quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Livre Exame de Romanos (17): O Espírito que dá Vida

O Espírito de Deus e o espírito humano são mencionados amiúde, no Antigo Testamento. Porém, quando olhamos para o tratamento que Paulo dispensa a eles, encontramos diferença tão grande que chegamos a pensar que nem um, nem outro foram propriamente “revelados”, nas páginas do Antigo Testamento.
Certifiquemo-nos dessa diferença, primeiramente, no caso do homem. Paulo foi dos primeiros a afirmarem o que hoje se denomina tricotomia, no sempre citado verso de 1ª aos Tessalonicenses (5:23): “E o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.
De certo modo, a doutrina desses três níveis do homem já estava presente, no Antigo Testamento, embora com outro sentido. Em Jó 7:11, encontramos: “Não reprimirei a minha boca, falarei na angústia do meu espírito, queixar-me-ei na amargura da minha alma”. A boca é um órgão do corpo. Temos, portanto, o corpo, o espírito e a alma mencionados nesse versículo. E encontramos os últimos dois, novamente, em Jó 12:10.
Porém, em Jó como nos outros livros do Antigo Testamento, nada nos autoriza a traçar diferença radical entre os órgãos incorpóreos do ser humano. O fato de o espírito ser mencionado junto com a alma, em certas passagens, não basta para os diferenciar. Em vez de sustentar que a aproximação implica distinção, podemos pensar, ao contrário, que o espírito e a alma são mencionados no mesmo verso por serem semelhantes. Sob essa interpretação, a angústia do espírito, em Jó 7:11, é análoga ou comparável à amargura da alma.
E, se elevarmos um pouco mais a vista, veremos que tudo o que se afirma do espírito em conexão com a alma é semelhantemente afirmado, sem conexão com ela. Não precisamos sair do Livro de Jó para o comprovarmos, já que o versículo 21:4 dele nos diz que o “espírito tem motivo de se impacientar”, o que é substancialmente o mesmo que se angustiar em 7:11. A Versão Almeida RA Fiel inclusive traduz impacientar-se como angustiar-se.
Mas isso não é tudo. O que se afirma do espírito, separadamente ou em contraposição à alma, é dito também da alma. Em Gênesis 42:21, os irmãos de José afirmam: “Somos culpados no tocante a nosso irmão, pois lhe vimos a angústia da alma, quando nos rogava”. Nesse verso, é a alma que se angustia, assim como o espírito em Jó. E, se quisermos generalizar, não fugiremos à verdade se dissermos que o que o Antigo Testamento afirma do espírito tudo o que afirma também da alma.
Nesse quadro geral do Antigo Testamento, versículos mais ou menos isolados em que a alma e o espírito são justapostos não bastam para diferenciá-los, antes se explicam de diversas maneiras. Os versos de Jó, por exemplo, justificam-se pela característica típica da poesia hebraica de trabalhar com repetições levemente modificadas. Nesse sentido, o salmista declara: “Os céus proclamam a glória de Deus” e reafirma: “e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19:1). Essa característica do verso hebraico permite-nos entender o espírito e a alma mencionados em Jó 7:11 ou 12:10 como variações de um mesmo tema, não como órgãos nitidamente diferenciados.
Dezenas de versos nos mostram que a regra geral, no Antigo Testamento, é o que se afirma do espírito ser afirmado também da alma e vice-versa. Por amor à brevidade, mencionarei apenas alguns. Isaías 19:14 afirma: “O Senhor derramou no coração deles um espírito estonteante”. Na Versão Almeida RA Fiel e na tradução de Darby, em lugar de estonteante, lemos “espírito perverso”. Em Daniel 2, versos 1 e 3, vemos o espírito do rei Nabucodonosor perturbar-se e, em 7:15 do mesmo livro, o espírito de Daniel alarmar-se. Em 1º de Samuel 1:15, Ana confessa ter o espírito atribulado e, em Ezequiel 21:7, Deus manda o profeta anunciar que todo espírito angustiar-se-á com as notícias que chegarão a Judá.
Nesses textos e em muitos outros semelhantes, o espírito realiza o que a alma é perfeitamente capaz de praticar e vice-versa. Nada, portanto, nos autoriza a afirmar qualquer diferença fundamental entre eles. De sorte que o espírito está presente no Antigo Testamento, mas a tricotomia não é ali revelada de maneira clara.
