri-la (Mt 5:17). E que, até que o céu e a terra passem, nem um til ou iota da lei passará, sem que tudo se cumpra (Mt 5:18).
Essas declarações centrais permitem-nos estabelecer que a lei de Cristo não é outra coisa que a lei do Antigo Testamento como Cristo a ensinou e aplicou. E, como o Espírito foi enviado para nos levar a “toda a verdade” (Jo 16:13), lei de Cristo é também a que ele confirma e explica. É a que “o Consolador, o Espírito Santo”, que o Pai envia em nome do Filho, “vos ensinará”, pois ele “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14:26). A única diferença é que Cristo ensinou essa lei, visivelmente, aos seus discípulos, na Terra, ao passo que o Espírito a ministra, de modo invisível, ao coração dos que creem.
Se as palavras que Jesus disse, na Terra, não foram ditas por ele mesmo, mas pelo Pai (Jo 14:10), e se o Espírito não fala por si mesmo, mas diz o que ouve do Filho, enfim se ele “há de receber do que é [do Filho], e vo-lo há de anunciar” (Jo 16:13-14), não podemos senão considerar que a lei do Espírito da vida é o mesmo que a lei de Cristo.
No século II, o gnóstico Marcião difundiu o ensinamento de que o Deus do Antigo Testamento é distinto do Pai de Jesus. Chegou até mesmo a afirmar que o primeiro é mau e cruel, ao passo que o Deus de Jesus é bom. Esse ensinamento trazia a implicação de que o Antigo Testamento é a palavra do Deus de natureza má. Porém, isso é gnosticismo, não fé cristã. João diz-nos que o Pai e o Filho são um (Jo 10:30). Isso implica que o Filho diz o que Pai diz. E é claro que o Espírito diz o que Pai e o Filho dizem.
Assim como a lei do Antigo Testamento foi dada por intermédio de Moisés e, por esse motivo, foi denominada “lei de Moisés”, a do Novo Testamento é revelada pelo Espírito Santo e, por isso, se chama lei do Espírito. Acaso não é assim? João não nos diz que “a lei foi dada por intermédio de Moisés” (Jo 1:17)? E Hebreus não se refere a essa lei como a de Moisés, ao dizer que, “sem misericórdia, morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés” (Hb 10:28)?
Porém, o versículo de João que afirma que a lei foi dada por Moisés acrescenta que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Para uma mentalidade judaica, essa graça e essa verdade, permitam-me propô-lo à consideração de todos, incluem uma lei e até mesmo são a lei de Moisés considerada do ponto de vista da graça e da verdade.
O sentido dessa lei é exposto, com particular clareza, na passagem em que os escribas e os fariseus levaram a Jesus uma mulher flagrada em adultério e lhe indagaram o que devia ser feito a ela: “Na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que nos dizes?” (Jo 8:5). Sabemos que a resposta de Jesus àqueles líderes limitou-se à frase, a um tempo, iluminadora, cortante e áspera: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. Outra versão afirma: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra” (Jo 8:7).
No tempo de Jesus, uma pessoa ser arrastada à presença de um juiz equivalia a ser processada. A condução do acusado pelo acusador era o que hoje denominamos citação ou ato pelo qual se inicia um processo. João 8:3-11 indica, portanto, que Jesus foi considerado uma autoridade por aqueles que levaram a mulher à sua presença. E as palavras que ele disse à mulher, no fim da passagem (“eu tão pouco te condeno”), sugerem que os próprios acusadores não a condenaram, antes aceitaram o veredito de absolvição de Jesus.
João 8:3-11 é, talvez, a única passagem em que Jesus interpreta a lei de Moisés na condição de juiz. A única em que ele fala, a partir da cátedra judicial. Nessa especial ocasião, vemos Jesus proferir uma palavra aos acusadores da pecadora (“Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”) e outra à mulher (“Eu tão pouco te condeno. Vai e não peques mais”).
A primeira declaração é crucial. Algumas traduções expressam-na como “quem estiver sem pecado”; outras, como “quem nunca pecou”. Trata-se de coisas bastante distintas, já que “estar sem pecado” refere-se a uma pureza momentânea, ao passo que “nunca pecou” implica um tipo de pureza permanente, ou seja, por toda a vida.
