Após ter apresentado as condições opostas do homem escravizado ao pecado e sujeito a Cristo, Paulo passa a ilustrar o seu pensamento com o caso da mulher ligada ao marido pela lei matrimonial. O caso é apresentado em forma de parábola, que o apóstolo conta e interpreta em apenas três versículos: “Ignorais, irmãos [...] que a mulher casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o marido, estará livre da lei, e não será adúltera se contrair novas núpcias. Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, aquele que ressuscitou dentre os mortos” (Rm 7:1-4).
Desde a publicação da obra de Joachin Jeremias sobre as parábolas bíblicas, sabemos que essa figura de linguagem incluía desde simples exemplos citados para ilustrar um ensino até narrativas elaboradas como a do filho pródigo. Sob esse ponto de vista, os versículos 2 a 4 do capítulo 7 devem ser considerados uma parábola contada por Paulo para ilustrar o que havia afirmado no capítulo anterior, a saber: a passagem do homem da escravidão ao pecado à servidão a Deus.
Porém, ao explicar sua parábola, Paulo revela-se um mestre diferente de Jesus. Quando se dirigia aos discípulos, Jesus interpretava as parábolas que lhes contava em poucos versículos ou, às vezes, num só. Paulo se estende muito mais na interpretação da parábola de Romanos 7. Embora o verso 4 nos dê um resumo do significado da mulher e seus maridos, os versículos 5 a 25 continuam longamente a interpretar a parábola e a aplicá-la aos romanos.
Os leitores judeus e gregos da epístola sabiam que tanto a lei de Moisés como o Direito Romano previam que, quando o marido morresse, a mulher estaria liberta de suas obrigações para com ele e poderia casar-se com outro homem. Porém, Paulo aplicou esse exemplo não ao ser humano inteiro, mas à mente considerada de modo específico. A mulher ligada ao primeiro marido representa a mente no estado de escravidão ao pecado. E a mulher unida ao segundo marido é a mente sujeita a Cristo, por meio do Espírito que habita nos que creem nele.
Isso se torna evidente no versículo 5, em que Paulo afirma: “Porque, quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas postas em realce pela lei operavam em nossos membros a fim de frutificarem para a morte”. A palavra porque conecta, manifestamente, o versículo 5 ao 4. Ela mostra que o verso consecutivo explica o que o antecede, isto é, que a mulher que morreu para a lei do primeiro marido é o ser humano sob as “paixões do pecado”.
Não há como duvidar disso. E, se continuarmos a ler o capítulo, com a devida atenção, notaremos que os versículos 6 a 14 não mudam de tema. De modo que a única peculiaridade dos versículos de 7:5 a 7:14 consiste em mostrar-nos como a sujeição ao pecado se dá. Romanos 1 a 6 afirmam a escravidão do homem ao pecado, porém não explicam o “como” dessa escravidão, vale dizer, o modo como acontece. Precisamos percorrer, com atenção, os versículos 5 a 14 do capítulo 7 para entendermos esse ponto crucial.
No entanto, nos versículos 15 a 25, outro ponto é desenvolvido. Nesse trecho final do capítulo, Paulo já não trata, simplesmente, do império do pecado sobre o ser humano. Trata antes de um conflito, de uma oposição dilacerante, que se desenvolve entre a inclinação da mente e a da carne do ser humano. O primeiro versículo dessa subseção estabelece: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim, o que detesto.”
Esse versículo não está desligado da parábola mencionada em 7:2-4. Pelo contrário, ele é uma explicação da parábola, tanto quanto os versos 7:5-14 o são. A única diferença é que 7:5-14 nos falam da submissão da mulher ao primeiro marido, ao passo que 7:15-25 discorrem sobre a sua insubmissão.
Nenhum ser humano é apenas submisso. Nem mesmo o escravo. Embora seja usualmente dócil e sujeito ao jugo que lhe fustiga a cerviz, no recôndito de sua alma, o escravo cultiva a insubmissão. Deseja que o vínculo que o sujeita ao senhor se desfaça. Na Antiguidade, a mulher era uma espécie de escrava doméstica. Por isso, Paulo a compara ao homem sujeito ao pecado. Mostra, também, que a mulher era uma escrava que podia libertar-se do marido quando este morresse.