A situação é diferente nos textos de Paulo. 1ª aos Tessalonicenses 5:23 não é parte de um poema, como Jó 7:11 e 12:10. Não se explica, portanto, pelo costume poético de repetir afirmações. E, quando notamos as funções geralmente inusitadas que Paulo atribui ao espírito, em Romanos, percebemos que a sua intenção é afirmar uma diferença efetiva entre ele e a alma. Resta estabelecer em que consiste essa diferença e qual é a sua importância para a salvação de Deus.
Um bom ponto de partida para isso é reconhecermos o paralelo que Paulo traça entre o espírito do homem e o de Deus. O paralelo está ressaltado em 1ª aos Coríntios 2:10-11, que afirmam: “Deus nos revelou [a sua sabedoria] pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito que nele está? Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus”.
Na época de Paulo, os judeus em geral concebiam o Espírito Santo como uma hipóstase de Deus, isto é, como um poder ao qual se atribuem determinados atos. A Sabedoria de Deus, por exemplo, era uma hipóstase, que os cristãos cedo identificaram com o Filho de Deus, Jesus Cristo. O livro chamado da Sabedoria, incluído no cânon helenista do Antigo Testamento, trata extensamente da sabedoria dessa maneira hipostasiada. Porém, havia outras hipóstases além dela, assim como o Espírito Santo. Nem sempre os judeus as tratavam como pessoas, mas algumas vezes o faziam. Quando reconheceram que o Filho de Deus e o Espírito Santo são pessoas divinas, os cristãos procederam em conformidade com esse último modo de entender as hipóstases.
Às vezes, em vez de ser um poder ou atributo, a hipóstase era uma relação existente em Deus. No seu livro A Trindade, Santo Agostinho apresentou o Espírito Santo dessa maneira. Apresentou-o como a relação de amor entre o Pai e o Filho. Não é preciso lembrar que, ao longo da História, essa doutrina foi largamente acolhida.
Não é improvável que, séculos antes de Agostinho, Paulo tenha concebido o Espírito Santo como uma relação existente em Deus ou, mais exatamente, como a relação que o Pai tem com o Filho. Jesus não se referiu, em termos enfáticos, a essa relação quando declarou: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10:30)? E não dedicou o longo discurso de João 14 a 16 a detalhá-la em termos arrebatadores e impressionantes? Isso mostra que Jesus considerava a sua relação com o Pai o centro da sua existência e da sua missão no mundo.
À luz de João 14 a 16, é inteiramente apropriado pensar que o Espírito de Deus nos revela a relação que o Pai tem com o Filho e até mesmo é essa relação. A diferença é que, ao nos referirmos ao Espírito, tratamos a relação como uma pessoa distinta do Pai e do Filho. Esse tratamento é a hipostasiação, com a qual os judeus do primeiro século estavam acostumados.
Se, em 1ª aos Coríntios 2:11, portanto, o Espírito de Deus está em claro paralelo com o espírito humano, não é impróprio pensar neste último como o homem enquanto se relaciona consigo mesmo. E, se o Espírito perscruta todas as coisas, mas, de modo particular, as profundezas de Deus, não é incorreto supor também que o espírito humano conhece as coisas do homem, mas especialmente as que formam o fundo do seu ser.
As palavras “assim também”, em 1ª aos Coríntios 2:11, chamam nossa atenção. Elas indicam que o espírito humano é de algum modo semelhante ao de Deus. A semelhança decorre de o homem ter sido criado à imagem de Deus. De modo que, se o Espírito é uma relação de Deus consigo mesmo, nada há de espantoso em considerarmos o espírito humano uma relação que o homem mantém consigo.
Dirão que essa relação não existe? Que só um louco se relaciona consigo próprio? Se o disserem, faltarão com a verdade, pois é manifesto que todo homem relaciona-se consigo mesmo, de dois modos principais. Primeiramente, ao construir sua memória, ele se debruça sobre o que a experiência sensível deposita no seu interior. E depois, ao lidar com essas memórias, por exemplo, nos sonhos, o inconsciente as religa e recria, dos modos mais inusitados.
De sorte que, se o Espírito de Deus é uma hipóstase e o homem foi criado à imagem de Deus, necessário é que o do homem seja a imagem daquela hipóstase. Assim aproximados, o Espírito de Deus e o do homem passam a constituir o centro da revelação divina, nos escritos de Paulo. Unidos, o Espírito de Deus e o nosso testificam que somos filhos de Deus (8:16). De acordo com o mesmo princípio, a consciência de Paulo “testemunha no Espírito Santo” (9:1) e “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17).