O termo original traduzido dessas duas maneiras é anamártitos. Sabemos que, em grego, hamartia significa pecado, e o prefixo a ou an tem o sentido de não. Portanto, anamártitos indica uma condição sem pecado. Como os judeus não admitiam que alguém pudesse nascer e se conservar sem pecado, ao longo de toda a vida, temos de entender que anamártitos sinaliza uma condição de pureza temporária. “Quem estiver sem pecado” traduz melhor essa condição do que “quem nunca pecou”.
O verso seguinte a essa declaração demonstra como os acusadores da mulher entenderam as palavras de Jesus: “Acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos” (Jo 8:9). A parte decisiva do verso é a que diz “acusados pela própria consciência”. Ela mostra que a não pecaminosidade a que Jesus se referiu não é meramente ritual. Não pode ser alcançada pela observância de um rito, pois é interior e está relacionada à consciência.
Jesus disse à mulher, após os acusadores dela se retirarem: “Eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais” (Jo 8:11). Se não podemos conceber uma “lei de Cristo” contrária ao que Cristo ensinou sobre a lei, temos de concluir que o núcleo vital da lei de Cristo é a não condenação. Moisés ordenou que os adúlteros fossem mortos, pelo mesmo motivo por que autorizou dar carta de divórcio: “por causa da dureza do vosso coração” (Mt 19:8). Porém, ao interpretar aquele mandamento, Jesus antepôs-lhe uma condição sem a qual ele não pode ser aplicado pelos homens.
Claro que Jesus preenche a condição anteposta ao mandamento. Paulo diz, claramente, que “ele não conheceu pecado” (2 Co 5:21). E o autor de Hebreus acrescenta que Jesus foi tentado “em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4:15). Porém, a pureza radical de Jesus, em vez de identificá-lo com o homem, distingue-o. A pureza que a lei exige de um ser humano para condenar o outro é aquela possível à criatura. Não é a pureza divina.
Jesus não disse “Aquele que dentre nós estiver sem pecado”. Ele disse “dentre vós”. Assim, a pureza exigida para aplicar a pena de morte deve ser encontrada entre os homens. Não é a pureza do Filho de Deus, que não está vinculado à condição prevista na lei. Por isso, as palavras de Jesus à mulher não foram de condenação, mas de absolvição.
Ouso pensar que essa é a lei de Cristo. E que a lei de Cristo é a lei do Espírito da vida, a que Paulo se refere em 8:2. O Espírito mencionado 17 vezes na primeira metade do capítulo 8 não tem, para Paulo, qualquer papel. Não inspira qualquer sentimento, não fala quaisquer palavras. O Espírito revela a lei de Cristo, que é tão diferente da lei que demanda e mata, demanda e mata, demanda e mata infinitamente!
A lei de Cristo e do Espírito não mata: dá vida! Porém, por ser tão elevada, ela não pode ser conhecida do modo como as coisas comuns o são. Não é uma lição que se ensine ou se aprenda em escolas. Não se ouve aos pés de Gamaliel, porque Deus reservou-a ao ensino direto e exclusivo do Espírito Santo.
O Espírito usa todas as circunstâncias para nos ensinar. Usa, porém, o sofrimento de um modo todo particular. Por isso, o próprio Senhor chamou-o Consolador. Ninguém pode consolar, se não há dor. Por isso, o Espírito atua na dor, na miséria e no sofrimento. Paulo diz que o Espírito geme, e ele não parece fazê-lo por outra razão a não ser porque nós gememos.
Não que Deus queira ou ame o sofrimento. O sofrimento está dado na ordem das coisas. Não procede de Deus. Mas, por ser Deus, ele se apraz em transformar a dor em alegria, a derrota em vitória. Como ele o faz? Paulo nos diz que o Espírito faz essas coisas gemendo em nós, não para aumentar a lamentação, mas para se unir entranhadamente a nós no pior de todos os abismos, no mais escuro de todos os vales, a fim de ali fazer brilhar a luz do mundo.