O auge do tratamento que Paulo dispensa ao conflito da mulher-escrava encontra-se no versículo 15. Nesse trecho, o apóstolo afirma que, ao pecar, o homem não realiza o que quer, mas o que não deseja. Essa dissociação do querer e do agir abre uma fissura no eu, uma espécie de ruptura entre a vontade e o comportamento do homem. Sabemos que, no século I, várias correntes de pensamento platônicas dividiam a alma numa parte racional (mente), outra volitiva (vontade) e uma terceira parte apetitiva (paixões). É provável que Paulo tenha entrado em contato com essas correntes e, até certo ponto, se inspirado nelas ao afirmar a ruptura já mencionada.
Porém, percebemos que ele não adota o pensamento de qualquer daquelas correntes. Pelo contrário, Paulo reconduz a inspiração platônica ao ensinamento bíblico. Sinal claro disso está no fato de ele não se referir às paixões carnais e à mente como partes da alma, como os platônicos geralmente faziam. Afastando-se deles, Paulo considera as paixões e a razão diferentes experiências da mulher sujeita ao primeiro marido. Como todo escravo, a mulher obedece ao seu dono sem reservas. Mas, também como era comum ocorrer com os escravos, sua obediência é considerada apenas exterior. Por dentro, a mulher cultiva conflitos e uma funda insubordinação ao marido cruel, do qual deseja libertar-se, ainda que seja por meio da morte.
Esse conflito, Paulo nos diz, representa o do homem com o pecado que atua por meio das paixões carnais. No versículo 9, ele já firmara: “Outrora, sem lei, eu vivia, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri”. É provável que a palavra outrora , nesse versículo, signifique a meninice do apóstolo, a idade que antecede o uso da razão. Numa epístola como Romanos, em que o império do pecado sobre todo homem é claramente afirmado, a cláusula “outrora eu vivia” aconselha-nos certa cautela. Mostra-nos que o império do pecado não é totalmente universal. Claro: não se pode negar a universalidade do pecado e da morte expressa em Romanos 1 a 3. Porém, não se trata de uma universalidade ilimitada ou absoluta, pois de algum modo ainda pode haver vida, onde Paulo afirma que o pecado abunda. É o que está indicado na frase "Outrora, sem lei, eu vivia".
Porém, o apóstolo continua e o faz com toda ousadia. Ele afirma que a paz que teve com Deus terminou, quando conheceu o mandamento da lei. Não que a lei se tenha transformado em pecado. Pelo contrário, ela é santa, e o mandamento, santo, justo e bom (7:12). Mas, embora santo, o mandamento que deu vida a Paulo na meninice deixou de o fazer, quando ele se colocou na perspectiva da idade adulta. Quando isso ocorreu, Paulo morreu. É o que ele nos diz em Romanos. De onde proveio essa morte? Não veio do mandamento, que é santo e não pode matar. E, se não proveio daí, só pode ter vindo do elemento pecaminoso desenvolvido a partir de Adão.
Esse elemento pecaminoso está na carne do homem, que de modo nenhum é uma parte do seu ser. A carne não é uma parte, um trecho, uma seção do homem, porque não pode ser apartada dele, enquanto o homem vive. Somente o que pode ser apartado deve ser considerado parte. Enquanto estamos neste tabernáculo, para usarmos a palavra empregada por Paulo em 2ª aos Coríntios 5, nem a mente, nem a vontade, nem os apetites carnais podem ser apartados do homem. Todos funcionam de maneira integrada. Portanto, nenhum deve ser considerado parte.
É verdade que Hebreus 4:12 afirma que a palavra de Deus é capaz de separar corpo e alma. Porém, isso significa que, se a palavra de Deus tem tal capacidade, nós não a temos. Ou não é isso que as Escrituras ministram? A palavra de Deus foi capaz de criar o Universo: somos nós capazes de o fazer também? Se não o somos, devemos concluir que tampouco podemos separar corpo e alma.