Nada disso se encontra no Antigo Testamento. De Gênesis a Malaquias, o Espírito de Deus é mencionado muitas vezes, mas não como a relação do Pai com o Filho. Ele tampouco é ligado ao espírito humano, e este não nos é apresentado como a relação do homem consigo mesmo.
Por esses motivos, é difícil receber a revelação do Espírito Santo, no Novo Testamento, sem receber juntamente a do espírito humano. Os temas estão relacionados e são inconcebíveis fora da relação que mantêm. Toda tricotomia, toda diferenciação entre o espírito e a alma, que se esquece de tal relação é inventiva e gratuita. Baseia-se na imaginação do intérprete e na sua vontade de afirmar a distinção de sua preferência entre a alma e o espírito. Não se baseia no modo como a diferença foi concebida por autores bíblicos como Paulo.
Entendido, porém, da maneira apostólica, o trabalho do Espírito Santo constitui o ápice da apresentação do evangelho. Nos capítulos 1 a 3 de Romanos, a salvação é proposta como remédio para a perdição e a condenação de gregos e judeus. Nos capítulos 4 a 6, a imputação da justiça é mostrada. Porém, o ápice, a culminância, da salvação de Deus só aparece com a convergência dos temas do Espírito de Deus e do espírito humano, no capítulo 8. Essa convergência é o âmago do evangelho de Deus. Quando lemos que o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus, não lemos sobre algo secundário, mas sobre o mistério revelado por Deus.
O mesmo se dá quando ouvimos que “o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10). O objetivo da salvação de Deus não é convencer do pecado ou justificar o pecador, mas comunicar-lhe vida eterna. Paulo esclarece que essa vida é transmitida primeiramente ao espírito (8:10). Isso está claro no emprego do tempo verbal presente: o corpo está (já está) morto, mas o espírito é vida (já é vida) por causa da justiça. Em seguida, ele diz que a mente deve renovar-se (12:1), o que ainda não se consumou. Por fim, assevera que o dom da vida será comunicado também ao nosso corpo, por meio do Espírito que em nós habita (8:11).
Paulo não diz apenas que o espírito tem vida, mas que ele é vida por causa da justiça. Ser vida é muito mais do que possuí-la. Heidegger descreveu a existência do homem como um ser-para-a-morte. O homem caminha para a morte e a tem em vista, mesmo enquanto vive. Isso concorda apenas em parte com o ensino de Paulo. Para ele, o corpo se orienta para a morte, mas a nova criação consiste em Deus engendrar um reduto, no nosso interior, que não mais se orienta para a morte e sim para a vida. “O corpo, na verdade, está morto, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10).
O espírito humano é um lugar único, onde a vida eterna se instala. Não é, porém, o único lugar (abençoado), pois, do espírito, a vida tende a tomar toda a mente humana. É o que significa o homem interior renovar-se, enquanto o exterior se corrompe (2 Co 4:16). Paulo chega a dizer que esse homem renova-se de dia em dia. Isso mostra que o recebimento da vida eterna pela mente humana pode ser gradual, mas é também incessante.
A Bíblia não diz que a alma é imortal e ponto, como se fosse imortal por natureza. Ainda que Jesus nos tenha exortado a não temer os que não podem matar a alma (Mt 10:28) e tenha prometido ao ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43), devemos recordar a multidão de passagens do Antigo Testamento que afirmam que os pensamentos do homem perecem no dia da sua morte. O balanço dessas afirmações contrapostas pode bem significar que a imortalidade não é algo líquido, certo e invariável, como se decorresse da natureza das coisas. Por ser dom de Deus, ela pode ser-nos comunicada, mas prestemos atenção, pois pode ser também retirada. Nada há de mais certo, contudo, que a garantia que o Novo Testamento nos dá de que o dom da vida eterna não será suspenso, nem nos será retirado, enquanto estivermos voltados para o sangue vertido na cruz, para a redenção que Deus imputou por justiça.
Daí a canção de Paulo, que tudo desafia, com base na maior de todas as obras: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?” Até aqui, só coisas presentes são mencionadas. Mas o apóstolo continua, para nossa inteira felicidade: “Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (8:35,38-39).