A inseparabilidade radical do corpo e da alma, com tudo o que neles há, enquanto a palavra de Deus não os cindir, é a causa do conflito atroz que Paulo descreve em 7:15-25. A mente guerreia com a carne, porque estão juntas no mesmo homem. O núcleo do conflito entre as duas está expresso nos versículos 21 e 22: “Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus”.
Como fariseu (At 23:6) educado aos pés de Gamaliel (At 22:3), o que ele nunca negou, Paulo centrava sua vida espiritual na lei de Deus. Por isso também, ele reduzia o conflito entre o querer e o fazer do homem a uma lei que denominou “lei da mente”: “Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros [...] De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo [servo] da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado” (7:23,25).
Romanos 6 a 8 referem-se à lei dada por meio de Moisés como lei de Deus. Porém, esses capítulos também tratam de outra lei divina, que precisa ser descoberta. Só algo sutil e oculto pode ser descoberto. Portanto, essa outra lei recôndita é a Torá enquanto conhecida pela mente humana. Quando o homem chega à idade da razão, o conhecimento que adquire da lei de Deus torna-se para ele a própria lei de Deus subjetivamente considerada. Essa é a lei da mente a que Paulo se refere.
O problema enfocado em Romanos 7 é que a contradição entre a lei da mente e a lei do pecado nos membros produz um conflito terrível, que não raro descamba para uma experiência traumática. Lutero sucumbiu a essa experiência, ao descobrir as exigências dos Dez Mandamentos e se entender incapaz de cumpri-los. John Wesley também sucumbiu a ela ao pregar o evangelho aos selvagens da América do Norte sem compreender a sua própria impotência para praticar o que pregava. E somos levados a crer que Paulo teve a mesma experiência ao perseguir os cristãos, a fim de forçá-los à obediência a Moisés.
Não haveria problema no conflito entre esses dois modos de ver a lei, se a carne do homem não estivesse enferma, no tocante a cumprir a exigência da lei de Deus. De onde provém a sua enfermidade? De Adão, porém não como herança genética ou espiritual. Ela provém do princípio de Adão, que é o pleno conhecimento da exigência de Deus para o homem. Adão conheceu a exigência de Deus. Não teve, porém, o poder de satisfazê-la. Do mesmo modo, os seguidores judeus ou gentios do Antigo Testamento conhecem os mandamentos de Deus, mas não têm o poder de cumpri-los.
Quando afirma que a lei se tornou “enferma pela carne” (8:3), Paulo não está a sugerir que algo negativo infiltrou-se na lei pela carne, mas que algo negativo entrou no homem pelo pecado, a saber: a fraqueza ou enfermidade para cumprir o preceito de Deus. O corpo é naturalmente propenso às paixões, o que não significa que é mau ou pecaminoso. É apenas mais inclinado que a mente a pecar. Assim é na criança e no adulto. Porém, não é isso que Paulo chama pecado em Romanos. Nessa epístola, pecado é a ressurreição, o avivamento da fraqueza da carne, por meio da lei.
Esse avivamento é o que gera o grave conflito descrito no capítulo 7, que começa no instante em que o homem percebe que a lei da sua mente guerreia contra uma segunda lei subjetiva: a lei do pecado na carne. Assim como a mente compreende e consente com a lei de Deus, a carne também o faz. Mas, ao mesmo tempo em que compreende o mandamento de Deus, ela se inclina a descumpri-lo, pois a natureza física do homem o impele a pecar, quanto mais ele se afasta de Deus. Por isso, quando conhece a lei, a carne produz outra lei que guerreia contra a lei da mente.
Essa é a lei que liga a mulher ao primeiro marido. É a única fonte de escravidão existente na Terra. O homem só pode tornar-se escravo do pecado de uma maneira: se ele próprio tomar a lei de Deus, de acordo com as inclinações da sua carne: então, em primeiro lugar, ele matará Deus, a fim de trocá-lo por um ídolo. Em segundo lugar, matará o seu próximo, o seu irmão, como Caim matou Abel. Ou não foi essa a consequência imediata ao pecado de Adão? Por fim, se nada for feito para conter a decadência, o pecado infestará cada parte da humanidade, de modo a introduzir a guerra de todos contra todos ou, simplesmente, a lei do mais forte. Não é o que vemos no mundo?